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  • O admirável povo de Meimão

    O admirável povo de Meimão


    — É pá, Meimão sempre foi uma aldeia à parte. (Ri-se) O nosso concelho, nós dizemos Penamacor, mas Penamacor não queria nunca nada com Meimão. Eles tinham medo do Meimão. A gente com Meimão não se mete. Sempre foi gente à parte. Sempre! Não sei, foi… foi o facto de estarmos isolados muito tempo das outras aldeias que fez de nós pessoas diferentes…

    Mário Cameira

    — A vida… Tínhamos junta de vacas, tínhamos cabras e semeava-se por ali a vinha… E, agora, está tudo cheio de mato.

    Maria da Glória Martins

    — Foi tudo a caminho de França. A França é que deu as casas novas que há. Veio tudo quase da França. A França deu muita alma a Portugal. A Portugal e a muitas coisas. É verdade.

    — E o senhor foi alguma vez ao estrangeiro?

    — Nunca.

    — E Lisboa?

    — Nunca lá saí nem entrei. (Ri-se)

    Ti Domingos

    — Éramos umas mourinhas a trabalhar. E cantávamos muito…

    — Com 9 ou 10 anos a trabalhar. A sachar…

    — Eu é que começava as cantigas. Não era, Maria?

    — Pois.

    — Começava as cantigas e ela depois ajudava-me. (Ri-se).

    — O que é que cantava?

    — Ai… Era a «Rita, arregaça a saia…»

    — Como é que é?

    — Rita, arregaça a saia, Rita, arregaça-a bem… Não era?

    Lurdes e Maria

    — Esta aldeia para mim é tudo. É tudo. É porque foi aqui que eu nasci, que eu cresci. Tenho os meus amigos. Tenho, aqui, a minha família. E tenho, aqui, muitas raízes, muitas, muitas, muitas recordações. E essas recordações estão gravadas até ao infinito. Não há… Não há palavras.

    Arménio Pires


    Beira Baixa. 

    Terra Quente.

    Meimão fica ao fundo de um vale, nos contrafortes da Serra da Malcata.

    Há 40 ou 50 anos, este lugar desterrado arribou ou conseguiu tirar alento da força ou dos dons dos homens e da Fé… em Deus e no padre, José Miguel. E muita coisa, então, mudou…

    A aldeia tem 238 habitantes. Hoje. Aquando do primeiro censo realizado em Portugal (1864), havia aqui 389 fregueses ou, por outros números, 193 varões e 196 fêmeas.

    Ao cimo da escadaria, no campanário, Maria de Fátima Andrade, 74 anos bem contados. Quando o sacristão morreu, ela tomou mão a isto. Pôs-se a tocar o sino sem ninguém a ter ensinado. Tal e qual.

    Meimão, nos contrafortes da Serra da Malcata. (Foto capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

    — Há regras. Há regras porque o povo sabe quando há um funeral, morre gente, e a gente dá sinais durante as 24 horas que há o velório do defunto. Todo o povo sabe. Está tudo descansado. Quando há um fogo, é doutra maneira: é o sino ao rebate. Quando, por exemplo, há a missa no dia de semana, toca-se uma vez. E nos domingos, tocava-se três. E era o sinal da missa. Só que eu só venho uma vez para não subir tanta vez isto…

    E mudou radicalmente as regras, mas há razões que o Céu entende. As badaladas, aqui, são frenéticas e, como se não bastasse, duram uma carrada de tempo…

    Mas vamos ao essencial: as curas milagrosas do Padre José Miguel.

    — Era um homem que protegia os pobres. E, então, vinham doentes e abalavam bons. E ele não dizia mais nada. Só dizia assim: — Tende Fé, ide comungar, recebei o Senhor que ele está cá na Eucaristia por nós. E, então, havia muitas pessoas que vinham doentes, não sei o mal delas, mas elas, umas vinham de sua maneira, e, então, ele só dizia: – Estai em paz.  E ide em paz. Mais nada. Uma pancadinha às vezes na cabeça, outras nada. — confessa-me Maria de Fátima Andrade.

     Vinham camionetas e mais camionetas…

    — Vinha muita gente. Era, olhe… Quando era nos domingos nem aqui cabiam no adro, nos dois lados do adro, nem na igreja. Era tudo atacadinho… E alguns nem chegavam a falar para ele. Mas ele, eu conheci-o eu andava na escola quando ele veio, e sempre o conheci igual. Ele não dizia nada a ninguém. Contavam-lhe as coisas, ele só dizia assim:  «Tende Fé e ide em paz!» Não dizia mais nada.

    — São quase horas de tocar o sino…

    — Pois são. Pois são… Já estão. Já está na hora. E é assim… (Ri-se)

    Vai fazer em Dezembro 20 anos que o Padre José Miguel Garcia Pereira faleceu. Tinha 89 anos.

    O seu cadáver insepulto está, agora, dentro deste caixão, exposto no memorial do Soito.

    É a chamada para a missa na Igreja Matriz de São Salvador.

    A maioria do povo emigrou, já lá vão muitos anos,  sobretudo para terras de França.

    A história de Meimão começa muitos séculos antes noutro vale…

    Mosteiro de Santa Maria de Salzedas.

    Tarouca.

    Esta fachada data de finais do século XVIII, mas a construção do mosteiro masculino da Ordem de Cister é iniciada muito antes, mais exactamente em 1168 (com o patrocínio de Teresa Afonso, a segunda mulher de Egas Moniz).

    O túmulo dela está, aliás, embutido desde 1789 numa parede da passagem lateral Norte.

    A igreja foi sagrada em 1225.

    O mosteiro foi ampliado nos séculos XVII e XVIII. 

    Hoje, é neste monumento nacional, que ainda serve de lugar de culto, que um dos nomes maiores da pintura quinhentista portuguesa deixou a sua marca: Vasco Fernandes, vulgarmente designado por Grão Vasco.

    É o autor, designadamente, de um retábulo  4 painéis com as figuras de Santo Antão, Santa Catarina, Santa Luzia e São Sebastião, pintados entre 1511 e 1515.

    A grandiosidade do edifício (apesar das profundas alterações que sofreu e não foram poucas) contrasta com a modéstia apregoada nos primeiros tempos já que, como rezava a Regra de São Bento, “aos monges incumbia o cultivo das terras, o trabalho de mãos e a guarda de rebanhos”.

    Os fiéis, compadecidos com o trabalho dos monges, deixavam-lhes os  bens em testamento, ou doavam-lhes propriedades. Faz parte da devoção…

    As primeiras referências a Meimão datam de 1168, mas há testamentos lavrados em 1170.

    O Mosteiro de Salzedas também tinha padroado sobre aquele lugar, situado a quase 200 quilómetros mais a norte.

    — A aldeia de Meimão era uma das propriedades mais longínquas que eles tinham. Isso também justificará como no século XV Meimão tenha deixado de ser da sua posse, mas esta ordem religiosa tinha uma preocupação de intervenção no território através da constituição de povoações, de vilas, de casais e das suas famosas granjas que eram quintas, unidades agrícolas que permitiam o sustento não só da própria Ordem como também dos moradores ou rendeiros que trabalhavam para essa Ordem. — explica o historiador Nuno Resende da Universidade do Porto.

    O padroeiro da paróquia é São Salvador, aliás Jesus Cristo, Salvador do Mundo.

    E é muito possível que os monges cistercienses tenham trazido a devoção a São Salvador para Meimão.

    No século XVIII a aldeia passa a pertencer ao Rei de Portugal.

    Igreja Matriz de São Salvador.

    Hoje, é dia do Senhor.

    Os fiéis (incluindo alguns emigrantes e as beatas do costume) aninharam-se na cochia. Os mais ágeis — todos homens — treparam ao coro.

    Celebração da missa dominical.

    O padre Bruno Lopes é natural de Castanheira, Trancoso. Tem 29 anos. É pároco há quatro. Tantos quanto as paróquias que tem ao seu cuidado desde a ordenação.

    Estes cristãos fazem os possíveis por se abeirarem de Deus ou do Céu. As ladainhas, decididamente, não chegam…

    Fim da eucaristia.

    Meimão é — e sempre foi ou quase — terra de emigração: muitos abalaram para França, Luxemburgo, Alemanha, Itália e Américas.

    A emigração custou muita lágrima, mas para a imensa maioria valeu a pena.

    Na Travessa Eanes é dia do arraial de Arménio Pires, um homem  (nascido e criado na aldeia) alegre e bonacheirão, que acabou de chegar. de Lyon.

    Emigrar era preciso… (Foto capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

    — Eu decidi vir ver a minha mãe porque com 92 anos não posso esperar muito tempo. Mas a vida é assim…

    Arménio tem 63 anos. 38 de França.. Tem a mãe num lar perto de Meimão.

    A travessa Eanes faz, hoje, de palco para a representação da vida, mas mesmo aqui as coisas mudaram. E muito…

    — As pessoas são mais… Como dizer… Não têm aquele à vontade como antigamente. Antigamente, era muito mais agradável e muito mais… muito mais alegre a vida aqui. — conta Arménio.

    — Agora, nós vimos cá uma vez, um mês por ano, mas é muito diferente.

    — E havia mais gente…

    — E havia mais gente. Aqui, na rua onde estamos, que é a antiga rua onde vivia o avô da minha esposa, antigamente a rua era cheia. As casas eram todas habitadas. Hoje, está uma tia, que é esta senhora que está aqui ao lado, a tia da minha esposa, mais um primo que mora ali, mais ninguém… Duas pessoas durante o ano. Agora, chegámos. Vai haver 50…

    A única mocidade que há, agora, na aldeia está na travessa. A escola de Meimão encerrou há uma data de tempo…

    Arménio Pires: um homem alegre e bonacheirão. (Foto capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

    Metemos conversa com Lisete Pires, a esposa de Arménio.

    — Vir cá, uma pessoa vem. Exacto… Quando a gente estiver na reforma, se vier cá um mês, dois meses ou três meses, mas vir para ficar, viver sempre, não. Tenho as minhas filhas em França. Tenhos os netos e isso também faz com que a gente… goste dos dois lados.

    — Mas o seu marido gostava de voltar um dia…

    — Exacto. Ele… Para ele é tudo. Ele aqui é… está no céu. Quando está com os amigos… ele aqui está… é… está… Como é que se diz? Está rico de… Como é que é? De sentimentos. Rico de sentimentos. Ele adora isto. Adora. Eu também adoro. Eu adoro. Eu adoro. Eu também adoro isto. Isto aqui… A gente, aqui, é… Já viu como é? Mas… vir para cá definitivo, não!

    Ao cabo de uma hora, logo após o almoço, é a vez de desligar o rádio do carro e de escutar a jovem cantora L-ZA ou Elsa dos Santos (residente no departamento francês 91), que a casa tem de reserva.

    — Cantora de RAP, de R&B (Rhythm and Blues), Pop, o que desejar… (Ri-se)

    — Queres fazer a tua profissão?

    — Sim. Eu quero fazer isso toda a minha vida.

    — A música para ti é o quê?

    — A música para mim é toda a minha vida. É um sentido. É o que me faz avançar na vida. É a única coisa que eu sei fazer bem na minha vida.

    — E Portugal para ti representa o quê?

    — Portugal para mim é o quê? É as minhas raízes, é a terra dos meus avós, da minha família. Até o meu pais nasceu em Lisboa. Para mim, se eu não vier a Portugal cada ano não é normal. É preciso que eu volte todos os anos. É algo que tenho de fazer…

    Hoje não há espaço para a tristeza na travessa Eanes.

    Daqui a nada, estão todos a cantar. É o ritual. A alegria confunde-se com o esquecimento.

    Meimão é o torrão nativo de Mário Cameira.
    (Foto capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

    Meimão é o torrão nativo ou o berço de Mário Cameira. 63 anos. 30 de França.

    Hoje, o ex-emigrante (pai de 3 filhos) mata o tempo com a mecânica e a horta.

    O primo Zé Manel, 59 anos cumpridos no dia de Natal, acompanhou-o como um velho amigo até aqui acima.

    É preciso abrir regos com o sacho, arrancar batatas, sachar feijão frade e regar as alfaces (apesar de a aldeia estar entre duas barragens, não há água de regadio!)…

    Não há que ver. Metemos conversa.

    — A minha vida começou de jovem. Aos 10 anos, fui para o seminário. Fui para os Combonianos para Viseu pois naquela altura não havia hipótese de estudar aqui na zona. Não havia colégio, não havia nada, pronto. E a gente tinha que… que… fiz-me à vida com 10 anos. 10 anos. Os meus pais em França e eu aqui sozinho. Foi um bocado difícil ao princípio. Aquilo havia assim umas regras, uma disciplina que a gente não estávamos habituados a ela, não é? A gente… garoto quer… quer é brincadeira. Mas agora, agora, ao relembrar esses tempos, percebo que mudaram a minha vida de forma positiva. O que sou… O que sou agora também devo muito a esse tempo…

    Em França, Mário Cameira lutou por uma vida melhor. Não lhe faltava coragem, fé e sonhos. E o seu instinto nunca o enganou. Desiluções, nunca as teve. Mas um dia assistiu a uma tragédia que jamais esquecerá.

    25 de Julho de 2000.

    O Concorde despenhou-se perto do aeroporto de Roissy. (Foto a partir de imagem de Mário Cameira)

    — Concorde estava a arder mesmo antes de descolar. Foi a própria torre de controlo do aeroporto Charles de Gaulle que avisou o piloto, mas era tarde demais para abortar a manobra de descolagem… — conta Mário Cameira. 

    Os detalhes.

    — A gente estava quase a largar o trabalho. Era por volta das 16:40, mais ou menos. Quando lá chegámos, aquilo estava tudo em chamas. Não é? Aquilo… estava lá um hotel e o hotel já nem existia. E pronto. Ali, não houve sobreviventes. Não podia ser que aquilo… Foi a história mais dramática. Para mim, foi a mais dramática da minha vida, pronto, porque foram centenas… E aquilo era tudo reformados. Era gente reformada, alemães que queriam fazer uma viagem a Nova Iorque. E, portanto, acho que foram 100 pessoas mais três pessoas que estavam no hotel e que morreram também. É que eles tiveram ali um fim muito triste. Aquilo para as famílias foi terrível…

    A morte é a morte, em qualquer lugar…

    E a memória colectiva é tenaz. Tanto para os calvários como para os desígnios milagrosos do destino…

    3 de Abril de 1811.

    3ª invasão francesa. Batalha do Gravato.

    — Houve aqui uma batalha no Gravato, aqui no Sabugal. Em 1811 houve aqui uma batalha no Sabugal. Passaram ali por aquela zona da Ponte da Pedra. Chama-se Ponte da Pedra. E havia lá familiares da minha mulher. Lá, quando viram aquelas tropas, tiveram medo. Fugiram, mas esqueceram-se de uma menina, uma garota. (Ri-se) E os franceses quando viram lá a garota a chorar, coitadinha… acho que lhe deram até uma maçã e perguntaram pelos pais, mas a menina não percebia nada de francês, claro, não pôde explicar. Isso foi a história que chegou até nós. — narra Mário Cameira.

    A paisagem é deslumbrante.

    E, ali ao fundo do caminho velho de pedra, Forninhos, um paraíso abandonado ou suspenso, que deu vida a Meimão.

    Depois da quinta de Forninhos não havia mais nada. Só serra e mais serra: pinho, carvalho, figueira, castanheiro, oliveira e sobreiro.

    Antigamente, havia aqui gente e festa rija.

    No Carnaval, os tocadores de concertina davam a volta ao forno do lugar e à rua dos vizinhos. Percorriam a cantar as casas dos seis moradores. Eram uma família pegada do cimo ao fundo. É assim mesmo.

    Esta terra dava de tudo: trigo, centeio, batata, milho, feijão…

    Restam as ruínas que o tempo e a natureza ainda não cobriram.

    E resta ainda, pelo sim, pelo não, a lembrança dos velhos…

    — Tive quatro filhas. Nasceram lá todas nos Forninhos naquela casinha que tem o telhado…

    — E a senhora nasceu lá com a sua irmã?

    — Eu nasci lá com a minha irmã, mas foi mais cá para baixo. 

    Rua do Cruzeiro, esquina da Travessa das Andorinhas.

    Uma manhã destas.

    — Nós somos cinco irmãos. Nenhum aprendeu a ler porque não havia cá escola. E ó depois estávamos na quinta, ainda pior. — diz uma.

    — Claro. — acrescenta a outra.

    — Ó depois começaram… é que fizeram cá uma escola, que eu já me lembro de a fazerem. E começaram a ir à escola…

    — Obrigavam-nos!

    — Ninguém sabia de ler.

    — Eu tenho quatro filhas. Uma não sabe nada. E a outra começou a tirar de cabeça, a tirar de cabeça, e ali tirando já sabe alguma coisa.

    — Porque é que a aldeia morreu?

    — A aldeia morreu porque uns morreram. Outros, ficaram velhos como nós. Ó depois…

    Outras vidas. E outros tempos, decididamente.

    A memória é tenaz por estas bandas.

    Insistimos com as manas.

    — Éramos seis moradores. Uns, tinham seis ou sete. Outros tinham… Estava lá um que tinha 10 filhos ou 12.

    — Era o Zé Pedreiro.

    — O Zé Pedreiro. Eram 12 filhos.

    — Eram 12?

    — Eram. E, agora, já só são quatro. Já morreu tudo.

    — Eu contava 10…

    — E depois começou tudo a desaparecer.

    — Só contava 10, eu.

    — Não. As pequeninas, tu não as conheceste…

    — Ah…

    —Era a Ana e a Amélia, que era a nossa mãe-madrinha.

    — Ah, então era.

    — Era.

    — Essas, então, não as conto. Eu só conto 10 irmãos.

    — É assim.

    — Nasceram lá, viveram.

    — Nós também.

    — Sempre a trabalhar lá. Era uma vida…

    O senhor Domingos Mendes Vaz, mais conhecido por Ti Domingos ou Domingos Pesetas.
    (Foto: Rui Araújo)

    Existências que têm realmente que se lhe diga.
    Domingos Vaz, mais conhecido por Domingos Pesetas, faz 100 anos no dia 7 de Dezembro.

    É o homem mais velho que vive na aldeia. Toda a vida foi pastor.

    — Quando fui para pastor tinha oito anos. Já contei. E as cabras ainda passavam de 150. Mas 150 sempre eram certas. E ó depois com a criação, às vezes eram 200… E o que passava. Mas naquele tempo havia lobos. (Ri-se) Olhe que uma vez a mim mataram-me 14.

    Não queremos saber de desgraças.

    Meimão era um povo isolado, esquecido e pobre.

    Freguesia de Meimão. (Foto capturada a partir de imagem de Rui Pereira/TVI)

    Era terra de agricultores e de pastores. Foi terra de milagres.

    Gente humilde, honrada, alegre. E severa, quando é preciso…

    E havia muito mais gente do que hoje.

    — Oi, oi, oi. Aqui, chegou a estar mais de 300 ou 400 pessoas. Hoje, são umas 200 e tal. Têm morrido. E… E não há quase garotos nem nada cá. Antigamente… quando a minha filha andou na escola eram mais de 30 garotos e garotas. Ai, 30 e talvez 40. Chegaram a estar cá 3 professoras. Agora, não há cá nada. Vinha cá uma médica… Agora, por causa destas coisas também não vem cá.

    — Para onde é que as pessoas foram?

    — Morreram. Ah, e outras foram para a França. O Meimão foi quase tudo para a França. Agora, vêm de férias uma temporada… — conclui Ti Domingos, sorridente.

    Meimão: o retrato é pungente. E é ao mesmo tempo assaz genuíno.

    A aldeia não parou de definhar.

    A lembrança dos velhos é peremptória.

    — Hoje, só penso na morte! Não penso noutra coisa. (Ri-se) Eu não escapo. (Ri-se) Eu não escapo. Ela tem de vir. E mais hoje ou mais amanhã ela vem cá. Custa-me a morrer porque a gente tem muitas dores, que ela faz sempre a gente passar por muitas dores. Mas Nosso Senhor me levasse, que eu faço… dores. (Chora)

    — O que é a morte para si?

    — Ah… O que é a morte? Eu sei lá o que é a morte. Ficamos como os passarinhos. É verdade. Não ficamos cá ninguém, Senhor. Uns mais velhos, outros mais novos… Há palavras cruas que têm a força de um testamento.

    É preciso matar o tempo… (Foto: Rui Araújo)

    Soito.

    Lar da Santa Casa da Misericórdia.

    Arménio Pires já não vê a mãe há dois anos por causa da pandemia.

    ARMÉNIO — Eu tenho de tirar a máscara, que ela… que ela já não me conhece.

    — Tire um bocadinho. Tire um bocadinho… — propõe o empregado.

    ARMÉNIO — Então, quem sou eu? Quem eu sou?

    DONA ODETE — O Fernando…

    ARMÉNIO — Não!

    DONA ODETE — O Fernando.

    ARMÉNIO — Não.

    DONA ODETE — José.

    ARMÉNIO — Não.

    DONA ODETE —

    ARMÉNIO — Então, quem sou eu?

    DONA ODETE — …

    ARMÉNIO – Então já não me conhece?

    DONA ODETE – António.

    ARMÉNIO — Não.

    DONA ODETE — Zé.

    ARMÉNIO — Sou o Arménio. (Choram os dois.)

    Mais prosa para quê?

    Meimão.

    Damos conta que domingo é o dia da procissão (motorizada por causa da pandemia de Covid-19).

    Logo a seguir à missa, a pick-up do presidente da junta arranca. Ninguém faz caso da ladainha dos altifalantes. O que conta é São Salvador, o padroeiro da aldeia.

    O resto é gente fabulosa, uma serra alheada do mundo e carradas de granito encardido pela torreira, que ainda havemos de recordar um dia (com ou sem amargura, pouco importa).


    NOTA:

    Reportagem emitida originalmente na TVI, em Agosto de 2021 [VER AQUI].

    O vídeo de LZ-A pode ser visionado AQUI.


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  • Entre a vida e a morte

    Entre a vida e a morte


    As memórias de uma vitória sobre a morte. Uma vitória da vida, numa cama nos Cuidados Intensivos de um hospital, em Lisboa.

    As recordações das dores, dos pesadelos, dos sonhos, dos pensamentos… e daqueles que estiveram presentes, ao meu lado e que ficarão comigo nesta segunda vida.


    Acordo sem amanhecer porque neste lugar a noite não existe. O enorme relógio de parede parou no tempo. O dia aqui é uma luz branca e fria.

    Tenho os pulsos e os tornozelos atados à maca com fitas de seda. É a gota d’água. Perco definitivamente as estribeiras. Tento libertar-me com pontapés, mas não tenho força nas pernas. Uma dor lancinante percorre o meu corpo hirto. Estou preso. Há quanto tempo? Não faço a menor ideia. Também não sei onde estou e, sobretudo, não sei o que faço aqui. Dou gritos aflitivos. A minha voz não se ouve. Os poetas dizem que os homens preferem o efémero e não conseguem lidar com a eternidade. Os poetas têm sempre razão. Rebento. Estou farto de uma liberdade que tem os limites do meu próprio corpo. Ou seja: imobilizado.

    – Olá! – dispara um vulto desfigurado atrás da cortina opaca que me rodeia. – Sabe onde está?

    Não lhe digo que estou desanimado por estar aqui amarrado e não compreender nada. Não lhe digo nada. A minha situação é absurda, mas a esperança é a última coisa que se perde…

    – Senhor Rui. Sabe onde está?

    (Foto: D.R.)

    É difícil responder-lhe com a máscara de oxigénio posta. Sou um verdadeiro sonâmbulo. Estou bastante confuso depois de sonhar com muitos mundos paralelos e com ilusões acidentais incoerentes. A sólida realidade que criei na minha mente é um verdadeiro disparate. Preciso de pessoas à minha volta para tentar escapar à morte ou para ser capaz de discernir a transcendência de que necessito.

    Estou dentro de uma carruagem parada na estação de uma aldeia morta. Está muito calor. Uma passageira dá-me dois euros para que eu possa comprar uma garrafa de água. Estou literalmente a morrer de sede. Sinto uma grande desilusão: a loja está fechada. Durante duas intermináveis semanas, não me deram nada para comer ou beber.

    Os pesadelos sucedem-se. Depois do comboio, acontece outra história num hotel em Djerba ou Trujillo. A lata de refresco que abro é, no fim de contas, uma encorajadora perspectiva de esperança, mas não tenho sequer tempo de matar a sede…

    “A imprensa portuguesa, tão distante da minha aflição, publica uma notícia que parece ser o início do meu obituário.”

