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  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    7 – Sobre a incivilidade dos motoristas brasilienses

    Mal deixei o estacionamento do jornal, passei pelo quadrado e cinzento prédio do Tribunal de Justiça. Imaginei que, àquela hora, os corredores deviam estar cheios de advogados, juízes, promotores, prisioneiros, acusados, acusadores, réus e depoentes – a escorregadia e bolorenta fauna que vive desse obscuro negócio chamado justiça.

    Certa vez, um gatuno me deu uma esclarecedora definição:

    – As justiças são duas. Tem a de primeira classe, que protege os que têm dinheiro; e a de segunda, que ferra os pés-rapados.

    – Você esqueceu a justiça de Deus – ponderei.

    – Essa não funciona mesmo – respondeu ele. – Você já leu o livro de Jó?

    Convém adiantar que o meu interlocutor era um larápio de setenta anos, que entrevistei para uma reportagem nostálgica sobre o tempo em que havia certa dignidade no crime, enfim, quando bandido era bandido e polícia era polícia.

    Numa cela superlotada de uma delegacia no Guará, depois de me relatar como se iniciara, ainda menino, a bater carteiras nos bondes do Rio de Janeiro, ele lamentou:

    – Agora a coisa tá ruça! Já não existe mais ladrão. Só tem assassino. Todo assalto é arrematado à bala. Se o assaltado tem grana, leva um tiro na boca pra não falar depois de morto. Se não tem, leva dois pra ficar esperto.

    Olhando para o Tribunal de Justiça, visualizei mentalmente milhares de processos amarelando em salas mal arejadas: milhões de páginas de péssima literatura servindo de alimento às traças.

    A Justiça é mesmo uma grande e custosa brincadeira. Como se sabe, no final das contas, só uns poucos processos são julgados. E nesses casos julgados, raros são os condenados. E dos condenados, são raríssimos os enjaulados. Todos pobres.

    Dizem que no Brasil, de cada cem criminosos conhecidos, só vinte são denunciados e apenas um vai para o xadrez. E um cínico acrescentaria que esse único encarcerado é, em geral, inocente.

    Não, eu não acredito nesses papos. Isso é coisa de comunista. Eu amo meu país assim do jeito que ele é. Tem um pouquinho de privilégio para os ricos? Tem. Mas, no fundo, no fundo mesmo, esta é uma nação verdadeiramente democrática. Sou um idealista ideológico. Ou um ideólogo idealista. E dos esperançosos.

    Eram duas e meia quando, a meditar sobre essas elevadas questões, entrei dirigindo a quarenta quilômetros por hora no Eixo Monumental. Os motoristas que vinham atrás, indignados, cravavam o dedo na buzina. Mas eu, nem bola. Seguia no meu ritmo, impassível. Não podia correr porque meus pneus estavam totalmente carecas e eu precisaria de, no mínimo, uns duzentos metros para frear no asfalto molhado.

    Logo que conseguiam sair da minha cola, esses motoristas incivilizados me ultrapassavam então, em alta velocidade, buzinavam, gesticulavam obscenidades, cuspiam palavrões. Conhecedor das linguagens labial e braçal, entendi que mandavam recados desaforados à dona Mimosa, gentil senhora que me trouxe a este mundo cão. Mamãe, que é de família alemã, nasceu em Não-Me-Toque. É não-me-toquense da gema.

    Minha pobre genitora, indiferente aos desaforos, àquela hora devia estar curtindo a sesta na nossa cidadezinha perdida no Pampa, a dois mil e quinhentos quilômetros dali.

    Passei de novo pela Estação Rodoviária, mas não olhei para a plataforma. Tive medo de dar de cara com um novo engavetamento e mais presuntos. Para os padrões do jornalismo policial, sou um profissional delicado: não aguento mais do que uma tragédia por dia.

    Mais adiante, surgiram os prédios dos ministérios, alinhados como gigantescas caixas de fósforo. Verdes. Dentro deles, milhares de sujeitos – bocejando – lutavam bravamente contra a sonolência pós-prandial.

    É dura a vida dos funcionários. Não é moleza ter que redigir, carimbar, protocolar e catalogar milhares de documentos. Ainda mais quando sua única finalidade é o arquivamento. Ou a lixeira, anos depois.

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    8 – Teoria sobre o desgaste das palavras

    Contornei o edifício da Câmara dos Deputados. Pelas janelas envidraçadas, vi vários sujeitos dormindo pacificamente por trás de suas mesas. No espelho de água, na frente do prédio, deslizavam cisnes. Sete. Consideravelmente robustos. A salivar, pensei, um só deles me resolveria o problema de falta de víveres até o dia do pagamento.

    Na frente do Palácio do Planalto, virei à direita. Um soldado de guarda, arma na mão esquerda, tentava com o indicador direito capturar qualquer coisa perdida no interior de uma narina. Botava muito empenho naquilo. Parecia ser um jovem muito decidido.

    Um rapaz que limpa a fossa nasal com tanta determinação – conclui – é capaz de dar sua vida pela pátria. Sem vacilar.

    A chuva diminuía. Um cheiro bom de terra molhada invadia o carro. Tomado de forte excitação telúrica, botei a cabeça para fora e berrei:

    – Primeiro Congresso Internacional dos Escritores de Histórias Policiais? Doidices do Medalhão!

