Aquele jornalista era sem dúvida o mais cão-de-fila de toda a cáfila jornalística que pululava pelas principais redacções de televisão.
Tinha uma postura agressiva sempre que o seu entrevistado parecesse estar numa posição antagónica à sua. Se estivesse então conotado, ou fizesse mesmo parte daquilo que é hoje considerada a nova direita, mordia.
Era agressivo, mal-educado, interrompia, sentia-se a vontade insolente de cuspir para cima do interlocutor e isso verificava-se num franzir de olhos bastante nervoso, sendo mesmo acometido por esse movimento muscular frequentemente, sobretudo defronte de entrevistados alvo.
Mas o jornalista era baixinho e parecia não ter físico que garantisse em caso de luta, uma vitória fácil, mesmo que se tratasse de uma mulher.
Para estes feministas de estúdio, ser mulher não interessa se não partilharem das mesmas ideias. Nesse caso o universo feminino não é para defender.
Imaginava-se até que fosse medroso e provocador tipo “Ò Evaristo tens cá disto?”
Um toca-e-foge sempre que não tivesse as costas quentes de um estúdio ou de uma voz gélida a dar ordens no seu auricular.
Mas desta vez a entrevistada vinha do Partido Socialista e era Presidente de Câmara de uma pequena cidade. A realização da entrevista devia-se à senhora ter gerado alguma polémica por ter proferido na rádio local da sua cidade que existiam muitas pessoas dessa região a usufruírem de subsídio, quando se sabia que algumas ostentavam casas com piscina, ou vivendas caras, ou mesmo carros de luxo, incluindo Teslas e Audis.
A Presidente da Câmara denunciava-o de uma forma até convencional, pausada e calma, sem grandes oscilações térmicas tanto na voz como nas expressões faciais. Parecia querer aproveitar o facto de estar na televisão para apelar a que se resolvessem este tipo de situações que muito prejudicavam os verdadeiros pobres. Não denunciava nenhuma etnia em particular e embora fosse uma política ligada a um partido do Poder, parecia querer mostrar alguma sensibilidade para com o problema e queria torná-lo público.
Queixava-se também de certa forma do pouco orçamento que a sua autarquia tinha para poder ajudar a resolver o assunto.
Queria apenas que se investigassem essas pessoas, de forma que a investigação se certificasse de onde provinham os sinais de riqueza dos suspeitos para que se pudesse fazer justiça e uma outra redistribuição mais equitativa e justa pelos mais necessitados.
Pelo que parecia, era uma socialista convicta.
Mas o jornalista não estava a gostar da conversa. Interrompia constantemente e alegava com razão eventualmente, não fosse o seu tom, que as pessoas podiam ter smartphones e serem pobres. Não estava a perceber muito bem onde a Presidente queria chegar. Será que a senhora pretendia denunciar alguma etnia em particular?
No entanto percebia-se que a senhora queria sobretudo alertar os espectadores para essa situação anómala e desprestigiante para o ser humano. Isso era claro.
Infortúnio que o jornalista se recusava a aceitar como sendo prática comum e até parecia duvidar se alguma vez isso poderia vir a ocorrer, chegando mesmo a evocar a possibilidade caso acontecesse, de ser uma excepção com a qual não nos devíamos preocupar para assim se confirmar a regra da não existência desse tipo de abusos. O Estado é hoje um dos grandes financiadores das televisões.
Percebe-se.
Mas, no entanto, não deixa de ser absurdo.
No meio da entrevista sob o fundo verde-croma, a senhora entrevistada respondeu a uma pergunta idiota e ainda acrescentou:
—… Até lhe digo mais… Há por lá pela cidade um caso muito conhecido de um cidadão que aufere desse subsidio, mas que no entanto ostenta um Audi, eléctrico e tudo. Portanto é até um cidadão com cuidados ecológicos por sinal.
—Mas não pode, é?
Perguntou o jornalista cão-de-fila, mal ouviu falar em ecologia.
—Nada disso. Apenas estou a dizer que normalmente esses carros são mais caros e que pessoas muito necessitadas nem sequer se podem dar ao luxo de ter prioridades ecológicas por muito que o queiram.
Por momentos parecia até que o jornalista estava a deixar passar a ideia de que não gostava de pobres, tendo nesse caso uma doença chamada aparofobia, e é sabido que hoje muita gente padece dessa patologia. Até pobres.
Aparecia o reino do nonsense mais uma vez para pautar uma entrevista grotesca. Coisa comum hoje em dia nos canais televisivos cheios de estagiários, embora não fosse este o caso. Este jornalista já se arrastava há uns anos pelas cadeiras de pivot.
—Mas então como é que a senhora sabe que o carro não é emprestado?
Perguntou o jornalista convicto de estar a fazer a melhor pergunta de sempre.
A Presidente fez uma cara de espanto não querendo acreditar naquilo que acabara de ouvir e antes que pudesse responder, houve um apagão geral. Uma parte do mundo ficou sem energia. Podia ser um simulacro também.
Um Cyber Polygon.
Assim de um momento para o outro.
Trássss!! Puffff!!!
Vários sons estridentes e desconhecidos potenciaram o frenesim generalizado das pessoas que se encontravam na redacção e no estúdio.
Mas mesmo depois de o jornalista constatar que já não estavam no ar, começando a sentir-se o caos associado a um apagão de grande extensão, com quase tudo às escuras, em off ainda insistiu com a senhora autarca:
—Sim, responda-me. Como é que a senhora sabe que o Audi do cigano não é emprestado?
Hum!!!
Ruy Otero é artista media
Ilustrações de Ruy Otero
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
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Espelho meu, espelho meu, diz-me quem é que gosta mais de bater nos media do que eu.
É claro que o meu smartphone (espelho) ficou calado.
E cá estou eu numa aula de boxe. Onde é que está o Rodrigo Guedes de Carvalho? Olha, dizem que fugiu da aula e não está para calçar as luvas. Mas cuidado que ele é mau.
Talvez ande por aí o Germano de Sousa… Olha, dizem que está em casa lavado em lágrimas gritando por Káaamala em frente ao televisor.
Mas o que é isto? Agora o Rui Calafate depois de saber que perdeu, já diz mal da senhora Harris e casca na pouca influência da Beyoncé nos consumidores-eleitores. Bolas, Rui, deixa ao menos passar umas horas. Pode ser que não percas o emprego, mas da forma como as coisas marcham, parece infelizmente que isso pode ser uma possibilidade. Mas estar indignado pode ser bom… Por uns dias.
Estava a brincar, claro.
Eles é que não pareciam andar muito para brincadeiras sempre que aparecia alguém a criticar subtilmente a candidata democrata mesmo que, segundo as regras do marketing, o contraditório seja bom para vender o produto.
Por muito que alguns soubessem tratar-se de um guião vindo da cantera globalista sempre com o kit completo dentro da mala a acompanhar a venda, outros acreditavam mesmo naquilo que iam dizendo sempre cheios de humanismo prêt-à-porter e até rangiam os dentes quando tinham de proferir a palavra maldita começada por T antecedida por um nome de desenho animado da Disney. Ao pé desse até o Bush já era bom.
Mas as coisas não são assim tão simples, como costuma dizer-me um primo meu, bastante simplório, até por sinal, quando se refere à política.
Mas o quê? O Elon Musk não faz parte do elenco? E agora é pela liberdade de expressão e é do Trump? Reconheço que para os mais incautos seja esquisito, está certo. O homem da Neuralink não parece de confiança e é o mais rico do mundo mas os seus projectos dão sempre para o torto. Investirão os contribuintes através do Estado assim tanto nele? É estranho.
Mas o quê?… Agora o Zuckerberg já não apoia os democratas e até fala da censura a que foi sujeito durante a pandemia sobretudo durante o governo Biden?
Um uber-boy de esquerda dirá que eles querem todos é dinheiro e que a culpa é do capitalismo. Um taxista do Chega dirá que eles são é todos filhos da p… e que só estão bem a mamar do contribuinte, ainda que agora tenha muito para dizer vomitando à vontadex para o caixote-do-lixo que já foi o Twitter. E onde pode dizer o que lhe apetecer como se fossemos os seus clientes do banco de trás.
Os jornalistas e apresentadores contribuem hoje muito certamente, para o aumento do consumo de anti-depressivos e até de psicotrópicos em geral.
A Pfizer gosta da SICK, já se sabe, basta ler o PÁGINA UM. Isto para fazer um jogo de palavras à antiga.
A política e o desejo já coexistem e mantém uma relação há muito. E o Ser Humano é frágil, sabemos. Temos de perdoar, sendo essa acção, coisa um pouco cristã e por isso mal vista pela elite que não anda muito “caótica”, como se costuma dizer quando as coisas não andam a correr bem.
Acontece que os media, ainda que não pareça, são compostos por pessoas, mesmo que ande também por lá a classe mais desrespeitada do momento — os jornalistas, claro.
Uma coisa é comentário (aquilo que faço aqui), outra coisa é jornalismo (aquilo que não faço aqui).
Nas televisões e jornais mainstream em geral, uma coisa confunde-se com a outra à grande e à americana.
Durante meses assisti a uma campanha pelo partido democrata, apresentando sempre Donald Trump como um doido varrido, um mentiroso compulsivo, um ególatra e até pior.
Ok, eu até posso achar isso, mas não sou jornalista.
Mas também acho que Kamala é pouco mais que do piorio, basta investigar sobre ela. Eu e muita gente, até hispânicos, negros e judeus que votam nos Estados Unidos. É assim. Temos direito de não gostar de ninguém.
Mas venha de lá o menos mau. Sempre ouvi dizer.
Acontece que o mundo político ja não se coaduna com essa perspectiva há muito.
O delay ainda é mais evidente que numa trovoada.
Há quem saiba disso. O Ricardo Costa que nada tem de idiota útil, julgo que sabe, até porque é irmão de António Costa, que já passou por mais ministérios que o Manuel Cajuda por clubes de futebol, mas é um ser humano e por isso também tem as suas fraquezas e de vez em quando lá vai a real politik dar uma volta até ao bilhar grande.
Ele foi um daqueles enviados para os Estados Unidos que acompanhou a parte final das campanhas e tinha que “medir o pulso” às populações (como gostam de dizer os correspondentes) achando que quem votava em Trump era porque estaria desinformado, tipo não via a SIC, e depois ia dar uma volta até àquilo que eles chamam de América real e decepcionava-se porque os reais andavam desinformados. Às vezes dizem tratar-se da América profunda. As terminologias vão mudando conforme o “clima”.
Vi-o ir ter com portugueses imigrantes que diziam quase todos votar no Trump e serem contra a emigração. Às vezes podia jurar ver o jornalista-irmão ficar com os óculos embaciados de tanta realidade (irrealidade) ao mesmo tempo. Ou então eram os meus.
O mesmo já se tinha passado em Portugal com o fenómeno do Partido Chega. Os media gostam do povo e por isso subestima-o. Pelo menos quando dá jeito lá vão eles ter com as pessoas, cada vez mais velhotas, é certo, mas que ainda conseguem achar piada ao “caçador” Miguel Sousa Tavares por exemplo e querem selfies com o Marcelo. Mas de boas intenções anda o cemitério cheio, como se diz na Turquia.
O mundo não anda para brincadeiras mas uma parte do povo ainda não sabe mas já desconfia e anda farto de selfies e já não tem paciência assim tanto para bigbrothers.
E quem irá ganhar com tanta desconfiança?
Está-se mesmo a ver. E há uns por aí que não brincam em serviço e que são muito piores que o Orban. Basta apanhar o avião até à Alemanha.
