Etiqueta: Romance policial

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    37 – Edgar Allan Poe não teve culpa de nascer naquele país estúrdio

    A irada reação do gerente do hotel não pegou bem. Os dois escritores trocaram um longo olhar cheio de significados que não metiam o lusitano em bons lençóis.

    – Veja como são as coisas, Águeda – disse o francês. – É um clássico: o portuga pode muito bem ter envenenado a comida da velha. Ou na própria cozinha ou, mais discretamente, no caminho até este apartamento…

    – Deus me livre e guarde! – persignou-se Batota.

    – Não te preocupa já, malandro – apressou-se o escritor a acalmá-lo. – Só vou te responsabilizar depois que a autópsia confirmar a morte por envenenamento culinário.

    – Deixe de ser bobo, sô! – reagiu a escritora. – Mantenho a tese do envenenamento do livro. É a hipótese mais elaborada. E nós, ingleses, sempre raciocinamos de maneira mais sofisticada. É por isso que os países anglo-saxônicos são os mais ricos do mundo. O pensamento requintado nos distanciou da gentalha, seja ela nórdica, eslava, germânica ou latina. Rejeito a ideia de veneno no feijão. Ainda se fosse no faisão!

    – A tua tese não se sustenta – retrucou o francês. – O assassino, além de ter de saber que se a bruxa espanhola lambia os dedos, precisaria saber se ela virava as folhas pegando-as pelo alto ou por baixo. Restaria ainda o problema da potência do veneno, que teria que ser altamente concentrado…

    A inglesa sacudiu os ombros magros, bateu o pé no chão e insistiu:

    – Com ou sem veneno, estou certa de que aqui ocorreu um crime do tipo “quarto fechado”. O assassino já foi quando a morte sucede.

    – Discordo! – o francês foi enfático. – Aqui houve um crime comum. Digamos, em tese, que o assassino tenha sido mesmo o português. Depois de entregar a comida envenenada, o que fez ele? Fechou o quarto com a chave-mestra só para que os idiotas fossem levados a pensar em crime de quarto fechado.

    – Valha-me Santo Antônio! – Batota persignou-se. – Sou inocente! Sou inocente! Que loucura é esta! Não me acusem nem mesmo em tese! Tirem-me dessa!

    – Não atrapalhe o nosso debate intelectual! – ralhou Águeda Christine com Batota e, depois, dirigiu-se novamente a Sim Et Non, como se não tivesse sido obrigada a interromper a linha de pensamento: – Aposto o qu’ocê quiser que aqui houve um crime de quarto fechado.

    Em meio a uma nuvem mais robusta de fumaça, o francês ironizou:

    – Esse negócio de quarto fechado é apenas uma tola brincadeira inventada por um americano macabro.

    – Não fale mal de Edgar Alan Poe! – reagiu a mulher. – O tadinho não teve culpa de ter nascido naquele país estúrdio. Era um gênio!

    Neste ponto do livro, devo dar uma breve explicação. Os historiadores da literatura policial parecem concordar que o conto “Os Crimes da Rua Morgue”, de Edgar Alan Poe, foi o primeiro exemplo de assassinato em “quarto fechado”. Ou seja, quando um crime é cometido num lugar supostamente inacessível a um ser humano.

    Convém dizer também que, ao contrário de Dax e Fedorova, que tinham se movimentado por todo o quarto, Águeda Christine e Sim Et Non mantiveram-se o tempo todo nos mesmos lugares, imóveis.

    Como também já disse, a autora de Assassinato no Expresso Liverpool-Manchester concentrou sua atenção no cadáver. Parada diante da falecida, examinou com muita atenção a roupa que ela vestia. A seguir, passou ao rosto, do qual verificou ruga por ruga. Herculano Poire, o detetive criado por Águeda Christine, como sabemos todos, também era um grande observador.

    Já o autor de Sangue na névoa permaneceu imóvel no centro da peça, quieto, fumando enquanto dissimuladamente olhava ao redor. Exatamente como faria o detetive Jales Maigrot, cujo método consistia em mergulhar profundamente na atmosfera do local onde havia sido cometido o crime. Assim, integrando-se ao cenário fatídico, Maigrot acabava por identificar-se espiritualmente com o criminoso. No fim, encurralado por forte pressão psicológica, o assassino acabava confessando o crime que cometera.

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    38 – Da afetação dos atores ingleses com seus bigodinhos ridículos

    – Jogo meu pescoço que a velha baranga foi assassinada! – clamou, em tom de aposta o francês. – Ô portuga, manda fechar todas as portas e janelas do hotel. Que ninguém deixe o prédio!