    Mas e se fosse verdade?

    Respirei fundo. Algum preparo eu tinha. No ginásio, mergulhei de cabeça nos romances policiais norte-americanos e europeus. Li tudo que pude.

    Neste ponto, devo reconhecer que nunca li nada de filosofia. Meu pai me disse certa vez:

    – Livro de filosofia? Pra quê? Se um sujeito é suficientemente esperto pra descobrir um bom modo de viver por que vai falar dele aos outros? Guarda pra si o segredo desvendado. Só os escroques dão receitas, todas fajutas.

    Cheguei, enfim, ao Imperial Hotel da República.

    Terminada a chuva, o solzão brilhava lá em cima. A paisagem resplandecia, luminosa. Estacionei o “Revolução de Maio” à sombra do arvoredo e desembarquei. Gostosamente, enchi os pulmões com o ar úmido porque, dali a minutos, o ar estaria seco novamente. Atravessei o pátio em direção ao saguão penumbroso.

    Enterrados no aconchego de amplos sofás de couro, jiboiavam uns dez sujeitos engravatados. Estavam na pose típica de quem comeu com dinheiro do governo: pança estofada, olhos sonolentos e beiços caídos.

    Encarei um por um. Nenhum tinha jeito de escritor. No máximo, seriam rabiscadores de petições. Nenhum trazia nos olhos aquela chama de loucura que – achava eu – caracteriza os grandes romancistas do crime.

    De gravador a tiracolo, já ligado, dirigi-me à portaria. Por trás do balcão, havia um sujeito pálido como defunto e de traços absolutamente impessoais, como todos os que atendem em hotéis do mundo inteiro. Recebeu-me com a mais gelada das cortesias:

    – Pois não?

    Seus olhinhos espertos deslizaram pela minha calça jeans, passearam pela minha camiseta de discutível limpeza, subiram para os meus cabelos desgrenhados e se fixaram, por fim, na minha barbicha rala.

    – Gostou do tipo que eu faço, rebelde sem causa? – perguntei.

    – O doutor deseja o quê? – retrucou, impávido, o cadavérico.

    – Falar com o gerente desta espelunca.

    – O senhor Batota não se encontra no momento. O doutor poderia me adiantar o assunto que deseja tratar com ele?

    – Não! Se te adianto o assunto, acabo gastando os vocábulos.

    – Interessante essa sua tese sobre o desgaste das palavras – debochou, impassível, o branquelo.

    – Não tente plagiar! Já a registrei em cartório. Mas onde anda o nosso lusitano? Estará a vestir as peúgas? Ou estará a embarcar em um comboio?

    – Por acaso, não – disse o porteiro. – Ele já está chegando aqui.

    Mal ele pronunciou a palavra aqui, senti que uma senhora mão gorda e forte circulou meu frágil pulso direito. Uma força hercúlea comandava aquela manápula, áspera como lixa, dotada de dedos curtos e grossos, como se recortados de um cabo de vassoura.

    Lamentei ter um punho tão delicado. Se tentasse me livrar do aperto, poderia quebrá-lo. Lembrei que o pai vivia insistindo para eu praticar esportes a fim de fortalecer os punhos, mas eu, preguiçoso, sempre me esquivava:

    – E onanismo, pai? Não é esporte?

    Contornei o edifício da Câmara dos Deputados. Pelas janelas envidraçadas, vi vários sujeitos dormindo pacificamente por trás de suas mesas. No espelho de água, na frente do prédio, deslizavam cisnes. Sete. Consideravelmente robustos. A salivar, pensei, um só deles me resolveria o problema de falta de víveres até o dia do pagamento.

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    9 – A paixão do narrador pelos diálogos tenso

    Naquele baita canivete estava a confirmação da demência que eu vislumbrara, logo na primeira mirada, nos olhos de Manoel Joaquim Batota. Das paixões humanas, citadas há pouco, a mais pronunciada neste cidadão lusitano era a loucura.

    Com o enorme canivete apontado para o meu pescoço – que, como todo humano pescoço, não tem osso -, ele continuou:

    – Que te parece preferível, pancrácio, o impacto seco de uma bala nos duros ossos do teu crânio ou o suave deslizar de uma lâmina afiada na tua rubra e cálida garganta?

    A extensa frase era mesmo assustadora, mas, convenhamos, o estilo poético não era dos piores. Como sou especializado em manusear pensamentos tolos em horas impróprias, pensei o seguinte: com um fraseado tão elegante, este portuga, se quisesse, entrava na hora para a Academia Brasileira de Letras. Pensei e disse:

    – Se o senhor Batota pleiteasse uma cadeira na ABL, talvez ficasse com a 23, que foi de Machado de Assis, com a benção de Quincas Borba.

    – Cala-te energúmeno! Como podes brincar com coisas sérias? Não sabes tu que a cadeira 23 pertence ao grande Jorge Amado, autor da maior novela humorística brasileira, que é A morte e a morte de Quincas Berro D`Água?

    Não respondi porque o gigantesco canivete seguia a perigosos cinco centímetros da minha carótida, presumo que para me desaconselhar o emprego de chufas, motejos, pilhérias, chistes e assemelhados.