Alguém anda a brincar com fósforos e a querer aquecer o planeta confirmando assim que a acção humana contribui para as famosas alterações.
No entanto os de sempre é que ganharam com estas eleições, os media aqui são só peixe muito pequeno para a camioneta do Poder.
Benjamin Netanyahu é um deles. As grandes famílias também saem sempre vitoriosas, e até há quem diga que financiam tanto vencedores como vencidos.
Mas isto aqui não é o YouTube e eu tenho mais que fazer do que andar a vasculhar no abstrato.
Cá por mim falo do que sei e tentarei assumir uma posição neutra quanto às opções políticas do momento, mas não deixarei de ser pouco neutro numa avaliação aos trapalhões do costume que são aqueles que vocês já sabem e que têm sido um alvo permanente deste órgão de informação (P1) que tem dívida zero e prescinde de uma visão ideológica, preferindo fazer aquilo que em tempos se chamou de jornalismo, trazendo um fogacho de esperança ao próprio meio. Ao copo que anda meio vazio mas cheio de si.
É só a minha opinião, calma. Estamos na zona da opinião.
Qualquer dia e a ver pelas parcas audiências, esses são mesmo o ceguinho, e aí e por questões de ética já não vou poder bater, correndo ainda o risco de levar com umas bengaladas, mesmo que pouco pujantes e desprovidas de pontaria tipo a personagem Darryl Hanna quando tenta desesperadamente atingir Uma Thurman sem nada ver no Kill Bill.
O que era mais estranho há uns dias mas não surpreendente, era ver indicadores que não as sondagens do New York Times ou do Washington Post, a mostrarem outra realidade como por exemplo as casa de apostas que tinham Trump como favorito muito à frente de Kamala Harris, ou mesmo as muito fracas prestações da candidata na CNN, ainda que levada ao colo e não serem comentadas. Como se na verdade pouco soubéssemos sobre o país em que as eleições iriam acontecer.
Mais estranho ainda era o comportamento das televisões no plano inclinado como se os portugueses votassem nestas eleições. Para quê perderem tanto tempo na campanha clara ao partido democrata se uma boa parte da população portuguesa nem mesmo cá vota.
Cheguei mesmo a ver tudólogos a pedirem a morte de Trump, justificando que seria a única forma de nos vermos livres dele. Mas, Cara Ferreira Alves, já pensaste que muitos milhões de americanos não pensam assim. A ideia até pode ser boa mas têm de arranjar um puto que tenha mais pontaria que aquele caixa-de-óculos que parecia saído de um filme da saga Carry on.
E pelos vistos, Beyoncé, Jennifer Lopez, Bruce Springsteen e sobretudo a influencer e cantora Taylor Swift já não conseguem mobilizar parte da juventude que se vê sem dinheiro nos bolsos e que já não suporta a conduta e as regras da ideologia woke (segundo estudos).
Não parece que Trump tenha melhores soluções mas é o que há.
Patriotas ou globalistas, parece não haver muitas opções ao centro, sobretudo a um centro que chegou a denominar-se por Tony Blair de radical. Mas também Tony Blair nunca enganou alguns com as suas políticas invasoras e cúmplices do Deep State.
Se até ao ano 2000 ainda era fácil acreditar em esquerda e direita por exemplo, com a eleição de Bush que ganhou a Algore com recontagens dos votos umas atrás das outras, sendo, no entanto, verificável a diferença ideológica de ambos, paulatinamente de lá para cá as coisas foram-se aclarando ou até complexizando de forma a ter havido uma inversão até mesmo léxical, quanto aos sentidos para onde as coisas estavam a ir.
E os media ou não percebiam nada, ou percebiam tudo e estavam a lutar no pódio da hipocrisia. As redes sociais como foram ficando cada vez mais anti-sociais viraram o feitiço contra o feiticeiro, mas a verdade é que o mundo foi sempre para a frente.
Até ao Covid.
Ruy Otero é artista media
Ilustrações de Ruy Otero
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Aquele centro comercial dos anos 80, edificado num período em que o futuro parecia ter futuro, só tinha cinco lojas a funcionar. As demais pareciam ser para arrumações ou estavam simplesmente fechadas a sete chaves. A covid-19 e a respectiva crise encerraram alguns espaços que depois não voltaram a abrir. Chovia no átrio, e pouca gente entrava nos estabelecimentos abertos que ainda mantinham actividade.
Um cabeleireiro, uma esteticista, um oculista e um estranho e sinistro consultório de um suposto médico homeopata mantinham o centro comercial de dois andares meio morto, ou meio vivo para quem gosta de pensar na imagem do copo, enfim, em estado quase zombie.
Mas uma galeria vocacionada para a arte era a última novidade do centro comercial e a esperança, quiçá ingénua, dos lojistas de um rejuvenescimento pulsante do lugar.
A esteticista, de quando em vez, e porque o processo de construção do novo espaço fora demorado, ia até à galeria em obras e divagava sobre arte abstracta que via em feiras de antiguidades, e fazia declarações alucinadas, por exemplo que o Citröen Xsara Picasso havia sido desenhado pelo próprio artista espanhol. Estava convencida de que Matisse estava vivo e aparecia na ¡Hola! , confundindo certamente o artista com algum socialite e mantinha que Marlon Brando morrera num acidente de automóvel com vinte e poucos anos. O alegado homeopata reforçava-lhe as crenças, garantindo-lhe que Matisse (que não era ninguém) não só era habitué da ¡Hola! como era graças a si que ele ainda podia andar e conservava aquele fantástico aspecto. Coisa de loucos mas que chegava a ser divertido.
A galeria iria abrir no mês seguinte, e, num dia em que um dos artistas estava com a porta aberta, uma senhora, na casa dos quarenta, rompeu pelo átrio adentro e dirigiu-se à porta da galeria. Explicou ao jovem artista que estava muito curiosa quanto à recente loja, ou lá o que era, que parecia ir abrir. Fez ainda referência a um grupo ao qual pertencia que gostava muito de eventos e que certamente iriam ser clientes da loja, ou do que aquilo viesse a ser. Com um timbre quase formal, acrescentou:
— Desculpe, posso entrar para resolver o mistério?
— De que mistério se trata?
— É que eu já passei várias vezes ali na rua e vi que vocês têm nas montras uns televisores… Quer dizer, às vezes, noutros dias têm uns bonecos de madeira, umas máscaras e até umas roupas dispostas de uma forma tão estranha, sempre em mutação, e isso estimulou a minha curiosidade por isso finalmente decidi entrar para saber de que loja estamos a falar. Você é o dono, certo?
— Isto é mais uma associação. Não há donos.
— Mas é uma loja vintage? De fora, parece.
— Não. Isto é uma galeria de arte que vai abrir em breve com exposições.
— Ai sim? Posso entrar para ver? Se não me levar a mal…
— Ainda não tem muita coisa. Tem só umas experiências que estamos a fazer para perceber que tipo de luz vamos instalar e para perceber melhor a disposição.
A senhora entrou sem pedir licença e deu uma breve vista de olhos ao espaço. Estava desconfiada.
— Pois. Vejo que sim. Vocês têm isto nas redes sociais? Facebook, Instagram…
— Sim. Tem aí na montra a morada.
A senhora deu um passo curioso até à montra e tirou o smartphone da mala.
— Sim. Aqui estão os links, muito bem. Estou a ver.
Olhou para o seu smartphone com um ar intrigado e ao mesmo tempo ia dando uns esgares bastante estranhos para alguns pormenores que faziam parte da galeria. Fixou o olhar numa zona onde se acumularam umas infiltrações, ao que o rapaz, tendo reparado no olhar atento da senhora, disse que já estava previsto o arranjo. E depois de forma simpática ainda rematou:
— Tem aí já alguma informação acerca do que iremos apresentar. Sobretudo no Instagram. Está para breve a inauguração.
— Sim, sim. Estou a ver. Não usam o Tik-Tok?
—Por enquanto não.
—Estou a ver. Sim senhor.
Ao fim de uns segundos, comentou com um rosto que oscilava entre a desilusão e o desdém:
— Mas vocês só têm vinte e um likes aqui.
— Por enquanto, sim.
— Só?
— Sim.
— E nem stories têm.
— Não se pode ter tudo.
Ainda gracejou o rapaz com um sorriso nervoso.
— Vinte e um! Como é que se pode ter só vinte e um likes? E só têm cinquenta seguidores! E depois querem o quê! Eu até gostei de algumas coisas e até comprava mas com vinte e um likes… Não.
O rapaz já nem respondeu.
A senhora apressou-se a sair pelas escadas que davam para a saída do primeiro andar, totalmente incrédula. Enquanto subia, ainda olhava para a porta da galeria, e o jovem continuava a ouvir a sua voz.
— Vinte e um! Tch! Vinte e um. Vinte e um likes?! Como é que é possível… Tch! Cinquenta seguidores até o meu sobrinho de oito anos tem. Não quero acreditar. Vinte e um likes… Ridículo!
O jovem artista, até então entusiasmadíssimo com a galeria, teve um clarão: valia um 0,0000001 do que valia a Cristina Ferreira e 0,0000000000000000000001 do que valia o Ronaldo. Entrou numa espiral de pensamentos negativos, com ressonâncias de versos pessoanos.
«Não sou nada, nunca serei nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo, mas quase nenhum like. Vinte e um likes? E só temos cinquenta seguidores. Cinquenta! Que sentido tem isto? Que sentido tem a minha vida? O que é uma vida sem likes?»
Ruy Otero é artista media
Ilustrações de Ruy Otero
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Confirmei também que a palavra gralhas aparece escrita no texto que anuncia a conversa em áudio com um erro. Em vez de gralhas está gralhar. Uma gralha na gralha. Teriam os dois autores feito de propósito? Ou toda a gente tem direito à sua gralha? Mesmo que nas gralhas?
O mundo das palavras e da linguagem tanto pode ser formal como rebelde, até pode ser os dois ao mesmo tempo e por isso declaro o meu amor profundo às palavras e a minha amizade enorme pelos dois intervenientes do podcast que tornam a vida mais gramaticalmente correcta, ainda que também mais politicamente incorrecta. É maravilhoso.
Isto a propósito das palavras usadas pelo primeiro-ministro numa recente conferência em que aproveitou, e já que estava num simpósio cujo título era O Futuro dos Media, organizado pela Plataforma dos Media Privados, para dizer que certos comportamentos dos jornalistas “não valorizam a profissão”, referindo-se ao uso de auriculares por parte dos mesmos e ao facto de receberem perguntas sopradas pelos superiores.
Deixou assim uma espécie de recado para que os jornalistas fossem mais “tranquilos” e “não tão ofegantes”, palavras suas, na hora de insistirem, por exemplo, com perguntas aos primeiros-ministros.
Tranquilos e ofegantes…
Não é que as palavras estejam erradas no contexto, mas…
Referiu-se também ao facto de muitas vezes terem as perguntas escritas no telemóvel, estando a ler no momento do confronto sem sequer olharem de frente para o visado, deixando a entender que não é uma profissão conhecida por ter grande liberdade, pelo menos pelos soldados todo-o-terreno.
Luís Montenegro deve saber bem do que fala e está a mentir. Ou a contar uma inverdade como se costuma eufemisticamente dizer nos corredores dos antigos raios catódicos, isto para usar uma liberdade meio digital… vá. Fica sempre bem.
Toda a gente sabe que os primeiros-ministros gostam é de perguntas originais e incomodativas e até espontâneas vindas dos profissionais da comunicação que estão no plateau. Mas como o primeiro-ministro anda nisto há muito tempo, acha que as perguntas são feitas sempre pelo topo da pirâmide, pirâmide essa que os governos alimentam com dinheiro público.