    O relatório médico diz claramente que apresento “um quadro clínico de agitação/delírio hiperactivo”. É a explicação detalhada do mistério da inquietude. Morrer à fome é sempre mais moroso do que morrer de sede. Não é pior. A morte não é má nem boa. A morte é a morte. É o que dizem. Ponto.

    De qualquer modo, a imprensa portuguesa, tão distante da minha aflição, publica uma notícia que parece ser o início do meu obituário. O sofrimento, aqui, é real, mas o pior é a solidão.

    Os médicos da Unidade de Cuidados Intensivos Cirúrgicos (UCIC) do Hospital de São Francisco Xavier (Lisboa) são peremptórios: “Pneumonia crítica por SARS-CoV-2 com sobreinfecção bacteriana e insuficiência respiratória de tipo 2 com necessidade de ventilação mecânica invasiva.

    Foi uma viagem de quase um mês entre a vida e a morte. Lembro-me da ambulância e de pouco mais. Fui admitido no serviço de urgência por agravamento da insuficiência respiratória hipoxémica em contexto de pneumonia grave por SARS-CoV-2 com ARDS (Sindrome respiratória aguda potencialmente fatal porquanto os pulmões não conseguem fornecer oxigénio em quantidade suficiente aos órgãos vitais). 15 litros de oxigénio (O2) por minuto para começar…

    Duas semanas em coma induzido, três semanas nos Cuidados Intensivos e quase quatro no hospital. Louvo o pessoal da UCIC do Hospital de São Francisco Xavier: técnicos de saúde, enfermeiros e médicos. Os turnos não são os mesmos para todos. Os médicos trabalham 24 horas. Os enfermeiros 12. Os auxiliares de enfermagem trabalham oito. A dedicação destas pessoas é imensa. Cuidam de nove pacientes (oito homens, comigo, e uma jovem mulher, grávida de 17 semanas). São competentes e enchem-nos a alma apesar de não podermos ver os rostos.

    – Aqui, regressam à vida! – sussurra uma enfermeira de olhos cheios e expressivos antes de me oferecer uma esferográfica e duas folhas de papel. O desabafo é sincero.

    À minha frente tenho outra cortina azul sem amplitude. É o horizonte permitido. Ponho-me a ruminar pensamentos de antanho. Ouço vozes distantes. Não há gemidos. Penso. Tenho ganas de viver com afinco. É aqui que me habituo ao mistério da vida. O meu objectivo é continuar a lutar, mais por carácter do que por qualquer outra coisa.

    Rui Araújo em reportagem na República Centro-Africana num helicóptero com soldados. (Foto: D.R.)

    Os momentos de alegria são fugazes, mas afastam os meus fantasmas. O meu amigo Rolando Santos criou com três dezenas de companheiros da TVI (Televisão Independente) e da RTP um grupo informal na Internet para acompanharem a evolução do meu estado.

    Hoje, leio algumas mensagens. Tristes. O diálogo seria muito mais divertido se os médicos não tivessem pensado durante as minhas duas semanas de coma que eu estava condenado….

    [19/11/20, 19:14:29] Tiago Ferreira: Estou de rastos com esta merda…

    [19/11/20, 19:15:21] Rolando Santos: Força aí, que o homem ainda não desistiu!

    [19/11/20, 19:15:36] Miguel Freitas: 👍

    [19/11/20, 19:15:50] Tiago Ferreira: Teimoso como uma mula.

    [11/19/20, 19:16:18] Tiago Ferreira:  Bem, a hiper-actividade pode ser que ajude.

    [19/11/20, 19:16:32] Rolando Santos: Para se tratar, mas também para pegar o bicho pelos cornos!

    [19/11/20, 19:16:34] Romeu Carvalho: Vai ter que levar duas chapadas quando voltar para não ser teimoso.

    [19/11/20, 19:16:53] Tiago Ferreira: Não adianta!

    [19/11/20, 19:17:05] Rolando Santos: Tem que ser mesmo um enxerto de porrada, que isto já não vai lá com festas.

    [20/11/20, 22:09:52] Henrique Dias: Caros, Rezem….  Ou pensamento positivo para que ele “vença esta batalha” e consiga algures fazer uma nova reportagem de “guerra”, que ele tanto adorava….

    20/11/20, 23:15:56] Tiago Ferreira: Ele vai-se safar. Eu sei que vai.

    [20/11/20, 23:30:19] Pedro Pedroso: 👍🙏

    Rui Araújo. (Foto: Nuno Pereira)

    Resmungo, mas ao mesmo tempo tomo consciência do peso dos laços de amizade demonstrados pelos meus camaradas de infortúnio profissional. Costumo pedir para não dizerem à minha querida mãe que sou jornalista. Ela ficaria muito decepcionada. Pensa que sou pianista num bordel….

    A minha rotina é: extracção de sangue, pequeno-almoço, inalação de pó, almoço, extracção de sangue, inalação de pó, extracção de sangue, extracção de sangue, extracção de sangue, extracção de sangue, jantar, etc.

    Uma das vezes os enfermeiros disseram-me que desistiam de continuar a picar-me por humanidade. Não tenho sossego. Mal consigo mexer-me. A algália dá-me dores violentas. Tiram-na. A urina caía dentro de uma espécie de garrafa ao lado da maca com um rótulo parecido com os do uísque.

    – Vou-me embora. Deixem-me ir.

    – Quer infectar outros? Assume essa responsabilidade? – pergunta-me uma enfermeira.

    – Imploro-vos: ponham-me outra vez em coma – Deus santo! Não suporto isto…

    – Neste momento, não tem sequer forças para se levantar…

    É verdade que não conseguia dar um passo. Uns dias mais tarde deram-me uma cadeira de rodas.

    – E precisa de oxigénio…

    A minha motivação para “matar saudades” da vida desapareceu imediatamente. A angústia crescia no peito.

    – Amanhã fará uma TAC (tomografia axial computorizada) dos pulmões…

    O Dr. António Pais Martins, director da unidade, veio saudar-me. É um excelente profissional.  O aprumo do serviço é obra dele. “Como um mensageiro dos deuses, esforça-se por me fazer sentir que sou humano. Eu não quero ser mais nada”, diria Miguel Torga. Começámos a tratar-nos por tu.

    – Tenho uma pequena carta surpreendente para ti.

    – Uma carta?

    – Carta de uma paciente.

    – O quê? Não conheço nenhuma paciente aqui…

    – Dou-ta?

    – Não!

    – Como, não?

    – Não a consigo ler. Não tenho os óculos, ficaram no saco de plástico com os meus pertences no cacifo do hospital.

    – Obviamente…

    – Agora a sério: não conheço ninguém aqui…

    – A autora é uma colega tua que está aqui internada com covid-19.

    – Podes ler-me a carta? – pergunto.

    Força e coragem! Isto vai passar. Está entregue aos melhores! Quando sairmos daqui, vamos dizer a todos que este ‘bicho’ é real e que os profissionais de saúde merecem ser reconhecidos e valorizados.

    Um grande beijinho.

    Marta

    As palavras assombrosas (sem clamor) de solidariedade da jovem companheira que não conheço são muito mais revigorantes do que qualquer perfusão. Respondi-lhe com caligrafia encorpada e hesitante. Quando isto passar (já que tudo acaba em ficção) tomamos um café.

    Naquele momento tenho sobretudo sede, apesar de não ter força para abrir uma garrafa de água. Os enfermeiros encomendam as refeições através do telemóvel: pizzas com complementos. De repente, fico com fome. Servem-me uma sopa de legumes, peixe assado e uma sobremesa que não identifico. Não reajo. Estou aqui para sofrer…

    – A enfermeira Mariana, o enfermeiro André e eu queremos celebrar a tua vitória contigo. Vamos comer marisco no Relento, em Algés… –anuncia-me Diogo, outro auxiliar amável, divertido e diligente.

    – Depois desta travessia, será um prazer estar convosco fora do hospital. Nunca sofri tanto na minha vida como aqui…

    Um mundo ao contrário. Os que me salvaram a vida querem agradecer-me por eu estar vivo. Como diz o meu bom amigo Alfonso Armada, a vida tem sentido porque a morte existe. Feitas as contas, submetemo-nos ou sacrificamo-nos, mas o importante é não perdermos a alma.

    Rui Araújo: “Lembro-me que estou vivo e que a vida é bela.”
    (Foto: Rui Araújo com Antoine, um dos seus melhores amigos/D.R.)

    A covid-19 é insidiosa. Sob uma aparência benigna, oculta muitas vezes uma grande gravidade. A minha condição era desesperada. Uma semana depois da minha chegada à Urgência é apenas preocupante…

    [24/11/20, 14:36:38] Rolando Santos: Tudo a rezar, Malta! Até os ateus, se faz favor!

    [25/11/20, 22:45:14] Henrique Dias (parafraseando uma enfermeira, sua amiga): “Continuam a tentar o desmame… [da sedoanalgesia]… Ainda não conseguiram porque ele não fica bem adaptado ao tubo endotraqueal (antes de retirar o tubo é preciso que o doente acorde, ainda ventilado). De resto, continua igual… Está estável em termos de frequência cardíaca e tensão arterial… Estamos a investir o que podemos. Mas era o que tinha dito, este covid tem tempos muito demorados de recuperação. Vamos aguardar com esperança! Ok?

    Os relatórios médicos podem ser desanimadores. Depois de cinco dias, com o aumento radical das enzimas hepáticas, deixam de me dar o fármaco Remdesivir. Tentam desmamar-me da sedo-analgesia e da noradrenalina. Não há resposta. Estou agitado. Deliro. Optam por uma terapia múltipla. Não respondo. Dão-me mais hipnóticos…

    Encontro-me numa cerimónia com gente elegante. As imagens são todas esverdeadas. Uma mulher muito bonita põe um lenço à frente da minha boca. Ouço-a dizer: Ai, Ai, Ai…! Perco a consciência.

    Dia de alta dos Cuidados Intensivos. Não era o meu dia de morrer. Fim da primeira parte da minha história clínica. Início da minha segunda existência.

    A enfermeira Isabel aproxima-se da maca e oferece-me um pedaço de pizza fria enrolado num guardanapo de papel.

    – Apetecia-lhe comer pizza. Partilhe uma fatia comigo. Desfrute-a! – diz ela com sotaque brasileiro.

    Olho para ela. Mordo o meu presente. Sorri. É a minha vingança contra a SARS-CoV-2. Lembro-me que estou vivo e que a vida é bela.


    NOTA:

    Texto de Rui Araújo originalmente escrito e publicado em espanhol na revista Frontera D, de Madrid [ver AQUI] em 4 de Junho de 2021.

    Foi também publicado na Revista Sete Margens [ver AQUI], em 25 de Junho de 2021.


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  • O rochedo

    O rochedo


    As histórias de vida de quem se perdeu. Dos “deportados, desterrados, estrangeiros lá fora como cá, náufragos excomungados de uma tragédia que dá pelo nome de emigração”.

    Condenados ao Inferno e a regressar, a viver, numa terra a que não pertencem, com o coração ainda na terra prometida para onde emigraram, no outro lado do Atlântico. Na terra do tio Sam.


    Ilha de São Miguel.

    Açores.

    Lá ao fundo, atrás dos montes verdejantes e das ravinas amanhadas, mesmo diante do mar, fica o povoado rural: Ajuda da Bretanha, a freguesia, como eles dizem por estas paragens.

    Rua da Assomada.

    Tony Brum, lá à frente, no carreiro. (Imagem: Rui Pereira)

    O cenário é este: uma encosta, necessariamente campestre e as ruínas do casebre nativo de António Trindade Brum.

    É o homem, enrodilhado nas memórias da infância e nos desaires do presente — sabe-se lá… —, que vai ali à frente no carreiro estreito e torto cheio de silvas.

    Tony nasceu, aqui, há 62 anos.

    — Eu fui nascido naquele quarto ali. E eu quando eu vim para cá, eu acho que tinha 16 anos. Acartei a estátua da Fátima até ao pico lá em cima. E a minha mãe disse-me que eu nasci ali e que andei ali a dormir. E isso foi quando ela me trouxe para trás aqui, quando eu tinha 16 anos, para me meter juízo na cabeça. Mas eu fui para trás para a América e lá não havia muito juízo… 

    A casa da infância. (Imagem: Rui Pereira)

    Primeira confissão de um deportado de luto na alma a contas com o desalento, a desesperança ou, tão simplesmente, com o destino que é o seu.

    Os paredões, que só são negros por dentro, que o digam… Tony Bruno — é assim que lhe chamam, agora — foi feliz aqui. Foi, mas por pouco tempo…

    Em 1960, partiu com os pais, seis irmãs e um irmão para Fall River, Massachusetts, nos Estados Unidos. 

    — A vida na América é coisas materiais. O mais que a gente tem, melhor. O vizinho pinta a casa… A gente pinta a nossa casa numa cor mais melhor. Eles compram um Cadillac. Eu compro um Lincoln Continental. Era desta maneira que eu vivia lá. Eu sempre queria ter mais. A mulher mais bonita. O carro mais melhor. A casa mais melhor. E é o que é…

    — É o American Dream

    — Ya. O American Dream.

    Tony Brum – um homem só. (Imagem: Rui Pereira)

    — O Sonho Americano

    — O Sonho Americano é bullshit (treta).

    — É um pesadelo para si?

    — Ya. Isso é um sonho. O sonho que estás a falar é o American Dream. Não há American Dream!

    Aos 16, furtou um carro: um mês de cadeia.

    100 acusações e 7 anos de prisão mais tarde foi expulso. Foi deportado para os Açores.

    — Eu fiz coisas que não devia ter feito, mas eu fui para a cadeia e paguei o meu tempo. 

    Hoje, vegeta, roído de solidão, na miséria.

    A exclusão é uma realidade. E a crença ou a fé no regresso (improvável) mais um castigo, redentor ou nem por isso…

    Maria João Tavares (Imagem: Rui Pereira)

    Ponta Delgada.

    Mais uma manhã como as outras no refúgio que dá pelo nome de centro de acolhimento da Associação de inclusão social Novo Dia.

    A renovação dos corpos e das mentes (para algumas mulheres, deportadas, prostitutas, drogadas, vítimas de violência e das misérias) passa por aqui.

    Maria João Tavares que o diga…

    — Eu vou pagar para o resto da vida porque eu não vou estar ao pé da minha família. 

    Como Tony Brum há muitos mais: deportados, desterrados, estrangeiros lá fora como cá, náufragos excomungados de uma tragédia que dá pelo nome de emigração.

    — Ya. Eles chamam a isto aqui The Rock (alusão à antiga prisão da ilha de Alcatraz, na Califórnia). 

    — O meu país, para mim, é os Estados Unidos, a América porque eu fui criada foi lá. Eu, aqui, na escola só fui até à terceira classe. Nem a quarta classe eu tive aqui. Fui para lá, estudei e casei-me e tudo. Fiz família. Fiz a minha vida toda lá.

    Foi para os Estados Unidos com os pais e um irmão quando tinha 10 anos. Estudou até aos 15. Casou com 16. Foi deportada no dia 21 de Setembro de 2004.

    The Rock – A cadeia de Alcatraz, na Califórnia. (Foto: National Park Service)

    — Eu estou pagando pelo meu crime para o resto da minha vida, está percebendo? Por causa que… o que eu… o que custa mais a entender é o gelo no coração daquelas pessoas para separarem famílias: mães, filhos… Filhos que não ver a sua mãe mais. Vão crescer sem ter a mãe, vão-se casar sem ter a mãe, vão morrer, não têm a mãe. A mãe morre aqui, ou o pai, mãe ou o pai vão morrer aqui e não têm a família ao lado deles. Como eu. Não sou eu, mas muitos que já morreram e foram repatriados — não estou falando só de mim, estou falando de muitos mais. Eu acho que isso é uma injustiça o que eles fazem. A gente fazemos o crime lá fora, paga-se. E é a pessoa ir para a frente com a sua vida.

    — Mas não se paga…

    — Mas não se paga. A gente paga lá e depois paga aqui o resto do tempo.

    A confissão lancinante e corajosa merece tanto mais respeito que Maria João Tavares não se conforma.

    — Eu nunca voltei para Portugal desde que eu fui para a América. Com 10 anos nunca voltei. 36 anos depois sou uma estrangeira no meu país. Na minha terra natural…

    Desenraizada, longe do mundo que é o seu e da sua gente, condenada a esta outra masmorra, que dá pelo nome de insularidade, não arreda do espírito o hipotético regresso à América. E luta por isso…

    — Eu fui deportada por causa de droga. Por causa que eu fui apanhada com um quilo de cocaína naquela altura. Eu comecei a consumir. Depois, eu tornei-me em traficante. Por muitos anos estava tudo na boa. Depois, pronto, aconteceu, que eu fui apanhada. Estive na cadeia três anos, lá fora.

    A outra cadeia dá pelo nome Açores. (Imagem: Rui Pereira)

    Deixou em Rhode Island três filhos e quatro netos. E as mazelas de um passado que teima em assombrar o seu quotidiano. Clamorosamente…

    — Mas muitos perdem a esperança, sem sombra de dúvida. E voltam a recair, seja nas substâncias, voltam… deprimem, perturbações de adaptação. É muito complicado. A réstea de um regresso é quase impossível… — diz a psicóloga Sónia Pereira. 

    Associação Novo Dia faz o que pode. Faltam apoios apesar de a exclusão, a miséria e a criminalidade constituírem, sobretudo, um problema em São Miguel.

    — Essas pessoas vêm completamente desenraizadas. Este acontecimento da deportação é traumático, afecta profundamente a vida delas e a sua identidade. Dificilmente ou impossivelmente conseguem-se recuperar porque deixam a família, as suas referências, as suas pessoas significativas lá. Vêm para cá para uma cultura que eles não reconhecem como sua, apesar de serem portugueses. Não dominam a língua, os valores, os hábitos, todas as práticas culturais. Facilmente são discriminados pelas outras pessoas porque não são iguais aos de cá e não se sentem iguais, também não se sentem mais americanos. Digamos que são pessoas que estão presas ao passado e muito dificilmente sonham já com um futuro. São pessoas que estão quase mortas por dentro, muitas delas. — explica Paulo Fontes da Associação Novo Dia.

    Penas a dobrar para todos os deportados, sem excepção. (Imagem: Rui Pereira)

    Cadeia da Boa Nova, Ponta Delgada.

    José Eduardo Pacheco.

    50 anos. Natural de Vila Franca do Campo, São Miguel. Foi para Providence, Rhode Island, em 1967.

    Tinha 9 meses.

    No estabelecimento prisional de Ponta Delgada há, hoje, 200 reclusos. 18 são deportados, sobretudo dos Estados Unidos. Por outros números: 14 condenados e 4 preventivos.

    Mais um testemunho triste e previsível. Em inglês!

    — Isto é o Rochedo (The Rock, o nome que davam à penitenciária de Alcatraz). Para mim é como se fosse o Rochedo. Não conheço ninguém aqui. Não conheço nada aqui. Nem sequer me lembro onde vivia quando parti de São Miguel. St. Michaels…

    Eduardo Carreiro. 49 anos. Divorciado, quatro filhos. Foi deportado em 2008.

    Uma desgraça nunca vem só. Seis anos mais tarde foi condenado a uma pena de prisão nos Açores, designadamente, por tráfico de estupefacientes: cocaína e heroína, recebidas de Lisboa.

    — O que é que custa…

    — Mais…

    — É não ter a família ao meu lado. Ninguém com quem falar para desabafar. Para se rir. Para brincar. 

    — Na vida na América não faltava nada. Trabalhava, tinha tudo o que queria. Tinha tudo o que queria. Tinha sempre coisas para fazer. Eu gostava muito de sair com os meus pequenos. A mulher, eu chamo-a mulher, ela ia para o bingo. Ela gostava de fazer bingo. E eu tinha o dia com os meus pequenos. Os meus dias — quarta e sábado — era para mim a noite para vender (droga), mas o Domingo e a terça era para eu estar com os pequenos. Ficava em casa ou levava-os ao restaurante Chuck E. Cheese’s. É uma coisa para os pequenos e eles gostam muito de ir lá. Aquelas coisas das bolas… Eu estava sempre com os meus pequenos.

    Em 2001, foi deportado por tráfico de cocaína. A companheira e os filhos ficaram nos Estados Unidos.

    — Eu não gostei nada de vir para cá. Quando cheguei cá, eu não percebia nada daquilo. Isto é uma ilha. Comparada com aquele país de onde eu vim, é uma vergonha. Aqui não há nada. Isto é um pedaço pequenino. Vês a ilha toda em duas ou três horas. Vês a ilha toda…

    José Eduardo Pacheco foi, entretanto, condenado em Portugal a seis anos e cinco meses de cadeia por tráfico. Tinha quatro gramas de “castanha” e três de “branca” em casa.

    A maioria dos deportados presos comete, em Portugal, crimes mais graves do que aqueles que motivaram a sua expulsão.

    A crença num futuro menos sombrio é uma constante.

    E todos ou quase sonham com a liberdade e com a fantasia confusa do regresso.

    Arrifes. Concelho de Ponta Delgada.

    Terra de agricultores e de emigrantes.

    Carlos Correia. Nasceu na Travessa dos Milagres.

    Tinha 12 anos quando abalou com os pais e os irmãos para a América.

    Aos 16, meteu-se no haxixe.

    Aos 18, na cocaína.

    Depois, enveredou pelo crack. E a criminalidade.

    Cumpriu 14 anos de prisão. Foi deportado em 2009. Já não vinha aos Açores há mais de 30 longos anos…

    — É só andar nas ruas por aí… sem destino. A parte mais difícil é acordar de manhã. E já pensei no suicídio muitas vezes. Pensei no suicídio muitas vezes. Acordo todos os dias de manhã e é sempre a mesma coisa. É sempre a mesma coisa e eu não quero levar esta vida assim.

    Perdeu um filho — por causa da droga. Tentou suicidar-se.

    Agora, sobrevive (desvinculado de tudo e todos) com os cento e tal euros mensais que o Estado português lhe dá.

    — Eu vou para um quarto agora. Eu vou para um quarto no fim desse mês. Eu vou pagar 60 euros da minha algibeira. E fico com 120 euros para comer durante todo um mês. Não dá! Não dá para sobreviver. Eu passei fome. Eu passei fome. Muita fome que eu passei. Não tinha comida nenhuma.

    O inferno no meio do paraíso. (Foto: Rui Araújo)

    Há dias em que passa fome, mas… mas o pior ainda é o desassossego. Absurdo ou não, como, por vezes, a própria vida.

    A Universidade dos Açores estudou o fenómeno da repatriação — da deportação.

    E faz sentido: os açorianos são a maioria.

    Entre 1987, ano da primeira deportação — um homem de São Miguel — e hoje, 1316 pessoas naturais do arquipélago foram expulsas dos Estados Unidos, Canadá e Bermudas.

    Inquirimos Álvaro Borralho, um sociólogo da Universidade dos Açores.

    — É, sobretudo, homem. Tem uma idade entre os 25 e os 45, 50 anos. Vem de um meio social algo desfavorecido. Tem uma escolaridade baixa. Tem um emprego precário. Empregos que muitas das vezes se sucederam uns aos outros sem grande estabilidade laboral. Vêm de áreas urbanas muito grandes, seja da costa Leste, seja da costa Oeste. Estão ligados a áreas urbanas. Estão no fundo ligados aquilo que foram os destinos principais da emigração açoriana que se fez a partir da década de 50. 

    1.316 emigrantes naturais do arquipélago foram expulsos dos EUA, Canadá e Bermudas.

    As agruras do quotidiano estão estampadas no rosto. (Imagem: Rui Pereira)

    — Nalguns casos estes crimes foram cometidos muitos anos antes e foram aplicadas as penas retroactivamente sobre eles, quando eles já estavam perfeitamente integrados na sociedade norte-americana. Vêm sem empregos, em alguns casos as famílias não os acolhem ou acolhem muito dificilmente. Por outro lado, na sociedade açoriana também encontramos um choque e uma certa resistência à sua integração. É evidente que esse choque e essa resistência já foi maior. Hoje, há uma abertura mais facilitada mas o que é facto é que acaba por haver esse anátema de que cometeram crimes. — acrescenta o sociólogo.

    Os dados do Relatório anual de Segurança Interna são terminantes.