    Com gestos ainda mais demorados, mas sempre sem tirar os olhos de mim, o português virou-se ligeiramente de lado e, com a mão esquerda, abriu uma gaveta. Dela retirou um revólver. Na verdade, um mísero calibre 22. Talvez aquela arma não fosse capaz de acabar com a minha raça, mas certamente me causaria algum dano.

    – Escolhe, cão dos infernos! – berrou ele. – Bala ou faca?

    Finalmente, compreendi a pergunta dele em toda a sua plenitude: altura, largura e profundidade. Aparentemente, ele não estava brincando. Queria mesmo saber se eu preferia morrer degolado ou fuzilado. Não era um dilema filosófico que me atraísse muito. Prefiro sempre discutir questões de menor transcendência. Como, por exemplo: por que o condicionador acaba sempre antes do xampu?

    Naquele momento, pela primeira vez na vida, achei que realmente corria o risco de ser mandado para o beleléu.

    Aí, me perguntei: que vim eu, descendente da brava estirpe dos centauros dos pampas, fazer nesta terra de árvores enfezadas e retorcidas? Vim para morrer nas mãos de um doido, de um lusitano lunático, de um lusitanático? Se vim para isso, por que gastei tanto com a passagem de avião? Por que não peguei um ônibus?

    É assim mesmo. Quando se defronta com a morte, a gente faz um monte de perguntas. Por que não passei uma cantada na minha prima, aquela gostosa? Por que não fui morar em Florianópolis, que é a cidade preferida dos maconheiros gaúchos? Lá, pelo menos, tem praia.

    Suspirei fundo.

    Com um insano sorriso pendurado nos lábios, Manoel Joaquim Batota aguardava minha resposta. Faca ou bala? Nas provas da faculdade, eu não gostava de questões desse tipo. Preferia as de múltipla escolha, com possibilidade de três opções.

    Pigarreei para ver se tirava da garganta o medo pegajoso que tomara conta dela ou de mim:

    – Se pudesse escolher um tipo de morte, eu optaria pelo atropelamento, seu Manoel. Gostaria de ser esmigalhado por um caminhão carregado com pedras. Seria uma morte indolor.

    – Indolor e sem graça, estúpido! Não passas de um simplório. Não te seduz o crime intrincado, ardiloso e requintado? O crime que faz jus às nossas origens latinas? A casca de banana na sala da velha perneta. O etanol na botija do cachaceiro. O cidadão claustrofóbico preso no elevador de um prédio comercial durante o fim de semana. O excesso de medicação dado pelo enfermeiro negligente. A sabotagem nos travões do carro.

    Entusiasmado como político diante de câmera de televisão, o luso não parava:

    – Pensa nos homicídios que nem chegam à polícia e nem aparecem nos jornais. Todo dia, no mundo todo, milhares de crimes perfeitos são praticados por pessoas comuns. Na verdade, não há nada mais excitante do que cometer um crime e nada se pagar depois…

    – Aqui no Brasil não é bem assim – contestei. – Os ricos, é certo, sempre livram o pescoço. Só a chinelada vai em cana.

    – Não se trata de dinheiro, lorpa! – atalhou-me. – Estou a falar-te de inteligência assassina. Conheço mulheres simples, lavadeiras ou faxineiras, que moem vidro para colocar no feijão-com-arroz dos maridos infiéis. Outras ateiam fogo aos barracos onde eles cozinham as bebedeiras. Tivemos uma camareira aqui no hotel que matou o marido com veneno de rato na farofa. Como ela moía muito o feijão, o desgraçado nem percebeu… Por acaso, já notaste que no Brasil o número de viúvas é mais expressivo entre as mulheres mais pobres?

    – Não! – respondi, verdadeiramente surpreso.

    – Pensa um pouco, palerma, naqueles crimes maravilhosos relatados pelos engenhosos escritores de livros policiais. Os assassinatos em série. O crime do quarto trancado à chave. O morto assassino. As crianças diabólicas. Os objetos com vida própria, que se movem.

    – O senhor tem razão – disse eu, já francamente bajulador. – Realmente, a morte pode ser uma coisa de extremo bom gosto e sofisticação.

    – Então, como podes tu, meu grande bobo, preferir a sensaboria de um camião carregado de pedras?

    – Por causa da minha origem, doutor Batota. Nós, gaúchos, amamos a simplicidade até mesmo na hora da morte. Uma facada no bucho, um tiro na testa, uma paulada no cocuruto, uma capação sem anestesia. E pronto.

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    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    4 – O valor jornalístico de uma cabeça humana numa carrocinha de pipoca

    Um loiro aproximou-se de mim. Não era muito alto, mas era mais largo que porta de igreja. Um armário, em português de discoteca.

    – Tu és gaúcho, tchê? – perguntou-me.

    – Como descobriste? Pelas impressões digitais?

    – Pelo sotaque – respondeu, sério. – Eu vinha no ônibus de Taguatinga. Queres o meu depoimento?

    Abri o caderninho e ordenei:

    – Desembucha!