Não, Luís Montenegro. És, como diz o Presidente, um saloio que não percebe nada de auriculares (sempre quis tratar por tu um chefe de governo).
Assim, não serão muitas as vezes que me verão a defender jornalistas, mas é que aqui, coitados deles, que mais uma vez estão a ser tramados pela mentira, ou pelo conceito de pós-verdade a que se sujeitam enquanto profissionais da palavra (senão mesmo da antiga verdade), e já agora, vitimas do ódio destilado pelos primeiros-ministros sempre cheios de medo dessa classe que qualquer dia só terá lugar cativo em Sundance (para quem não sabe, é um festival de cinema independente com actores de Hollywood).
Para confirmar o que digo, faço um apelo à memória, pedindo para os leitores recordarem a agreste acutilância senão mesmo a severidade generalizada, na hora de os jornalistas questionarem o anterior primeiro-ministro, tanto em estúdio como noutros espaços. Mas quiçá esse estivesse à altura, e até diziam que queria era livrar-se do país, portanto, viessem as balas.
Toda a gente sabe ou devia saber que é mentira. Os jornalistas são conhecidos pela sua independência e pela imaginação na hora de questionar o Poder. São pagos para isso, doa a quem doer, mesmo que seja para arrasar os donos das empresas às quais pertencem.
Como prova disso, o jornalista e pivot João Póvoa Marinheiro deixou isso muito claro quando leu um texto ao finalizar o seu telejornal, em que acentuava o carácter independente do jornalismo. Declaração essa, vinda da direcção de informação da CNN, empresa conhecida pela sua liberdade informativa.
Estou com o jornalismo e com os jornalistas neste episódio rocambolesco em que o primeiro-ministro devia era ser segundo ou terceiro ministro.
Se há coisa à qual os jornalistas ainda não sucumbiram foi à sua singular independência. Há mesmo quem defenda que a classe devia mostrar mais o seu clubismo ou mesmo a sua ideologia, já que falamos também de seres humanos que têm sentimentos e posições políticas em democracia, mas quanto a mim… não.
Devem continuar como estão. A verdade tem sempre um preço e raramente está em saldos.
Está bem, nem sempre vestem muito bem, ok.
Está bem, nem sempre têm a carteira profissional actualizada, ok.
Nem sempre têm uma boa dicção e dou mesmo de barato que alguns escrevam e falem com muitos erros (isto para fazer raccord com o início do texto), e não articulem muito bem certas palavras, mas se há coisa importante a que devem agarrar-se é à autonomia e imparcialidade sempre difícil de manter também por causa de primeiros-ministros que deviam saber que a liberdade informativa é uma pérola fruto de uma conquista com muito derrame de sangue, suor e lágrimas por parte dos profissionais do sector.
Como foi frisado em comunicado por várias redacções e direcções entre as quais a da RTP, os primeiros-ministros não percebem nada de trâmites técnicos e este em particular teve de sujeitar-se a uma humilhação com uma explicação técnica à frente de toda a gente no canal público.
Os auriculares servem para os profissionais perceberem quando estão no ar ou mesmo para ficarem a saber dos atrasos dos primeiros-ministros.
Servem sobretudo para a gestão da logística.
Acredito mesmo que haja jornalistas que enquanto esperam pelos primeiros-ministros, façam dos auriculares receptores para ouvirem Vivaldi ou Beethoven antes dos embates que se aproximam.
Já quanto aos telemóveis, não acredito que tenham lá as perguntas escritas por alguém. De certeza que estão é a informar-se até à última hora, acerca do assunto para o qual foram destacados.
Sim, têm muitos defeitos, mas esse não será um deles.
A Kamala Harris é que tem sempre um brinco para disfarçar a presença de um auricular. E como é que sabemos disso? Claro, pelos jornalistas que não brincam em serviço.
Está certo, nem sempre os jornalistas estão bem maquilhados… mas o que é que isso importa? Também é verdade que alguns se aventuram em livros de receitas e até em romances cabalísticos, já para não falar de outros que são poetas em horário nobre. Está certo, há um certo abuso provavelmente fruto mais da vaidade do que do conhecimento, mas neste caso estou com eles.
Concluo esta defesa, propondo que larguem de vez os auriculares para provarem aos primeiros-ministros dos diferentes países que não recebem recados de ninguém.
Aliás proponho também que tanto primeiros-ministros, como jornalistas, comecem a usar apenas nas suas encenações e conferências, um nariz de palhaço.
Nada de tecnologia. Polui demais.
Ruy Otero é artista media
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Num palco um actor muito parecido fisicamente com Biden está deitado na sua cama meio presidencial, parecendo ter um edredon roto a cobri-lo. Uma televisão Sony de tamanho médio está por cima de uma cómoda de estilo clássico em madeira de nogueira Bassano, totalmente feita em Itália por mestres artesãos, da qual se orgulha muito. Pelo menos parece, mas é tudo feito em esferovite.
Tipo Teatro.
A televisão Sony é mesmo Sony.
No momento em que o telefone vermelho toca, Biden ensaia alguns movimentos de ginástica típicos para a idade, fazendo com que pareça uma aranha a tentar escapulir de uma armadilha com uma estranha coreografia, embora cómica e meio atabalhoada. O publico ri.
Biden parece estar bem disposto e atende.
-Jo, como estás?
É Trump. O conhecido Donald. A voz é igualzinha e não é feita pela A.I.
O público bate palmas.
-Estava a ver que não dizias nada, velho cowboy!
-Viste?
-Sim. Calma. Mas só vi hoje porque àquela hora, sabes como é que é…
-Não, por acaso não sei Jo.
Exclama Trump intrigado, parecendo, no entanto, estar a ser verdadeiro.
-Um dia saberás. Já não falta muito.
Trump, pelo silêncio manifestado, mostra um certo desconforto não parecendo entender a frase misteriosa de Biden.
-Sabes cowboy, tenho estado entretido com aquele país ao lado de Espanha…
Continua o actual presidente.
-Sim. Marrocos.
Atira Trump sem acertar no alvo.
-Não. Mais para cima.
-Mais para cima é mar.
O publico ri.
Não interessa. Na televisão não param de dar uma notícia sobre um gang que fugiu de uma prisão de alta segurança, até parece uma cena de um filme com o velho Clint. Tinha lá um argentino que se disfarçava e tudo, com operações e não sei quê. E um inglês ou que é, que era bom até a mãe lhe dar uma pistola para as mãos. E confesso que ia alternando o teu debate com as noticias parvas desse país. E como tenho tradutor automático… Posso ver o mundo inteiro com todas as línguas.
-Ok. Compreendo.
Responde Trump um pouco aturdido.
-É aquele país que tem aquele presidente amalucado que já cá veio uma ou outra vez. Até acho que o conheceste. (Pigarreia para aclarar a voz).
-Sim, sim. Portugal. Já sei.
Lembra-se depois de fazer um esforço para avivar a memória.
-Pois é. Portugal, temos lá numa das ilhas, coisas militares.
-Esse país é muita maluco. É dos que mais devem e fazem tudo o que lhes dizem lá os outros, mas é conhecido por ter boas praias no Sul, tipo Flórida.
Remata o homem do cabelo laranja.
-Sim, isso mesmo. Jogam bem à bola. A Madonna vive ou vivia lá.
Confirma Biden, contente pelo amigo ter acertado.
-Sim, sim. Essa cab…
Trump anui, embora se auto censure quando vai referir-se à cantora, e claro que o público ri. Depois continua:
-Esse Presidente foi dos que mais disparates disse quando estive com ele numa cimeira qualquer. Mas era divertido, tentava dizer piadas e falava daquele jogador que tem a mãe sempre atrás e mais não sei quê… Ninguém lhe ligava.
Remata Trump, ficando ligeiramente menos sério.
-Mas era dos mais lambe-botas e não parecia regular muito bem. Não admira que nesse pequeno país, os criminosas fujam da prisão como quem vai a um acampamento tomar uma vacina.
-Essa tá boa.
Interrompe Trump enquanto Biden pigarreia novamente. Uma parte da audiência assobia quando ouve falar em vacina.
-Donald, queres acreditar que fugiram nas calmas por uma escada enquanto fumavam uns cigarros americanos. E que o arame electrificado não estava ligado porque senão toda a energia da prisão ia abaixo, já para não falar dos infravermelhos que também estavam estragados.
-Bolas! Foi de noite?
-Não! Foi logo de manha à luz do dia. Tipo 10.
-Inacreditável!
-O director ou que é, estava de férias e outro qualquer que mandava estava doente há montes de tempo. Tenho-me divertido muito a ver televisão ultimamente. Já nem vou à net.
-Estou a ver Jo.
-Ah. Escuta… E quase ao mesmo tempo nesse país assaltaram o Ministério da Administração Inte…
-O que é isso?
É aquele Ministério que controla as policias.
-Não acredito. Pensava que esse tipo de coisas acontecia no Cazaquistão.
-Não. A Europa agora está assim. E sabes o que é que roubaram do Ministério?
Tcham, tcham…
-Dinheiro.
Arrisca Trump.
-Não. 8 computadores.
-O mundo anda mesmo maluco.
Conclui o dono da Trump Tower.
-E esse tarado do presidente deles ainda veio minimizar o problema, ou qualquer coisa assim e toda a gente gozou. Sempre gostei do Teatro do Absurdo, de Ionesco.
-Eu já tinha ouvido dizer que nesse país atrasado, os prisioneiros de um estabelecimento qualquer, é que montaram o sistema de vigilância, com câmaras e tal, tipo esse teatro que tu gostas.
O publico ri.
-Acho que sim. Tenho rido muito com notícias desse tipo, agora que tenho mais tempo. Outro país meio maluco é a Espanha. O catalão não sei quantos, não podia entrar no país senão ía preso e foi lá fazer um colóquio ou que é, numa praça, e depois fugiu. É muito cómico.
-Mas o que é que achaste do debate?
Biden cai um pouco em si.
-Desculpa, Donald. Mas é que isto tudo o que está acontecer na Europa é tão entretido e sabendo que eles gozavam tanto connosco, sobretudo os franceses, que eu não dei assim tanta atenção ao teu show. Estou muito atento à queda deles.
-Percebo.
Biden continua e é assaltado por uma súbita energia.
-Por exemplo a França e aquele com nome de marca desportiva que trabalhou cá na Goldman…
-O Macron!..
Dispara Trump peremptoriamente.
-Pois esse. Agora nomeou um qualquer para primeiro-ministro que ninguém quer. E é só problemas lá com a esquerda deles. Não viste os Jogos Olímpicos? Nós sabemos porque é que tem de ser assim esta confusão toda. Mas os europeus estão a exagerar. Ainda vão acabar com aquilo mais cedo que o previsto. É muito giro Donald. Tens de aceitar. Eu já nem preciso de ver filmes. Os telejornais estão cada vez melhores.
-E na Bélgica viste aquilo da Audi?
Pergunta Trump
-Mais ou menos. Conta lá.
-Os operários da fábrica da Audi roubaram para aí mais de 200 chaves dos novos carro para que os clientes não possam entrar nesse mesmos carros e fizeram greve e agora a Audi não pode enviar as viaturas aos novos donos. Acho que foi na Bélgica sim. É qualquer coisa do género. A Europa é isso. Carros brutais sem chaves.