    Em 2015, foram deportados 25 portugueses (dos quais 22 são açorianos).

    No ano passado, 51.

    Os que se sabe… porque pediram apoio.

    Lagoa das Furnas. Leste da ilha de São Miguel.

    É a terra das fumarolas, das nascentes termais e do cozido — e é ainda a freguesia materna de José Costa.

    Portugueses de primeira e portugueses de segunda… (Imagem: Rui Pereira)

    Imagem deslumbrante. E, por isso mesmo, equívoca…

    O nosso homem nasceu há 54 anos num dos recantos do povoado.

    Tinha 7 anos quando foi parar à América.

    Deu largas à juventude.

    Foi tropa — 11 anos. Foi pedreiro. Casou. Descasou. Tem três filhos de uma faialense e um de uma cidadã americana.

    Em Dezembro de 2014 foi deportado por causa de uma história de saias e de transgressões quixotescas (ou coisa que valha!): para iludir o (des)amor, deu-lhe para ameaçar a companheira.

    Há 45 anos que não pisava o solo da terra natal…

    E a Oeste nada de novo… (Imagem: Rui Pereira)

    — O meu país é a América. Foi onde eu fui criado, basicamente, e onde vivi quase 50 anos. Eu não quero voltar para trás. O meu país e a minha vida é aqui, mas eu tenho uma grande mágoa de ser deportado para aqui. Tudo o que eles me fizeram… Eu dei a minha vida por um país que não foi onde eu nasci.

    O passado militar (11 anos no Exército norte-americano) contrasta definitivamente com as agruras do presente. A pobreza. E a solidão. E o sentimento de injustiça. 

    — A maneira como aqui em São Miguel olham para as pessoas como eu que foram deportadas… Apesar de termos vivido nos Estados Unidos é como se a gente fosse um negro. Como a gente… fosse lixo. Não analisam as pessoas para as capacidades que elas têm. Fazem de nós… não valemos nada. Nós somos filhos de gente portuguesa, gente açoriana e eu estou aqui. Às vezes, quero educar alguns que não têm compreensão nenhuma. E isso é o que faz irritar, fico irritado e fico um pouco mal disposto com a disposição das pessoas que dizem que nós somos repatriados. Nós não somos repatriados. Nós somos açorianos filhos da mesma Pátria que eles são. 

    Partimos para Sul à descoberta de outra história. Outras raízes e mais desgraças, porque é aquilo de que a gente nunca esquece…

    A contas com o passado. (Imagem: Rui Pereira)

    O sol rompe a penumbra do horizonte.

    São 25 minutos de viagem. O nosso destino fica a oitenta e um quilómetros — umas 43 milhas náuticas.

    Sara Sebag. 49 anos. Solteira.

    Entrevista na placa do aeroporto.

    — Há quantos anos é que não vinha aqui?

    — Há 46 anos quase…

    — E qual é a sensação?

    — É uma sensação muito boa. 

    A casa onde Sara Sebag nasceu. (Imagem: Rui Pereira)

    Santa Maria.

    É a ilha mais a Sul e mais a Oriente do arquipélago. Primeira a ser descoberta e primeira a ser povoada. 

    Vila do Porto foi, aliás, a primeira localidade dos Açores a receber (no século XV) o foral de vila.

    Sara Sebag nasceu aqui. É a terra da mãe, Maria Ferreira. Foi locutora do Rádio Clube Asas do Atlântico.

    O pai, José Sebag, poeta do surrealismo português e jornalista, era do Faial.

    — Eu penso muito nas pessoas que estão vivas e nas que já faleceram. penso muito na minha mãe e no meu pai. E que eles gostavam… gostavam de ver-me melhor na vida. Também penso nos meus filhos e na família que eu tenho lá fora. 

    Tony Arruda: vida nova e regresso à prosperidade de antanho. (Imagem: Rui Pereira)

    Aos sete Sara foi para o Canadá. Toronto. Queria ser advogada, mas não passou do 10º ano. Perdeu-se. Em 2000 (com 33 anos), foi deportada para os Açores. Mais uma história de droga.

    — Estou presa desde que eu saí do Canadá. Isto para mim é como se estivesse presa. Uma cadeia maior, mas é como se estivesse presa. A solidão é estar presa. 

    Esta manhã, Sara pisa pela segunda vez esta terra. Quer dar com o lugar de nascença, mas (passado tanto tempo) não é fácil. Já ninguém se lembra da família dela.

    Às tantas, vamos parar a um banco.

    Sorte ou tenacidade… as coisas ganham, repentinamente, mais significação. E acabamos por ir parar ao número 60 de uma rua sem nome do Bairro de Santa Bárbara.

    Os homens e os ratos… (Foto: Rui Araújo)

    O tijolo substitui, hoje, a chapa ondulada de antanho (do tempo dos americanos).

    Nem todos se queixam das desgraças e da rotina dos dias. Há males que vêm para o bem…

    Há excepções…

    Lomba da Maia, Ribeira Grande.

    Tony Arruda. 47 anos. Foi deportado dos Estados Unidos há 27 por tráfico. Aqui na freguesia chegou a haver 10 como ele… Mas… o ex-emigrante aviltado recusou a segunda prisão (apesar de esta não ter grades!): juntou a coragem à esperança e montou um negócio.

    Agora, trabalha por conta própria. É mestre-de-obras e pintor da construção civil. Por descargo de consciência, conseguiu recuperar a boa reputação e a prosperidade de outrora.

    O outro lado da deportação. (Imagem: Rui Pereira)

    — Eu consegui! Estou contente com a vida que tenho. Consegui livrar-me dessas porcarias. Tenho trabalho. Acho que qualquer pessoa pode fazer o mesmo com força de vontade..

    Mais paleio para quê?

    José Borges.

    47 anos. 45 de Canadá. E 20 de prisão.

    Com a ambição cega do dinheiro, tudo lhe parecia legítimo, a começar pelo tráfico de estupefacientes e os assaltos. Mais uma entrevista na língua de Shakespeare…

    — Escolhi a vida que queria e paguei o preço. Deportaram-me. Fui mandado para cá e… Isto é lindo. Olhe para isto. Isto é lindo, mas o problema é que aqui não há nada para mim. É de loucos! Não há nada para mim.

    O deportado e o horizonte sem perspectivas. (Imagem: Rui Pereira)

    Ponta Delgada.

    Muitos deportados vieram, aqui, parar. Vencidos, renderam-se ao alívio da morte. Ocupam campas anónimas.

    Não resistiram à agonia do tempo e à distância. À ruptura. À exclusão. À miséria. À ausência de perspectivas. E à pressão social (estigmatizante) da sociedade açoriana.

    Não os acolhemos com respeito e dignidade. Para não falar em afecto. E era o nosso dever ético e moral. Era…


    NOTA:

    National Park Service divulga dados factuais sobre a cadeia de Alcatraz [ver AQUI]

    Esta reportagem de Rui Araújo, com imagem de Rui Pereira e edição de Miguel Freitas, foi originalmente emitida na TVI, em Abril de 2017. [ver AQUI]


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  • Portugal: Clandestinos da vida

    Portugal: Clandestinos da vida


    DEUS CHAMOU-ME DESTE MUNDO.

    JÁ CHEGOU A MINHA HORA.

    A CULPA FOI DO DESTINO.

    NÃO FOI DA FÁBRICA DO MORA.

    DEIXO PAI IRMÃOS E AMIGOS NA SAUDADE.


    A culpa é do Destino. Francisco José morreu num acidente de trabalho. O patrão da fábrica não teve culpa. E mandou gravar isso mesmo na lápide cinzenta de mármore depois de pagar a campa. Um descargo de consciência que lhe custou cento e tal contos, mas pouco importa.

    Francisco José da Silva tinha 13 anos.

    Morreu a trabalhar.

    O pai do miúdo ainda vai ao cemitério de vez em quando. A lápide, as flores murchas e o vento não farão perdoar o que aconteceu porque ninguém é culpado. É a versão do pai: a culpa é do Destino. E o Destino não é gente…

    Imagem: Norberto Lopes

    — O meu filho andava a trabalhar. E no elevador, ou seja, um porta-cargas, que subia de um andar, ou seja do rés-do-chão para cima…

    — Numa fábrica…

    — Numa fábrica. Ao para cima ia carregado. E ao para baixo eles iam de volta para aproveitar a vir no elevador vago para baixo, não é? Porque eles podiam-se deixar estar lá, mas com aquela coisa de brincadeiras iam de volta e vinham…

    — Duas crianças juntas num elevador.

    — É. Duas crianças juntas no elevador. Acontece que ele vinha a comer uma maçãzita e distraíu-se ao passar, que aquilo era uma espécie de um tunelzinho, só tinha coisas para transportar a carga. Lá ia com a cabeça levantada mais para cima, distraído, e apanhou-lhe a cabeça. E morreu. Ficou instantâneo. Eu julguei na ocasião que não tinha ficado instantâneo, mas depois é que acabei por saber que tinha ficado instantâneo.

    — Tinha 13 anos…

    — 13.

    — Morreu a ganhar o pão…

    — Pois. — responde-me Manuel Joaquim da Silva, o pai.

    O homem coça a orelha lentamente e prossegue.

    — Andava na escola industrial. Perdeu um ano porque mudou de ambiente. ..

    — E o senhor tirou-o da escola e meteu-o o trabalhar. O senhor acha que lhe deu a existência que ele merecia ter?

    — Eu dei-lhe a existência que ele merecia ter em virtude de não o deixar andar por aí na ‘vadiice’ ou seja para aí juntamente com outros…

    — E a única solução era metê-lo numa fábrica?

    — A única solução era metê-lo a trabalhar para que ele não andasse a fazer asneiras, não é?

    — O senhor não sente remorsos do que aconteceu ao seu filho?

    — Eu não sinto remorsos porque afinal de contas aquilo foi o Destino. Sim, isso foi o Destino. Absolutamente…

    — O senhor não sente culpa nenhuma?

    — Absolutamente nenhuma. Não tenho culpa nenhuma!

    Imagem: Norberto Lopes

    — Acha que é normal o que aconteceu a uma criança de 13 anos?

    — Eu acho que é normal em virtude de ela estar a trabalhar, não é? Se andasse na brincadeira até também podia ser apanhado por um carro numa estrada ou numa coisa qualquer…

    — O que é que aconteceu ao patrão?

    — O patrão…

    — Foi condenado?

    — Pagou uma multa.

    — Só uma multa?

    — Sim. Pagou uma multa porque houve um acordo entre o tribunal…

    — E ao senhor? O que é que ele pagou?

    — A mim pagou-me… A companhia de seguros deu-me à volta de 100 contos.

    — E o patrão o que é que lhe dá a si?

    — …

    — Umas meias pelo Natal?

    — Sim.

    Francisco José não é a única vítima do trabalho infantil. Como ele há mais alguns e em muitos casos eles até são mais novos. Trabalham em fábricas, oficinas e sementeiras, sobretudo no Norte do país.

    Estrada Guimarães – Felgueiras.

    Sete da manhã.

    Três miúdos à espera de transporte para a fábrica.

    — Bom dia.

    — Bom dia. — reponde o petiz de saco de plástico verde dependurado numa mão.

    — O que é que tens aí dentro do saco?

    — É a comida.

    — Para quê?

    —  Para levar para o trabalho.

    — Para o trabalho. E já trabalhas há muito tempo?

    — Há dois meses.

    — Que idade é que tu tens?

    — 10 anos.

    — 10 anos. E o que é que tu fazes?

    — Faço várias coisas…

    — Numa fábrica de quê?

    — Calçado.

    — E vocês agora estão aqui à espera da camioneta…

    — Já aí vem.

    — Então até já.

    Paulo mais o irmão José e um amigo aproveitam a boleia do patrão. A estrada é sempre a subir e depois também dá para falar um pouco com os outros colegas, com o patrão.

    Aproximo-me da carrinha da fábrica Lirifel

    [NOTA: a firma ainda existe. Está sediada em Três-Cancelas – Lagares].

    — Bom dia.

    — Bom dia.

    — O senhor vai levar as crianças para a fábrica? É?

    — É. É.

    — É?

    — Está claro vou levar tudo para a fábrica.

    — E  qual é a fábrica?

    — Fábrica de calçado Lirifel.

    — E tem lá muitas crianças a trabalhar?

    — Não. Crianças, não. Desculpe…

    — Não?

    — Crianças depende do ponto de vista que vocês vêem… Não se pode considerar crianças, vá…

    É uma explicação. Depois de a mãe dos rapazes combinar com o homem uma desculpa para o caso de haver mais perguntas indiscretas, a carrinha arranca.

    Quando lá chegamos acabaram as surpresas para toda a gente.

    — Era o seu filho que ia na camioneta a guiar? Era?

    — Era.

    — Então nós gostávamos de falar com ele porque o que acontece é que ele tem crianças muito novinhas a trabalhar… Havia uma criança de 10 anos a trabalhar…

    — Parece que não…

    — Parece que sim… Olhe, que sim.

    — Parece-me que não…

    — Não é verdade?

    —  Não… 14 anos para cima…

    —  14 anos para cima… Então onde está a criança que vinha na camioneta?

    — Foi uma boleia.

    — Foi uma boleia… — sublinho.

    Ninguém ousa chamar as coisas pelo seu nome. Até o contra-mestre depois de se descair inventa um filho que não teve só porque está a trabalhar com um menor de menos de 14 anos. Sabe que a lei o proíbe.

    O decreto-lei 286 de 88 não deixa margem para dúvidas: «A utilização do trabalho de menores (…) é punida com multa de 50.000$00 a 250.000$00 por qualquer situação individual (…) e no caso de o menor não er ainda atingido o termo da escolaridade obrigatória ou de o trabalho se realizar em condições especialmente perigosas para a saúde ou moralidade do menor, a multa será elevada para o dobro» – entre 100 e 500 contos.

    O facto é que a lei no seio de muitas empresas é a do patrão. O flagelo do trabalho infantil continua a propagar-se no Norte do país. Quem o diz são os sindicatos, sobretudo a União dos Sindicatos de Braga, mas também e curiosamente a própria Inspecção-Geral do Trabalho.

    Um relatório síntese confidencial da Inspecção sobre trabalho de menores ou infantil datado de Julho deste ano (1988) refere que só entre o primeiro e segundo trimestres de 1988 houve um acréscimo de mais de 25%.

    Imagem: Norberto Lopes

    O mesmo documento indica que há sobretudo menores de 14 anos a trabalhar nas indústrias do vestuário e confecção, calçado, construção civil e hotelaria.

    As razões: a ganância de alguns patrões e de muitos pais, a ineficácia dos organismos estatais como a Inspecção, uma política económica e social controversa, mas sobretudo a miséria — a económica e a outra.

    A carrinha da fábrica passa agora sem parar. Paulo, José e o vizinho apearam-se algumas curvas antes. Desta vez, é preciso um corta-mato para irem almoçar a casa.

    Os miúdos vivem nesta casa com os pais e uma avó. A família não é abastada, mas também não passa fome. O pai é funcionário na Câmara Municipal de Felgueiras. A mãe trabalha numa escola.

    O casal tem casa, dois ordenados, um carro de serviço ao dispor, uma motorizada e um pastor alemão. E… uma vivenda em construção do outro lado da estrada.

    — Não se importa só  de se virar para mim um segundo? É uma reportagem sobre trabalho…

    — …

    — A pergunta é assim: a senhora tem uma criança — tem mesmo duas…

    — Sim.

    — E o seu filho de dez anos está a trabalhar numa fábrica…

    — Não está, não. Ele é família. Ele é sobrinho…

    — Aí, não a estamos a ver. Não se importa de… Sim, diga lá.

    — Ela é sobrinha da minha mãe.

    Imagem: Norberto Lopes

    — Quem?

    — A senhora da fábrica. E o meu filho vai para lá para olhar por eles. Eu trabalho. O meu marido trabalha na Câmara. Eu trabalho na Escola. E não temos a quem deixar o miúdo…

    — E acha que uma fábrica…

    — É uma fábrica de calçado.

    — É o melhor sítio onde pode estar uma criança?

    — Sim. Sim.

    — Melhor do que em casa?

    — Sozinho?

    — Melhor do que na escola? Está aqui gente. Está aqui a sua vizinha. Está aqui mais gente…

    — Ele anda na escola…

    — Anda de escola à tarde e vai fazer depois também umas horas à fábrica…

    — Não vai… Vai para ela ficar a olhar por ele.

    — Mas não foi o que ele nos disse…

    — Coitadinho… Sabe o que é…

    — Ele disse que trabalhava, quantas horas, e temos amigos dele que nos confirmaram que é verdade. Temos testemunhas de que ele trabalha lá todos os dias. E o irmão também…

    —  O irmão…

    — O irmão feriu-se na fábrica!

    — Não foi, não.

    — Não foi? Então o que é que foi?

    — Foi na brincadeira.

    Há pessoas que não sabem mentir talvez por nem sequer elas próprias acreditarem naquilo que contam.

    — Aqui por estas fábricas há muitas crianças a trabalhar e os seus dois filhos seriam duas das crianças…

    O pai das crianças põe-se a olhar para o relógio de pulso.

    — Vem aí o carro.

    O sujeito abala rapidamente.

    Imagem: Norberto Lopes

    O pai, pelo menos esse, com a desculpa de estar cheio de pressa não disse nada. A situação dos filhos até nem é das piores da região. Há crianças a sofrer bem mais e não é só em termos de dureza do trabalho ou de vencimento. A grande maioria ganha menos de 10 contos por mês e nem se queixa. É também a violência física tanto por parte dos patrões como dos empregados.

    Exemplos não faltam.

    Participação ao Procurador da República junto do Tribunal Judicial da Comarca de Vilaverde.

    O proprietário de uma padaria admitiu Fernando. Despediu-o quase logo a seguir depois de o ter agredido corporalmente. As testemunhas acrescentam que o miúdo trabalhava entre as 22:30 da noite e as 14:00.

    Fernando tinha 12 anos. Tinha jornadas de mais de 15 horas…

    Uma fábrica de balanças de Celeirós processou um trabalhador que bateu num miúdo depois de o ter repreendido. O empregado voltou a agredi-lo segunda vez e como não há duas sem três voltou a arriar-lhe forte e feio a pretexto de coisa alguma. A nota de culpa refere que o agressor foi suspenso durante seis dias. A criança era muito novinha…

    Oficialmente até estava a trabalhar na fábrica a título gratuito… durante as férias escolares para não andar pela rua a pedido dos seus pais.

    Alguns já nem têm férias. Nem sequer chegam a entrar na escola… Vão directamente para a fábrica aprender o que é a vida.

     — O que constato directamente nas aulas que dou é que turmas de 30 alunos na programação estão reduzidas a metade porque eles na idade em que estão de escolaridade obrigatória encontram-se já a trabalhar nas empresas vizinhas, sobretudo a zona de Moreira de Cónegos, que é para o lado em frente, e na zona da entrada de Vizela, vindo de Guimarães, a zona de Enfias. São zonas carenciadas de mão-de-obra a tal grau que são obrigados a recrutar o seu pessoal não só na zona em que estamos como estendendo a sua captação até à área do concelho de Cabeceiras de Basto. Fica-lhes mais barato evidentemente recorrer aos alunos e alunas locais.  — denuncia Egídio Guimarães, professor da Escola Preparatória de Vizela.

    Francisco abandonou a escola há uma eternidade. Agora, só conta com a força dos braços e das pernas para aguentar 11 e 12 horas de trabalho a fio, seis dias por semana. No dia de folga, amanha a horta da família. O momento de descanso ainda mais agradável é o do almoço, apesar da comida.

    — E a seguir, vais para o trabalho…

    — Hum…

    — O que é que tu fazes?

    — Ora bem, eu lá ando a descascar paus, faço qualquer coisa lá: ajudar…

    — Numa serralharia…

    — Sim.

    — E há quanto tempo é que trabalhas?

    — Um ano e meio.

    Imagem: Norberto Lopes

    — E que idade é que tu tens?

    — 13 anos.

    — E tens mais irmãos?

    — Tenho.

    — Quantos?

    — Oito.

    — E trabalham todos?

    — Menos dois.

    — Menos dois. E porque é que tu abandonaste a escola?

    — Eu não gostava dela…

    — E os teus pais também precisavam de dinheiro?

    — Não era bem isso. Eu é que não gosto muito daquilo…

     — E há mais rapazes novos a trabalhar na serralharia onde tu estás?

    — Não. Sou o mais novo que ando lá.

    — És o mais novo. E o patrão quanto é que te paga por mês?

    — 11 contos.

    — E trabalhas quantas horas por dia?

    — 10.

    — 10 horas. Todos os dias?

    — Todos os dias. Só menos ao sábado que pegamos às seis e largamos às seis…

    — E se nós agora formos lá à empresa onde tu estás a trabalhar o que é que tu achas que pode acontecer? O patrão manda-te esconder, o patrão… O que é que acontece?

    — Não sei. Não sei o que pode acontecer.

    — Não sabes o que pode acontecer, mas sabes que é proibido estar a dar trabalho a rapazes com a tua idade. E fala-se nisso lá na oficina? O patrão já te disse alguma vez alguma coisa?

    — Já me disse isso.

    — O que é que ele disse?

    — Disse que se for lá alguém, um fiscal, pode mandar-me embora e ele pode pagar uma multa.

    — E o que é que o patrão disse para tu dizeres ao fiscal ou às pessoas que lá forem?

    Imagem: DR

    — Eu escondo-me, não é? Para eu esconder ou que eu tenho mais que 13 anos. Que já saí da escola…

    A descida ao inferno da clandestinidade passa contudo por situações bem mais sombrias.

    «Esta sociedade esmaga sem dar conta» — palavras de Torga. Palavras de hoje no Norte onde atrás da prosperidade das pequenas e médias indústrias se esconde a degradação humana.

    — O povo diz que quem não aproveita o trabalho das crianças embora pouco é louco. Efectivamente as crianças podem fazer muita coisa. Dar-lhes o sentido do trabalho, da educação por coisas pequenas, mas aliás há escolas. O escotismo, por exemplo, é uma escola maravilhosa nesse sentido. Por exemplo, o escotismo ocupa as crianças, os adolescentes na limpeza de praias, na limpeza de pinhais. Tem feito esse serviço, quer o escotismo de rapazes quer o escotismo das meninas e guias de Portugal.   — diz-me Eduardo Melo, vigário geral da Arquidiocese de Braga. Ainda no verão passado limparam as praias de Esposende. Limparam matas, como por exemplo, ali de Bouro, na zona de Albergaria. São trabalhos que se fazem desportivamente sob a orientação de responsáveis. Educam e podem ganhar alguma coisa…

    — O desporto na fábrica é mais difícil, senhor Cónego…

    — Efectivamente que sim, mas eu julgo que um trabalho proporcionado, adequado no tempo, no lugar, na intensidade… Eu julgo que será profundamente educativo.

    Nem todos os padres pensam como o vigário de Braga. Progressistas indecisos há-os por toda a parte. Uma coisa porém é certa: não se sabe qual é a dimensão real do trabalho infantil em Portugal. As previsões, quando existem, são muitas vezes curiosas ou duvidosas.

    Para o Instituto Nacional de Estatística existiam no primeiro trimestre deste ano 46.900 crianças a trabalhar.

    A Inspecção-Geral do Trabalho (IGT), um departamento governamental especialmente vocacionado para este assunto, apenas detectou durante esse mesmo trimestre 65 menores de 14 anos.

    Das duas, uma: ou 46.835 crianças se perderam a caminho do trabalho ou a ineficácia da IGT é total…

    Francisco trabalha em Moreiras numa serração de madeiras. O patrão está a chegar agora mesmo no camião com os troncos.

    — Há falta de trabalhadores aqui nesta zona? — indago.

    — Ora bem, isto é como em todo o lado. Nesta altura, há falta não é de trabalhadores. Há falta é quem queira trabalhar. Trabalhadores há muitos, está a ver… só que é trabalhadores para o café, está a perceber?

    — E trabalho infantil? Tem garotos a trabalhar para si?

    — Não!

    — Não?

    — Temos um com 14 anos…

    — Quem é?

    — É este. Tem 14 anos.

    — Tem 14 anos.

    — Ele em recibos? O senhor dá-lhe…

    — Ora bem, ele veio para aqui há dias, está a perceber, e vai começar a trabalhar… Nesta altura está aqui. Está a ver, o meu irmão não está e ele está aqui a guardar isto, não é?   