    – Bah, o motorista tava num porronaço que dava gosto. Dirigia se cagando de rir. Gargalhou de Taguatinga até aqui. Ria que se mijava. Não adiantava nem apertar a campainha que ele não parava. Não recolheu nem velha em cadeira de rodas. Se veio direto, desembestado. Mas era um vivente bom de braço! Não fez nenhuma barbeiragem até o momento de meter o pé no freio. Aí, falhou. Então, se estrepemos todos. Blam!

    Anotei tudo, ipsis literis. Gaúchos são bons contadores de histórias. Em geral excessivamente enfáticos, porém bastante sintéticos.

    Bati no ombro do alemão e agradeci:

    – Obrigado, patrício!

    O depoimento daquele colono, vertido em língua de gente, brilharia na edição do dia seguinte do Correio de Brasília, onde eu exercia meu ofício.

    Guardei o caderninho no bolso e fiquei observando o trabalho do fotógrafo do jornal. O galalau de dois metros de altura babava de felicidade ao fotografar o cenário da tragédia. Exultava, o insano. Acho que um jornalista precisa ser comedido, ter noção de limite. Uma alegria discreta era mais do que suficiente naquele caso.

    Por fim, ele veio até onde eu me encontrava:

    – A primeira página tá garantida, mano. Isso aqui parece balcão de padaria: tá cheio de presunto.

    – Avisa no jornal que vou até o Hospital de Base – eu disse a ele. – Vou apanhar a relação dos mortos.

    Ele me puxou pelo braço:

    – Mano, você viu aquela cabeça que saltou pra dentro da carrocinha de pipoca? Fotografei. Será que vão ter coragem de publicar na capa?

    Não respondi porque estava sem revólver. A minha vontade era escrever um ponto final na testa dele. Ponto de chumbo. O cara, além de fotógrafo, era paulista. Vê se pode, meu!

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    5 – Um homem sensível diante de uma chuva injusta

    Pouco antes das duas da tarde, entreguei ao editor-chefe a reportagem sobre o acidente. O meu texto não é lá um primor, reconheço, mas possuo a mais valorizada qualidade de um jornalista: escrevo depressa. Nunca entro em conflito com o Governo. Nem com o patrão. Assim, fico certo de que não vou para a cadeia e nem perco o salário. Escrevo como falo e falo como camelô. Uns dizem que eu falo mais que o homem da cobra. Minha avó portuguesa dizia que eu vendia banha de cobra, o que dá no mesmo. Minha garganta é azeitada, meus dedos também. Convenço e por isso venço a credulidade dos leitores.

    Antes de ler o texto, como eu tinha previsto, o indivíduo me deu uns coices:

    – A sua mãe morreu, gaúcho?

    – Que eu saiba, ainda não, chefe.

    – Então, por que você faltou à reunião de pauta?

    – Por causa do morticínio na rodoviária. Considerei que ele, além de garantir a manchete de amanhã, justificaria a minha ausência.

    – Reunião de pauta, gaúcho, é coisa sagrada. Eu sei que nela nunca se decide nada de importante. Sei também que tudo o que planejamos de manhã acaba sendo alterado ao fim do dia porque a realidade nunca corresponde ao que nós, jornalistas, esperamos dela. Mas, mesmo assim, não se pode faltar impunemente a uma reunião. Vou ler com cuidado o que você escreveu. Duvido que essa reportagem me impeça de puni-lo severamente.

    Aristides Medalha, meu chefe, é mais conhecido como Medalhão. Características físicas notáveis garantiram-lhe o apelido: ele é realmente grande, pesa mais de cento e dez quilos, e tem a caraça totalmente rubra, devido a um passado e um presente de entupimentos alcoólicos.

    O pobre homem é casado com uma mulher desgraçadamente feia. O nariz dela, imenso, é o centro de tudo. Dele partem feixes de rugas que correm em todas as direções. E reúnem-se, depois, creio eu, num ponto qualquer lá atrás, na nuca, da referida senhora. Não, a definição não ficou boa. Digamos que tudo o que havia de carne no rosto dela foi, certo dia, sugado, aspirado, chupado, puxado e repuxado. Depois, numa borracharia, injetaram-lhe um jato de ar na caveira. E tornaram a esvaziá-la.

    Isso não é tudo o que de mal sucedeu ao Medalhão: tem cinco filhas, muito parecidas com a mãe.

    O Medalhão poderia ser católico, espírita ou budista, mas ele nunca foi apreciador de religiões tradicionais. Integra assim os quadros do Evangelho Milagroso dos Dias que Antecedem o Apocalipse, seita fundada no Piauí, por um antigo sargento da Polícia Militar de Pernambuco, partejado em Afogados da Ingazeira.

    Enquanto Medalhão lia minha reportagem, fui à lanchonete do jornal, onde, só mediante muita insistência chorosa, consegui descolar um pastel fiado – que empurrei goela abaixo com o auxílio de um copo de água da bica. Tristonho, meditabundo, eu mastigava com os olhos pousados no gramado verdejante. Lamentei não ser herbívoro naquele momento.

    De repente, me senti intimamente tocado pela chuva que caía no pátio. Sou meio poeta, um cara sensível. Comoveu-me aquele aguaceiro generoso que lavava, graciosamente, a numerosa frota de carros do jornal. Não! A natureza não é justa, socialmente falando. Aquela chuvarada, por exemplo. Para ser justa, ela deveria cair sobre apenas um carro de cada proprietário. Lavaria o “Revolução de Maio” e também um carro do patrão. A frota toda, não!