O público bate palmas,
-Pois, até a Audi… Os alemães… Ou os belgas, quem diria. Biden dá uma gargalhada e quase que se engasga. E depois remata meio atabalhoadamente:
-Isto cada vez lá na Europa está mais parecido com sei lá o quê…
-Sim. Eu sei. Mas viste ou não com alguma atenção o nosso programa de ontem?
Pergunta o ex-Presidente, mudando assim o tom da conversa.
-Mais ou menos. Aquela mulher irrita-me muito. Tem uma voz muito nasalada acompanhada de umas flutuações estranhas para o meu gosto, e ao vivo também, ainda parece que faz de propósito para ser pior. Evito muito estar com ela, acho que sabes isso. E juro-te, quase não a consigo ouvir. Sabes que nunca gostei muito da Kamala e acho que a gentalha já percebeu. Também aqueles moderadores que faziam as perguntas deviam ter-te mais posto em causa com o fact-checking.
-Sim. Chatearam pouco. Pensava que iam provocar mais. Isso até estava meio combinado.
-Claro.
-Mas são um bocado estúpidos.
-Sabes como é que é a maralha da ABC… Mas deixa estar, já ninguém liga muito a isso. Está tudo quase a acabar e é melhor divertirmo-nos, mas é. Para problemas já basta Israel.
-Sim, sim. Isso é um problema sério Jo.
Confirma Trump.
-E já agora é melhor ir ali ver os meus cães que podem não estar seguros e ainda aparece aí um haitiano esfomeado…
-Pára Jo! Ouviste essa?
-Foi muito boa. Mas como é verdade vou mesmo ver se o Duffy está ali no jardim.
-E já agora não tens gatos?
-Pára, Donald!
Mas Biden não tira os olhos da televisão enquanto ri e conversa com Donald, pois passam mais noticias de Portugal. Desta vez dizem que os policias foram informados da fuga dos criminosos através de um canal dúbio de televisão, umas horas depois.
O público aplaude de pé, em êxtase.
Ruy Otero é artista media
Ilustrações de Ruy Otero e Alex Farac
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
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A Mónica Filipa apaixonou-se por um youtuber que difundia vídeos em que achava que provava que a terra era plana.
Para ela, a terra não era plana, as mentiras e conspirações governamentais não podiam ter chegado tão longe. Se a terra fosse plana, tínhamos sido todo o tempo redondamente enganados e isso era impossível. Se a terra não fosse um berlinde então tudo o resto que nos contaram e ensinaram do mundo podia ser mentira.
Mas o seu coração palpitava sempre que via o youtuber mexicano. Conseguiu até entrar no seu chat e agendar uma conversa supostamente romântica através de vídeochamada.
A Mónica Filipa falava bem espanhol, tinha passado uns anos em Maiorca a trabalhar em discotecas e era, desde aí, louca pelas dobragens de filmes em espanhol, tendo aprendido a língua com facilidade. Mas a característica que melhor a identificava era a sua paixão pela cultura mexicana e por homens latinos, sobretudo mexicanos. Tinha até um poster do Marlon Brando, a fazer de Zapata, na sua casa de banho e o seu cão chamava-se Cancún.
O dia da videochamada chegou. Estava nervosa e vestiu o seu top preferido.
Eis a conversa que tiveram, traduzida para português.
– Olá! Estava ansioso para falar contigo.
Disse o terraplanista mexicano.
– Olá. Eu também.
Respondeu ela meio nervosa e pouco segura.
– Não conheço Portugal, mas dizem que é um país muito bonito.
– E eu não conheço o México.
– Acredito. Mas sabes que nem o México nem Portugal são o que dizem.
Atacou o youtuber sem contemplações. Era mais forte que ele.
– Como assim?
– Sabes bem que a geometria do mundo como nos contam é uma falácia. Nesse sentido nem o México nem o teu país são como nos dizem. Por isso é normal não conheceres o México nem eu Portugal na sua integridade.
– Quer dizer…
A Mónica Filipa não esperava o tiro à queima-roupa tão cedo, embora soubesse que ele mais tarde ou mais cedo ía aparecer.
O youtuber continuou:
– Já expliquei e provei isso nos meus vídeos sobretudo nas lives.
– Então porque é que aí agora é noite e aqui é dia?
Arriscou a miúda.
– Vê o vídeo em que entrevisto o Gutierrez e percebes logo.
– O Boliviano?
– Sim. Ele explica tudo melhor que eu, tenho de admitir. E prova-o sem muita dificuldade se estiveres atenta e fores livre de preconceitos. É um génio do terraplanismo boliviano e mesmo mundial. Ganhou credibilidade no último encontro terraplanista de Barcelona.
– Eu vi-o já a conselho teu. Mas dou mais atenção a ti. Aos teus gestos, gosto da tua maneira de falar, do teu sorriso. Muitas vezes não estou a ouvir exactamente o que dizes. A mim pouco me importa que a terra tenha a forma que tiver. Um algoritmo levou-me até ao teu mundo e eu gostei de ti.
– Isso é lindo. Mas a terra é plana. Prefiro que saibas com toda a certeza que a terra é plana a que me aches o máximo.
Preferia ser o Frankenstein e a terra ser plana, que o Brad Pitt e a terra ser redonda. Percebes?
Jamais daria um beijo a alguém que achasse que a terra é uma bola de basket. Vomitava logo.
E a ligação caiu.
Ruy Otero é artista media
Ilustrações de Ruy Otero
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O homem acordou, mas aquilo não era bem um despertar.
Pôs os óculos e levantou-se, mas o seu corpo não respondia como de costume.
Bill sentiu-se assustado. Não estava habituado a esse tipo de sensação. Mas do que é que poderia ter medo? Se nem da própria morte tinha. Esse assunto fora resolvido há muito, tendo mesmo superado essa vertigem ainda adolescente, adquirindo o conhecimento tanto metafísico como esotérico com a ajuda do seu pai, para que pudesse andar descansado, minimizando-a, tornando mesmo a sua morte num não assunto.
Até aí tratava-se de uma vitória sem dúvida.
Mas por que razão então acordara tão assustado o filantropo mais filantropo do mundo? Andaria com medo de si mesmo?
Andaria com medo da filantropia?
Era culto e perspicaz o suficiente para saber que muitas vezes somos nós mesmos os nossos maiores inimigos, mas não era esse o caso.
Mesmo ainda criança, o seu pai tinha-lhe passado o conhecimento suficiente para abortar de imediato mal viesse a ser invadido por más sensações que se apresentassem sem consentimento e licença para massacrar-lhe o espírito, ou a carne ou mesmo os ossos.
Aprendeu que seria preciso ter sempre um “bisturi” à mão e nunca haver contemplações para com os invasores, cortando o mal pela raiz. Bill cresceu com um pai não-ausente, um tutor, um criador de morte.
Tinha passado ao longo da vida por momentos muito mais conturbados e esse sentimento nunca o havia atingido, pondo em prática esses sábios ensinamentos. Não seria agora que iria ter medo fosse do que fosse. Estava aparentemente bastante treinado e era importante e valioso demais para ser invadido por essa vulgaridade mórbida chamada dor. Ou não se chamasse Bill Gates e fosse o grande profeta do nosso tempo.
Quantas pessoas eram ouvidas e tidas em conta acerca do curso do mundo?
Sabia também da artificialidade em que o estado actual do estranho planeta se encontrava, e da importância que isso tinha para os seus “negócios”.
Seria essa a razão da sua angústia?
Em principio nada lhe escapava. Estava sempre a par de todas as novidades. Haveria afinal mais marés que marinheiros? Por norma controlava tanto uns como outros.
Estariam lá por cima a esconder-lhe alguma coisa? Sabia que alguma casta o achava um totó, embora nunca ninguém tenha tido a frontalidade de o dizer, muito menos o desprezível Elon Musk.
Mal pensou nisso, foi imediatamente invadido por um suor, ainda mais frio que a sua casa. Não estava a conseguir aplicar a filosofia habitual para contrariar a aproximação da dor.
Mas a verdade é que alguma coisa se estava a apoderar cada vez mais de si, começando até a ofegar. Chegou mesmo a questionar-se se teria oxigénio suficiente para mais um dia de árduo trabalho que se avizinhava na Fundação.
Qual fundação? Seria a própria fundação mais um holograma, uma mentira, uma historieta
montada para iludir o terceiro mundo? Gracejou para com os seus botões de pijama. Estaria a perder o tino?
Demasiadas dúvidas estavam a deixá-lo deveras angustiado.
Levantou-se e foi beber da sua água, uma água a que muito pouca gente tinha acesso no mundo, era cristalina o suficiente para que, só de olhar, acalmasse qualquer um, como que por magia. Era uma água que não vinha de uma nascente qualquer. Nem ele mesmo conhecia a sua proveniência.
Mas não, a água mágica não teve o efeito desejado. Nem pelo olhar, nem pela ingestão.
Chamou por Melinda, embora soubesse que ela não estava. Já não estava há muito tempo. Talvez nunca tenha estado mesmo.
Estaria Bill sozinho no mundo e não o sabia?
Lembrou-se do enorme Charles Dickens e da necessidade da moral e sentido nas histórias. Estaria isto tudo a querer dizer alguma coisa? Demasiadas perguntas sem resposta estavam a deixá-lo cada vez mais fora de si.
Pensou em telefonar ao Doutor Johnson, médico amigo de uma vida e que sabia de muitas coisas que Bill também sabia, mas ultimamente achava que o Doutor Johnson também andava esquisito, mas de uma forma esquisita.
Ainda mais esquisita.
Na última vez que estiveram juntos falou de Saturno desnecessariamente, facto a que ninguém ficou alheio na última reunião secreta.
O Doutor Johnson estava a ficar velho e não percebia os novos contextos, a nova inteligência, as novas atmosferas que estavam a ser desenhadas, tinha qualquer coisa de bafiento, não entendia esta recente filantropia, embora fosse ou tivesse sido um grande médico, sem dúvida, mas Bill não confiava em quase ninguém.
Estaria a ficar velho, e como acontecia a toda a gente, isso começava a perturbar-lhe o sistema nervoso de certa maneira?
Mas Bill não era toda a gente.
De morte percebia ele, isso estava bem estudado, agora quanto à morte de células já tinha mais dúvidas, sabia por intuição que as células muitas vezes desenvolviam comportamentos poéticos. Tomava os químicos certos para contornar esse problema ou essa vicissitude. Nunca duvidara disso, pelo menos até àquele dia.
Bill tinha medo da poética.
Era o seu maior medo.
Não gostava de não ter controle sobre si, sobre o que fosse. Nascera para mandar.
Andaria Bill porventura enganado?
Apenas por estar a questionar-se desta forma, já se sentia doente. Era como se coabitassem dois Gates num mesmo Bill, ao ponto de começar a sentir tonturas e náuseas.
Sabia que tinha uma casa inteligente, mas não assim tanto, ainda havia muito para evoluir e não seria certamente a sua casa com as suas casas-de-banho hiper inteligentes e sustentáveis das quais se orgulhava muito, que lhe resolveriam o problema das tonturas. De que serviria uma casa daquelas se o espírito baqueasse…
Lembrou-se do Steve que também foi desta para melhor fora de tempo, sim desse Steve que ele tanto odiara e invejara ao longo da vida, desse Steve que tinha melhor gosto que ele, que era adorado como se fosse uma rock star e que não tinha medo de calçar Asics Tiger de corrida hiper coloridas, contrastando com o minimalismo Calvin Klein. O mesmo Steve que o tinha ofendido directa ou indirectamente vezes sem conta, ao ponto de o fazer chorar nalgumas situações.