    —  Está a guardar? Só? Não trabalha?

    — Para já não está metido ao trabalho porque…

    — E está cá só há um mês e meio… Diga-me uma coisa: quantas horas é que ele trabalha por dia?

    — Oiça lá, o horário normal, como nós.

    Imagem: DR

    — Quantas horas?

    — O que trabalha mais aqui sou eu, está a perceber?

    Mentiras e conivências que o hábito tece. E quem se desvia do rigor sumário do silêncio é imediatamente ou quase excomungado.

    Este homem vive na região de Felgueiras há uma série de anos. Conhece bem a terra e a gente. Aceitou denunciar a situação. Depois, porventura pressionado por familiares industriais que empregam menores, proibiu a emissão das suas acusações.

    A cobardia é outra maleita comum a esta situação. Só não vê quem não quer. Praticamente toda a gente tem crianças a trabalhar… Há crianças que ainda andam a estudar. Trabalham em part time. Outras, trocaram definitivamente a escola pela fábrica ou pelas obras.

    — Esta situação acontece no distrito de Braga e não só – consideramos que é um problema nacional. É lamentável que os patrões vejam nas crianças o seguinte objectivo: hipotequem o futuro das mesmas crianças – portanto, abandonam a escola com a garantia de lhes pagarem miseráveis escudos a troco de trabalho que é feito por elas que devia ser feito pelos adultos. — constata Vítor do Vale da União de Sindicatos de Braga.

    Mão-de-obra clandestina só na aparência legal. A teia de cumplicidades e a ineficácia das autoridades são tais que muita gente nem sequer se dá ao trabalho de se esconder.

    — Não gostavas mais de estar a brincar? A estudar?

    — Hum… Não sei.

    — Os teus pais… o que é que eles acham disto?

    — …

    — Quantos irmãos tens?

    — Lá em casa somos três irmãos.

    — E trabalham todos?

    — Não. Só dois…

    — Um tem 11 e o outro tem quatro.

    — E trabalham?

    — Não. Trabalha só um.

    — Que idade tem o que trabalha?

    — Tem 12. (sic)

    — E o que é que ele faz?

    — É também desta profissão.

    — É trolha?

    — Sim.

    — E ele quanto é que ganha?

    — Não sei. Não sei quanto é que ganha. Ele começou há pouco. Começou ontem a trabalhar… (sic)

    — E o teu pai trabalha?

    — Trabalha.

    Imagem: Norberto Lopes

    Jorge foi para trolha, tentado por media dúzia de tostões e a fuga ao aborrecimento da escola. Trabalha 10 horas por dia. Ganha 18 contos por mês. Não gosta muito do que faz, mas também não se lamenta. É a opção do possível. Proibir o trabalho infantil não chega. É preciso criar alternativas — melhores alternativas. Caso contrário o trabalho infantil aumentará ainda mais à medida das misérias.

    — Vieram aqui uns miúdos e disseram-me se que queria deixar o miúdo ir trabalhar e eu disse que não porque ele que não tinha 14 anos. E eles disseram-me que o patrão que diz que como ele está próximo a fazê-los que não fazeria mal, que não teria perigo. Prontos. Foi, mas não foi logo nessa ocasião. Eles vieram aqui uns dias e depois o miúdo foi. Passados aí uns dias é que foi trabalhar. — conta Maria Rosa Gomes.

    António, o filho de Maria Rosa Gomes, começou a trabalhar aos 11 anos de idade. Primeiro, esteve numa fábrica de cerâmica. Depois, foi para as obras. O último emprego que teve foi numa fundição. E aí é que foram elas…

    — Estava a trablhar como serralheiro. Trabalhava nove horas por dia. E assim…

    — Quanto é que tu ganhavas por mês?

    — 15 contos.

    — 15 contos… E o que é que aconteceu?

    — Ah… (silêncio) Um dia o disco apanhou a camisola e cortou-me o braço.

    — E o que é tu achas desta história toda? É justo o que te aconteceu?

    — É justo. Isso é justo. (sorriso imensamente triste e longo silêncio)

    — E agora? Viver sem um braço é muito diferente?

    — Já estou habituado. Para mim… já não… já não me interessa. Já pouca diferença faz.

    António tem agora 13 anos. Talvez acabe por voltar para a escola primária. O dinheiro vai ter de dar com a pensão do pai e a indemnização que porventura venha a pagar o patrão, mas isso é outra história.

    Para a família do rapaz o dono da fundição até nem é má pessoa. É verdade que não mandou avisar a família do acidente, não foi ver o miúdo ao hospital nem a casa, mas já avançou uma outra proposta de trabalho.

    Meto conversa com a avó de António.

    — O que é que a senhora acha das crianças que trabalham?

    —  Coitadinhos, eles agora não trabalham sem terem 14 anos, mas antigamente… — responde-me Ana Borges.

    — Não. Agora também trabalham. O seu neto começou a trabalhar aos 12…

    — Sim, trabalham. Mas antigamente trabalham mais cedo. Assim que pudesse começar a sacar um pouquinho de aqui e de acolá, já ia para ganhar o pão para comer.

    — Mas as coisas mudaram. Passou muito tempo.

    Imagem: Norberto Lopes

    — As coisas mudaram mas…

    — Ou não mudaram?

    — Mudaram. Agora é mundo novo.

    — Mas as crianças continuam a trabalhar…

    — As crianças continuam a trabalhar, está bem, mas ele…

    O patrão da fundição parece ter outra noção das responsabilidades. mandou encerrar as portas da fábrica por causa dos olhares intrusos. Recusou responder às nossas perguntas. (NOTA: A Fundibraga, Comércio de Metais, Lda já não está activa).

    As oficinas e fabriquetas clandestinas que pululam por estas bandas, lugares comuns do trabalho negro começaram, contudo, a criar alguns esquemas defensivos.

    Aqui, nesta oficina de Esporões o cartaz exterior da legalidade imposta não deixa margem para dúvidas: o patrão só aceite adolescentes com mais de 15 anos.

    — Que idade é que tu tens?

    — Ah… 13 anos.

    — E estás a trabalhar aqui nesta oficina?

    — Sim, senhor.

    — E já trabalhas há muito tempo?

    — Há mais ou menos um ano.

    — E antes? Já tinhas trabalhado noutro sítio?

    — Não, senhor.

    — É o teu primeiro emprego?

    — É, sim senhor.

    — E saíste da escola há muito tempo?

    — Não. Ainda ando a estudar. Trabalho de manhã e de tarde estudo.

    — E quanto é que ganhas aqui por mês?

    — Aqui não ganho nada. (sic) Estou aqui é para ocupar os meus tempos livres… (sic)

    — Os teus tempos livres a trabalhar?

    O miúdo acena que sim.

    — Sim, senhor.

    — E qual é o teu trabalho aqui?

    — Faço… ajudo…

    — O que é que fazes exactamente?

    — Faço janelas quando posso… pequenas e ajudo a cortar ferros.

    — E há mais rapazes com a tua idade a trabalhar?

    — Não, senhor.

    (Ouvem-se gritos)

    Imagem: Norberto Lopes

    — É o teu patrão que te está a chamar?

    — Um momento. Já vou…

    (Mais gritos insistentes ao longe.)

    — O teu patrão está a chamar-te. E tens mais irmãos?

    — Tenho.

    — E trabalham também?

    — Não.

    — Não trabalham…

    Passo à ofensiva.

    — O senhor não se importa de vir aqui um segundo? ­O senhor é o patrão dele? Vamos ver se este senhor quer falar… O senhor dá-me licença? Podemos entrar? Bom dia, dá licença?

    — Não, não.

    — O senhor não quer falar? Tem menores a trabalhar aí…

    — Ponha-se lá fora, de faz favor.

    — Metemo-nos lá fora. É?

    Pois é. O que vimos não devíamos ter visto. Se perguntámos não devíamos ter perguntado. Se ouvimos não devíamos ter ouvido. Deixem as crianças trabalhar em paz.


    NOTA:

    Esta reportagem foi efectuada em apenas três dias. Foi apresentada no programa «A Hora da Verdade» da RTP, no dia 22 de Dezembro de 1988 [ver AQUI]

    O empenho de Norberto Lopes e de Sérgio Ramos (imagem), José António Fernandes (montagem VT e pós-produção vídeo), Carlos Germano (vídeo-grafismo electrónico), Rogério Lagos e Vítor Matela (pós-produção audio), Albano da Mata Diniz (sonoplastia) e de Luís Gonçalo Bettencourt da Câmara foi decisivo para fazer esta reportagem.

    Miguel Sousa Tavares e Margarida Marante apoiaram o meu projecto.

    Considero, aliás, que «Clandestinos da Vida»  foi uma das reportagens mais importantes da minha carreira profissional.

    E das mais difíceis também.

    Tenho uma profunda admiração por aquelas crianças. E imenso respeito também pela sua coragem e força.

    Rui Araújo


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  • Joaquim Cerqueira, o mestre alfaiate de Longra

    Joaquim Cerqueira, o mestre alfaiate de Longra


    “Um alfaiate faz de um torto um jeitoso”, mas, mesmo assim, o ofício está a desaparecer por esse país fora e a “Alfaiataria Cerqueira”, em Longra, não é exceção.

    Corria o ano de 2020. Rui Araújo passou uma tarde com os alfaiates e as costureiras do atelier do Mestre Cerqueira, que passou a vida na Senhora Aparecida, e, precisava de um milagre para o negócio sobreviver.


    Longra.

    Bati de fugida e entrei na loja sem saber ao que ia.

    Ao fundo, no atelier, dei com os alfaiates e as costureiras.

    Joaquim Cerqueira, apesar de céptico, deu-me as boas vindas.

    Admiro a bonomia ou a cordialidade desta gente honrada e trabalhadora do interior a contas com o isolamento e a adversidade.

    (Foto: Rui Araújo)

    A alfaiataria Cerqueira a é a única da vila e das redondezas.

    Chegou a ter 14 costureiras e alfaiates mais o mestre. Hoje, já só trabalham, aqui, quatro pessoas, incluindo a esposa e o sobrinho do dono. E uma costureira.

    A prosperidade de antanho pertence irremediavelmente ao passado apesar de a alfaiataria ser mais do que um mero ofício para esta gente.

    — Isto é uma arte. Uma prisão. Tem que se estar com a perna cruzada a trabalhar, a aprender, a dar pontinhos. É… é impossível, senhor Araújo. Eu sou o último alfaiate de Longra, se calhar sou o último de Felgueiras e, se calhar, vou ser o último do Distrito do Porto… — segreda o mestre com um sorriso tímido de candura.

    O solilóquio é sincero. O tom é triste. As coisas são o que são… O negócio está a definhar. 

    Joaquim Cerqueira aprendeu a arte quando ainda era gaiato. Tinha acabado de deixar a escola. 10 anos de idade.

    — Eu fiz sempre trabalhar a mão. Isto é a mão. Ó senhor Rui, trabalhar com a mão demora anos a aprender. E se posso… se puder recuar atrás, eu, quando fui trabalhar, no meu tempo pagava-se para aprender a arte. Ainda é o tempo que se pagava. E eu andei e porque… anda que o meu pai não pagou, mas toda a gente pagava naquela altura: três contos ou 500$00. Era assim… Eu andei assim um ano de graça. A seco. E no fim de um ano começaram a dar-me 15 tostões por dia. Sem horário de trabalho…

    A desilusão é tremenda, mas no atelier ninguém esmorece.

    Dona Maria Cidália Pinto, a esposa, começou a trabalhar como bordadeira com oito anos.

    Hoje, ousa recordar a significação de alguns momentos singulares aqui vividos.

    Uma vida cheia…

    — Eu não era para contar esta, mas pronto, já agora vou contá-la… Houve uma altura que eu estava aqui com os meus filhos nos primeiros anos, que nós não morávamos aqui, era um bocadinho longe e, muitas vezes, antes de ter os filhos eu ia mais o meu marido numa motita às 2… 3 da manhã com frio, com chuva. Depois, entretanto, nasceu a minha filha, a primeira filha, e nós para não ir com a menina na mota ao frio, montámos, aqui, neste cantinho um divãzinho, aqui ao lado, um fogãozinho daqueles pequeninos aonde eu fazia a refeição da noite e dormíamos aqui para não apanharmos frio por aí abaixo com a menina…

    As voltas que a vida dá…

    E não vale a pena encobrir a verdade por mais absurda que seja.

    Antigamente, a «Alfaiataria Cerqueira» fazia 15 ou 20 fatos e 90 pares de calças por semana — tudo à medida do freguês.

    Hoje… com a pandemia e a crise aparece um trabalho ou outro.

    As prateleiras aprumadas repletas de alpaca, fazenda, entretela, caxemira, cetim, algodão, surrobeco, burel e lã pura — tecidos de qualidade, alguns importados de Inglaterra e de Itália — só revelam que ainda se fazem aqui bons fatos à antiga portuguesa, trajes de equitação, samarras, capotes e casacas de gala para toureiros e devotos. E.… não só.

    Joaquim Cerqueira Machado escuta-nos, mas (incansável) não tira os olhos do tecido. O padrão para ele é a excelência.

    — Há uma coisa de que nunca mais me esqueci. Um dia, em Guimarães, tinha um senhor alfaiate dava cursos de recosa, a fazer os cursos de corte. E uma coisa que ele sempre me disse: um alfaiate de um torto faz um jeitoso. De um homem torto nós pomos um jeitoso porque nós conseguimos pôr… fazer as alterações todas. O alfaiate, enquanto que a confecção não faz alterações nenhumas. Se… O homem pode estar assim torto que nós conseguimos pôr o fato direito. E o resto ninguém consegue…

    Não é arte. É milagre! — acrescento, como quem não quer a coisa.

    Às vezes é mesmo milagre. (RI-SE) Às vezes faço cada milagre…

    Afinal de contas, os milagres existem e os homens são todos iguais. Quem o diria (concluo no meio destas vidas estranhas ou desconchavadas fora do mundo do consumismo do pronto-a-vestir e do pronto-a-pensar).

    Cláudia Mendes, a costureira mais nova, já está cá há mais de 20 e tal anos.

    Cortar, coser, casear, chulear, guarnecer, alinhavar — tanto faz! — é com ela.

    — Às vezes uma pessoa tenta, tenta, tenta, faz, desfaz, volta a fazer, volta a desfazer, levanta-se e vai dar uma voltinha para conseguir fazer perfeito… (RI-SE)

    A nobreza da costura e da alfaiataria reside na busca permanente da perfeição. Do contentamento de se atingir a perfeição…

    — A alfaiataria é uma arte que é pena ela desaparecer, senhor Rui, mas não há volta a dar. Hoje é muito difícil criar-se um artista. Muito difícil. Só com um milagre, mas os milagres já não se fazem.

    A grandeza ou a força moral desta gente que não me canso de admirar é a luta por um amanhã menos desconsolado apesar de o raio da pandemia, que está a dar cabo do negócio e do resto, nunca mais acabar…

    É outro dia calmo sem horas devolutas.

    Fotos extraídas de vídeo de Romeu Carvalho/TVI (com excepção da foto da autoria de Rui Araújo)

    Reportagem originalmente emitida na TVI, em Agosto de 2020.


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  • Dona Rosa, a pastora dos milagres

    Dona Rosa, a pastora dos milagres


    A solidão e a vida cheia de momentos de silêncio, cantigas, prantos e preces da pastora Carmelina Rosa Afonso, em Parâmio, Trás-os-Montes.

    As memórias e histórias de milagres de quem já não espera nada, ‘apenas’ ora, chora, pensa e caminha… por caminhos que as pernas já conhecem de cor.


    Parâmio.
    Terra de choupos, amieiros, carvalhos e castanheiros.
    Terra ainda de pastores e de milagres.

    A manhã rompeu gélida quiçá invernosa.
    Lá adiante, a rua tosca desemboca na igreja matriz, que data de 1783 ou de 1787.

    Dona Rosa está a tocar o sino. Conscienciosamente. E sem esforço de maior, apesar de já ter 81 anos generosos como a vida que é — e foi! — a sua.
    É o desafio ou a chamada para a celebração do caminho da cruz, a Via Sacra.
    Fiéis à fé e ao burgo, que já só tem quarenta e quatro almas, ou simplesmente solidárias, Dona Palmira e a outra Dona Rosa aparecem de roldão para responder ao apelo do sagrado. E do intangível…

    As três mulheres percorrem com afinco as catorze estações da igreja. A sabedoria, aqui, ao contrário de lá fora, passa por um único caminho e as mesmas rezas de sempre.

    Carmelina Rosa Afonso, pastora. (Foto: D.R.)

    A anciã, que tem a chave da igreja, trauteia de boa fé as orações com um timbre de circunstância.

    — Sem Deus não há nada! Nós não podemos viver sem Deus. Não é viver. O viver sem Deus não é viver.

    O padre de Bragança só cá vinha por dever. Um dia — já lá vai uma data de anos — abalou para terras de África. Santos de casa não fazem milagres…

    Ficou São Lourenço, o padroeiro da aldeia, que não é para aqui chamado.

    Daqui a nada são dez da manhã. É mais do que tempo de Dona Rosa desandar.

    Parâmio: ruas desertas e casas abandonadas. E algumas ruínas. A mocidade desapareceu. E a escola está fechada.

    Vou ver a Fonte do Caílho, que cura moléstias e quebra feitiços. É o que dizem…
    A água que corre ao lado da imagem de Nossa Senhora dos Milagres e os preceitos rituais curariam o caílho, o anqueilhado, o angaranho, por outras palavras, uma espécie de raquitismo que impede as crianças de andar.
    Crendice ou realidade? Já lá iremos… porque há por estas bandas quem saiba a missa toda.

    Poiares, terra do pão.
    Estamos  a menos de uma légua de Parâmio.

    Lá em baixo, a pastora, mais o rebanho e os cães. E uma melodia de há uma eternidade…

    — Toda a vida fui pastora.
    Toda a vida andei com o gado.
    Tenho um nó no meu peito, ó ai, de me encostar ao cajado.
    Tenho um nó no meu peito, ó ai, de me encostar ao cajado.

    Dona Rosa é pastora e gaba-se de ser pastora.

    Faz das tripas coração para levar o rebanho ao pasto. Dia após dia… porque a coisa, aqui, não fia de outra maneira…

    Faça sol ou faça chuva, com geada, com neve, mal o sol desponta no horizonte, a anciã assoma por entre montes e vales. Solitária como um lobo tresmalhado.

    — O que custa mais é a solidão. A gente viver sozinha, não é? Por cá, passo os dias sozinha. Canto, choro, rezo… Rezo muito o tercinho. Rezo as minhas orações todas. E passo assim o meu tempo, não é? Mas é uma solidão. Não se vê ninguém. Não se vê ninguém pelo campo. Não se vê nada!

    Os quatro cães de virar seguem-na — que é como quem diz, seguem o rebanho — maquinalmente.

    — Ai, a puta da cadela. Ó Irís, ó Irís, ó Irís, ai sua marota. Rasgava a ovelha para as fazer vir para aqui…

    Feitas as contas são 136 ovelhas e 100 cordeiros.

    Na “loja”, que é o nome que dão ao curral, só ficaram os animais que acabaram de nascer.

    Antigamente, havia sete ou oito rebanhos maiores do que este e outros tantos pastores.

    — Eu sou a única pastora aqui. Os mais velhos já morreram. Já estão no Céu. Os mais novos não querem esta vida. Procuram vidas melhores…

    Dona Rosa sai todos os dias com o rebanho. Sem pressas que o caminho é comprido.

    E oito, nove, doze horas a calcorrear veredas e clareiras passam devagar.

    — Penso em tudo. Nos filhos, nos netos, nos bisnetos, na vida. Na morte quando ela virá. Quando Deus me quiser levar estou ao dispor dele.

    Deus ou a roleta do tempo não poupam nada nem ninguém. Nem a verdade. E, no fim de contas, tudo acaba em ficção: a morte é a morte.

    — Canto muitas vezes a Cantiga da Mãe como já não tenho mãe. “Ó minha Mãe, minha Mãe. Ó minha Mãe, minha amada. Quem tem uma Mãe tem tudo. Quem não tem Mãe não tem nada. É. Sei-a toda.”

    Os animais têm preocupações mais prosaicas: enchem o bucho.

    Os cães, atentos, vigiam o movimento. E a pastora aproveita para orar.

     Eu rezo este terço das chagas do Senhor. Rezo o terço da Misericórdia. Rezo o terço vulgar que é as dez estações a Nossa Senhora e rezo o terço da chama de amor a Nossa Senhora. Todos os dias rezo estes terços…
     Porquê? Para quê?
    — Porque… dá-me impressão que me dá outra vida, não sei. Não sei, pronto. Confio em Deus e em Nossa Senhora.
    — E Deus confia na senhora?
    — Ora aí é que eu não sei. Não é? Mas eu acho que sim… Eu acho que sim… (RI-SE)
    — Acha?
    — Acho. Acho que sim. Acho que sim porque eu chamo tanta vez por Ele… Chamo tanta vez por Ele…

    A confissão é sincera.
    Perdeu o marido há demasiados anos.
    Reza, canta, chora…

    É tempo de rilhar uma côdea. No saco tem um naco de bacalhau frito, pão e café.
    O pior é o frio intenso, que se entranha, apesar do céu  limpo.

    — Diz-se que no Verão é viver de cão a vida de pastor. E no Inverno é vida de inferno. (RI-SE) É assim…

    Sempre foi.

    Lá ao longe, ali atrás da primeira colina, é Espanha.
    A naturalidade, aqui, na raia é irredutível, mas não é o mais importante. Nunca foi.

    — No tempo que houve lá a guerra, na Espanha, a gente também passou fome. E vinha, aqui, a Portugal. Era no tempo que se cozia nos fornos muito pão de centeio e eles vinham aqui. Traziam chocolates e trocavam os chocolates pelo centeio. E para levar para os filhos, pois. E então paravam muitos muitos em casa dos meus pais. Eles davam-lhes um cobertor e dormiam em cima de uns bancos e depois da madrugada é que eles saíam para se livrar da Guarda. Pois… A Guarda tirava-lhes os pães. Tirava-lhes o que levavam daqui. Naquele tempo houve fome na Espanha…

    Os animais continuam a comer: malva, joio, língua de ovelha, carrajó, serradela, cardo molar…

    A terra é generosa.
    À imagem da água que por aqui corre.

    — Temos a Fonte do Caílho que é a fonte milagrosa para as crianças encaílhadas. A criança que é ancaílhada põe as perninhas em ruz e não anda. É. Depois de ir à Fonte do Caílho fazer a oração, se a criança for encaílhada anda ao cabo de quinze dias. É. Se não for encaílhada não há nada a fazer. Só por médicos, não é? Pois… Mas o milagre é esse. Se for ancaílhada, a criança cura. A gente leva-as, vai por um caminho, sem falar, até à fontinha. Depois, lá, estão duas pessoas. Se houver madrinha, de preferência é a madrinha. E a outra pessoa. E põe-se uma do lado da fonte e outra do outro lado e diz:
     Toma lá esta criança. Esta criança ancaílhada.
    E a outra responde:
     Dá-me a cá sã e salva.
    E pega na criança. Depois, devolve-a outra vez nove vezes e nove Pais Nossos e nove Avé Marias.
     E a seguir, o que é que acontece?
     E depois, pronto, a gente rezou essa Avé Rainha, antes reza-se o Acto de Contrição, e benzer e pronto. E a gente sai com fé, não é?
     E a criança começa a andar… – indago.

     Se for ancaílhada, começa a andar. Logo passados dias começa a andar.

    Parâmio.
    A aldeia da deslumbrante pastora Carmelina Rosa Afonso e dos milagres que acontecem para acudir às desgraças das crianças.

    Na Terra Fria o impossível só pertence ao passado. As negações são como as sentenças: inúteis…

    Fotos extraídas de vídeo de João Franco/TVI

    Reportagem originalmente emitida na TVI, em Março de 2018.


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  • Mariana Maria, só

    Mariana Maria, só


    A vida de Mariana Maria – conhecida por Mariana Campaniça – no Alentejo profundo… e deserto.

    Do alto dos seus 86 anos, a viver uma vida solitária tendo como centro do mundo a sua taberna.

    Uma história de pobreza e trabalho. E amor.


    Terras agrestes e escalvadas.

     Alentejo, uma tarde destas… abrasadora.

    Primeiro, um casario velho, em ruínas.