    Voltei à redação, onde meu exercício filosófico-político foi cortado pela voz de taquara rachada do Medalhão:

    – Considerando que é da sua lavra, até que essa reportagem está razoável, gaúcho. Estaria melhor se você não tivesse escrito perigosamente com zê.

    Esse é o tipo de piada que ele prefere. Sem graça. Na verdade, de início, eu havia escrito perigosamente com z, mas tinha corrigido a tempo.

    Resolvi levar na brincadeira:

    – Considerando o que me pagam aqui, pode-se até dizer que a reportagem está excelente. Salário não é uma palavra que descreva adequadamente a merreca que recebo em paga pelo meu suor.

    – Pare com o cinismo! – gritou Medalhão, que adora fazer shows no meio da redação. – Não ganho o suficiente pra aturar piadinhas de sulistas analfabetos!

    Imediatamente depois, com ar cúmplice e em voz baixa, me disse:

    – Esqueça essa materinha vagabunda porque tenho um trabalho fantástico pra você! É uma reportagem que vai lhe garantir um lugar destacado na História do jornalismo de Brasília.

    Senti que ia embarcar em uma fria. Toda vez que Medalhão vem com esse papo de reportagens sensacionais, fantásticas, eu danço. Uma vez ele me obrigou a redigir a notícia da morte de um cara que partiu engasgado com um gomo de bergamota, aquela frutinha que tem uma porção de outros nomes: tangerina, mexerica, mimosa e, no país do bacalhau, clementina.

    – Está bem, chefe, aceito a tal reportagem – aquiesci. – Mas só amanhã. Preciso passar o resto do dia vomitando por causa do que vi na rodoviária.

    – Nada disso! Jornalistas são como almas penadas: nunca descansam. Você vai partir em cinco minutos, assim que eu lhe passar informações sobre o maravilhoso evento que começará daqui a pouco.

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    6 – O risco de giz que nos separa da chamada anormalidade

    Todos sabem que os editores de jornal são pessoas particularmente desequilibradas, mas a maioria ignora que eles estão sempre mais enlouquecidos nas segundas-feiras. Afinal, foram obrigados a passar o final de semana em casa, sem ter por perto subordinados aos quais pudessem humilhar.

    – O trabalho que estou passando pra você, gaúcho, é tão importante que a pessoa mais indicada pra executá-lo seria eu, eu mesmo, Medalhão, o cão farejador, o craque da reportagem policial carioca nos anos cinquenta.

    Enquanto o pobre homem sorria, orgulhoso do seu passado, eu meditava, e sentia pena dele. Além da mulher e das filhas horrendas, ele tinha sempre um domingo particularmente duro. Das sete da manhã às sete da noite, ele permanece de pé e de braços abertos na “catedral” do tal Evangelho Milagroso, em Ceilândia Norte, cantando e pedindo a Deus a antecipação do Juízo Final.

    – Cobrir esse acontecimento é tarefa pra um profissional íntimo da gramática e amante da literatura policial.

    – Fala logo, chefe. Qual é o parangolé?

    – Hoje, pela manhã, recebi um telefonema de um dos meus informantes. Um ínclito cidadão estrangeiro. Fonte jornalística altamente confiável. Ele me informou que, daqui a muito pouco, exatamente às três da tarde, começará no Imperial Hotel da República o Primeiro Congresso Internacional dos Escritores de Histórias Policiais.

    – Chefe, vossa excelência está a fim de gozar da minha cara?

    – Não se trata de gozação! Brasília vai mesmo sediar um congresso que reunirá os maiores escritores de livros de suspense do mundo. Sim, gaúcho, o maior evento literário deste ano, no planeta Terra, será realizado aqui na modesta Brasília diante dos nossos focinhos! E tem um detalhe sórdido: o único jornal presente será o nosso Correio de Brasília.

    – Ora, se um congresso desses tivesse que ser realizado no Brasil, é claro que seria no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Lá, tendo sorte, os participantes poderiam ser assaltados por pivetes, sequestrados, atingidos por balas perdidas ou fuzilados em uma chacina. Lá teriam, em suma, matéria-prima pra escrever um livro depois. Em Brasília, não. Isto aqui é um marasmo.

    – Deixe de ser despeitado, Campestre – Medalhão só usa meu nome quando está furioso. – Você fala mal do Rio de Janeiro e de São Paulo por causa do complexo de inferioridade dos gaúchos. Mas não se pode esperar boa coisa de alguém que nasce em um estado onde o crime mais praticado se chama abigeato.

    Pausa. Vá ao dicionário, leitor! Procure por lá as palavras abigeato e abigeatário.

    Achou?

    Então, já aproveitando a pesquisa, procure o equivalente para furto de cortiça, que me dizem ser comum também no Sul, mas de Portugal.

    Não achou? Pois é parece que não existe mesmo um termo específico.

    Voltemos ao nosso romance. Além de todos os fatores negativos que aqui já alinhei, Medalhão nasceu no Rio de Janeiro. Digamos que ele é bairrista. Para ele, na América Latina só tem uma grande cidade. Buenos Aires? Decadente. Cidade do México? Sujinha. São Paulo? Feiosa.