Não estava a perceber bem porquê, mas devido à fraqueza momentânea daquele despertar violento e anormal, lembrava-se agora do Steve que muito trabalho lhe havia dado. O que é que aprendera com Jobs que lhe valesse agora?
Nada, concluiu e isso até lhe trouxe algum conforto momentâneo.
De que lhe serviria o cinismo astuto que aprendera com o homem da maçã num momento tão fora de controle como aquele?
De nada.
Teve de sentar-se no sofá para não sucumbir ao desmaio eminente. Estava sozinho e não encontrava a porta do quarto devido às tonturas que apareciam como se fossem o prato principal do dia.
Uma semana antes tinha dado várias entrevistas a umas cadeias de televisão que estavam “ingenuamente” loucas para saber o que o filantropo mais filantropo do mundo achava da terceira guerra mundial que o mesmo previra, da nova pandemia que o mesmo anunciara e quais os seus prognósticos que imaginavam grande prejuízos para as consequências das alterações climáticas que já por aí andavam e que o próprio também previra, tendo no entanto sempre uma solução.
E agora estava ali na cama, como que abandonado a si próprio, entregue à sorte.
Algo não estava a encaixar no guião.
Seria culpa dos guionistas? Seria ele apenas o produtor, sabendo que qualquer Goldwyn Mayer tinha o seu fim como toda a gente. O pai não lhe ensinara isso.
Questionou-se.
Ora, um profeta não pode ter dúvidas nem tonturas…. Pensou.
Estava o mundo a sofrer com as suas sábias previsões, portanto, não seria possível estar assim de rastos. Um profeta não hesita. Mas então que fazer?
Seria Bill um profeta a sério? Teria o mundo a possibilidade real de ter profetas, ou estaria o planeta a ficar refém da estupidez generalizada?
Estaria a bola-mundo às voltas sem rumo, assim como o seu estômago? A Inteligência Artificial estava a fazer raccord com a estupidez natural?
Encontrou finalmente a porta certa e Bill voltou para a cama. Ao fim de uns terríveis minutos sem segundos voltou a adormecer, cheio de dúvidas.
Sonhou com flamingos a saltitar com graça e em harmonia sobre verdes pradarias em croma, invadidas pela luz suave do amanhecer californiano.
Quando acordou novamente, percebeu que alguma coisa continuava errada.
Já não se sentia tonto, nem agoniado, mas sentia-se anormalmente leve.
Leve demais, como se não tivesse peso.
Talvez tivesse o peso de uma conspiração.
Talvez o mundo fosse só e unicamente uma grande conspiração contra o próprio mundo. Uma auto-conspiração. Parecia que alguma coisa estava a chegar ao fim mas desta vez, Bill não tinha solução para o que aí vinha. Até parecia que já não estava cá.
Era esquisito mesmo, (os americanos dizem weird. Toda a gente diz weird).
Já na casa de banho percebeu que o espelho desaparecera do sítio, mas da janela continuava a ver-se uma imensa pradaria cheia de pássaros e árvores ainda sem denominação, de uma beleza refrescante e acolhedora, embora não tivessem uma forma comum e reconhecível pela biologia.
Bill Gates imaginou-se a voar, mas depois voltou a si e conseguiu encontrar a espuma da barba.
E depois desmaiou novamente.
Não se percebia bem. Tudo começava a ter a forma de um pesadelo.
Ruy Otero é artista media
Ilustrações de Manuel Silva
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
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Haverá muitas pessoas que não conhecem Julian Assange, outras só se lembrarão do filme ficcionado sobre o hacker-jornalista em que é representado como uma pessoa vaidosa e difícil. Não vi o filme, mas pelo estilo e depois de uma passagem na diagonal, acho que é daqueles cujo trailer é melhor que o próprio filme.
Outros fixaram-se no suposto assédio sexual sobre uma mulher, ainda que anos mais tarde essa acusação se revelasse falsa, constatando-se ter sido orquestrada pela CIA.
Também haverá cabeleireiros que se devem lembrar do seu cabelo louro, dourado ou quase branco e dos seus cortes trendy.
Para outras pessoas mais incautas, a WikiLeaks poderá ser uma ilha paradisíaca no Pacífico que urge visitar porque deve ter resorts incríveis.
Por outro lado, muitos jornalistas ao início viram na plataforma (impossível de desencriptar), informação de borla e verdadeira, não havendo forma de deturpá-la, uma vez que conduzia ao acesso às próprias fontes, a documentos e emails sigilosos por exemplo, passando sempre pela casa de partida como no velho Monopólio.
Depois de Assange ser preso, foram deixando de o fazer, o que só nos elucida acerca da força do Poder, porque a informação é eterna no planeta virtual, onde tudo vai desaguar. Está lá, é só clicar.
Não há político ou potência que não tenha sido interpelada por esta revolução tecnológica, que é a WikiLeaks, denunciando políticos que antes estavam completamente impunes, fazendo com que o jornalista mais tarde fosse acusado de espionagem por Biden, ainda quando era vice-presidente de Obama.
Nunca se provou que tenha colaborado com qualquer organização ou país.
As pessoas do Livre deveriam consultar mais vezes a plataforma. Quem diz do Livre, diz do Chega, porque para Assange não havia bons e maus, dizem. Para outros será um terrorista que favoreceu uns em prol de outros, como se a vida não fosse assim quase sempre.
Para muitos é um criminoso anarcocapitalista.
Um exibicionista.
Um megalómano.
O western do australiano talvez seja mais parecido com aquelas coboiadas em que a personagem central é um justiceiro como nos filmes chunga spaghetti, já que de qualidade são poucos.
Mas esses heróis não acabavam na prisão com derrames cerebrais. É o preço de ter aceitado a toma da cicuta como o Sócrates de Atenas, preferindo ser morto, ou ser preso no caso de Assange, já que ser cobarde e ter de viver conhecendo as miseráveis atrocidades do Poder, pode não dar boas noites de sono se não se fizer nada, e o melhor é sacrificar-se pelos valores e pela liberdade de expressão, que com ou sem WikiLeaks continua a ser posta em causa a toda a hora. Não é para todos.
Mas está aí uma das diferenças entre o cinema e a vida real. O que interessa sobretudo é o que consta nos documentos. Factos.
Mas quem sou eu?… Algum jornalista, algum cyber-bófia?
Nada disso, apenas um parolo que de vez em quando está preocupado com a vida e com a ficção.
Fica mal dizê-lo, mas as injustiças e a ignorância… Enfim, é melhor não… Vou parecer um cripto-romântico!
A WikiLeaks é sem dúvida o melhor polígrafo de todos e não é feito por estagiários e vigaristas. Foi através da WikiLeaks, que ficámos a saber da proposta da senhora Hillary para bombardear a embaixada do Equador em Inglaterra com o objectivo de assassinar Assange através do uso de drones.
Para muitos, Hillary Clinton é uma humanista e pacifista que teve o azar de ser enganada pelo outro senhor do Arkansas também humanista e sensível que até tocava trompete. Mas felizmente apareceu o psicólogo de massas Obama que bombardeou mais países do que a droga que o Lou Reed consumiu.
A grande vitória de Assange foi a pior derrota da História para as agências de inteligência como a CIA, e o seu crime foi ser jornalista e expor o que os assassinos planetários em massa fazem sem que os media tradicionais denunciem, tornando-se eles mesmos até coniventes com o que escondem. Mas é tudo conspiração quando não rima com o verbo oficial, já sabemos.
Mas que é verdade que a CNN em tempos publicou os crimes de guerra atrozes dos EUA no Afeganistão e no Iraque e depois deixou de o fazer, sabemos; que mostrou a aniquilação massiva de civis em vários locais do mundo, também sabemos; que Israel financiou o Hamas não é novidade para poucos, mas será para a maioria; que a plataforma expõe a forma como os governos da América Latina são completamente controlados pelos EUA também só não sabe quem não quiser. Mesmo os políticos mais esquerdistas, como Obrador, do México, que quis militarizar o país em conluio total com a presidência dos EUA ou Alberto Fernandez da Argentina também lá estão a fazer das suas, mas sempre com a conversa dos trabalhadores e das boas intenções esquerdistas a adocicar os discursos.
Até os Kissinger papers da década de 70 por lá navegam como se fosse um barco que nunca vai ao fundo, já para não falar da informação secreta das monarquias europeias e até da saudita.
Há também informação que baste acerca da tortura e do assassinato sem piedade de jornalistas e civis por parte de muitos que têm a bênção dos media mainstream em geral.
Enfim, quem quiser ler a WikiLeaks despenderá mais tempo a fazê-lo que nos Miseráveis de Victor Hugo.
Assange só ficou oficialmente preso no governo Trump em 2019. O próprio Trump aproveitou informação da WikiLeaks para derrotar Hillary, mas depois não quis mais saber do jornalista, tendo inclusivamente prometido libertá-lo antes de ser presidente. Ainda há quem pense que o americano saído da casca é uma alternativa ao Deep State. É tão só um plano B de um traidor que gosta da Playboy e que chegou a dizer que nem conhecia a Wikileaks anos depois.
Não é fácil libertarmo-nos desta gente, cujo desporto preferido é contrair dívida e alimentar bancos centrais.
Numa entrevista, respondendo sobre quem era o seu maior inimigo, Assange disse tratar-se da ignorância. O jornalista, com nacionalidade equatoriana, não brinca em serviço, mas há quem não veja isso assim, considerando que revelar segredos de Estado não é a melhor via para se ser feliz e pode ser um crime grave. Mas isso seria tinta para outro papel, como dizem os polacos.
Voltando um pouco atrás, sabe-se que antes de ser acolhido pela Embaixada do Equador esteve a viver durante anos disfarçado num bosque, numa cabana e movendo-se em hotéis com uma identidade falsa.
Entre 2012 e 2019, esteve, então, “preso” num quarto nessa Embaixada latina, mas suspeita-se que o presidente Rafael Correa, espiava-o através uma empresa espanhola vinculada à CIA dentro da própria embaixada. É tramado ser presidente.
Há cinco anos Assange foi direitinho para uma cela de três metros por dois em Inglaterra.
Uns anos antes e já detido, ainda conseguiu participar na fuga de Snowden para a Rússia, planeando o resgate do informático num avião de John McAfee, outro hacker que depois apareceu morto em condições muito estranhas numa prisão em Barcelona.
McAfee é o responsável pelo anti-vírus que temos no computador chamado… McAfee.
Se Assange não conseguiu um asilo na Rússia foi porque nunca cedeu a ninguém e quis expor também as cumplicidades de Putin com os Clinton e com Bush, revelando a história do urânio por exemplo. Mas certamente haveria muito mais para expor da Rússia e de Putin. Nas condições em que Assange ficou, eu tentaria logo arranjar protecção, não sou maluco. Ser neutro, neste mundo, nem num poema. Por isso há quem jure que beneficiou Putin.
Mas ao invés de se informarem melhor, as pessoas em geral preferem continuar a consultar sites pornográficos e vídeos de gatos a tocar piano. Não tem mal, é certo, mas há mais coisas interessantes para fazer.
Uma das conquistas do Poder tecno-político foi esse. Esvaziou a mente humana com distracção, mas isso é ar para outro balão, como dizem os alemães.
Ora eu cá também gosto de me distrair, mas prefiro um corneto de chocolate na praia mesmo sabendo que tanto a praia como o gelado devem estar cheios de químicos.
Vás para onde vás, és sempre passível de ser sabotado. Até a alimentação saudável hoje já é uma doença. Uma obsessão… Vá. Obsessão também é doença segundo o DSM , mas para esse manual também tudo é doença mental e estamos todos a precisar de psicotrópicos. Sobretudo quem os inventa. Aqui estou a fugir do tema, ou talvez não.