    Um dia, já lá vão muitos anos, aqui, neste monte, viveu gente…

    Ao lado de um charco sem nome um macho mata a sede ou engana a caloraça.

    (Imagem: Valter Leite)

    Lá ao fundo, na estrada secundária (as mais interessantes!), damos com dois pastores e um rebanho. E com os carris. Calha bem, o nosso destino é a Gare de Ourique.

    A imagem do progresso é ardilosa, mas é assim mesmo. O despovoamento e a desertificação também não pouparam este lugar recatado. É a sina do interior de Portugal.

    Na estação já não param comboios. Os poucos que ainda passam por este ramal da Linha do Alentejo são os da mina (de cobre e zinco) de Neves Corvo.

    Diante do edifício fica o Café Primavera.

    Clientes, esses, nem vê-los ou quase. O estabelecimento está às moscas…

    Mariana Maria, conhecida desde cachopa por Mariana Campaniça, é a dona da taberna. Tem 86 anos feitos, nasceu no Atravessado.

     A minha vida foi sempre no campo e sempre a trabalhar. Eu desde os 10 anos, vim a trabalhar: cuidar bestas, cuidar vacas, descalça, vim trabalhar. Ia ganhar um panito. Ia ganhar uns 5 tostões ou 10 tostões. Nesse tempo era assim. E era para levar para casa que era para a gente comermos todos. Era o pai e a mãe a trabalhar e não chegava. Doze moços de roda de uma mesa, não dá. Com mais 2, o pai e a mãe…

    É preciso deixar passar as horas e os minutos. E o tempo, aqui, quer se queira quer não, arrasta-se.

    (Foto: D.R.)

    Mariana Maria, vive, aqui, sozinha, paredes meias com a negrura do lugar e as recordações do mundo que é o seu. E com os sonhos…

    — Quando era criança queria ser muita coisa. (RI-SE) Era o que eu podia fazer. Queria ser rico, queria ser rica, queria ser bonita, nunca fui uma coisa nem outra…

    Mas o pior é a miséria.

    Mariana Maria começou a trabalhar ainda catraia. E nunca parou, até hoje. É a mulher dos sete ofícios. E correu o país: Odemira, Vila Nova, Beja, Serpa, Carregueiro, Funcheira… até que um dia comprou a tasca, em Ourique.

     — A minha vida foi andar ceifando e mondando no campo.  E quando eu ia para casa, ia a um baile, a uma festa, via as outras senhoras, outras meninas, todas vestidas de ar, todas bonitas e eu com o vestido de chita, daquele que nem sequer se podia tocar numa esteva. Não havia cascanhol… Eu, com o vestidinho de chita, digo: vida de um cabrão. Só eu é que nasci pobre…

    (Foto: D.R.)

    Mariana Maria é, acima de tudo, uma rebelde. Faz o que quer (sempre fez!) e não tem medo de ninguém.

    — Eu não tenho medo! Tenho ali uma debaixo da cabeceira que é assim deste tamanho. (SIMULA UM DISPARO) Está mesmo debaixo da cabeceira da cama. Se eu ouvir mexer na porta, não preciso de me levantar. É só olhar para a porta e quando aparecer qualquer coisa lá à porta, toma.

    Ia à caça, fumava, bebia uns canecos e era danada para o fado, as «modas» e o «cante ao baldão» (o despique ou as desgarradas!). Era e é…

     Vou cantar a moda da Marianita. Oh, não. Vou cantar outra…

    Quero ir para o altar que eu daqui não vejo bem…Quero ir para o altar que eu daqui não vejo bem…

    Quero ir ver o meu amor,

    Visitar lá mais alguém…

    Quero ir ver o meu amor,

    Visitar lá mais alguém…

     Agora é que eu vou andar,

    Agora é que eu vou andando


    Da noite para o dia, o pai das suas três filhas partiu. Para nunca mais voltar.

    Mariana Maria não se queixa. Há males maiores. Há a morte. E há Deus.

    — Quem é que viu Deus? Ninguém vê, mas eu já o vi. Fui obrigada a vê-lo…

    — Como?

    — Eu vou-lhe contar…

    A filha morta apareceu-lhe uma noite no quarto. A imagem pode parecer irreal, mas cumprida a promessa sumiu-se. Para esta mulher, Deus… Deus e a Fé datam daí…

     — Todas os dias rezo na minha cama quando me deito e quando me levanto. Tenho uma oração que eu digo todas as noites.

    (Foto: D.R.)

    “Com Deus me deito. Com Deus me levanto. Por amor de Deus e do Espírito Santo.

    Digo isto três vezes.

    Foi uma vida sacrificada, mas cheia.

    E há sentimentos que ganham hora a hora outra dimensão.

    — Isto agora é a moda:

    Se ele adora mais alguém,

    Se me ama a mim sozinha,

    Quero ir para o altar…


    (CALA-SE)

     — Não é isto!

    — Gostou mesmo…

     — Já me enganei…

    — Gostou mesmo daquele homem…

    — Não pode tirar esse bocadinho?

    — Não. Não se pode. Gostou mesmo daquele homem…

    — Gostei mesmo. Foi bom moço. Não era… coitado.

    — Ele foi o grande amor da sua vida…

    — Foi. Já não namorei mais nenhum.

    — O que é que é o amor?

    — A gente… A gente gostar da pessoa. Aproximar-se à pessoa. Gostar dela. sentir… Sentir… Isso é coisa que não se pode explicar.

    Há muitas mais coisas que não dá para explicar…

    (Foto: D.R.)

    Aqui fora, o dia está a morrer.

    A luz incerta do lusco-fusco ou a penumbra, anuncia o momento das despedidas.

    Lá dentro, Mariana Maria dorme ou vela. Ou fecha os olhos, simplesmente, a pensar que amanhã continuará a lutar pela vida… já que apesar de estar entrevada foi condenada a viver só.

    Nota: Mariana Maria faleceu pouco depois de estarmos juntos.

    Reportagem originalmente emitida na TVI, em Agosto de 2018.


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  • Mercenários e meninos soldados

    Mercenários e meninos soldados


    O PÁGINA UM publica a segunda reportagem do jornalista Rui Araújo sobre uma guerra esquecida em África, mais precisamente na República Centro-Africana, palco de interesses geoestratégicos, comerciais e de delapidação de recursos, e onde mercenários e crianças se digladiam.

    Em 2021, o jornalista Rui Araújo esteve (pela segunda vez no espaço de três anos durante mais de um mês outra vez) na República Centro-Africana, um país dilacerado por uma contínua e atroz guerra . Inicialmente, esta reportagem foi publicada na revista galega Luzes, na revista espanhola FronteraD e ainda no jornal digital português Sete Margens e na edição online da CNN Portugal

    Apesar de algumas fotografias chocantes, pelo que avisamos, desde já para este facto, o PÁGINA UM decidiu publicar as imagens colectadas pelo Rui Araújo, por serem testemunhas da crueldade das guerras e, infelizmente, da natureza humana.



    Bria. República Centro-Africana.

    A quietude é perfeitamente enganadora. O país está a ferro e fogo há quase 10 anos. Catorze grupos armados continuam a controlar 80 por cento do território onde o Estado faz figura de ausente. Os mercenários estrangeiros, incluindo russos, matam indiscriminadamente a torto e a direito e pilham e estoiram o que podem. A impunidade é total…

    Ao meu lado uma mangueira frondosa. Diante de mim, no campo de futebol de terra ocre, os miúdos de pé descalço correm desenfreadamente no meio dos apitos do árbitro branco sem presunção.

    (Foto: Movimento Rebelde)

    Bakita Ousma assiste à partida com deleite. A cachopa não é uma espectadora qualquer. Encontrou, aqui, na associação Esperança a salvação ou o apaziguamento. E alguém que cuide dela (com o apoio, designadamente, das Nações Unidas). Tem doze anos. É orfã. Aos oito entrou para o grupo de guerrilheiros numericamente mais importante do país.

    — A minha mãe e o meu pai morreram quando os cristãos atacaram a aldeia e é por isso que eu fui para o grupo armado FPRC (Front Populaire pour la Renaissance de la Centrafrique).

    O desabafo é claro e sincero. Tinha oito anos bem contados. Um ano depois escapou-se, mas a sua tenacidade nem por sombras esmoreceu. A guerrilha foi para ela o lenitivo ou o remédio de encarar a morte dos pais, matar a fome e quiçá a solidão. Mesmo se tivesse nascido noutro lugar a sua postura seria exactamente igual. A doçura da voz de Bakita é falaciosa. É uma resistente…

    — E como era a vida lá? — indago por indagar.

    — Estava no mato. 

    — E que mais?

    — Já não tinha família…

    As primeiras vítimas da guerra… (Foto: Rui Araújo)

    Bakita olha maquinalmente para os jogadores mais ruidosos. Queira ou não queira — como diria Miguel Torga —, vive duas vidas. Uma que se vê e outra que não se vê. Como todos nós, aliás.

    — Tens um sonho? Qual é?

    A menina, alheia à minha conversa, limita-se a sorrir. Insisto.

    — Qual é?

    — Quero ser comerciante. Quero fazer negócios… — lá me responde com convicção ao fim de uma eternidade.

    Segundo uma estimativa da UNICEF, datada de Setembro de 2015, os movimentos rebeldes da República Centro-Africana recrutaram 10.000 crianças.

    A única certeza é que os 14 principais grupos rebeldes — muçulmanos e cristãos — contam nas suas fileiras com muitos meninos combatentes. O seu número exacto, hoje, é uma incógnita.

    Encontro seguinte: Koyo Haroune, futuro grande fotógrafo. Tem 15 anos cumpridos. Foi para a guerra aos nove. Passou cinco com os rebeldes da FPRC.

    As crianças só terão um futuro se a guerra acabar, mas… (Foto: Rui Araújo)

    — Os rebeldes, que se chamam anti-Balaka, mataram o meu irmão mais velho.

    — Os cristãos…

    — Sim.

    — E ele tinha 36 anos…

    — 36 anos.

    — E tu foste para a FPRC para fazer o quê?

    — Os anti-Balaka mataram o meu irmão mais velho. Foi por isso que fui para o grupo armado. Queria vingá-lo!

    — E foste para soldado com 9 anos de idade…

    — Com 9 anos de idade.

    — E o que fazias lá?

    — No grupo armado? Eu só matava as pessoas. Ia para o terreno…

    — E viste muita gente morrer?

    Ninguém passa impunemente pela guerra. (Foto: Rui Araújo)

    Koyo deve ter sentido qualquer coisa fender-lhe o peito e desata a rir, envergonhado, com a mão a tapar-lhe a boca.

    — Sim. Eu matei muita gente.

    — Muitas?

    — Muitas. — responde-me.

    — E muitas são quanto?

    — Eu não conto. Eu não conto…

    — E matar. É o quê? — pergunto, teimoso.

    — Matar? Eu mato com as armas.

    — AK-47. Kalashnikov…

    — Kalashnikov. E com foguetes RPG…

    — O que sentiste a primeira vez?

    — Não me faz nada.

    — Nem depois?

    — Nada.

    Dois guerrilheiros da UPC… (Foto: Rui Araújo)

    — E vingaste-te?

    — Sim, é verdade. Vinguei-me.

    — Qual é a principal lição desses anos com o grupo armado?

    — Perdoei tudo.

    — E a guerra? O que pensas da guerra hoje?

    — Hoje, penso que a guerra não é boa. A guerra não é boa… Na guerra perdem-se muitas vidas. É por causa disso que me fui embora.

    — E… E para o teu irmão?

    — Para o meu irmão… Ele está morto. Os anti-Balaka (ndr: cristãos) mataram-no. Os filhos dele ficaram sozinhos. Os filhos, agora, andam na rua ao Deus dará. Custa-me ver isso. Andam aí pelos caminhos. São meninos de rua…

    — Ouvi dizer que tens um sonho lindo… —  alvitro sem cálculo.

    — O que eu gostava de fazer na vida?

    Reparo na alegria a arder nos seus olhos irrequietos. Há utopias que se realizam.

    — Sei lá… Fotógrafo. Trabalhei uma vez como fotógrafo num estúdio de fotografia. 

    — A fotografia também é memória…

    — É a memória!

    — E a memória não é um problema?

    — Não é um problema para mim…

    Miséria generalizada num país rico… (Foto: Rui Araújo)

    Dito e feito. Koyo tem carradas de razão. Eles estão destinados a desafiar o passado para poderem vencê-lo e conciliarem-se com a vida, mas não é fácil…

    O insólito árbitro de apito nos lábios acicata os putos. Mahamat Damine senta-se diante de mim, aflito. Foi soldado durante cinco anos. Tinha 11 quando abalou para a guerra. Foi pelas melhores razões, não vá o Diabo tecê-las…

    — Os cristãos massacraram a minha família. Os meus pais! Via muitos anciães a sofrer. É por isso que eu fui para o grupo armado FPRC. Queria salvar as pessoas que estavam a sofrer…

    — A guerra é o quê para ti?

    O adolescente coça a cabeça embora conheça a resposta.

    — A guerra? Brincamos muitas vezes à guerra, mas a guerra não é boa. Vi muitos homens morrer. Mulheres. Crianças… A guerra não é boa.

    — Mataste também?

    — Sim, também matei.

    — Sabes quantos?

    — Sim, eu sei.

    — Quantos?

    — O máximo foram 11.

    — E depois?

    A capital não escapa ao flagelo da violência… (Foto: Rui Araújo)

    O rapaz hesita, pensa, torna a pensar e desata a rir.

    — Depois, nada. Eu queria deixar aquilo. Agora, já não creio que podia fazer aquilo. Eu só queria largar a guerra. A guerra não é boa. Eu queria abandonar o grupo armado.

    — E havia muitas crianças nesse grupo?

    — Sim. Há muitas crianças nesse grupo.

    — A partir de que idade?

    — Há homens… há uns a partir dos 11 anos, 12 anos, 13 anos, 14 anos, e mesmo 15 anos também. Há crianças pequenas…

    — Ainda hoje?

    — Sim. Ainda as há hoje.

    — Qual é a coisa mais bonita hoje na tua vida?

    — Pois… A coisa mais bela na minha vida? Acho que jogar futebol é uma boa solução para a minha vida.

    — E uma namorada?

    — Nenhuma. Não tenho… É a vida. Não é mentira!

    Guerrilheiros cristãos: matar de qualquer maneira… (Foto: Serviço secreto ocidental)

    O seu ídolo é Leo Messi, que foi recentemente condenado pelo Tribunal Provincial de Barcelona a pagar as custas do processo contra el Economista. A empresa LIMECU (acrónimo de Lionel Messi Cuccittino) declarou prejuízos sucessivos, não pagou impostos e não registou lucros desde a sua criação em 2010.

    Nos dias de hoje, a reinserção e a adaptação psico-social de muitos meninos soldados passa pela escola, o desporto, a música e a reconstrução dos afectos e porventura das quimeras da infância.

    O guarda-redes arregaça as mangas e posiciona-se. Tem um ar soturno, claro está. O jogo está renhido. E estes miúdos estão habituados a lutar. Todos eles passaram pelos grupos armados. Uns, foram recrutados. Os outros, raptados. Tinham oito, nove ou 12 anos de idade. Eram combatentes, informadores, mensageiros, cozinheiros ou guardas das barreiras. Muitas meninas foram violadas e eram escravas sexuais.

    Bria continua a ser um dos bastiões da FPRC, que controla o centro da urbe. Os muçulmanos da UPC (L’Unité pour la paix en Centrafrique), do RPRC (Le Rassemblement patriotique pour le renouveau de la Centrafrique) e os cristãos anti-Balaka (AB) mandam no resto. O campo PK 3 com mais de 90.000 deslocados é dos cristãos. Mas mesmo os lugares onde a vida é uma porcaria têm direito a nome…

    Os guerrilheiros cristãos anti-Balaka são iguais ou piores que os muçulmanos.
    (Foto: Serviço secreto ocidental)

    Pé ante pé, calado, avanço em direcção à porta. O insólito comité de recepção é composto por dois rapazes de espingarda-automática 7,62 pendurada no ombro. São os guarda-costas do general Ali Ousta, chefe de Estado-Maior da FPRC. Explico ao que vou. Penetro numa assoalhada esconsa a cismar nas perguntas incómodas que tenciono fazer.

    — No Norte não há estradas. Não há escolas. Não há hospitais. Não há electricidade. O governo esqueceu-se do Norte desde a independência…

    O chefe rebelde podia arrotar postas de pescada, mas não o faz. Dou a mão à palmatória. É verdade aquilo que me diz. 

    — Mas há personalidades e países que estão por detrás disto tudo. Fazem com que as pessoas andem a matar-se umas às outras…

    — São os recursos que constituem, hoje, a principal causa do conflito?

    — O que penso é que as pessoas mandadas para cá para nos proteger andam a roubar as riquezas do país…

    — E os russos, que estão a apoiar o regime?

    — Não há um único russo que tenha entrado nesta sala. Foi o governo que os trouxe. É com o governo que eles falaram…

    Mercenários armados do grupo russo Wagner na cidade “sem armas” (segundo a ONU) de Bria.
    (Foto: Rui Araújo)

    — Os grupos armados estão associados ao crime, à extorsão, aos raptos, roubo, violações. Fala-se de coisas verdadeiramente sombrias… É tudo mentira?

    — Senhor jornalista, tudo isso são mentiras. Quem diz isso são as pessoas que não gostam dos grupos armados e fazem relatórios falsos. 

    É mentira. Com quem me fui meter? Sondei o general com mais uma pergunta.

    — A FPRC tem meninos soldados?

    — Libertámos todos os que tínhamos. Já não há mais nenhum!

    Não quis saber. Fui-me embora.

    O comerciante Mahamat Zène Abrass foi assassinado pelos bandidos de Wagner.
    (Foto: Movimento Rebelde)

    19 de Abril de 2021.

    A mensagem de Hassan, um jovem  “peul” que conheci no mato há uns anos, é terminante: “Os russos chegaram ao PK7 (ndr: quilómetro 7 antes da cidade) de Bria: Pensamos que eles vão entrar esta noite. Estamos cheios de medo. Muitos querem fugir para o mato e levar as famílias.”

    De facto, segundo um relatório militar da MINUSCA (ONU) a que revista LUZES teve acesso, “12 veículos, incluindo seis blindados russos”, oriundos de Ippy entraram nesse dia em Bria. 

    “O comboio ocupa duas posições: BASE MINE no centro de Bria e BASE GARAGE na periferia de Bornou (eixo PK3 – OUADDA).”

    A avaliação U2 (elaborada pelo responsável da secreta da MINUSCA) em Bria é a seguinte: a missão dos russos e das Forças Armadas da República Centro-Africana (FACA) é “um reconhecimento ofensivo nos eixos BRIA-IPPY e BRIA-YALINGA” onde os rebeldes muçulmanos da UPC e da FPRC “estão particularmente activos”.

    Mercenários do grupo Wagner no interior da RCA. (Foto: Serviço secreto ocidental)

    “BRIA é uma cidade estratégica para a CPC” (La Coalition des patriotes pour le changement), uma aliança de seis grupos armados que controlam os dois terços do país), cujo objectivo confesso é derrubar o presidente Touadéra.

    As operações de CORDON e SEARCH por parte das forças bilaterais sucedem-se nos dias seguintes.

    A 2 de Maio, Hassan envia-me outra mensagem sobre os mercenários russos. 

    “Em Zako, eles pediram ao senhor presidente da câmara para registar as pessoas com idades entre os 25 e os 45 anos. Dão-lhes 500 francos (ndr: 500 francos CFA correspondem a 0,76 €) e uma lata de sardinhas por dia para lavarem o cascalho. As que andavam à cata dos diamantes fugiram…”

    “URGENTE URGENTE! Os mercenários russos também mataram, ontem, em Kaga-Bandoro o influente comerciante árabe Mahamat Zène Abrass, mais conhecido por 11-11. O corpo foi descoberto hoje. Foi raptado no mercado. Depois foi levado para a base dos russos. Foi torturado com selvajaria e a seguir cortado aos pedaços antes de ser decapitado e queimado. Uma morte atroz e abominável. O povo descobriu ao lado de 11-11 um outro corpo sem vida. A cidade de Kaga-Bandoro está a transformar-se numa cidade fantasma. Os mercenários russos estão a transformar a RCA noutra Ucrânia…”

    Mais um crime sem castigo dos pulhas do grupo Wagner.
    (Documento classificado da ONU)

    A Federação Russa aumentou as operações com as firmas tecnicamente ilegais de mercenários (ChVK’s) a partir de 2014. As principais firmas são a MSGroup, a RSB, a MAP, a CENTRE R, a ATK Group, a SLAV CORPS, a ENOT, a COSSACKS e a PMC WAGNER, que está presente, designadamente, nos teatros de operações da Ucrânia, Síria e República Centro-Africana.

    A “exportação” de mercenários (ex-operacionais das Forças Especiais e do serviço militar de intelligence GRU) permite à Rússia criar condições favoráveis para os negócios de armamento e a exploração dos recursos naturais.

    O grupo de mercenários mais proeminente é o da firma Wagner (fundada em 2013 por Dimitri Utkine, um neonazi que tinha a patente de tenente-coronel no GRU).Especialidades: fomentar a exploração ou o saque dos recursos naturais, propagandear as teses de Putin, divulgar fake news, desinformar as opiniões públicas, raptar e matar com total impunidade…

    Mercenários do grupo Wagner (ao serviço de Moscovo) numa bomba de gasolina.
    (Foto: Serviço secreto ocidental)

    Os operacionais (“contractors”) da Wagner são acusados de “matar crianças, violar e torturar mulheres como animais e de executar homens nas mesquitas”. 

    A demissão das consciências chegou a Nova Iorque e a Bangui. A ONU fecha-se em copas. Há mesmo quem questione o peculiar “pacto de silêncio” celebrado entre a MINUSCA e os mercenários russos…

    De acordo com o Instituto Francês das Relações Internacionais, “a única investigação realizada até hoje pela MINUSCA sobre as violências cometidas pelos russos diz respeito a um centro-africano que foi torturado em Bambari em 2019.”

    No início desse ano, ainda segundo o IFRI,“a operação militar contra a CPC teria provocado numerosas vítimas civis, nomeadamente numa mesquita de Bambari em Fevereiro desse ano, mas a MINUSCA optou pelo silêncio.”

    A MINUSCA é a ONU. Está tudo dito… (Foto: Rui Araújo)

    O imã Hamat Hamadi da mesquita Central de Bambari é um homem moderado, inteligente e particularmente bem informado. Já nos conhecemos pessoalmente há vários anos. Peço-lhe para me contar.

    — Foi a 15 de Fevereiro às 13 horas no exterior da mesquita Al Takwa, no bairro Carrefour, aqui em Bambari. Uma coluna de homens da Seleka (grupos armados muçulmanos), dirigida pelo General Amadou Boungou da UPC apareceu diante dos russos e dos soldados das FACA.

    Perante a força de ataque de estas forças, os rebeldes recuaram e penetraram na mesquita. Havia nessa altura muitos fiéis no interior.

    Quando os grupos armados fugiram, algumas pessoas tentaram escapar, e os russos e as FACA apareceram. Pensaram que eram rebeldes e dispararam na sua direcção.

    Confirmo a morte de três civis na mesquita. O balanço é de 18 mortos, sobretudo rebeldes. Uma mulher morreu. Levou com uma bala perdida. A vítima mais jovem tinha 20 anos…

    Escuto o religioso. A desgraça não tem nome. É toda a gente ou quase que é culpada…

    — Combater nas zonas habitadas é o modus operandi dos homens armados. É uma maneira de transformar civis em escudos humanos…

    Adiante. O relato da imprensa local não deixa margem para dúvidas: “Os mercenários não queriam saber quem era rebelde e quem era civil: Eles queriam era matar, declarou uma testemunha ocular. Os mercenários teriam executado três jovens no interior da mesquita e outros 15 terão sido abatidos no decorrer do ataque à mesquita, incluindo crianças e velhos.”

    Acampamento e camião dos mercenários de Wagner no interior da RCA.
    (Foto: Serviço secreto ocidental)

    A Amnistia Internacional denunciou os crimes, mas a MINUSCA fez ouvidos de mercador…

    Os jornalistas russos Orhan Djemal, Alexandre Rastorguev e Kirill Radchenko, que estavam a fazer um documentário sobre as actividades do grupo Wagner na RCA, foram misteriosamente assassinados perto de Sibut em 2018. Teriam sido eliminados pelos mercenários ou pelos seus capangas locais. A investigação da MINUSCA é, aparentemente, inconclusiva…

    A demissão das consciências é real.