    Surpresos, Águeda Christine, Batota e eu encaramos o francês, que continuou:

    – Se o assassino ainda estiver entre nós, ele não escapará. Eu o descobrirei. Olhos nos olhos! É assim que consigo penetrar nos mais escuros desvãos da alma humana.

    – Larga de bobagem, filhinho – disse a escritora inglesa, com um sorriso de gozo. – Alma não tem vão nem desvão. Eu também já sei que Miguela foi assassinada e que o assassino ainda não deixou o hotel. Logo mostrarei as provas. Anglo-saxões têm o péssimo costume de respaldar com provas aquilo que afirmam.

    – O senhor Sim et Non ainda continua desconfiado de mim? – perguntou, trêmulo, um agora inseguro Batota.

    – Todos aqui são suspeitos – respondeu o francês. – Mas você, vascaíno, joga no segundo time, junto com os demais serviçais do hotel. No primeiro time, na verdade, estamos nós, os escritores.

    – Verdade verdadeira, sô – concordou Águeda Christine. – Somos os principais suspeitos. Mas uns tinham motivos mais fortes para matar a pobre mulher. Ocê, por exemplo. Além de vender mais livros qu’ocê, Miguela era adorada pelos críticos literários franceses, que desprezam ocê. Ora, inveja e despeito literários são fortes motivos para um francês matar alguém.

    – Não seja modesta, Aguedinha! Você odiava ela bem mais que eu porque Miguela teve sucesso também nas versões cinematográficas dos seus livros. E tu nunca teve sorte com as filmagens dos teus textos, por causa daqueles afetados atores ingleses com seus bigodinhos ridículos.

    O corpo magro de Águeda Christine se encolheu, como o de um gato prestes a saltar sobre um rato. De seu lado, o francês fechou a mão em torno da haste do cachimbo.

    Batota já mais descansado, vendo-se menos suspeito, tomou seus ares de maestro e bateu palmas.

    – Têm de sair agora, por favor. Acabou vosso tempo.

    Foi uma atitude providencial. Um segundo mais e eles teriam se engalfinhado.


    39 – Os turistas destruíram todas as paisagens

    – A conversa entre o francês e a inglesa foi estranha, mas deveras interessante – confidenciou Batota enquanto nos dirigíamos à sala de reuniões a fim de buscar Foo Lee Shi Man. – Mas fiquei um pouco frustrado. Vi muito palpite e pouca investigação. Esperava mais investigação e menos palpites.

    – Eu também. Achei que Águeda Christine ia falar da manchinha vermelha no pescoço da falecida ou da Bíblia aberta na página 1313. Em suma, esperava que ela descobrisse o que eu notei logo de saída.

    – E Sim Et Non ainda esteve pior – completou o português. – Ficou ali sempre parado como uma chaminé a soltar fumo. Não fez mais que lançar farpas a lady Águeda.

    – Mas eram farpas interessantíssimas! – ponderei. – De todo modo, eles deixaram claras suas preferências por diferentes tipos de crime e métodos de investigação.

    – Não concordo com a teoria de lady Águeda. O crime de quarto fechado não se adapta ao nosso caso, Campestre.

    Achei óbvias as razões para o gerente não ser adepto dessa tese, que o colocaria no topo dos suspeitos, mas não o quis contrariar nem inquietar, se bem que até lhe faria bem para vingar a recepção que me fizera com a pistola.

    – Gostei mais da tese do francês, seu Manoel. – É, sem dúvida, mais plausível que alguém tenha fechado a porta após o crime, a fim de nos induzir ao erro.

    Afundados nessas altas cogitações, chegamos ao salão. Sim Et Non e Águeda Christine assumiram seus lugares na mesa. Estirada em uma poltrona, Fedorova dormia. Ao lado dela, no chão, repousava uma segunda garrafa de malvada, já pela metade. Dax sumira e Bugres estava parado diante de uma janela aberta.

    – Bela paisagem, não? – perguntou Batota, à guisa de saudação, batendo nas costas do argentino.

    – Todas as paisagens do mundo foram destruídas pelos turistas orientais com seus impiedosos flashes – retrucou o poeta cego de Buenos Aires com sua voz rouca. – Mas Platão já previu essa catástrofe quando escreveu que todas as paisagens serão gravadas numa só chapa de aço pelos artesãos do Hades. Para Tarso de Creta, numa mesma paisagem estão presentes, sempre, as quatro estações. A neve já contém as sementes do verão e…

    Já desinteressado do que dizia o latino-americano, Batota voltou-se para o chinês:

    – Senhor Foo, chegou a vossa vez.