Entretanto, há dois meses e meio, o jornalista saiu da prisão voando directamente para a Austrália, o seu país de origem onde se juntou à sua mulher Stella que deu há uns tempos uma entrevista ao PÁGINA UM e que poderá ser vista aqui.
Devo acrescentar que esse país dos cangurus, não é muito seguro. Criou “campos de concentração” para dissidentes do covid. Mas vamos ver se lhe corre bem a estadia, de forma que possa assistir em paz um dia a um encontro de ténis jogado por outro “herói” do nosso tempo, o tenista Djokovic, que não quis ser patrocinado pela Pfizer, dando um match point à pseudo-ciência.
Há esperança para a humanidade de vez em quando, mesmo que hoje uma parte significativa do mundo na sua auto-representação ache que tem os dias contados. Eu não penso isso e continuo a gostar de ver ténis mesmo que a Adidas agora se considere humanista e tenha entrado no desporto da moda da filantropia e do politicamente correcto. Talvez seja bom consultar a WikiLeaks e ver se há algum email da Adidas para a Coreia do Norte, nunca se sabe. Ir dar uma volta até à WikiLeaks deveria ser um desporto universal, mas também não quer dizer que esteja lá tudo. E se não estiver, não quer dizer que não tenha acontecido. A WikiLeaks não é Deus nem pretende formar uma religião.
A notícia da libertação do jornalista australiano parece ter trazido alguma novidade ao mundo, pelo menos no dia em que isso aconteceu foi notícia nalguns órgãos. Depois já não se falou de Assange porque ainda andam por aí muitos gatos à solta a tocar piano à espera de visualizações e muitos vírus mortais à espera do seu dia triunfal para sair do meio do “gelo” como anunciado, para começarem a assustar pessoas.
Passando pela Wikipédia para ver o que se diz sobre o australiano e fiquei a saber alguma coisa, mas entretanto fui ver o que é que a Wikipédia diz da Wikipédia já que este texto é um pouco wiki até. Diz o seguinte:
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Desisti. Se nem a própria Wikipédia diz a verdade sobre a Wikipédia quanto mais sobre o Assange.
Vários políticos e até presidentes de países deram as graças pela libertação de Assange, entre eles Lula da Silva, mas parece estranho políticos darem graças pelo jornalismo livre. O The Guardian também o fez, mas lembro-me da perseguição feita por esse órgão e quase todos, a quem não concordasse com as políticas abusivas inconstitucionais durante a pandemia, abrindo precedentes perigosos em nome de sabe-se lá de quê, chegando a ser escorraçados.
É certo que há muita mentira e desinformação por aí, a começar pelo jornalismo mainstream e por malucos ligados à extrema-direita, por exemplo, e não será fácil lidar com essa esquizofrenia galopante. A única coisa que muitas pessoas pedem, estando eu aí incluído, é que os assuntos sejam discutidos com transparência e neutralidade, apanágio do verdadeiro jornalismo que quando foi nobre, adorava a diversidade de opinião e o contraditório. E depois que cada um tome as suas decisões e aí a plataforma de que falo pode ajudar a que todos sejamos um pouco jornalistas já que estamos a precisar de ir ao cinema outra vez, mas para ver filmes com princípio, meio e fim.
Filmes que tragam novamente alguma poética ao espectador, e já agora alguma coerência. Porque isso de a realidade ser uma sala de cinema, já chega. Tem piada, mas cansa muito. Qualquer dia está tudo aos tiros. E é chato.
Anda muita gente a ver-se ao espelho, mas a usar um espelho turvo e cheio de ferrugem ao qual nos estamos a começar a habituar. Precisávamos, mas era de um espelho feito de areia, é certo, mas não daquela que nos andam constantemente a atirar para os olhos.
Thoreau disse que perante uma lei injusta é uma obrigação e um dever desobedecer.
Assange certamente leu Thoreau.
Ruy Otero é artista media
Ilustrações de Manuel Silva
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Ao fazer zapping na plataforma Filmin, choquei de frente com um filme que já tinha visto há muito tempo intitulado All That Jazz. Tinha uma fugaz boa impressão, mas lembrava-me de muito poucas cenas. E, então, vi-o novamente.
Surpreendeu-me, e, como acho que, numa certa perspectiva, tem os elementos para uma pertinente interpretação à luz dos nossos dias, fiz o trabalho de casa e decidi escrever.
Se eu fosse dono de um cinema de reposições como ainda vai havendo, considerando também o Cinema Nimas, último bastião resiliente de cinema em salas com grandes ecrãs em Lisboa, seleccionava este filme para estar em cartaz uns tempos.
Iria trazer certamente estilo à cidade porque antes os cinemas eram também os jardins das cidades.
All That Jazz é um filme de Bob Fosse que estreou em 1979 e ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes ex aequo com Kagemusha – A Sombra do Guerreiro, de Akira Kurosawa em 1980.
É um filme magnífico, posso jurar pela alma do cinema.
Bob Fosse foi dos realizadores mais singulares do sistema mainstream norte-americano, mesmo que possa não ser considerado como tal por alguns críticos mais radicais ou puristas e até ser visto como um intrometido que veio do teatro musical, constando na sua filmografia apenas quatro longas-metragens, entre as quais Cabaret, que recebeu um total de 10 indicações ao Oscar (vencendo oito delas), detendo o recorde de obra com mais prémios da Academia para um filme, que não venceu o Oscar de Melhor Filme.
Fui ver o que alguns sites diziam do filme e aqui transcrevo o que o site agregador de avaliações Rotten Tomatoes diz: 87% das 46 avaliações dos críticos são positivas, com uma classificação média de 7,6/10.
O consenso do site diz: O diretor Bob Fosse e a estrela RoyScheider estão no topo neste drama de palco deslumbrante e auto consciente sobre um diretor-coreógrafo obcecado pela morte.
Vale o que vale.
Este é mais uma daquelas longas-metragens em que, não obstante ter 45 anos, podemos sempre encontrar traços da actualidade, sobretudo pela forma como teatro, cinema, vida, vida real, espectáculo, dança, showbiz, e autobiografia se misturam, parecendo tratar-se de um convite muito sério (mas a brincar) para se entender o espírito tempo em que foi produzido e também o que haveria de chegar, com algo de premonitório, até atendendo à esquizofrenia latente que navega por lá, que com o passar do tempo mais a continuação do Plano Marshall, no Ocidente, passando pela inevitável queda do Muro de Berlim, só teria tendência para piorar, no que à psicose diz respeito.
O Directório de Saúde Mental com os seus excessos em conluio com a indústria farmacêutica, são disso exemplo para a construção de outros muros que, entretanto, apareceram e não são para aqui chamados.
Se há coisa em que Bob Fosse não falhou, e talvez não fosse difícil, foi na premonição da sua própria morte por insuficiência cardíaca, que veio a acontecer algum tempo depois aos 60 anos.
Premonição? Morte?
Toda a arte, metaforicamente falando, que se envolve subtilmente com o tempo, terá de arriscar alguma coisa quanto à sua expansão no futuro que nunca estará privado de História e a morte é sempre o melhor dos temas, quanto a mim. Pois este filme vive da morte, como não poderia deixar de ser…
Mas aqui, nestes milhões de fotogramas é-nos transmitido por outro lado, que o tempo é de espectáculo permanente e que vida e morte, ficção e realidade, podem estar a querer dizer que são água da mesma fonte, integrados numa cacofonia delirante armadilhada por todo o tipo de “redes sociais” e intrigas malignas, dignas da realidade actual, que não é mais que uma continuação natural das outras redes e de outros tempos.
Sim, sim. O digital é o prolongamento do dedo.
Está tudo ligado e desligado ao mesmo tempo. Neste estranho e atípico filme é nos dito que a vida é aquilo que tem de ser, e só vivendo no sonho ou na imaginação é que existem possibilidades salvíficas.
Este filme polvilhado por anfetaminas, parece uma longa selfie feita por alguém que sabe filmar e dançar. É um filme-slalom que está constantemente a ver-se ao espelho. Ou mesmo pode tratar-se de um filme-espelho, para ser mais preciso, ainda que toda a arte deva espelhar, nem que seja espelhar-se a si mesma, como também acontece nesta película, uma vez que não deixa de ser uma obra com tiques pós-modernos, já que mantém alguma sinuosidade kitsch típica desse mundo colorido e stressado, o que até lhe fica bem e na altura recomendava-se.
Como sintoma, este filme fechava o fim de um ciclo de musicais que alimentaram e sustentaram alguma Hollywood. Seria o último musical indicado ao Oscar de Melhor Filme até que A Bela e o Monstro da Disney fosse indicado em 1992, e foi o último musical live-action a competir na categoria, até Moulin Rouge de Baz Luhrmann em 2002.
É contemporâneo de A Febre de Sábado à Noite que imortalizou John Travolta e se tornou filme de culto, embora nada lhe deva, sendo muito mais profundo e arty, que a sobrevalorizada fita de John Badham.
Neste estamos sempre à espera de que o espelho parta e com ele o próprio elenco (técnicos e actores) que estão por lá reflectidos, como se isso fosse coisa pouca. No outro não há espelhos humanos, aqueles que interessam, e os que há, estão instalados nas bolas refletoras das discotecas e clubes, ou servem apenas para John Travolta se pentear enquanto se reflete neles, não trazendo nem expondo a fractalidade da qual muita arte se alimenta. Aqui, a suposta falsidade e futilidade das coreografias e canções, ajudam a decalcar o mundo profissional e os seus inerentes dissabores. Mas todas as salas de ensaio naturalmente têm um espelho. Será a vida uma longa e interminável sala de ensaio com um espelho a olhar para nós?
The show must go on, n´est pas?
O mundo é um espectáculo, e aqui não deixo de citar e invocar, mesmo que o realizador não o tenha lido, (não sabemos), o livro de Guy Debord intitulado A Sociedade do Espectáculo, de 1967 e que acertou em cheio no desenlace para o admirável mundo novo ao qual a sociedade se sujeitou, sem que alguém disso duvide, pode é ser bom para alguns. E mau para outros, como sempre acontece em sociedades divididas. Chamou-se a isso democracia.
Bob Fosse foi dos principais encenadores-coreógrafos da Broadway nas décadas de 50, 60 e 70, e um grande viciado em anfetaminas, sexo, cigarros e Dexedrine, já para não falar de ser um workaholic de primeira, aspectos que o filme autobiográfico realça bem, pelo menos o seu alter ego Joe Gideon está sempre em zona de perigo, ostentando permanentemente um Camel ao canto da boca como um cowboy solitário e aventureiro que tem a morte à sua espera no fim da linha e o show time na ponta da língua no inicio do dia, repetindo-o várias vezes ao longo do filme, mas sempre filmado e editado de formas diferentes ainda que sempre de frente ao espelho da casa de banho.
O próprio filme, é um excesso, caracterizado pela montagem cheia de ritmo e cortes rápidos, trazendo daí flashbacks e flashforwards necessários para a compreensão da narrativa e para a sensação de pesadelo e desespero light que o filme parece pretender criar, percepcionando um certo cansaço, mas também um divertimento ligeiro ao mesmo tempo, acompanhado sempre de movimentos de dança e de música entretida, típica daquele género de espectáculos no qual todas as personagens estão envolvidas.