    – O seu informante, chefe, estava bebum – insisti. – Estava mamado, borracho, entropigaitado.

    – Não venha com esse desprezível dialeto espanholado pra cima de mim! Minha fonte é confiável. Na verdade, o congresso será realizado aqui porque escritores de histórias policiais só gostam de violência no papel. Mas chega de conversa mole! Você vai daqui direto ao Imperial Hotel da República. Lá, procure o gerente, o senhor Manoel Joaquim Batota. Ele tem todos os detalhes do Congresso. Respeite-o! É um cidadão português, muito culto, versado em Camões, que nas suas horas de lazer é lexicógrafo amador.

    – Escritores policiais em Brasília, essa é boa! – resmunguei.

    – Leve o gravador e algumas fitas. Grave tudo o que for dito por lá. Será um evento histórico. Mas cuidado: esse gravador custou uma fortuna! Se voltar sem ele, tomo seu fusca. E você ainda sai ganhando.

    – Que fotógrafo irá comigo?

    – Hoje, nenhum. Só a partir de amanhã poderemos enviar um retratista… Mas preste bem atenção, centauro! Se você, apesar de sua quase invencível burrice, conseguir escrever algo aceitável, eu posso lhe conseguir duas páginas… Agora, suma!

    Medalhão virou-se de costas para mim e apanhou a Bíblia que mantém em cima da mesa. Toda vez que bate boca comigo ele precisa ler uns versículos do Eclesiastes para se acalmar. Ou talvez seja Mateus, com o seu impossível “amarás o teu próximo como a ti mesmo”.

    Ao deixar o prédio do jornal, eu ainda meditava sobre a loucura.

    Teria Medalhão, como tantos outros editores-chefes antes dele, ultrapassado a tênue marca de giz que nos mantém presos na chamada normalidade?

    gold downlight chandelier

    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    1 – Haverá tema mais transcendente?

    Comecemos do início. Ou pelo princípio, como se diz em Portugal.

    Não é moderno, sei. Escritores sofisticados preferem contar suas histórias de trás para diante ou aos saltos, indo e voltando. Ou regressando. Uns outros, mais arrojados, escrevem até mesmo livros que não têm nem história nem personagens. Mas eu sou jornalista de profissão e, como todos do meu ofício, pratico o texto claro, legível e cronológico.

    Aceito, porém, as críticas que nos fazem. Admito que, em geral, os redatores jornalísticos (em Portugal ainda escrevem redatores com c, embora já não existam mais redatores por lá, apenas jornalistas, ou, vá lá, repórteres) partem sempre de um mesmo princípio: o leitor é uma besta, e a ele se deve facilitar tudo. Concordo quando dizem que enredos óbvios e personagens chapados marcam boa parte da produção literária dos meus coleguinhas.

    Não foi, porém, essa a orientação adotada aqui. Acreditamos, desde a primeira linha, que esta obra se destina a um leitor requintado, conhecedor dos clássicos da literatura policial.

    Embora comportado no estilo, este livro fornece ao leitor um elevado número de frases rebuscadas – ora irônicas ou irónicas (apesar do famigerado acordo ortográfico, ironicamente certas palavras paroxítonas acentuam-se em Portugal de forma diferente), ora pessimistas – que poderão ser usadas, depois, com grande proveito, em conversações inteligentes.

    Os personagens aqui apresentados – seres humanos complexos, de fina inteligência, mas vítimas de incandescentes paixões primitivas – têm profundidade e densidade.

    Por fim, a história contada nestas mal traçadas linhas é rocambolesca a ponto de beirar o inverossímil, mas não deixa de ser tocante. Sem me alongar em detalhes, posso anunciar, nesse preâmbulo, que o que se discute aqui é, em última instância, a morte, o termo da vida. Haverá tema mais transcendente?

    No entanto, essa matéria nobre é tratada com grande leveza. Deve-se ressaltar, por fim, que este é um livro divertido e movimentado. Assim, o leitor que se delicia com chatices, como o noveau roman francês, pode parar por aqui. E se, lendo, até bem no finzinho, concluir que não lhe agradou, você então será pago com um piparote, que é um peteleco dado pelo fantasma de Machado de Assis na cabeça oca dos que não conseguem ler Memórias Póstumas de Brás Cubas.

    Vamos, pois, à história.

    Naquele que foi o dia mais longo que já vivi, acordei por volta das nove horas, me espreguicei e fui ao banheiro. Fiz xixi, lavei o rosto, escovei os dentes, voltei ao quarto, enfiei calça e camisa e saí porta fora.

    Sim, o despertar é pleno de verbos.

    Como constaram os leitores mais atentos, deixei o apartamento sem comer nada, mas não foi por estar fazendo regime alimentar. Mas fiz xixi, que é coisa pouco vista em romance. Era fim de mês e meu salário havia expirado.

    Neste ponto do livro, se fosse dado à análise de questões sociais e políticas, eu provavelmente estaria vociferando contra a exploração dos pobres trabalhadores pelos capitalistas sem coração. Mas não me preocupo com esse tipo de coisa. Segundo meu pai, sou o único pobre neoliberal do universo. Ou o único neoliberal pobre, o que parecendo o mesmo não é.