    Em Nova Iorque, o Conselho de Segurança da ONU modificou o mandato da MINUSCA. 

    O parágrafo sobre a “exploração ilícita e o tráfico de recursos naturais” da resolução votada em 2017, desapareceu, entretanto, na que foi adoptada a 13 de Dezembro de 2018.

    Um país imensamente rico sem infra-estruturas. (Foto: Rui Araújo)

    É a luz verde para a rapina organizada do país.

    Doravante, a MINUSCA deixou de ter legitimidade ou competência para atacar as redes de traficantes e impedir o rapinanço dos diamantes, ouro, urânio e de todos os outros recursos naturais do país…

    Pelo menos 2.500.000 habitantes (mais de metade da população da RCA) continuam a precisar de ajuda humanitária. 100.000 civis refugiaram-se desde o último processo eleitoral no interior e na capital enquanto que mais 60.000 procuraram abrigo nos países vizinhos. 

    O regime de Moscovo oferece armas e munições (desde 2018), treina e apoia as operações das Forças Armadas (FACA), propõe medidas políticas, garante a protecção do presidente Touadéra, e desenvolve ainda tarefas supostamente humanitárias (com comboios de camiões blindados provenientes do Sudão que ninguém controla ou com hospitais como o de Bria, que não tinha médicos nem enfermeiros).

    A influência da Rússia não pára de aumentar na República Centro-Africana desde, pelo menos, 2017. À medida dos crimes dos 1.700 mercenários da Wagner (1), a parceira privada do governo de Bangui, que estariam a ser investigados pela MINUSCA.

    A França, antiga potência colonial, não consegue travar o avanço da Rússia. O último episódio da rivalidade entre os dois países ocorreu a 10 de Maio de 2021 quando a unidade especial da Polícia centro-africana OCRB deteve o ex-pára-quedista francês Juan Rémy Quignolot, 55 anos por posse de armas de guerra, em Bangui.

    O russo Valery Zakharov, ex-agente do FSB e actual conselheiro nacional de segurança do presidente Touadéra, deu a notícia num tweet: “Um cidadão estrangeiro foi detido em Bangui com uma enorme quantidade de armas e de munições”.

    Os soldados das FACA começam a estar fartos de Wagner…. (Foto: Rui Araujo)

    Quignolot é apresentado na RCA como um bandido ou um mercenário.

    O governo de Paris denunciou, entretanto, a “manifesta instrumentalização de esta detenção” numa terra que já foi o seu “pré carré”…

    Nas redes sociais circularam algumas imagens do ex-militar com o general Ali Darassa, responsável da UPC. Tentei falar com ele, porquanto já o entrevistei em anos diferentes no quartel-general da UPC (Bokolobo), mas o líder rebelde encontra-se no mato. As minhas perguntas foram, portanto, enviadas por um canal mais moroso…

    Juan Rémy Quignolot é “malgré lui” uma vítima da guerra suja dos russos na RCA.
    (Foto: Captura de ecrã)

    Seja como for, as recentes acusações onusianas de “graves violações dos direitos humanos”  cometidas pelos mercenários da Wagner e as tropas centro-africanas não impedem as autoridades de Bangui de louvar a cooperação com Moscovo.

    “Falam-nos do grupo Wagner, mas o governo centro-africano não assinou nada com um grupo Wagner, nem com nenhum outro. O governo celebrou um acordo com outro governo, o da Rússia, com instrumentos que ela considerou úteis, pôs à nossa disposição instrutores, armas e coisa e tal”, afirmou Ange-Maxime Kazagui, ministro da Comunicação e porta-voz do governo, ao canal TV5 Monde.

    É dia de mercado e dia do Senhor. Entro no campo de deslocados PK 3. É o maior do país. Com as abominações da guerra mais de 90.000 cristãos e animistas procuraram refúgio neste monte desolado. Soa um sino. É a hora da missa.

    A detenção em Bangui do ex-paraquedista foi anunciada por um oficial russo…
    (Foto: Captura de ecrã)

    Redentora ou nem por isso, pouco importa.Cada um traz o seu banco ou cadeira. A igreja da paróquia de São Luís de Bria fica ali ao lado. Alguns, poucos, aparecem de traje domingueiro. O que conta, agora, é a santa oração… a partilha da desgraça e da angústia, mas sobretudo da esperança. A celebração é efectuada dentro e fora do barracão. É o que há para tantas almas.

    O calor é tanto que já nem se presta atenção. Ninguém arreda pé. Penitência e fé andam de mãos dadas… Os pobres dão uma nota ou uma moeda. Os que podem. A seguir, é o momento crucial da comunhão. Da salvação sem glória. Fim da liturgia. Meto conversa com o abade Bruno Kongbo. Os putos brincam à guerra…

    — Estas crianças terão um futuro se esta guerra acabar. Mas no preciso momento em que lhe falo, nem as escolas funcionam sequer. E há muitas crianças neste campo. Chega a haver 400 alunos numa sala de aulas…

    Wagner é sinónimo de terror e de impunidade na RCA. (Foto: Movimento Rebelde)

    —  Não há água potável… — insinuo, acanhado, fazendo de jornalista.

    —  Não há água potável nem centro de saúde. A comida… A escola. Tudo deixou de funcionar…

    —  Foi a guerra que os levou a refugiarem-se, aqui, neste lugar. Se olhar para eles, se os vir, pode sentir o que estão a viver nos confins do seu corpo e nos confins da sua alma e do seu espírito também. Olhe, olhe, olhe…

    É impossível arrepiar caminho sem olhar primeiro. Imaginar a desgraça é sempre pior do que vê-la… quem o diria… Calcorreio as veredas. A banca do merceeiro. O carregador de telemóveis… A latrina ao ar livre (já que não há esgoto). A roupa a secar… e o céu. O Céu que, aqui, fica longe.

    Na penumbra um homem tenta esconjurar o sofrimento ou perdeu mesmo a razão. Uma vida amortalhada, mais uma. Mais adiante, um recém-nascido deixa correr as horas, que, aqui, já ninguém mede…

    Saio atordoado.

    A vida continua… (Foto: Rui Araújo)

    As tréguas com Deus raramente deixam um sabor tão amargo na boca…

    Fora do PK 3, do outro lado do caminho, está o atelier de costura dos ex-combatentes anti-Balaka – o nome que dão às milícias cristãs. Anti-Balaka quer dizer em sango, uma das duas línguas do país, “anti-catana” ou “anti-balas de AK-47”.

    Aqui há gente que não consegue pedir esmola e recusa o absurdo. 

    (1) Oficialmente há apenas 535 mercenários da Wagner no país. Uma parte deles garante a segurança do presidente Touadéra.


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  • Repórter em guerra

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    É uma honra ter os meus textos publicados no PÁGINA UM, um jornal livre e independente (depende exclusivamente das doações dos seus leitores!), que sai fora da casca e tenta dar notícias e promover a verdade dos factos e, do mesmo modo, uma cultura de cidadania (considera a Informação um serviço e não uma mera mercadoria) ao invés do que defende a quase totalidade da “comunicação social” pacóvia cá da praça com a cumplicidade dos poderes que nos desgovernam.

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    As redes sociais são outra praga com a qual estamos, hoje, confrontados: contribuem para o fim do Jornalismo já que nos impedem de dissociar o real do artefacto ou daquilo que é falso ou simples propaganda.

    A Inteligência Artificial já produz, por outro lado, artigos (textos, imagens e sons) cuja veracidade dos “factos” é impossível verificar. O mesmo sucede com os rumores que se propagam e proliferam rapidamente e de maneira incontrolável, com ou sem fake news — como escreve Jacques Attali na sua recente obra (não publicada cá) “Histoires des Médias: Des signaux de fumée aux réseaux sociaux, et après”.

    O meu velho amigo Alfonso Armada, escritor, poeta e grande repórter (El País, ABC, Frontera D, etc.), vai ainda mais longe: “no espectáculo das notícias a mercadoria somos nós.”

    No fim de contas, aquilo que está, aqui, essencialmente em causa é a preservação da própria Democracia. E sem Jornalismo digno desse nome não há Democracia que valha!

    Seria desnecessário eu mencionar as outras razões que me animam, mas não resisto…

    O grande repórter e escritor Ryszard Kapuściński considerava (?) que “os cínicos não servem para esta profissão” (“Los cínicos no sirven para este oficio – Sobre el buen periodismo”, livro também não publicado em Portugal).

    Para o mestre polaco do “jornalismo literário” (autor, aliás, de um livro sobre o período que antecede a independência de Angola, em 1975, publicado em Portugal pela Tinta da China) “o verdadeiro jornalismo é intencional, a saber: aquele que se fixa um objectivo e que tenta provocar algum tipo de mudança. Não há outro jornalismo possível. Falo, obviamente, do bom jornalismo.”

    Parece-me que o jornal PÁGINA UM procura isso mesmo: a mudança, questionando por isso os abusos de poder, a corrupção generalizada (que só gera mais miséria e pobreza!), a impunidade que a caracteriza desde sempre, mais a promiscuidade e o conluio entre os grupos de comunicação social (“comunicação” quê?), os governos e as grandes empresas, etc.

    E o seu fundador e director Pedro Almeida Vieira é um homem honesto e corajoso.

    É quanto me basta para ceder ao PÁGINA UM alguns artigos sobre as andanças por esses mundos fora.

    Histórias de gente, sempre e ainda de gente. Histórias de guerras esquecidas ou nem por isso, os combates e a coragem silenciosa dos outros. Dos anónimos. Ou tão somente da vida que corre, aqui, mesmo ao nosso lado ou nos confins do mundo. Estórias de sofrimento, de alegria e da morte, que acaba irremediavelmente por dar sentido à nossa existência.

    Aquilo que proponho são algumas reportagens que efectuei durante os últimos 40 e muitos anos em Portugal e nos quatro cantos do Mundo (como Timor, EUA, Zaire, Bósnia, Ruanda, Colômbia, Líbia, Síria, República Centro-Africana, Espanha, …). E a Sul de parte alguma, num dos derradeiros espaços de liberdade do planeta: o mar.

    O resto é conversa, que não diz respeito a mais ninguém…

    Rui Araújo


    No dia do segundo aniversário do PÁGINA UM, começamos a publicar os ‘Cadernos dos Mundos’, uma selecção de dezenas de reportagens, de grandes reportagens (grandes) do jornalista Rui Araújo. Não há palavras para quantificar a honra que recebemos pela permissão do Rui Araújo em ‘ceder’ os seus trabalhos de grande e corajoso jornalismo que realizou ao longo da sua vida profissional na RTP, na Grande Reportagem, na TVI e em muitos órgãos de comunicação social internacional. Rui Araújo é uma referência de ousadia, de irreverência, de rigor (em todos os aspectos) e de verticalidade. É também um leitor atento e crítico do jornalismo, por isso fez um trabalho incómodo como Provedor do Leitor no Público. Mais do que a publicação dos seus textos, as suas palavras introdutórias aos ‘Cadernos dos Mundos’ constituem um incentivo e uma confirmação do bom caminho do PÁGINA UM. Mesmo que tenhamos um Almirante a gastar dinheiro dos contribuintes para me processar por ter escrito verdades incómodas.

    Pedro Almeida Vieira


    Ilha de Kos, Grécia, um dia destes. No quarto bafiento do hotel em ruínas, Marsal, acocorada junto da porta, abana mansamente a cabeça e fita-me. Tem olhos negros, buliçosos, quiçá enigmáticos, e ao mesmo tempo selvagens.

    — Estamos a gravar… — profere Rui Pereira, o meu companheiro.

    Um silêncio ponderoso apodera-se do cubículo. Faço sinal à moça para começar a contar.

    — Eles mataram a minha avó e o meu avô. E queriam matar-nos. Aí, decidimos vir para a Europa para termos uma vida boa e segurança.

    — E agora? — questiono.

    Marsal (Foto: Rui Pereira)

    A rapariga de dezoito anos sorri-me. Um sorriso bonacheirão, salpicado de afoiteza. E esfrega as mãos.

    — Como é que imagina a sua vida, amanhã?

    — Quero estudar Medicina. Quero ser médica para poder ajudar os outros, aqueles que sofrem e não têm nada. Médica…

    Apetece-me dizer “Inch’Allah”, mas quedo-me calado. Uma sineta rachada soa ao longe. Lá fora, a terra arde. Marsal Ziaee agarra-se ao seu sonho com o desespero da esperança, e dá-lhe corpo. Há doze dias, ela, o pai, a mãe e seis irmãos apanharam uma lancha em Bodrum para chegar aqui. Pagaram oito mil dólares ao passador da máfia turca por meia dúzia de milhas e outras tantas horas de navegação. Cabul pertence irremediavelmente ao passado e o tempo para esta gente do “cemitério dos impérios” ganha outra dimensão.

    Hoje, a família vegeta no Captain Elias, um hotel abandonado (longe do centro de Kos e dos olhares dos turistas), sem electricidade, sem água potável, sem portas e janelas, sem apoios. Só os Médicos Sem Fronteiras e os voluntários gregos de Kos Solidarity se dignam aparecer, uns para tratarem do corpo e da alma, os outros para darem sandes, única refeição a que têm direito por dia. Como eles há, aqui, mais quatro ou cinco centenas de refugiados, afegãos, iraquianos, somálios, eritreus, náufragos de uma tragédia humana que nos ultrapassa. Todos esperam o salvo-conduto que lhes permitirá entrar na Alemanha.

    Entrada LIBIA livre (Foto: Rui Araújo)

    As lágrimas e as imprecações de pouco ou nada valem agora. A Europa da solidariedade é um mito. A islamofobia alastra pelo continente há mais de duas décadas. A política externa europeia para o mundo árabe foi indexada à de Washington em nome do pragmatismo, da conivência e da exportação da democracia (como se de uma mera mercadoria se tratasse) ou mais prosaicamente de interesses inconfessados. Puseram a ferro e fogo o Próximo e o Médio Oriente: Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria. E aquilo que está a suceder, hoje, é, em parte, a consequência directa do seguidismo face ao “polícia do mundo” e da falência dos princípios éticos, se alguma vez os houve.

    As imagens e os relatos dos refugiados (ou dos migrantes, porque a semântica é incómoda) atordoaram e atordoam muitas consciências. Nem a mim, que pensava estar vacinado – passei pelos conflitos de Timor, durante a ocupação indonésia, do Zaire (actual República Democrática do Congo), de Moçambique, da Bósnia, do Ruanda e da Líbia – me deixaram indiferente. O sofrimento não pode ser reduzido a palavras.

    Esfaqueados e esquartejados

    Foi ontem. Só dei por ele tarde e a más horas. A camisa branca, vermelha de sangue, destoava naquele cenário. Estaquei o jipe. O miúdo negro sentado na terra ocre do caminho, encostado a uma parede sem cor, pregou os olhos nos meus.

    — Ajude-me! — implorou em francês, enquanto “abria os braços no grande gesto das coisas que brilham e se apagam”, como diria Miguel Torga.

    Libia check point (Foto: Rui Araújo)

    Espreitei pelo retrovisor quantos carros parados havia. Cinco. A imobilidade naquela posição significava a morte. A vulnerabilidade da coluna era total. Para eu salvar um, podiam perder a vida os quinze ou vinte que iam atrás de mim. Encolhi os ombros, resignado, e arranquei com presteza. Condenei o rapaz. E, do mesmo modo, condenei-me a mim próprio. Aqueles malditos segundos perseguem-me há mais de duas décadas. Para mal dos meus pecados…

    É ontem. 12 de Abril de 1994. Kigali. Ruanda.

    Era noite cerrada quando o C-130 das tropas especiais belgas que me deram boleia aterrou no aeroporto Grégoire Kayibanda.

    — Está toda a gente a fugir deste inferno. O que vêm para cá fazer?

    Meditei na pergunta e expliquei-lhe, com algum menosprezo, que tinha razão, mas não éramos turistas.

    — Devem estar loucos! — tornou o sujeito, cada vez mais histérico.

    — So-mos jor-na-lis-tas! — respondeu Alfonso Armada, grande repórter do El País, saindo subitamente do seu mutismo.

    Tanque na Líbia (Foto: Rui Araújo)

    O responsável branco das evacuações, compadecido, desatou a correr, desenfreadamente, pela placa do aeroporto fora, destino a parte alguma.

    Era, de facto, o pior momento para se estar ali. Cinco dias antes, dez pára-comandos (integrados no contingente MINUAR da ONU, chefiado pelo general Roméo Dallaire, com a missão de proteger a primeira-ministra moderada Agathe Uwilingiyimana[1]), tinham sido executados por elementos das Forças Armadas Ruandesas (FAR) a pretexto de os belgas terem abatido na véspera o bireactor Mystère Falcon do presidente do Ruanda, Juvénal Habyarimana, durante a aproximação à pista.

    Os capacetes azuis belgas foram capturados diante da residência da primeira-ministra. Seguidamente, viram-se conduzidos para o Campo Kigali. Seis foram esfaqueados e esquartejados. Os outros, comandados pelo Tenente Lotin, resistiram algumas horas. Às três da tarde, uma granada rebentou com eles. Ironicamente, foi o centro de decisão da MINUAR situado a escassas centenas de metros, que os desarmou… psicologicamente. A indecisão, a irresponsabilidade do comando poderão explicar o massacre…

    Destroços na Líbia (foto: Rui Araújo)

    Os sacos de plástico que eu tinha visto ao lado de um C-5 norte-americano, no aeroporto de Nairóbi, eram os dos corpos deles. Quando os foram buscar à morgue encontraram-nos uns em cima dos outros, nús e despojados de tudo.

    No dia 7 de Abril, mal o Sol rompeu, dois mil homens das unidades de elite das FAR, apoiados por dois mil elementos das milícias, iniciaram a “limpeza” dos Tutsi e dos Hutu moderados, de acordo com listas previamente elaboradas.

    A 21, o Conselho de Segurança das Nações Unidas decidiu reduzir a presença da MINUAR no país. O contingente passou de 2.500 para 250 homens.

    Passados nove dias, a ONU debateu a crise ruandesa durante oito horas. A resolução a condenar os massacres omitiu o termo “genocídio”, o que teria implicado uma intervenção.

    No epicentro da chacina

    As rajadas tracejantes iluminavam a noite. De repente, surgiram diante do edifício principal da aerogare camiões e pick-ups carregados de miúdos. Eram uns 50, sobretudo órfãos. Feridos, incapacitados, perdidos numa guerra que não entendiam…

    A violência alastrava à medida dos ódios e do sentimento de impunidade. Era fartar vilanagem: mulheres violadas, mutiladas, bebés atirados ao ar e decepados à catanada, homens enterrados vivos. Únicos crimes confessos: pertencerem à etnia errada ou serem moderados. No espaço de 100 dias 75% da população Tutsi desapareceu do mapa. Feitas as contas, perderam a vida, pelo menos, umas 800.000 pessoas.

    Guerrilheiros e soldados no Ruanda. (Imagem: RTP)

    Quando o Hércules C-130 com as crianças descolou de Kigali, dei de caras com uma figura anacrónica naquele caos: um tipo, sentado no chão, lia um livro à luz de um cubo para aquecer rações. Confiei-lhe a mochila e o equipamento.

    As tropas das FAR ocupavam o aeroporto e parte da capital. Os rebeldes da FPR cercavam-nos. E estavam a ganhar a guerra. O tiroteio prosseguiu, interrompido apenas por gritos ocasionais de crianças feridas. Um militar abeirou-se e meteu conversa comigo.

    — É tarde. Porque é que não vai dormir?

    Eu não podia.

    — Qual é exactamente o ponto da situação, aqui, capitão? — perguntei.

    — Complicado. Temos um golpe de Estado para colocar no poder uma facção política radical e acabar com o processo de paz e de transição para a democracia, mas…

    Ninguém impedia aquele jogo de massacre. No átrio do aeroporto, o tema das conversas era o mesmo. As operações da ONU para salvar o mais importante — as vidas e os princípios — eram uma autêntica fraude. Qualquer semelhança com a actual postura dúbia da Europa é, obviamente, uma coincidência…

    Por volta da meia-noite, um coronel carrancudo convocou-nos para uma reunião.

    — Ponto um…

    Puxámos imediatamente dos blocos (que era o que havia naquela altura) e gatafunhámos: 12 jornalistas autorizados a integrar a última missão atribuída às tropas especiais belgas ou, por outras palavras, autorizados a reportar a evacuação de um grupo de freiras “perdidas” no interior do país. A partida da coluna estava prevista, impreterivelmente, para o nascer do Sol.

    — Ponto dois…

    Alfonso Armada, enviado especial do jornal madrileno EL PAÍS. (Foto: RTP)

    Pediu-nos a lista dos 12 eleitos. Éramos 23; 23 loucos, dispostos a perder a vida a troco de nada para contar a guerra; 23 viciados em adrenalina e no resto; 23 tipos perdidos naquele inferno à procura de uma verdade, porque ali não dava para mentir.

    Decidimos sortear a invejável viagem com palhinhas: quatro lugares para a imprensa escrita, quatro para a rádio e outros tantos para a televisão e para os fotógrafos.

    — Simone Reumont, RTBF. Alfonso Armada, El País…

    Eu sorri com o embuste. Como o nome do meu companheiro galego saiu na rifa iam ter de abrir jogo.

    — Não pode ser! Ele não é belga. Isto é uma operação militar da Bélgica só para jornalistas belgas! — rosnou um jornalista necessariamente belga.

    — É uma operação belga! — reforçou o coronel.

    Toda a gente — ou quase — concordou. Era de esperar. Encolhi os ombros e provoquei:

    — Pensava que aqui só havia jornalistas, mas, pelos vistos, enganei-me. O jornalismo com bandeira é que conta. E como isto é uma farsa, não vale a pena perdermos mais tempo com fingimentos…

    — Eu passo-te as minhas imagens, não há problema — disse-me, apaziguadora, Simone Reumont, da RTBF, a televisão pública francófona de Bruxelas.

    Puxei do cigarro, calma e profundamente, e reprimi um suspiro. Tinha sido confrontado com cenas idênticas noutros teatros de guerra, mas teimava em continuar a indignar-me. Longe dos grandes “circos mediáticos” e sem tecnologia, só me restava acreditar na sorte e improvisar…

    Inseri dois tampões nos ouvidos (por causa do ruído do tiroteio), assentei praça no alcatrão tépido e adormeci. O cameraman despertou-me pouco depois.

    — Como é que consegues dormir no meio dos tiros?

    — Dormir é preciso. É como navegar… — ironizei.

    O grupo dos jornalistas embandeirados abalou às seis. Alfonso Armada arranjou boleia dos militares italianos. A meio da manhã, foi constituída uma coluna que não estava prevista no programa.

    Rui Araújo no Ruanda. (Imagem: RTP)

    — Qual é a missão?

    — É preciso resgatar três gajos no centro de Kigali! — respondeu-me o oficial.

    O tipo devia estar a brincar. A cidade estava a ferro e fogo, era o epicentro da chacina. Guerrilheiros e tropas governamentais disputavam troço a troço, rua a rua, prédio a prédio, apartamento a apartamento…

    — Não tenho lugar para si. Se arranjar carro, pode acompanhar-nos! Não tem medo da morte? — indagou em tom de desafio.

    — Tenho, mas preciso de uma reportagem. Televisão é imagem. Dê-me cinco minutos — retorqui.

    Larguei a correr em direcção ao parque, repleto de carros abandonados. Dei com uma carrinha Volkswagen. Pedi a um soldado para rebentar um vidro com a coronha da espingarda automática. À falta de chave, optei pela ligação possível, a directa, mas a carripana deu um solavanco e foi-se abaixo: faltava gasóleo. E o tempo corria. Aproximei-me de um jipe branco novinho em folha. Bingo. Depósito cheio. Pedi ao solícito militar para partir o vidro do pendura para o cameraman poder filmar.

    A procissão lá partiu — depois de eu dar boleia a outras seis “sentinelas do desastre” que, como eu, tinham ficado apeadas. Juan Mirales (La Dernière Heure, Bélgica) e Vincent Dudant (freelance) sorriram, irónicos.

    No caminho, ziguezagueámos entre troncos, pedregulhos e mortos. Tropas governamentais e rebeldes disputam o troço, restam ainda alguns corpos na estrada de adolescentes abatidos à catanada, corpos despedaçados.