Era frequente naquela época abusar-se um pouco de efeitos como o de fade in/fade out, ou sobreposições e outras distorções visuais e/ou sonoras. All That Jazz peca um pouco por isso. Talvez seja também misógino já que tudo circula à volta de Scheider, e não deixa de ser verdade que as mulheres podem aparecer como objecto do seu vício, apalpando as enfermeiras na cama do hospital sem a sua permissão, por exemplo. À luz dos dias de hoje com cancelamentos e auto-censura, não sei se o filme aguentava num cinema sem umas sprayzadas de tinta nos cartazes. Quase me sinto obrigado a dizer isto, embora o filme, seja como for, o faça com arte e criatividade e não creio que veicule uma apologia de masculinidade tóxica.
A narrativa desloca-se pouco do mundo do espectáculo em que o jogo está mais legitimado e é sobretudo dado um mergulho profundo nesse mundo, por alguém que caiu desde cedo no caldeirão do showbiz.
Nesse sentido, Bob Fosse torna-se único, fundindo com realismo o cinema e o espectáculo como se nos tivesse a dizer que se fosse bombeiro só faria filmes sobre incêndios, mas auto-indulgentes e negativos, ou em parte.
Mas o argumento para dar contraste e mesmo paradoxo visual e narrativo, acaba também por magistralmente envolver o corpo clínico que mais tarde aparece como elemento salvador dos excessos de Gideon em ambiente hospitalar, e talvez seja essa a grande novidade conceptual apresentada, fazendo confluir dois universos completamente dispares, ou talvez nem tanto…
É também um filme feito de luzes e de lantejoulas com chapéus de coco e cadeiras a voar por todo o lado, a darem-nos permanentemente a convicção de que a vida não só é um espectáculo ainda que triste, como também um cabaret.
Bob Fosse fez apenas quatro filmes, mas umas dezenas de encenações teatrais e musicais pelas quais foi inúmeras vezes premiado. E em pelo menos três obras cinematográficas, retratam-se pessoas que existiram, não só no mundo real, como também no cosmos das Broadways norte-americanas andando em torno, como no caso de Star 80 (o seu ultimo filme), do destino trágico da modelo playmate Dorothy Stratten que estava envolvida com o realizador Peter Bogdanovich (no filme tem outro nome), sendo este e Lenny, dois biopics que expõem os perigos e as perversões do mundo do show business, que o próprio tão bem conheceu, e cujas consequências viveu na pele.
Parece dizer-nos também sem grande lamento, que em tempos freneticamente instáveis de esquizofrenias paradoxais universalmente expandidas e fragmentadas, num mundo globalizado e americanizado, justifica-se pôr o dedo nas feridas abertas de um mundo deprimente também gerado pelo excesso e pela sua velocidade imparável, alicerçado em cidades sujas como a Nova Iorque daquele tempo pré Giuliani, que dizem tê-la “limpo” anos mais tarde, com métodos dúbios e obscuros de tolerância zero. Como se a asseptização vindoura não trouxesse ainda mais lixo, mas isso são mãos para outro piano, como dizem os eslovenos.
A série Fame também contemporânea deste filme e que retrata o mundo das artes cénicas a partir de uma escola, mostra uma Nova Iorque que já não é a do sonho americano, parecendo mais um pesadelo, ilustrada pela crueldade, dureza e competição a que os artistas se submetem na tentativa de ganhar um lugar ao sol.
Esses tempos cinematográficos e televisivos mostravam cada vez mais a neblina, e isso era muito patente em Hill Street Blues, uma série televisiva daquele período com grande êxito mundial, em que se acompanhava o dia a dia dos agentes numa esquadra de polícia.
Nova Iorque era viciante e viciosa e realizadores como Jim Jarmush que lá viveu nessa altura, disse tratar-se do melhor sítio do mundo para viver, ainda que fosse das cidades mais perigosas do ocidente na década de setenta e oitenta.
Essa Nova Iorque carismática com cheiro de vão de escada e muito frenesim impregnado de adrenalina estão muito presentes em All That Jazz, embora seja ilustrada mais pelos personagens e as suas inerentes fragilidades que pela visão da rua. Sente-se o lixo e o crime sem se ver, cheira a comida exótica fast food por todo o lado como em Blade Runner feito uns anos depois. E ambos os filmes têm semelhanças na forma como a morte e o medo aparecem e mergulham na metafísica, mas Gideon jamais poderia ser um replicant, para aproveitar o balanço da citação ao filme de Ridley Scott.
Este All That Jazz não deixa de ter alguma violência contida, mas bem expressa por exemplo nas incapacidades técnicas e criativas dos bailarinos e na manifesta dúvida existencial permanente em Gideon, realçando assim a intransigência conhecida para se ser bem sucedido no mundo do showbiz.
A dúvida e a sua inerente violência psicológica são um elemento que acompanha o filme pouco contido, algo lacónico, cáustico, penetrante, confrontante, e até imperativo.
Esta longa metragem atípica confere visibilidade ao invisível através das percepções e interpretações sensoriais, emocionais e até intelectuais dos actores, resvalando um pouco em Cassavetes, já que era um dos realizadores mais interessantes e experimentais do cinema norte-americano e que ainda influenciava parte do cinema, sobretudo o europeu, germinando nas personagens processos mentais imaginativos, cognitivos, e até reflexivos, constituindo-se como veículo de auto-representação de um mundo desconhecido para a maioria, tendo conhecimento apenas como espectadores mas sem acesso ao seu background que não era tão feliz como os media faziam crer nas revistas.
All That Jazz funciona como um canal de expressão, comunicação e conhecimento, e responde de lâmina afiada cortante com solidez, objectividade e contundência a um mundo que mergulha por vezes na crueldade e é cada vez mais escravo e servil do gosto dos espectadores e produtores. Gideon sabe disso.
Fosse sabe disso. Até eu disso sei.
É, pois, um meta-filme, ou um meta-espectáculo dentro do filme que acaba ele mesmo por instalar-se definitivamente num hospital, fazendo confluir o mundo clínico e frio com o mundo espectacular das cores e das coreografias.
Essa acidez com vontade de se alcalinizar, é sem duvida um dos pontos centrais do filme, trazendo singularidade ao mundo asséptico da bata branca, fazendo lembrar algum Fellini, (Oito e Meio de certeza, ou mesmo Ammarcord, arrisco eu), obras nas quais o tempo parece ter compactuado com o os 24 fotogramas por segundo, andando para trás e para a frente sem tropeçar, de forma a mostrar-nos a cabeça e os pensamentos por vezes fragmentados, por vezes claros, dos protagonistas, dizendo que aquilo que estamos a assistir vive ao mesmo tempo dentro das suas mentes.
Em Fellini e Fosse há sempre uma vontade intrínseca de ser cinema próximo da vida, sem o realismo muitas vezes associado, ou então traduzindo uma realidade delirante, e aí sim realista, porque a própria vida também ela pode ser excessiva, e sendo assim, mais uma vez podemos viajar no tempo, e parar no presente, num contexto em que as ciências médicas têm tido um protagonismo pouco científico e a esquizofrenia generalizou-se com o fim anunciado do jornalismo e sabemos lá se do cinema.
All That Jazz não deixa de ser um filme íntimo e perturbador, é a cabeça de Roy Sheider que transporta toda a emoção ou a carpição sofrida e introspectiva da aridez de solidões, desamores, frustrações, e até incompreensões, fazendo com que cada um de nós se identifique mais ou menos com a confissão vulnerável do autor que vai dialogando ao longo do filme com uma espécie de imagem feminina interpretada por Jessica Lange, pueril, bela e branca, fazendo acreditar por vezes ser a morte disfarçada de anjo, ao contrário da morte representada em Sétimo Selo de Bergman, por um cavaleiro vestido de negro e com uma máscara branca. Um anjo exterminador.
Sem dúvida que All That Jazz está também imbuído de fé e crença, mesmo que alimentadas pela falsidade do mundo do espectáculo, que precisa de acreditar no teatro da vida para ser eficaz nas suas deambulações tanto intelectuais como emocionais, estando sempre à frente do olhar e da acutilância dos produtores para ganhar dinheiro, tentando passar por cima das fraquezas humanas, e das pequenas falhas de carácter, marca estúpida dos humanos.
Esta película está sempre a ver se a luva serve na mão, usando palavras despidas, perspicazes e fortes de nos arrepiar a pele pela crueza e até pelo humor cáustico vindo da boca do actor que interpreta o stand-up comedian e que aparece quase sempre dentro de um monitor da sala de visualização enquanto parte integrante de um filme que Gideon anda a acabar, autocitando-se uma vez que já realizara anos atrás, Lenny, uma longa metragem a preto e branco que retratava a vida do cómico e trágico Lenny Bruce com Dustin Hofmann.
All That Jazz é uma esponja auto-biográfica do autor. Absorve, processa e escorre, dá ideia que o copo foi enchendo com o passar dos tempos que imaginamos muito preenchidos enquanto observador de uma realidade mais abrangente que a da sua vida no trabalho, na família e nas mulheres, carregada de todo o tipo de excessos. É uma obra com sangue, suor e lágrimas onde o fantasma do Vietnam e dos filmes de guerra dessa época excessiva paira, mas talvez mais pelos fantasmas cinematográficos do que pela realidade do filme que andava preocupada com outros negócios.
É o filme que Kubrick disse ser o melhor filme que já tinha visto, pelo menos até à época, o que é uma excelente carta de apresentação e já agora o realizador de Shinning é citado numa das cenas a propósito… De filmes.
Arrisco mais uma vez fazer uma analogia com o nosso presente pela necessidade de encontrar uma válvula de escape que ali é representada pela imagem da mulher e hoje é trazida pela cultura new age mais uma vez com Yogas e Krav Magás, passando pelos spas que jorram pelos ginásios, onde o suor é outro e as lágrimas vão secando ao ritmo de outra musica, iludido que está o publico de apaziguamento, tanto pelo controlo da ansiedade, como pelo controlo da violência intrínseca, com a tentativa de dar murros na mesa às incongruências do presente e incertezas do futuro que lhe (nos) entram pelos olhos dentro no quotidiano, e não podem, e não devem ser passivamente ignoradas.
Uma palavra também de apreço a Roy Scheider que até aí era mais conhecido por filmes onde fazia de duro como French Connection, ou pelo grande sucesso comercial Jaws, realizado uns anos antes por Spielberg. Mas o seu desempenho mostra capacidades ecléticas bastante assinaláveis dando sempre uma energia, um entusiasmo e paradoxalmente um desgaste credível à personagem. Supostamente Gideon está sempre sobre o efeito de drogas e Scheider nunca cai no overacting em que muitos caíram em filmes limite do género, embora o argumento peça que estejam na fronteira subtil, tanto o actor, como o realizador e a personagem, ao mesmo tempo, e aí Roy Scheider é exímio fazendo de todos e talvez até de si mesmo, como é comum nos bons actores que têm coisas a dizer não se ficando pelo exibicionismo da técnica.
Queria terminar com uma cena do filme:
Gideon está na maca dirigindo-se para a sala de operações. Acompanham-no de um lado a ex. mulher e mãe da filha, e do outro a actual namorada. Olha para a primeira e convicto de que pode sucumbir na perigosa operação ao coração, diz: Se morrer peço já desculpa por todo o mal que te fiz!
Ela chora. Depois Gideon olha para a namorada e diz: Se continuar a viver, peço já desculpa por todo o mal que te vou fazer!
Ela ri.
Esperemos é que o cinema não sucumba na mesa de operações, por onde tem sido visto ultimamente, estando a precisar de uma válvula cardíaca nova para contrariar a sua morte anunciada.
Mas pronto… All That Jazz continua a respirar sem a ajuda da máquina.