    O escritor chinês ampliou o sorriso. Perguntei-me: por que estará esse china sempre rindo? Não será esse o riso de alguém que permanentemente debocha dos outros?

    Parêntese literário.

    Reproduzo aqui trecho de artigo escrito por um renomado crítico literário francês, Jean Pierre de GrandMont Grenelle Des Oiseaux Rouges, sobre a obra de Foo Lee Shi Man:

    “No rastro de teses de Soren Kierkegaard e Michel Foucault, afirmo que o reconhecido escritor Foo Lee Shi Man – dono de ridente máscara amarela, na qual se vê estampada, em todas as suas nuances, sombrias ou solares, a verdadeira alma chinesa – prefere, em suas composições autorais, registrar apenas fragmentos mínimos do todo universal, de modo a ressaltar atos que são paradigmas de elevação e queda, de glória e abjeção”.

    Fim do parêntese.

    E, de repente, com um movimento flexível, Foo desviou de Batota e enveredou pelo corredor. O gerente do hotel e eu fomos atrás do chinês, que parecia deslizar sobre o piso de cerâmica.

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    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    34 – O insuperável prazer de matar

    Olhei espantado para Fedorova Smerdlova. Sabia do seu teatro, mas pareceu-me demasiado suspeitoso querer meter todos como suspeitos.

    – A senhora poderia explicar melhor esta sua última frase? – indaguei.

    – Claro! De que nós, chamados civilizados, nos alimentamos? De morte. Só vivemos porque sacrificamos animais e vegetais.

    – Vegetais?

    – Por acaso um amarelo como tu acha menos bárbaro arrancar uma mandioca da terra do que degolar um bode?

    – É uma tese insólita, mas interessante – admiti. – E então a senhora acha que a morte de dona Miguela foi natural?

    Depois de emitir um formidável soluço, a russa falou com voz embargada:

    – Olhe bem pra Mikuchina, cabra da peste! Ela era uma muié sabidamente elegante, mas está de mantilha. Ora, nem mesmo uma beata espanhola gostaria de morrer com uma porcaria dessas no quengo! Por causa dessa mantilha, sou tentada a dizer que a coitadinha teve morte fulminante.

    – Mas a morte que a fulminou terá sido natural ou provocada? – insisti.

    – Meu sensível coração russo me diz que a Mikahilachka foi assassinada. E por quê? Ou porquê? Ora, porque sinto que sua pobre alma ainda vaga pelos corredores desse hotel. O espírito dos que morrem de causas naturais sobe direto ao céu.

    – Como alguém a poderia matar se ela estava num quarto fechado à chave? – perguntou Batota.

    – Observei atentamente esta bosta de apartamento e não vi nem sinal da passagem de um assassino por aqui – disse a russa. – Por isso, conclui que a morte chegou aqui de maneira invisível.

    – Invisível! – entusiasmou-se o português. – Então a senhora acredita em fantasmas, duendes e vampiros?

    – Não. Falo de substâncias invisíveis! Gases venenosos, por exemplo. Matar com gás é um verdadeiro esporte em meu país. No tenebroso inverno russo, esposas ciumentas e cornos revoltados se utilizam do sistema de aquecimento para se livrar de cônjuges safados.

    – Mas o cheiro de gás não teria sido percebido pelas outras pessoas? – indaguei.

    – A ciência é coisa do Cão – rugiu a russa. – Já inventaram até um gás letal inodoro.

    – E o motivo, dona Fedorova? – questionei. – O que teria, na sua opinião, levado alguém a matar dona Miguela?

    – Oxente, quanta ignorança! Hoje em dia, mata-se mais sem motivo. Mata-se simplesmente pelo insuperável prazer de eliminar um ser humano. Mas, no caso de Mikahiloka, eu diria que vingança ou inveja movimentaram a mão do lazarento matador.

    Fedorova levou a garrafa aos beiços e, de um só gole, sugou o que havia de cachaça dentro dela. Que não era pouca coisa. Depois de bater repetidamente no próprio peito, como Tarzan quando vê um cipó, ela se retirou do apartamento 1313, chorando, soprando fétidas nuvens de tabaco. Mas ainda rematou:

    – Pobre Mikutinka! Oh, minha doce alma gêmea, quem saberia dizer por que teu livro O touro maltês tem tantos trechos que parecem copiados do meu Contravenção e penalidade? Se nossos livros são tão parecidos, por que o meu vendeu apenas sete milhões de exemplares enquanto o teu vendeu vinte milhões?