    Avistámos o cadáver de uma menina prostrada na picada. Depois, evitámos um homem esquartejado — os cães famintos começam sempre pelas pernas.

    No domicílio do diplomata egípcio que procurávamos não vislumbrámos vivalma. A primeira emboscada ocorreu instantes depois: rajadas de AK-47. Eles não estavam longe. A coluna parou. Por um longo, estúpido momento, fiquei petrificado. Abri a porta, atirei-me ao chão e rastejei para o outro lado. Os soldados belgas responderam de imediato ao fogo inimigo. O meu cameraman não estava a filmar.

    — Então? Não gravas imagens? — questionei.

    — Nunca estive numa guerra!

    Era uma desculpa de mau pagador. Ou talvez não. Eu também tinha medo, felizmente, mas tentava controlar as emoções. Deitei a mão ao bolso, saquei de um cigarro, mas não encontrei o meu Zippo de estimação. O isqueiro estava diante da minha porta, do outro lado do jipe. Fui recuperá-lo. Enfiei um Peter nos lábios. Instantes depois, passou uma coluna da UNAMIR com tropas africanas e a saraivada cessou. Ao fim daquele interminável quarto de hora retomámos a marcha forçada.

    Mal chegámos ao hotel Méridien, onde se encontravam alguns capacetes azuis, sofremos o segundo ataque da manhã: morteirada com fartura, incluindo no jardim. Decididamente, preferia o som das Kalashnikov ou, em alternativa, o tac-tac-tac das “costureirinhas”. Arrancámos em direcção ao estádio de triste sina: campo de detenção e extermínio – ali como na América Latina…

    Como o recinto estava cercado não parámos. Mais adiante sofremos nova emboscada. Os atacantes usavam espingardas automáticas. A estrupada de 7.62 tinha um som especial? Era urgente optar por outro percurso. Metemos por um troço de terra batida. Foi aí que dei de caras com o miúdo ferido.

    No aeroporto encontrei Alfonso Armada. Tinha uma reportagem do arco-da-velha.

    — Foi fascinante, mas muito triste — confidenciou-me em galego-português.

    Alfonso sacou um “scoop” de triste memória. Fora o único repórter a conseguir entrar em Musha. 1.180 aldeões massacrados só porque eram da etnia errada, Tutsi. Decidi entrevistar o pároco Litric Danko, um dos raros sobreviventes.

    — Eram seis e meia da manhã quando começaram a matar toda a gente com granadas de mão, espingardas, forquilhas e catanas. No dia seguinte fui à igreja. Havia um grupo de 50 crianças com as mães. Viraram-se para mim e disseram: “Padre, Padre, Padre…” O que é que eu podia fazer? — narrou.

    — De onde é?

    — Sérvia. Sérvia…

    Padre Litric Danko (imagem: RTP)

    Outra tragédia que eu conhecia bem. 45 dias de reportagem na Bósnia, Sérvia e Croácia, mais uma guerra igual às demais.

    Naquele dia, em Kigali, em vez de ficar-me pelas lamúrias patéticas e a indignação bem pensante, pedi uma arma para matar. Acabei por regressar sem ter dado cabo de ninguém, nem sequer do Diabo dentro de mim. Tento escapar aos pesadelos. Jurei que nunca mais faria reportagens de guerra. Promessa ou intenção inútil. Desde então, estive noutras. Pensava que pior que o Ruanda era impossível, mas cheguei à conclusão — veja-se o que está a acontecer hoje na Europa com os refugiados — que os conflitos são todos iguais. E as vítimas também…

    N.D. Esta reportagem foi publicada originalmente na revista mensal espanhola Luzes, em Dezembro de 2015.

  • Síria – O outro lado da guerra

    Síria – O outro lado da guerra


    Os repórteres Rui Araújo e Tiago Ferreira percorreram durante três semanas a Síria de Sul a Norte: Damasco, Qarah, Maalula, Homs, al-Salamiyah, Ithriya, Khanasir, al-Safirah, al-Nayrab e Alepo.

    Este diário inútil é o outro lado de uma reportagem sobre a guerra para a cadeia de televisão TVI (PRISA), que narra as desventuras do jornalista em busca da verdade e da adrenalina. E… do esquecimento.


    13 de Novembro de 2016

    Aterramos em Beirute a meio da tarde. Ponho-me a pensar em futilidades: nas minhas guerras e nas  palavras de Miguel Torga a propósito de uma outra cidade, Lisboa. “É uma dor de alma ver uma terra bonita como esta a servir de cenário a tanta coisa feia.” Constatação que podia ser aplicada à capital libanesa…

    Depois do jantar, Tiago, o meu parceiro, e eu damos um passeio pela cidade. Passamos ao lado de um edifício imponente com um domo azul: a mesquita Mohammad al-Amin, associada à Arábia Saudita e, sobretudo, a Rafik al-Hariri, o primeiro-ministro sunita assassinado em 2005. O seu filho, Saad, vendeu a alma ao diabo. Fez um pacto com os assassinos do pai. É o novo chefe do governo.

    (Foto: Rui Araújo)

    14 de Novembro

    Cedo pela manhã, recuperamos no aeroporto as malas extraviadas e partimos para a esplanada do Pain d’Or, local do encontro com o “motorista de confiança” que deve conduzir-nos a Damasco.

    Hora marcada: 10:15. Aparece um pouco antes das 13. E queixo-me eu da pontualidade ibérica…

    Na fronteira síria, o equipamento é retido manu militari. Um guarda-fiscal particularmente zeloso toma nota das marcas, dos modelos, dos números de série. Lentamente. Muito lentamente. O material apreendido é depositado num local esconso repleto de tralha, mas acabamos por recuperar tudo. Pagamos 260 euros ao condutor. É caro, mas não há alternativa. A ideia é o malão do equipamento regressar a Beirute para depois entrar clandestinamente na Síria.

    Ao fim da tarde, arranjamos transporte para Damasco. Primeira etapa: Cidade Velha. São horas de almoçar e de jantar ao mesmo tempo. Percorremos as ruelas (sem luz ou quase) a passos lestos, atrás dos nossos cicerones sírios. Estaco. Uma melodia paira no ar. Não dá para perceber se a porta está aberta ou se não há porta.

    Vislumbro na penumbra o busto de um velho debruçado sobre algo que parece ser um vestido. É, portanto, costureiro. E, ao lado dele, estão duas moças, agachadas. Tocam instrumentos orientais de cordas. Fico ali um momento a escutar. Elas fitam-me, sorrindo. Teria ali permanecido o resto da noite. Vim para a guerra expiar não sei muito bem o quê e a paz vem à tona logo no primeiro encontro mais do que improvável…

    (Foto: Rui Araújo)

    Meto ao restaurante, que está praticamente cheio. Na nossa mesa, encontro o motorista e os outros: Tiago mais um militar fardado, um responsável local do Crescente Vermelho (a Cruz Vermelha local) e a filha, adolescente. E uma civil cujas funções ignoro. Perguntar é denunciar. Não pergunto…

    Eles falam pouco e em árabe. Opto pela deserção. Fico-me a pensar na razão da minha presença aqui. Embrenho-me nos conflitos por onde já passei (Timor, Zaire, Bósnia, Ruanda, Líbia, etc.).

    Logo a seguir ao genocídio do Ruanda, jurei a pés juntos que era a minha última reportagem de guerra. Promessa vã ou intenção baldada. Desde então, corri outras. Os conflitos são todos iguais. E as vítimas também…

    Depois da refeição, partimos com destino à aldeia de Qarah. Hora e meia de caminho pela estrada de Homs e de Alepo. Passamos por vários check points controlados por militares. No de Qarah, somos travados! Turistas acidentais (ou ocidentais, é a mesma coisa) num lugar ermo (a linha da Frente não está longe!) fora de horas é no mínimo estranho… É.

    Acabamos por pernoitar no hotel de um lugarejo a meia dúzia de quilómetros. Faz frio.

    (Foto: Tiago Ferreira)

    15 de Novembro

    A paisagem é árida. O mosteiro de Santiago, o Mutilado, fica ao fim de um caminho de cabras, à saída de Qarah. Depois do check point e antes dos tanques e da artilharia.

    É aqui que residem um padre, cinco postulantes, dois residentes e oito religiosas, incluindo uma portuguesa.

    Sem material não podemos iniciar a reportagem.

    Tenha paciência… — diz-me John, o seminarista norte-americano.

    Que remédio. O tempo, por estas bandas, tem outra dimensão.

    E o quotidiano desta gente é frugal. A purificação ou a harmonia espiritual, se calhar, passam por isso. Digo eu, que já não acredito em Deus.

    16 de Novembro

    Tiago e eu decidimos oferecer o jantar. Compramos frangos, azeite, batatas, massa, legumes, bebidas. E fruta. À falta de assumir a divindade (como sugerem os Evangelhos!) avoco o estatuto de Chefe. Os meus commis são Tiago e Jean, um jovem frade flamengo. O frango é acompanhado de penne com cebolinho, pimentos e queijo francês (congelado). Fácil. Fácil quando há electricidade ou gás. Coisas que só existem, aqui, com parcimónia…

    (Foto: Tiago Ferreira)

    À hora do jantar, aparece uma freira. É peremptória. É um telefonema urgente da Superior. O material já se encontra em território sírio, mas não podemos gravar imagens. É preciso falar pessoalmente com o responsável da imprensa estrangeira no Ministério da Informação. Regresso ao refeitório. Encontro o tacho vazio. Mistério divino ou santa fominha. Seja como for, é injusto, mas quem é que disse que a vida tem de ser justa? É, portanto, uma noite para esquecer. A primeira de muitas…

    Dou as boas noites ao grupo e ocupo os meus aposentos: um quarto cheio de lixo e de material das obras sem água e sem isolamento. Enfio-me na cama, vestido. Os quatro cobertores são insuficientes.

    Eu cheguei a usar sete… — confidencia-me na manhã seguinte um seminarista.

    Concluo que o frio é um instrumento do diabo. Que mais?

    17 de Novembro

    Às oito, partimos para Damasco. A freira portuguesa despede-se de mim, comovida. Diz-me que espera encontrar-me na eternidade. Assim seja, mas quanto mais tarde melhor… mesmo se a eternidade é longa de mais para o meu gosto.

    Assentamos arraiais no Ministério. Ao cabo de uma espera interminável, o director da Imprensa estrangeira recebe-nos. A hora é dele. É um tipo arrogante. Só estamos autorizados a visitar o mosteiro de Qarah. É escusado eu insistir. O morticínio fica, pois, para os privilegiados, que têm direito a cicerones pagos e a censores…

    (Foto: Rui Araújo)

    Fico transido. Apresento-lhe o pedido da TVI, que ele desconhece. Foi enviado em Outubro. Pede-me para regressar às três da tarde, depois de ele falar com o ministro. É meio-dia e vinte. Horas de tomar o pequeno-almoço e de almoçar. 

    Encontro com uma deputada sunita. É preciso arranjar maneira de poder trabalhar. Legal ou ilegalmente.

    — Alguém foi dizer ao nosso ministro da Informação que o Rui escreveu artigos a criticar a Síria…

    É mentira. Ela liga de novo ao ministro. O Ministério da Informação vai reestudar o caso. Imprimimos os currículos. 

    Escassos minutos depois, informam-nos que, afinal, temos autorização para trabalhar. Partimos. A prioridade é comer algo. O tráfego na capital é caótico. Com o pára-arranca o motor do jipe aquece excessivamente. Depois de uma paragem para encher o radiador, abancamos no restaurante Haretna da Cidade Velha. É a terceira refeição decente em quatro dias atribulados. 

    Regressamos ao parque de estacionamento. Num botequim da rua Bab Tuma, antes da porta de São Tomé, damos com um velhote a torrar café.

    É de que país? — pergunto.

    Brasil. É o melhor. Querem provar?

    (Foto: Rui Araújo)

    Acedemos de bom grado. É óptimo. Depois, passamos diante de um barbeiro. Optamos por arriscar: barba e cabelo. O escanhoador diz que a primeira vez é grátis. Pagamos na mesma.

    São sete da tarde. É perigoso regressarmos a Qarah de noite. Abu, o nosso solícito motorista, propõe ficarmos na casa da sua mãe. Sugiro um hotel para não ficar devedor de ninguém e, sobretudo, para não devassar a intimidade alheia. É sempre um risco. Ele recusa. E eu dou-me por vencido. O apartamento está situado no bairro cristão de Damasco. Entramos. As duas camas do único quarto livre são para a equipa da televisão.

    O nosso anfitrião dormirá no sofá.

    Mal metemos os telemóveis a carregar, Abu pede-nos para o seguirmos. Os familiares, que moram numa casa das redondezas, prepararam uma ceia para nós. Encontramos uma dezena de pessoas sorridentes e uma mesa repleta de manjares locais. Este povo é generoso apesar ou por causa das dificuldades. O salário médio (para quem ainda tem emprego) não ultrapassa os 40 euros…

    Levanto-me e puxo de um cigarro.

    Pode fumar aqui… — diz alguém.

    Prefiro fumar lá fora. Shukran! — respondo.

    (Foto: Rui Araújo)

    O meu árabe resume-se a duas ou três palavras básicas (saudações, agradecimentos, sou jornalista, é maluco!, etc.).

    Saio para o pátio. O dono da casa, um velhote simpático, apanha ar. Ouvem-se disparos esporádicos de armas ligeiras e rebentamentos de morteiros.

    Os terroristas estão a menos de um quilómetro de aqui… 

    Não comento. A fachada apresenta buracos de bala. Guerra é guerra. E as plantas estão a precisar de água. Instantes depois, ouve-se um impacto de um tiro num carro estacionado mesmo diante de nós. Tiago vai para a rua procurar a bala. Em vão.

    18 de Novembro

    Alvorada às seis. Dormimos quatro horas. Às nove, mal chegamos a Qarah, dizem-nos para prepararmos rapidamente o equipamento. Destino: Alepo, depois de uma paragem a meio do caminho, em Homs, outra cidade mártir. 

    Passamos por inúmeros check points. A meio da manhã, “almoçamos” (sic) num tasco à beira da estrada: uma sandes e uma garrafinha de iogurte azedo. É o que há. A clientela é composta essencialmente por militares, que se deslocam para a Frente Norte.

    (Foto: Tiago Ferreira)

    Às 14:37, estacionamos diante do armazém dos cristãos, em Homs. Encontro três camiões com 32 toneladas de alimentos oferecidos pela comunidade internacional. É a nossa coluna, protegida por dois soldados rasos de AK-47 (a arma padrão do Exército sírio) e granadas defensivas (as mais devastadoras) nos bolsos da frente.

    O primeiro é Mansour. Tem 35 anos, seis de guerra e 10 tiros no corpo. Tem a farda rasgada e calça, como tantos outros militares, ténis. Combateu em Damasco, Alepo, Idilib, Tadmor, Ama… Tiago irá no camião vermelho, juntamente com ele e o motorista Ahmad. Eu, sigo no jipe.

    Ao fim da tarde, estacionamos num terreiro isolado de Al-Waha, uma vila da província de Alepo que os rebeldes ocuparam até Novembro de 2013. Um prédio abandonado, que terá sido hotel antes da guerra, é o local onde devemos pernoitar.

    O soldado Assad protege o local. E protege-nos a nós, os únicos clientes. De quem?

    E jantar? — indago.

    Não há. — responde-me com um sorriso bonacheirão.

    — E café?

    — Não há.

    — Mas podem ficar aqui comigo a ver televisão…

    (Foto: Tiago Ferreira)

    Dá o que tem e a mais não é obrigado…

    Amanhã, a partir das 05:30, podemos gravar imagens da feitura das refeições para os deslocados.

    Dormimos 13 longas horas. Dão, pelo menos, para enganar a barriga…

    19 de Novembro

    É sábado. Faz frio. Despertamos cedo para nada. Afinal, só preparam as refeições amanhã. E a vila está fechada para obras. Procuramos um sítio para tomar o pequeno-almoço.

    Descobrimos uma máquina de café num passeio. Oferecem-nos dois cafés. Regressamos, felizes, ao “hotel” ou quartel ou coisa que valha. A felicidade é sempre algo efémero, mas do mal o menos…

    07:04. Alepo Leste está a meia hora. A guerra, aqui, tão perto. E nós a matarmos o tempo com a televisão. Escutamos a cantora libanesa نهاد وديع حداد ou, por outras palavras, Nouhad Wadie’ Haddad, mais conhecida por Feiruz, que complementa a mira de barras de um canal árabe.

    A meio da manhã, conseguimos arranjar transporte para Alepo.

    Passamos pela estrada da morte. Do lado direito do troço, bidons e autocarros amontoados protegem-nos dos atiradores furtivos. Antes de colocarem as protecções, só se circulava, aqui, a mais de 120 à hora…

    (Foto: Tiago Ferreira)

    Nunca ninguém filmou isto. É proibido! — anuncia-me a acompanhante.

    Ao cabo de anos de guerra, Alepo está parcialmente desfigurada. O ruído rouco e ensurdecedor dos bombardeamentos já não interpela ninguém.

    Estacionamos. O motorista oferece-me o masbaha (“rosário”) com 99 contas, tantas quantos os nomes de Alá, que decora o retrovisor. Digo-lhe que não acredito em Deus.

    — É uma recordação. Também transmite energia positiva…

    Estou a precisar. Saímos do carro. Apesar de ser sábado, os comércios estão abertos. Para matar a fome, compramos sete  bananas sul-americanas.

    Temos de esperar pelo transporte. Na impossibilidade de captar imagens, observo a vida que corre. O dono de um estaminé de tabaco arranja-me uma cadeira. Tenho vista para a “fronteira”, que se resume a uma rua desolada, atulhada de escombros. Um pano enorme estendido de parte a parte tapa a vista. É suposto proteger os do lado de cá dos tiros dos snipers.

    É já noite quando regressamos a al-Waha depois de um lauto jantar. A luz espectral das explosões ilumina o horizonte do lado esquerdo da estrada.

    (Foto: Tiago Ferreira)

    20 de Novembro

    Tiago e eu madrugamos com as… cozinheiras e um chefe magrito.

    Sorrio cá para comigo ao pensar numas palavras de Aquilino Ribeiro: “Tinha de trazer o cinto bem atarraxado senão escorregavam-lhe os calçotes pela barriga abaixo”.

    Em seis horas aviam com 12 panelas enormes 25.000 refeições previstas para os deslocados de Alepo dispersos por 16 vilas da região. Indago qual é a ementa: arroz, carne (dizem-me que sim…), e ervilhas. Há ainda salada de tomate com couve.

    A seguir, passamos à distribuição dos caixotes de alimentos numa povoação esburacada. Histórias tristes de gente humilde, que não anda de mal com o mundo e ainda não perdeu a esperança (absurda!) de conhecer dias melhores. Não antevejo desenlace para esta guerra nos próximos tempos…

    A seguir, partimos para al-Nayrab (a Leste de Alepo). É lá que está instalado o hospital de campanha, que recebe os feridos da Frente.

    No espaço de uma hora chegam cinco feridos, incluindo crianças.

    Enquanto Tiago grava imagens, deambulo pelo estabelecimento, falo com os médicos e com o general tunisino Adan, que encontrou abrigo na Síria depois de o regime de Ben Ali implodir. O homem é afável e o seu francês excelente. Diz-me que estão a ganhar a guerra apesar da falência do Ocidente. Refere a solidez dos desígnios do Senhor. Apetece-me complementar: e dos russos, e dos iranianos, e dos…, mas calo-me.

    A conversa no cubículo tosco é interrompida pela entrada de um militar. A escolta fica no corredor.

    O coronel palestiniano do Batalhão Jerusalém. Adnan al Sayed é um homem ainda novo. E jovial. Saímos e retomamos a conversa no passeio. Tiago corre na rua com os putos que regressam da escola. É o momento da despedida.

    Somos amigos! — diz-me o meu coronel de estimação.

    (Foto: Tiago Ferreira)

    Fito-o, os meus olhos pregados nos seus, e respondo-lhe, atrevido:

    — Não somos amigos. Tenho, aliás, pouco amigos. E por si não dava a vida…

    É a resposta que ele não espera.

    Leva os dedos em forma de V aos olhos e seguidamente ao coração. É um gesto tradicional para muitos palestinianos.

    — Não me vou esquecer de ti. Estás aqui! E se queres ir para a guerra, eu levo-te.

    A amizade, por estas bandas, é como o tempo. Tem outra dimensão, mas, mesmo assim, decido arriscar, aceitar a proposta. Pego no caderno e escrevo um termo de responsabilidade. “Ninguém é responsável pela nossa morte em combate…” Peço ao Tiago para preparar o pouco equipamento que temos connosco, mas minutos depois somos informados que sem o famigerado papel do Ministério da Informação, não podemos ir.

    O coronel palestiniano dá-me três beijos na face e um abraço. É inútil perder mais tempo por estas paragens. 

    Chegamos a Homs de noite. Enquanto esperamos por duas shawarmas (sandes locais) e dois refrigerantes, consulto as mensagens na Internet. Tenho duas da TVI: uma da Paula e outra do Sérgio. Dormimos em Qarah. Escuto “Imagine” e “Palabras para Julia” (de José Agustín Goytisolo). Mais momentos melancólicos ou penosos do Parque del Buen Retiro ou do raio que me parta. Continuo a defender que o melhor dos outros perdura (muito mais do que o pior) na nossa memória…

    (Foto: Tiago Ferreira)

    21 de Novembro

    Damasco. Missão (im)possível: arranjar autorização para filmar. O responsável da imprensa estrangeira anuncia-nos que, afinal, podemos gravar imagens na Síria. Myrti Ahmad será o nosso cicerone e o nosso fixer. Fala castelhano. Estudou em Granada. Comunico que queremos ir a Homs, Alepo e al-Nayrab. Queremos ver a guerra. Fica decidido que abalamos daqui a dois dias, na manhã de quarta-feira. O motorista será Bassel, um ex-soldado particularmente divertido.

    Vamos comer: pequeno-almoço, almoço e, já agora, jantar. É de aproveitar a oportunidade. Em oito dias tivemos direito a quatro refeições de garfo e faca…

    A caminho do restaurante recebemos um telefonema. Mudança de planos. A autorização é anulada no espaço de meia hora. Fico perplexo, desespero. Aquela cambada é insuportável, mas de nada valem os meus protestos. A malha da censura é mesmo assim. Temos, portanto, de efectuar novo pedido. É que faremos. É proibido fraquejar. É preciso tentar, lutar (independentemente do resultado!) e, feitas as contas, sou tão persistente quanto eles. Chato, radical, impulsivo, dirão alguns…

    A tarde morre, morosa. Regressamos a Qarah. Rabisco no caderno: “vou (des)consolado e com a sensação do dever (im)cumprido.” Acho que estou a precisar de um electrochoque. Nem mais. Entenda quem puder…

    Recuso a falência da esperança e o imprevisto não me mete medo. Tenho a estrelita de BE. A presença da sua ausência é suficiente para eu continuar a arriscar. O que tinha para perder, já o perdi. Adormeço com um Marlboro turco enfiado nos lábios.

    (Foto: Rui Araújo)

    22 de Novembro

    09:00. Faz frio.

    10:10. Peço a um seminarista flamengo para encomendar sanduíches e bebidas.

    O marceneiro, clarividente, sorri e prega-me um púcaro de chá nas mãos.

    Horas de contar a usura do raio do tempo. Inútil ou nem por isso.

    Desta feita, refugio-me no átrio para conjurar não sei o quê. Opto por sentar-me, de costas para o sol, ao lado da estátua de uma Santa de pedra bruta e acendo um cigarro.

    Penso no meu amigo (jornalista do El Mundo e poeta) Marcos García Rey, que adora Damasco. Eu já imaginava. Em “Haiku-Crónicas de diez ciudades árabes” escreve: “Damasco – Son tres mil años de atalayas que leen versos con laúd”. E refere a capital síria noutro poema: “Amarte es fumar contigo un narguile en Damasco, ciudad milenaria habituada al amor licuado entre cien fuegos”. Eu já imaginava que Marcos adora Damasco, mas nunca ousei perguntar-lhe a razão. Era irrelevante. Eu, por exemplo, prefiro Los Jarales e a Sierra de San Vicente…

    15:00. Tomo um duche. É o segundo em nove dias. Hoje, há água quente (depois de se encherem sete ou oito baldes dos grandes!) no quarto do Tiago. A canalização do meu é um logro: está entupida ou andamos desencontrados.