    Mas já que este é um livro sério, devo confessar que minha dispensa não estava totalmente limpa. Eu ainda tinha um pacote de macarrão, dois desodorantes ou desodorizantes (como diria o Cristiano Ronaldo) e três tubos de pasta de dentes.

    Minha generosa mãe não se importava muito com comida quando eu era pequeno. Não me empurrava papinhas goela abaixo. Para ela, o mais importante era o asseio pessoal. Eu era um guri magro (ou um miúdo escanzelado, como eu escreveria se tivesse nascido, vá lá, em Santa Comba Dão) como bicicleta, mas isso não lhe tirava o sono. Ela só ia à loucura quando eu tentava enforcar o sagrado banho diário. Então, ela me lavava na marra e, depois, arrematava a sessão com uns golpes de toalha úmida, com ou sem H de acordo com o lado do Atlântico em que se esteja . A mãe achava que nada de ruim poderia acontecer a um indivíduo que tivesse, por mínimo que fosse, um estoque de produtos de higiene. Vista a vida, tinha razão.

    brown and gray typewriter

    2 – A atração que o imbecil sente pela confusão

    Eram nove horas e trinta de uma esplendorosa manhã quando passei pelo Multimídia – José de Ribamar, maranhense, zelador do edifício, apanhador de jogo do bicho no horário do almoço, eletricista e encanador nas horas vagas, e lavador de carro nos finais de semana – que me perguntou:

    – E aí, doutor, vai começar a mentir mais cedo hoje?

    – Assim foi determinado pelo Senhor, que é bom e justo – respondi. – Exige Ele que coloquemos em prática o talento que nos concedeu. No nosso caso, Multimídia, fomos privilegiados porque recebemos o mais valioso dom dos dias atuais: o de enganar os outros. Por falar nisso, a torneira continua pingando e o chuveiro dando choque. Vais ou não vais consertar aquilo lá?

    – Vamos esperar o dia do seu pagamento, doutor. Hoje em dia, nem relógio trabalha de graça. Agora, só funciona com bateria.

    Nós brincamos disso. Ele finge que conserta minhas tralhas e eu faço de conta que pago a ele. Multimídia vai ao meu apartamento, aperta um ou dois parafusos e estende a mão. Eu, em pagamento, dou-lhe uma moeda. Invariavelmente a de menor valor. Aí, o jogo fica empate, zero a zero.

    Era um belo dia de sol, repito. Nesta passagem devo esclarecer que eu estava em Brasília, Brasil, América do Sul. Não havia neve, como num livro russo; nem névoa cinzenta, como em um livro francês. Que fazer? Sigamos com o dia ensolarado, embora reconhecendo que ele não é literariamente sedutor.

    Cruzei o estacionamento e caminhei até meu fusca amarelo, ano 1968, vulgarmente conhecido entre os meus amigos como “Revolução de Maio”.

    Naquela manhã, o bravo carrinho estava feliz. Tinha o tanque bem abastecido. No dia anterior, havia bebido tudo que me restava do salário.

    Comecei a rodar.

    Bem, vejamos. A frase acima não está boa. Um português jamais a escreveria. Um lusitano cravaria: comecei a rodar com o meu carro. Não, não. Diria: o automóvel, acionado por mim, saiu a rodar. Não, não! Os portugueses sempre são muito exatos. Diria: dei partida ao motor, depois engrenei a marcha e o veículo pôs-se em movimento. Não, diz-me um gramático de Coimbra, portugueses legítimos usariam um simples: arranquei. Escreveriam: “arranquei” supondo que, arrancando, no sentido de iniciar um movimento ou ação, a inércia faria rodar o seu carro per saecula saeculorum, sem necessitar sequer de mais gasolina.

    Enfim, rodando a trinta quilômetros por hora, eu me deliciava com a paisagem humana: vestindo macacões alaranjados, garis faziam de conta que limpavam os gramados; frentistas dos postos de gasolina jogavam porrinha; vendedores de carros usados aguardavam o surgimento de algum otário; policiais militares passeavam pelas calçadas, mãos às costas, com a serenidade dos que sabem que os bandidos dormem pela manhã.

    Era, pois, um típico dia brasiliense.

    O automóvel rodava e eu olhava invejoso para os prédios onde milhares de funcionários públicos, que ganhavam mais do que eu, passavam os dias lendo jornais e revistas, xerocando livrinhos de sacanagem, inventando combinações para ganhar na loteria, imaginando processos trabalhistas contra o governo, bolinando faxineiras e fazendo planos para gastar o décimo terceiro salário.

    Ao contornar a Estação Rodoviária, para seguir até a sede do jornal, percebi que havia algum rolo na plataforma. Era um corre-corre danado, uma zoeira, um auê.

    Embiquei o “Revolução de Maio” e estacionei. Ao puxar o freio de mão, ainda pensei: no jornal, certamente vão me passar um sabão por chegar atrasado à reunião.

    Desembarquei. Ao bater a porta do carro, lembrei de meu pai, que vivia dizendo:

    – Filho, um imbecil não só atrai a confusão. Ele caminha diretamente pra ela, de braços abertos, sempre na hora mais imprópria e no local menos indicado.