    Batota e eu nos entreolhamos.

    – Ouviu bem essas últimas frases? – murmurei no ouvido do português. – Esta senhora russa tem os dois motivos que ela mesma apresentou como prováveis para o assassinato: vingança pelo plágio de seu livro e inveja pela vendagem maior da espanhola.

    Batota também me olhou espantado. Mas pareceu-me que não compartilhava minhas suspeitas, embora certamente reconhecesse o valor do meu argumento.

    – Vou buscar agora a senhora Águeda Christine – retrucou-me ele, emburrado. – Espero que sejas mais respeitoso com ela, que não lhe faças tantas perguntas inoportunas e inconvenientes.

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    35 – Cadáveres apodrecem mais rápidos nos trópicos

    Quando Batota chegou de novo à sala de reuniões, lady Águeda Christine informou que Sim Et Non e ela haviam decidido investigar juntos o quarto de dona Miguela.

    – Não imaginava que fossem tão amigos – comoveu-se o português.

    – Não é o caso, moço – disse a escritora inglesa. – Na verdade, a gente se odeia. Não é assim, Sim?

    – Se odeia pra cacete – concordou o francês. – É ódio maior que o Maracanã lotado.

    – Se é assim, não entendo porque desejam entrar juntos – ponderou o gerente do hotel.

    – As coisas mais interessantes são as incompreensíveis – disse a escritora britânica. – Entrando juntos, teremos chances iguais na investigação. E deste modo o mais inteligente encontrará as pistas mais consistentes.

    – É isso aí, sangue bom – ajuntou Sim Et Non. – O derrotado terá três saídas: cortar os pulsos, atear fogo às vestes ou beber formicida.

    – Deixe de ser aborrecido, bobinho – disse Águeda Christine. E, voltando-se para Batota, acrescentou: – Juntos, a gente se vigia mutuamente. Assim, posso evitar que o danadinho do Sim falsifique ou roube provas.

    Como a frase surpreendeu o francês no início de uma funda baforada, ele não pode responder de imediato.

    – Vamos logo até ao 1313 – comandou Batota. – Não se sabe quanto tempo demorará a chegar o rabecão da Polícia.

    – Se é que virá – comentou Sim Et Non. – Aliás, nos trópicos os cadáveres apodrecem rapidamente. Os políticos, também. A senhora sabe, lady Águeda, qual a diferença entre um político europeu e um latino-americano?

    – Uai, nossos políticos roubam menos – respondeu a inglesa. – Cobram percentagens menores dos corruptores.

    – Nada disso! – chiou o francês. – A diferença é que os europeus roubam para a caixinha do partido, enquanto os cucarachas roubam para eles próprios. Mas coincidem em um ponto: ambos depositam o dinheiro roubado na Suíça.

    – Ocê tem razão, Sim. Esse trem da corrupção funciona desse jeitinho mesmo… Mas eu não sabia qu’ocê se interessava por política.

    – Não me interesso por política, cacete! Eu me interesso por crime, o que vem a dar no mesmo.

    Lado a lado, parecendo afinal dois bons compinchas, caminhavam a alta escritora inglesa e o francês baixote. Atrás deles, de gravador ligado e tomando notas frenéticas, seguia eu, ao lado de Batota.

    – Também há uma grande diferença entre os escritores policiais ingleses e americanos – disse Sim Et Non. – Americanos gostam de crimes sangrentos e de detetives brutais. Já os britânicos preferem crimes intrincados e detetives cultos…

    – Temos outra grande diferença dos americanos – acrescentou a escritora. – Escrevemos em inglês. Eles usam um dialeto, o cauboiês.

    – Ingleses são razoáveis autores de novelas policiais – reconheceu o francês. – Pena que os crimes que inventam sejam tão rocambolescos que seus livros acabam parecendo bolos confeitados.

    – Gosto demais da conta dos detetives franceses – sibilou lady Águeda. – Fico impressionada com os automóveis que eles usam. São carros que têm mais marchas à ré do que à frente: são melhores para fugir mais depressa dos bandidos.

    E lá foram entretidos na conversa até ao 1313.