    17:20. Quatro telefonemas e cinco horas de espera para a comida aparecer. Apetece-me desandar. A penitência não é a minha especialidade…

    18:05. A irmã francesa Claire Marie dá-me conta das novas: a autorização do Ministério deve chegar amanhã.

    Meto-me no quarto.

    Acendo duas velas (o aquecimento possível!). Hoje, tivemos direito a 32 minutos de electricidade. Deram para carregar as baterias. Como uma sande e pevides insossas para matar a fome. Oiço “Pale Blue Eyes”, “I’ll Follow You Into The Dark”, … enquanto escrevo estas linhas com letra titubeante.

    21:49. Eles jantam. Ouvimos quatro detonações. Os tanques e as peças de artilharia, que estão a escassos 300 metros, fazem fogo para a montanha.

    (Foto: Rui Araújo)

    23 de Novembro

    08:00. Acordo a meio de um sonho. O Sérgio eu entrávamos num restaurante. Ríamos. Dantes, despertava com pesadelos por causa do inferno do Ruanda. Com BE deixei subitamente de os ter. O inferno não se conta, vive-se, mas felizmente nada dura para sempre.

    A meio da manhã, encontro no pátio Abu e o filho. Dizem-me que vão a Damasco buscar a autorização para podermos filmar.

    Inch’allah

    Tiago capta mais imagens do mosteiro.

    12:30. Almoço. É o que determina o regulamento. Aqui, há horas para tudo. Ementa: arroz frio desfeito com arroz frio mais do que desfeito e salada (sic) de couve sem azeite e vinagre. Fico-me pelo pão duro que me resta da véspera e por um café morno. Faz frio. Demasiado. Ontem, tapei as gretas da janela por onde penetra um ar gélido com papel higiénico. É insuficiente.

    Da parte da tarde, somos informados que, afinal, podemos ir para a guerra, mas não podemos filmar nada. É ilógico, sendo o jornalismo o nosso ofício. Aqui, a burocracia e a censura são como a morte: presunçosa e sem salvação. Não resisto à tentação de dar um berro. Eu sei que é uma reacção idiota, mas quem não se sente não é filho de boa gente. Marcam-nos uma reunião para as oito da manhã. Dou largas à intuição (que me engana menos do que a Razão): estamos definitivamente tramados!

    (Foto: Tiago Ferreira)

    24 de Novembro

    Desperto com o cheiro nauseabundo no corredor.

    Há um cano entupido. É o do quarto do Tiago, digo meio a rir ao seminarista armado de dois baldes.

    08:00. A reunião prevista não acontece, obviamente.

    É, portanto, mais do que tempo de tomar o pequeno-almoço: um café (o último, já que o frasco de Lisboa está quase vazio!) emborcado lentamente e um cigarro.

    Esta terra cansa-me, mas mesmo assim dou um passeio pelo vasto quintal deserto de gente com oliveiras e cedros. E um poste de alta tensão desfigurado por um morteiro. No meio dos sulcos gelados, recupero uma insólita pedra castanha em forma de coisa alguma. Preciso de cinzeiro…

    10:00. Tomo um chá. É o que há. O nosso “guia” do Ministério deve chegar daqui a duas horas.

    11:45. Nova comunicação de serviço: os nossos vistos estão a caducar. Jornalistas clandestinos num país em guerra… Para quê renovar os vistos se estamos proibidos de exercer a profissão? Esta viagem não é tormentosa. É de loucos! E a culpa é minha, exclusivamente minha.

    Pergunto-me se não seria melhor reconhecer o fracasso. Aqui, aquilo que fazemos é matar o tempo sem remendo. E pouco mais…

    12:00. Peço ao meu amigo marceneiro para ir de motorizada comprar-nos sandes e tabaco mentolado para um amigo.

    12:39. Milagre. Habemus comida.

    17:29. Mais uma jornada a raparmos de frio e não fazermos nada. É noite há coisa de uma hora. E o tipo do Ministério perdeu-se no caminho. A questão não é quando vai chegar. É se vai chegar e eu duvido que apareça…

    (Foto: Tiago Ferreira)

    Medito à falta de outra actividade normal. O jovem seminarista francês Theo anda descalço. O solo gelado e a sujidade não o incomodam. Ou incomodam e fá-lo propositadamente. Não o julgo, mas não entendo tais contrições e auto-flagelamentos.

    20:47. Escrevo estas linhas à luz titubeante das velas. Tremo de frio num quarto silencioso, silêncio excessivamente ruidoso para o meu gosto.

    21:02. Alguém bate à porta com os nós dos dedos. Um seminarista entrega-me um pijama e três camisolas. É da parte da freira portuguesa. Deus lhe pague, mas o meu problema, agora, já nem é o frio. É a fome. As dores de cabeça sucedem-se e custam a passar…

    21:12. Nova informação: estamos proibidos de filmar. E com um bocado de sorte ainda somos expulsos do país…

    Opto, pois, por desafiar o destino (qual destino?). Plano B: amanhã, peço ao coronel de Al Nayrab que mande a escolta buscar-nos. Vamos para a guerra clandestinamente!

    Se o desastre provável se concretizar, enterro a ideia da reportagem, falo com o Tiago e regressamos a Queluz de Baixo. Somos uma equipa. A sua caução é essencial… enquanto os juízos dos outros pouco me importam.

    21:37. Falo por Skype com o meu contacto que se encontra em Nicósia.

    Coluna russa. (Foto: Tiago Ferreira)

    — Ajudei o Gilles Jacquier a ir para Homs e ele morreu. Fui acusada de tudo e mais alguma coisa…

    — Mas…

    — Tive muitos problemas com a família dele e com a televisão. E não quero que, agora, suceda o mesmo consigo…

    O repórter Gilles Jacquier da France 2 morreu com um morteiro no dia 11 de Janeiro de 2012, em Homs. Tinha 43 anos. Foi o primeiro repórter ocidental a morrer na Síria. Acompanhava com mais 11 jornalistas uma coluna do Exército. Ninguém assumiu, curiosamente, a paternidade do ataque. Os militares sírios fugiram. A Presidência da República francesa acusou a Síria de manipulação. O regime de al-Assad procuraria desencorajar os jornalistas estrangeiros de cobrir a guerra e, ao mesmo tempo, diabolizava os rebeldes.

    E? — indago.

    — E só o ajudo se me assinar um papel em que exclui a minha responsabilidade e diz ainda que caso morra em combate a culpa é só sua.

    Escrevo de imediato o termo de responsabilidade solicitado. Programa das festas: partida para o norte amanhã às 09:00. Em Homs, estará alguém à nossa espera para nos levar a Ithriyah, o ponto de encontro com a escolta armada.

    25 de Novembro

    09:00. A partida para a guerra é adiada. O retiro neste mosteiro fora de mão começa a roer-me uma data de coisas, a começar pela paciência. Mas não é possível abolir o presente…

    10.25. A freira francesa quer falar a sós comigo. Propõe-me o compartimento que dá pela designação pomposa de sala de espera. Diz-me à queima-roupa que há vários problemas (in)esperados:

    1- É preciso a autorização do Ministério;

    2- O contacto de Homs não consegue combinar com o coronel o encontro em Ithriyah.

    Temos, portanto, de aguardar. Como é sexta-feira, início do fim-de-semana, recuso fazer prognósticos.

    (Foto: D.R.)

    Estamos isolados do mundo (sem electricidade, telemóvel, Internet, sem aconchego) e a passar frio e fome…

    Majnun! — diz Tiago em tom provocador ao nosso amigo motorista Bassel.

    É loucura. Pois é. Total. O outro ri-se. E eu desato a rir-me, sem hesitar. Nos atoleiros o humor é a única postura a adoptar…

    O que é que estou aqui a fazer? Que justificações posso inventar? Sinto arrepios. As guerras são todas sujas e iguais. E pungentes mesmo para mim, que pensava estar vacinado. Faço um esforço para encontrar respostas autênticas, mas só encontro dúvidas, convincentes. Não sei como narrá-las. Já o fiz uma vez para a revista LUZES. Memórias dolorosas e, por isso mesmo, inolvidáveis. É sempre assim. E regresso ao presente.

    Bassel conduz-nos a Qarah, uma vila “protegida” pelo Hezbollah. Precisamos de ir às compras. As pessoas saúdam-nos na rua com sorrisos francos e abertos. Cumprimentam-nos, sistematicamente.

    Horas de comer. Afinal de contas, acaso feliz, há um tasco aberto. Entramos no restaurante RIM. O senhor Thaaer, dono do estabelecimento, serve-nos um café turco a fumegar. Oferta da casa! Devoramos uns panadinhos de frango com batata frita sem sabor diante do cartaz com a foto de al-Assad. O culto da personalidade invadiu o espaço público sírio: estradas, instituições, estabelecimentos comerciais, carros, fardas de soldados, etc.

    Depois, cumprimos a missão: compramos bananas (estamos os dois cansados da diarreia!), maçãs e bolachas. E Pepsi para matar a sede e o resto. A água do convento não é potável.

    A meio da tarde, voltamos ao nosso retiro de ociosidade. Tenho direito a mais um ponto da situação: estão a tentar obter a extensão dos nossos vistos de turista. A partida para a guerra só ocorrerá na segunda-feira. Proponho maquinalmente uma ida a Maalula, apesar da proibição peremptória do Ministério.

    Os estrangeiros não podem lá ir! — disse-me em Damasco o responsável da imprensa estrangeira.

    É normal não os deixarem lá ir. Há guerra! — confidencia-me uma acompanhante.

    Maalula está indirectamente associada a Portugal. É essa a minha principal motivação para a viagem.

    Não dá! — decide a a minha interlocutora de Qarah.

    Mais dois dias perdidos aqui, esfalfados de nada fazer…

    Tiago dá uma ajuda aos religiosos ou passeia pelo mosteiro. Eu, refugiado na penumbra do quarto, escrevo estas linhas. Tenho três velas acesas. Três! É um luxo.

    Uns tempos depois o meu companheiro aparece.

    Levanta-te, meu! — sugere ou manda.

    (Foto: Tiago Ferreira)

    Ergo-me. Tiago dá-me, então, um valente abraço murmurando: “Somos uma boa equipa!”. Somos, pois. Quem é que disse que autencidade significa sempre infelicidade? Há excepções…

    Proponho ao meu parceiro das desventuras jornalísticas um chá a meias. É o que há. Sem electricidade e sem gás, restam-nos as velas para aquecer a água. Acendemos três, mais outras tantas, e mais duas (que aquilo aquece devagar, devagarinho), que colocamos debaixo da chaleira com a ajuda do seminarista norte-americano David.

    21:30. É a hora do fecho e do silêncio como nas prisões. Aqui, só faltam as grades e os ferrolhos. Escuto as minhas músicas, escrevo e leio. Trouxe três livros: “Passion Arabe” (Gilles Kepel), “Lengua(s) de cobre” (do meu amigo Marcos García Rey) e “A Tentação do Abismo – Sanz Blues” (um policial assaz triste escrito por mim, que pretendo oferecer ao Tiago).

    22:09. Oiço música. Angie.

    You can’t say we never tried.

    Angie, you’re beautiful

    But ain’t it time we say goodbye

    Angie, I still…

    Batem à porta. Desligo o i-Phone. É a freira francesa.

    Afinal, podem ir a Maalula apesar da proibição.

    Quando? — indago.

    Amanhã.

    Porque hoje é Sábado… — respondo.

    — Amanhã é que é Sábado…

    O poeta Vinicius de Moraes não chegou a Qarah. Infelizmente.

    (Foto: Tiago Ferreira)

    26 de Novembro

    10:29.

    — Se há tantas dificuldades é porque a vossa reportagem é importante! — insinua uma religiosa.

    As preces bem-intencionadas de pouco serviram até agora. Deus é misericordioso? É capaz. A culpa é minha. Só minha. Deixei de tentar matar o diabo dentro de mim. Não é possível. O grande Aquilino Ribeiro, que viveu mais ou menos a mesma experiência que eu, só conseguiu fazê-lo porque o seu romance (“El Hombre que Mató al Diablo”, Madrid, 1924) tinha de ter um fim…

    Estou a precisar de mais um chá. Na cozinha gelada o candidato a padre Charles corta batatas.

    Se pudesse, voltava hoje para a Nigéria — lança-me, em inglês.

    Sorrio penosamente. Entendo-o melhor do que ninguém. África é outro mundo (maravilhoso) e faz mais calor…

    És bom homem! — acrescenta.

    — Às vezes. Sou bom homem às vezes. É a minha sina…

    Levo a caneca de chá morno para o quarto. Oiço “Catch in the dark” (Passenger). E, sem querer, ponho-me maquinalmente a sonhar com Trujillo. Podia ser com Paris ou Palma, mas não. É com Trujillo. No dia 25 de Abril, instalo-me no quarto 110 do Hotel Victoria. É uma maneira de matar saudades dos fantasmas (que estão necessariamente vivos porquanto eu ainda não estou louco) e de lavrar no bloco mais sonhos ou pesadelos insensatos. Escrever é (re)viver outra vez, para mal dos meus pecados…

    12:00. É a hora programada para a ida a Maalula apesar de os estrangeiros estarem proibidos de lá entrar.

    Maalula é uma das comunidades cristãs mais antigas do mundo.

    Os poucos cristãos que ousaram lá permanecer são cada vez menos: umas 900 almas, bem contadas. Tempos houve em que eram duas mil, três mil. Ou mais. Essencialmente católicos e ortodoxos. Falam aramaico, a língua de Cristo.

    Agora, restam, sobretudo, muçulmanos naquela terra que já foi de tolerância.

    (Foto: Tiago Ferreira)

    No dia 4 de Setembro de 2013, os rebeldes moderados e os do grupo Jabhat al-Nusra (associado à Al Qaeda) ocuparam a vila. Mataram 30 habitantes.

    14:00. Daqui a duas horas deixa de haver luz para podermos gravar imagens. E nós, aqui, parados. É um desconsolo.

    O nosso jipe acaba por aparecer tarde e a más horas. Arrancamos. A câmara vai escondida no assento entre Tiago e eu.

    No check point à entrada da vila um soldado, cordial mas pragmático, apreende os nossos passaportes com vistos de turista a caducar.

    — Têm de ir falar com o responsável da Segurança!

    Apetece-me dizer “obrigado”, mas não digo. A máscara da perfídia e o silêncio são, aqui, a melhor opção. E um soldado armado tem sem sempre razão!

    Tiago filma às escondidas enquanto subimos a ladeira.

    Desolação: conventos esventrados e saqueados, hotéis em ruínas.

    Apresentamo-nos ao “responsável da Segurança”.

    O homem é proprietário de um motociclo de 125 cm3 sem marca. Falamos de duas rodas e de preços, apesar de eu detestar cifras. Mostro-lhe uma foto da minha Honda. Simpatizamos ou ele simpatiza comigo. E acaba por acompanhar-nos a casa dos “mártires da fé”.

    Numa casa humilde, a meio de uma ruela sem nome, primeiro testemunho. Primeiro retrato do drama sírio…

    Antoinette Saalab, 50 anos. Mataram-lhe o irmão, um primo e um sobrinho na manhã de 7 de Setembro.

    — Despertámos às 6 e meia da manhã com os rebentamentos e os gritos Takbir e Allahu Akbar. Desataram aos tiros aqui dentro. Fui para ali. Uma bala bateu na parede, bateu-me na cruz e entrou aqui. Pressionei o peito com a mão e meti-me debaixo deste armário. Pedi à Virgem para não me abandonar…

    (Foto: Tiago Ferreira)

    Tiago grava o relato com uma mão, na outra segura uma lanterna. Sem corrente eléctrica é a iluminação possível…

    — Sarkis, que estava no interior, ouviu-os dizer: Escolham a religião muçulmana! Antun respondeu-lhes: Eu nasci cristão e cristão hei-de morrer! Micael disse a mesma coisa: Não odeio nenhuma religião, mas sou cristão. Sarkis repetiu aquelas palavras.

    Foram assassinados à queima-roupa à porta de casa. As cápsulas das balas encontram-se, agora, no Santuário de Fátima.

    É noite fechada quando abalamos. Na praça de Maalula, as fotografias dos  três “mártires da fé” revelam, no fim de contas, o drama de todo um país condenado a sobreviver com a peste ou a cólera…

    Chegamos a Qarah às 18:00. Somos convidados para jantar por um sírio influente. Acedemos. A única coisa que temos no bucho é um chá insípido.

    Posteriormente, passamos por casa de Bassel para tomar café.

    No meu quarto tenho direito a nove minutos de electricidade, ou seja: de aquecimento. Com a negrura, acendo sete velas de uma assentada. E Ligo o i-Phone. Escuto “Pale Blue Eyes” (Lou Reed) e “Concerto de Colónia” (Keith Jarrett).

    Tiago arquiva as imagens do dia nos seus aposentos.

    (Foto: D.R.)

    27 de Novembro

    Mais um dia de espera em perspectiva!

    Seria óptimo podermos ir para norte amanhã de manhã (Homs, Alepo, al-Nayrab), mas será preciso um milagre. E eu já deixei de acreditar em milagres há uma eternidade…

    15:00. Ataco a tradução da entrevista da senhora de Maalula. É um testemunho comovedor. Falamos do indulto.

    — Perdoa-lhes?

    Queda-se muda.

    — O que mudou na sua vida depois do drama?

    Não responde.

    — Sabe onde estão as cápsulas das balas que mataram os seus três familiares?

    Ignora (sic).

    — Estão no Santuário de Fátima, em Portugal, juntamente com as do Papa João Paulo II…

    — E agora?

    — Agora, rezo pela paz.

    Faz bem.

    Maalula e Saidnaya são as únicas povoações cristãs nas montanhas de Qalamun.

    Tiago coloca fita adesiva na janela do meu quarto e tapa um buraco na parede. O papel higiénico na fresta não impedia o frio de entrar.

    Ao fim da tarde sou confrontado com a pior notícia: o contacto de Homs tem medo de participar numa operação ilegal. É uma explicação. Não há, por isso, transporte até ao ponto de encontro com a escolta.

    É o desaire que compromete definitivamente a reportagem sonhada. Continuo a pensar que é aborrecido, mas não é grave. A maior vitória é sempre sobre nós próprios. E nós tentámos, porra!

    A solução mais sensata é regressarmos a Beirute ainda hoje ou o mais tardar amanhã de manhã. O problema é o equipamento, que entrou clandestinamente na Síria e tem de sair pela mesma via.

    O flamengo doido bate à porta. Precisa de tabaco.

    E eu gostava de tomar um chá, mas não há água.

    (Foto: Rui Araújo)

    19:30. Bassel e um primo, soldado, aparecem. Temos de entregar-lhe os passaportes. É urgente tratar da renovação dos vistos. Caso contrário, a partir de amanhã somos considerados ilegais.

    — Querem ir a minha casa tomar um café?

    — E fumar shisha… — diz alguém.

    Há quem diga que o narguilé (cachimbo de água) é pior do que o tabaco. É possível…

    A caminho da casa paramos numa mercearia para comprar água, bolos, etc.

    Ficamos na sala de estar do apartamento, que está situado no segundo piso de um edifício em bom estado. Constato que há plantas na escada. Num país árido, é coisa que se note…

    Bassel, hospitaleiro, serve-nos milho, bolachas e café.

    O cunhado aparece logo a seguir. É um homem novo. Era engenheiro civil. Era. Agora, cuida da farmácia local para sobreviver com a mulher e os dois filhos. Conta-nos que antes da guerra recebia 600 dólares. Hoje, aufere 60. É insuficiente.

    O tempo corre. À meia-noite regressamos ao mosteiro. Boa noite.

    (Foto: Tiago Ferreira)

    28 de Novembro

    Segunda-feira. Os vistos de turista caducam hoje.

    09:18. Acordo com a freira portuguesa, salvo seja. Tem uma mensagem importante. Sorri-me. Afinal, podemos regressar a Alepo. Estão a tratar da nossa ida. Tudo isto seria divertido se não estivesse em causa a reportagem. É desgastante!

    10.34. Alguém bate à porta do meu quarto. Há novidades. Mais?

    — As tropas sírias destruíram dois postos inimigos em Alepo. No ataque faleceu um coronel do Exército. Foram apresentadas as condolências. Ficaram sensibilizados com o gesto. O Comando aceita levá-los para a Frente. A condição é a TVI dar uma prenda aos militares…

    Desconfio da excelência das prendas ou pagamentos encapotados.

    Única conclusão possível: a procissão ainda vai no adro.

    (Foto: Tiago Ferreira)

    10:59. Tradução de outra entrevista.

    12:30. Toca o sino. Hora do almoço. O meu é uma caneca de massa chinesa.

    15:10. David, seminarista do Colorado, anuncia-me que amanhã às 16:00 podemos começar a filmar a guerra. Blaise Pascal dizia que duvidar é crer. Eu não duvido. Não acredito, mas aproveito o pretexto para celebrar. Pedimos ao motorista para nos levar ao restaurante dos panadinhos de frango, em Qarah.

    22:00. Confirmo a exactidão da tradução da manhã com o seminarista Ibrahim, outro mensageiro de Deus.

    29 de Novembro

    09:00. Pequeno-almoço: chá e cigarro.

    13:30. Entrevista do deslocado que vive nas traseiras.

    16:00. Ida a Deir Atiyah (estrada de Homs). O coro juvenil de uma igreja ortodoxa é uma tristeza. Desfiguram a música. Terei de recorrer a música gravada.

    Jantamos pizza com os padres e o motorista.

    20:20. Mosteiro. Partida para Alepo amanhã (08:00). Há horas cruciais que nunca chegam…

    22:15. Ida adiada sem razão, sem apelo nem agravo. É vilania. Preciso de um lenitivo para aliviar a indignação. Dou com o Tiago a falar com a família. Eu não ligo nunca. É escusado. Assim, não há engulhos. Ninguém fica à espera de contactos que, por vezes, são impossíveis. No news, good news!

    (Foto: Rui Araújo)

    30 de Novembro

    09:38. A freira francesa Claire Marie vem falar comigo.

    — Ontem, esqueci-me de lhe dizer que a prenda para poderem filmar a guerra são 3.000 euros.

    — É pena não me ter dito isso ontem. É que eu não alinho em esquemas desses. Nunca paguei e não é agora que vou começar a pagar entrevistas ou filmagens por mais providenciais que elas sejam — respondo.

    Assentamos que acabou. Pretendo regressar a Beirute o mais rapidamente possível.

    10:06. Sou convocado para mais uma conversa com a Superior. Podemos abalar meia hora depois.

    17:30. Cinco horas depois continuamos à espera do transporte.

    Rui, temos de fazer contas antes de se ir embora… —anuncia-me a religiosa.

    Apresenta-me uma factura manuscrita com o carimbo do mosteiro: 4.000 e tal euros. Dou um salto. Feitas as contas, só de transportes são 3.000. Cada quilómetro é cobrado três euros.

    (Foto: Tiago Ferreira)

    —Parece-me excessivo! A Síria é um país pobre com combustível barato…

    Ela escuta-me, profundamente incomodada. O cristianismo, pelos vistos, continua a não dar paz a algumas consciências mais sinceras…

    — Eu não decido. Tenho de falar com a Madre…

    Fale.

    Deambulo pelo mosteiro a sonhar com os missionários combonianos que são o oposto desta gente. Passados uns minutos, a freira diz-me que só tenho a pagar 1.000 e poucos. Poupámos 3.000, o valor exacto da “prenda” pelas filmagens de guerra. É, obviamente, uma coincidência…

    14:19. Abandonamos Qarah. Serão necessários cinco veículos e sete longas horas para conseguirmos chegar a Beirute com o equipamento.

    EPÍLOGO

    A minha cabeça pesa, agora, chumbo quando a poiso no teclado, deslavado pelas histórias dolorosas dos outros e a minha consciência atordoada pela impotência.

    A Síria é uma tragédia inquietante e deveras absurda. Mais uma. E o sofrimento daquele povo admirável não pode ser reduzido a palavras.

    (Foto: Tiago Ferreira)

    Esperar é preciso. E a última cartada pertencerá aos sírios anónimos e corajosos que ainda sonham com outro destino a cumprir contra tudo e contra todos. E por detrás de cada resistência tem de estar algo… Inch’allah… Oxalá…

    Não contem comigo para ir a mais guerras.

    Reportagem originalmente emitida na TVI, em Janeiro de 2017, e publicada na Revista Luzes, em Junho de 2017, e na Revista FronteraD, em Agosto de 2018.


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