Ruy Otero é artista media
Ilustrações de Manuel Silva
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
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O tédio era uma palavra ainda tida em conta e vinha no dicionário. Ligava-se a televisão em horário nobre, e a notícia principal era… o calor.
Lembro-me, há pelo menos vinte anos, de todos os telejornais abrirem em prime time, num dia normal de Agosto, com os repórteres perguntando às pessoas comuns que estavam nas praias do país, nomeadamente Carcavelos e praia da Rocha (ainda hoje essas praias servem para as mesmas reportagens), sobre o que achavam do tempo que fazia.
Invariavelmente, as pessoas olhavam para o céu, e a resposta era sempre a mesma – que estava calor, que o sol brilhava em pleno e a água, embora estivesse um bocadinho fria, no caso de Carcavelos, ornamentava-se sempre de uma temperatura bastante convidativa para o mergulho. E assim foi durante anos a fio. Todos os anos lá iam os pobres dos repórteres às mesmas praias fazer as mesmas perguntas nos mesmos dias de sol. Tanto que já não conseguíamos passar sem isso. Numa ou noutra época, podia haver uma ou outra variante balnear, como o famoso arrastão de Carcavelos, que até se veio a revelar mentiroso ou exagerado. Mas nada de novo debaixo do sol.
A repórter invariavelmente falava na temperatura, normalmente acima dos trinta graus e incentivava estupidamente os telespectadores a irem até lá, esquecendo-se que a maioria da população estava a trabalhar ou não morava na zona da linha do Estoril ou em Portimão. Depois passava para o pivot, que já podia ser o Rodrigo Guedes de Carvalho ou a Clara de Sousa, e se não houvesse algum incêndio espectacular digno do envio de piquetes, a notícia seguinte podia mesmo tratar-se de uma tartaruga-de-couro salva nas Caraíbas por um grupo de excursionistas japoneses, acompanhada por um piscar de olhos do José Rodrigues dos Santos, caso fosse a pública RTP ou de uma lamechice pegada com melodrama Moulinex à mistura do Rodrigo G. C., o famoso poeta da SIC.
A TVI nos anos noventa andava a rezar noutras paróquias pela falta de audiências até ao milagre do BB e pouco acrescentava ao estilo dominante.
Os leitores estarão a pensar que hoje também se fazem estas reportagens, e é certo, mas até certa altura elas eram totalitárias, conseguiam preencher um telejornal inteiro, não existiam alternativas e actualmente estas notícias e reportagens aparecem no meio de outras, diluídas em formatos informativos cada vez com menos audiência. Até aos anos 2000 (não é óbvio situar), o fenómeno da televisão era determinante, e parecia ser mais credível para os consumidores. Se havia Silly Seasons é porque o mundo estava em silly season e a democracia era tão certinha que se chegava ao pico do Verão e o mundo puro e duro ia de férias.
Dava-se também importância às férias de famosos, por exemplo do Paulo Portas ou do Figo, e os portugueses pareciam gostar de vê-los a beber “refrescos de whiskey” no Algarve. Mais uma vez, é certo que hoje também existem essas reportagens, mas com credibilidade zero. O planeta-Verão já não é acompanhado por uma banda sonora de música ligeira. O mundo comprou outra novela e por isso a presença assídua de fantasmas nestas crónicas.
Nessa época, ainda antes da nova moeda, Santana Lopes era capaz de transformar uma cidade normal como a Figueira, num Rio de Janeiro, tal era o incentivo à dívida e ao Carnaval permanente.
Até o Eric Cantona nos Verões santanistas, não saía da Figueira, arrastando-se espectacularmente na areia do futebol de praia e nas pistas do Casino, antes de se dedicar ao cinema de autor.
Toda esta festarola era sempre acompanhada pelos diferentes canais que viam nessa cidade o exemplo colorido a seguir. O Santana Lopes e a Cinha Jardim tinham um rumo para o Verão dos portugueses. O futuro era para cima, diziam os mais optimistas, o próprio Santana Lopes até falava em altos astrais para a política, até bater com a cara de frente na Serra da Boa Viagem, claro…
Nesse período de fim de século, avizinhava-se sempre o grande acontecimento do Pontal em que os protagonistas do PSD apareciam todos bronzeados em mangas de camisa branca, ou às riscas, a abrir as primeiras hostilidades da época contra o PS, pairando sempre a sombra do Cavaco, que podia aparecer com um carro novo a fazer rodagem, fosse qual fosse o contexto ou a função do algarvio. O Cavaco sempre meteu medo ao PSD.
Neste Agosto também como sempre houve Pontal, e o elenco do costume andou por lá certamente, mas… Ninguém viu. O Pontal não funciona em 4K.
Já nesses anos dourados, o campeonato de futebol começava e os primeiros jogos aconteciam sem grande significado. Convém lembrar que havia poucos canais e o mundo ocidental ainda navegava em algum romantismo ainda que abstrato, em que as coisas tinham nome de coisas.
Mas também existiam Big Show Sics e a canção do Iran Costa, “É o Bicho”, animava as discotecas com coreografias estúpidas e infantilizadas, embora os psicólogos de serviço já adivinhassem ali algum erotismo inapropriado. Mas sempre dentro do mesmo género soft banana split.
Também havia crises, claro, e pequenas nebulosas, tipo um súbito aparecimento de uma alga na Ria de Aveiro que punha em causa a apanha de amêijoa branca. Podíamos estar em 96 ou 97 e o mundo parecia uma fábula de Walt Disney, em Agosto, ainda com Brancas de Neve e Sete Anões contadas às crianças, houvesse ou não guerras, houvesse ou não hospitais febris, houvesse ou não Clintons com bombardeiros prontinhos a agredir países, ou houvesse mesmo uma pobreza encapotada típica de Portugal. As tartarugas e a venda de bronzeadores estavam primeiro, e as férias eram um direito adquirido, sobretudo em família. As crianças eram entrevistadas para dar boa disposição ao telejornal e 35 graus eram uma bênção da natureza, tornando-se urgente desfrutar a consolidação da euforia perpétua proposta. Hoje, os mesmos dizem tratar-se do Inferno.
Acabavam sempre as reportagens acentuando o cuidado a ter com a hora de mais calor, incentivando os mais velhotes a ficar em casa uma horita ou outra e a beberem muita água, que pelos vistos havia por todo o lado. O mundo de Verão era um carrossel que era preciso manter oleado. Hoje, as horitas são dias a fio, e a água, dos velhotes e não só, é da Nestlé e custa os olhos da cara. O sol parece fazer sempre mal e os raios dourados já não lhes pertencem. O céu é da NASA e do Elon Musk.
Portugal continuava a endividar-se, mas o futuro parecia trazer sempre luz e a dívida permanente era apenas assunto para conversa dos chefes de família enquanto bebiam umas cervejas e comiam uns tremoços nas esplanadas de praia, como se isso fosse uma brincadeira para meninos que desse apenas umas boas piadas de Verão com a finalidade de chatear os comunistas.
A guerra da Jugoslávia só voltaria no Outono, parecia que fechava para férias também, e os grandes acontecimentos paravam porque era Verão, que curiosamente era sempre azul, como a série espanhola do Chanquete.
Anos depois, o mais parecido, mas do lado inverso, foi a pandemia Covid, em que o mundo também fez férias todo ao mesmo tempo, parando guerras, massacres e catástrofes naturais, mas ao invés de as pessoas irem para a praia, foram para casa ver o sol aos quadradinhos. O céu, que fora outrora azul, ficou mais que cinzento e pleno de drones autoritários que até falavam. No fundo, a pandemia foi a Silly Season do Inverno. Ainda hoje não acredito que tenhamos vivido naquela dimensão.
Só de pensar nas regras… do Fauci.
No Verão de 2020 cheguei a ver na televisão, por exemplo, como numa praia do sul de Espanha, um funcionário balnear de megafone na mão assinalava quem devia ou não ir ao banho, tipo “agora a senhora de azul pode ir para a toalha, o senhor de calções pretos pode tirar a máscara e ir dar um mergulho, mas vá em segurança e tire o pano só na água. O menino aí da direita, afaste-se do outro menino, por favor, e deixe de jogar à bola”. Vi também um jihadista suicida a dizer que tinha mais medo duma constipação do que de um soldado da ONU. E que depois, caso fosse contaminado, queixava-se ele, não parava de espirrar para cima da avó, uma velha também jihadista. “Deixa mas é lá isto passar que depois volto a dar uns tiros de bazuca, posso ser jihadista, mas não sou parvo”.
O vírus não foi só digital e assustou mesmo, se não foi de uma maneira, foi de outra. As máscaras do Carnaval da Figueira da Foz foram substituídas por outras bem mais fúnebres.
E, paulatinamente, desde a crise de Setembro de 2001, acompanhada pelo aparecimento da nova euro-moeda, que tem sido um a-ver-se-te-avias digital.
Primeiro, o aparecimento de canais tanto televisivos como na net, não deu descanso às férias, depois o aparecimento das redes sociais, generalizando-se o Facebook por exemplo lá para 2007 ou 2008, que também acompanharam a crise do subprime, começaram a fazer das suas e as comidas exóticas e mesmo o típico bife com ovo a cavalo passaram para o planeta digital para serem comidos com os olhos. Já para não falar dos pôres-do-sol que se viam ao espelho nas lentes empoeiradas dos mortais, tornando-se banais e menos laranja.
De lá para cá, os Verões vão ficando mais “gélidos” (quentes, segundo a versão oficial), e o mundo ainda está mais fragmentado do que o computador de Hunter Biden.
Como estamos em 2024, façamos um apanhado de um dia normal de Verão, englobando todos os media, em que qualquer semelhança com aquela realidade de outrora é pura ficção, como dizem os brasileiros.
Trump é quase assassinado por um puto com três nomes, como é da praxe. Guerra iminente entre o Irão e Israel. Puigemont foge de Espanha para Waterloo, sem que os moços de esquadra deem por ela. Um adolescente mata três crianças no Reino Unido gerando uma onda de violência da extrema-direita. A polícia propõe aos emigrantes que troquem as facas por uma assinatura à borla da Netflix, devolvendo os objetos cortantes na polícia local em troca da subscrição. Mais uma pandemia assumida pela OMS, desta vez a varíola dos macacos.
Mais uma data de mortos na Ucrânia. Apagão informático que põe em causa o funcionamento de aeroportos e as partidas de aviões. Musk fala no fim do mundo e ele mesmo entrevista Donald Trump. Não sei quantos mortos nas praias portuguesas. Praias interditadas com salmonela; o fantasma do dentista da TVI a continuar a assustar e a pairar nos dentes dos portugueses sem, contudo, ouvirmos uma palavra da Cristina Ferreira ou da Fátima Lopes, que bem o promoveram durante anos a fio. Discussões intermináveis de comentadores sobre orçamentos preocupantes. As eternas dívidas dos clubes, as dívidas do FCP, a falta de água e a seca no Alentejo de sempre, os recordes de temperatura em Bilbao, ainda que os autóctones achem normal. A demência de Biden, a vida cada vez mais cara. Os jogos olímpicos mais woke de sempre. As lástimas de Pichardo e o Benfica. O Fogo da Madeira que é o mais “quente” de sempre.
Enfim, podia continuar até ao infinito.
Mas o que vale é que é Verão. Ainda assim, se tiver sorte e para refrescar, uma vez que o calor me chateia, talvez caia um bocado de granizo lá pelo fim da tarde já que o tempo não anda para brincadeiras.
Ruy Otero é artista media
Ilustrações de Manuel Silva
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