    Esse imbecil hipotético, ao qual ele se refere, devo ser eu. Afinal, era filho único.

    Com passadas largas, avancei para o enrosco. Penetrei na multidão à força de cotoveladas. No Brasil, se você chega cheio de dedos, pedindo por favor ou com licença, os caras te mandam à merda.

    Zunzum, peitadas, empurrões, nervosismo, histeria, gritos, pânico, muito sangue e algumas vísceras. Cheguei ao centro da aglomeração. Objetivo alcançado com distinção. Papai teria orgulho de mim. Ou não.

    group of people standing

    3 – Discurso sobre a morosidade da Justiça brasileira

    Era um acidente de trânsito.

    Um belo acidente, diga-se de passagem. Do ponto de vista jornalístico, evidentemente. Cerca de dez mortos e vinte feridos.

    Para obter detalhes, entrevistei alguns passageiros de um dos ônibus – que em Portugal se chamam autocarros, embora tenham condutor – envolvidos no acidente. Enquanto anotava, eu observava a retirada dos feridos. Os socorristas eram tão estabanados que, num primeiro momento, julguei que estavam tentando quebrar os ossos das vítimas sem ferimentos visíveis. Não há nada tão perigoso para um acidentado quanto a solidariedade afoita de um brasileiro.

    De repente, deu-me um estalo. Corri ao telefone público e liguei para a redação:

    – Mandem já um fotógrafo. Tá cheio de presunto aqui na Rodô.

    Presunto, na castiça linguagem dos jornalistas  brasileiros, quer dizer vítima fatal, falecido ou ente querido. Já se estivesse ligando para uma redação portuguesa, meus chefes pensariam que, na Rodô, estaria ocorrendo um desfile de raparigas de coxas robustas!

    O desastre foi assim: o motorista de um ônibus vindo de Taguatinga, com cem pessoas a bordo – embora sua capacidade máxima fosse, entre sentados e em pé, de 72 passageiros –, não freou no momento em que se esperava que fizesse isso. Destarte, literalmente entrou com seu veículo para dentro de outro, igualmente superlotado (ou sobrelotado, como diria o Miguel Torga), que manobrava para estacionar.

    Esse tipo de batida é conhecido como engavetamento.

    Dez minutos depois, quando o fotógrafo do jornal chegou esbaforido havia ainda cinco corpos enfileirados no chão sujo, cobertos por folhas de jornais.

    Aquilo rendeu uma bela foto. Para os padrões brasilienses, me apresso em esclarecer. No Rio de Janeiro e em São Paulo, cena como aquela não impressionaria. Certa vez um editor de polícia de um jornal paulista me disse:

    – Pra chacina com menos de dez presuntos, meu, nem mando fotógrafo.

    Desloquei-me para o local onde os bombeiros estavam tentando, a golpes de machadinha, tirar um ônibus de dentro do outro.

    Algumas pessoas ainda agonizavam nas ferragens, para o mal disfarçado gáudio de um repórter de rádio, que estendia para elas o seu ansioso microfone.

    Em meio ao cenário dantesco, eu processava mentalmente os depoimentos que havia coletado e já estruturava a minha reportagem.

    Os sobreviventes juravam que o motorista do ônibus que saíra de Taguatinga estava de porre; que fizera a viagem a mais de cem por hora, rindo histericamente; que não se detivera numa só parada intermediária; que xingara meio mundo pela janela aberta.

    De repente, um homenzinho colocou-se na minha frente:

    – Felizmente, o motorista morreu, irmão. Seria uma injustiça divina se o mesmo permanecesse vivo depois de tudo o que nos fez passar…

    Como não gostei da cara dele e odeio a expressão o mesmo – tão horrorosa como despoletar, que é o sinônimo de desencadear usado pelos moradores de Freixo de Espada à Cinta -, resmunguei:

    – Morreu. Que bom! Está, enfim, descansando junto ao Pai.

    – Descansando? Ele tá é fritando no inferno.

    – O inferno não tem mais fogo – eu disse. – O Diabo não pagou a conta, cortaram o fornecimento de lenha.

    – O negócio é o seguinte, irmão – insistiu o baixinho. – Escreva na sua reportagem que o referido condutor estava embriagado e que, por isso, a gente estamos a fim de reclamar na Justiça uma indenização da empresa de ônibus.

    Aquela frase me impressionou.

    Olhei bem para ele. Era um cara de uns cinquenta anos, magro, mirradinho dentro de um terno outrora azul marinho. Tinha cara e físico de ascensorista de ministério.

    – Acho que podes acionar a empresa – eu disse. – Mas, cá entre nós, estarás vivo quando sair a sentença daqui a uns trinta anos?

    – Trinta? – espantou-se ele.

    – Ou mais. Essa empresa tem vinte advogados que vão ficar empurrando o processo com a pança, enquanto tu vais cair na mão de um advogado de porta de cadeia que vai te zerar a poupança. Deixa o processo pra lá, não esquenta!

    O baixinho escafedeu-se. Não esperava uma opinião tão rude sobre a advocacia brasiliense. Mas eu sou assim mesmo: gosto de sacudir as pessoas. Especialmente se são menores do que eu. E, sobretudo, se aparentam ser mais pobres.

    black bus near trees during daytime

    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).