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    36 – Os assassinos de hoje preferem tiros e facadas

    Ao chegarmos ao apartamento da falecida Miguela de Alcazar, os dois escritores estavam quase saindo na pancada, apesar dos risinhos falsamente cordiais que trocavam.

    Lado a lado, a inglesa e o francês entraram ambos com o pé direito no apartamento 1313. Batota e eu nos detivemos no umbral a observá-los.

    A escritora dirigiu-se diretamente para a falecida. Parou a um passo dela, abaixou-se e se pôs a observar-lhe atentamente o rosto.

    Já o escritor se colocou exatamente no centro do quarto, abriu um pouco as pernas e cruzou os braços. Quase imperceptivelmente, movia o pescoço. Com os olhos semicerrados percorria o apartamento. De quando em quando, lançava uma nuvem de fumaça de tabaco.

    – Atenção, Campestre – murmurou Batota junto ao meu ouvido. – Desde o primeiro momento eles mostram-se muito diferentes. Lady Águeda parece-me pessoa pragmática, que quer logo descobrir alguma coisa por observação direta. Já mestre Sim Et Non surge-me mais espiritual, quer deixar-se impregnar pelo ambiente. Em suma, ele trabalha mais com a intuição; ela, com a razão.

    Surpreso, voltei-me para o português, mas não pude retrucar porque a escritora britânica começara a falar:

    – Os peritos brasileiros deveriam ter examinado melhor essa Bíblia. Há manchas no alto das páginas. Acho que essas páginas foram manipuladas por dedos enfiados em alguma substância líquida. Veneno, melhor dizendo.

    Batota e eu trocamos um olhar estupefato.

    Após um minuto de silêncio respeitoso, Sim Et Non soltou um risinho debochado:

    – Tu taix brincando! Miguela teria que ler umas vinte mil páginas pra se envenenar desse modo!

    – Uai, é óbvio que não! – a voz da escritora inglesa tremeu ligeiramente. Era visível o esforço que ela fazia para controlar a raiva. – Depende do grau de toxicidade desse trem de veneno.

    – Vocês, ingleses, são antiquados pra cacete! – retrucou o francês. – Por que não abandonam essa mania de estar sempre a envenenar as vítimas, como os russos? Os assassinos de hoje preferem tiros e facadas…

    E a seguir, como se tivesse tido uma súbita ideia, ele voltou-se para Batota:

    – Oh, vascaíno, por falar em veneno, me diz uma coisa: o que a Miguela comeu no almoço de hoje?

    – Feijão com arroz, bife e batatas fritas. E bebeu limonada.

    – Uai, como é qu´ocê sabe disso, assim na pontinha da língua? – perguntou Águeda Christine, desconfiada.

    – Oh, carago! – reagiu bruscamente o português. – Sei disso porque fui eu que preparei o prato. Ela telefonou-me ao meio-dia a dizer o que queria comer. E mencionou as quantidades exatas. Para mim, foi uma honra confeccionar e servir-lhe o almoço. E depois fui eu próprio que trouxe o prato para aqui. Está a desconfiar de mim?

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    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

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    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

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    31 – O repórter sucumbe à doença infantil do antiamericanismo

    Um a zero para o americano. O danado tinha me passado a perna. Uma onda de furibundo ardor nacionalista subiu-me do ventre ao pescoço. Eu precisava restabelecer minha condição de cidadão de uma nação de espertinhos. Nós, brasileiros, é que somos especialistas em gozar a cara dos outros.

    Passei a torcer para que Dax se interessasse pela Bíblia da falecida. Seria um indicativo de que ele sabia da existência do bilhetinho. Mas o americano não dava bola para o livrão. Girava pelo quarto e fazia anotações – com suas grandes mãos enluvadas – num caderninho.

    – Livro muito interessante este, não é, seu Batota? – comentei, tentando atrair a atenção de Dax.

    – Que livro, ó pá? – perguntou-me, desatento, o português.

    – A Bíblia! – respondi em voz alta.

    Dax, que estava analisando a arrumação da cama, mordeu a isca:

    – Bíblia? Livro muito chinelão. Até meio mal escrito. Tem personagens demais, pouca ação, linguagem enrolada e enredo confuso. É obra de amador, tchê!

    Não demorei em reagir à análise tão depreciativa:

    – Mas é o livro mais lido e vendido em todo o mundo!

    – Também, com a equipe de propagandistas que ele tem! São milhões de padres e pastores ameaçando bilhões de pessoas todo domingo. Se não lerem a Bíblia, vão virar churrasco no inferno!

    Dois a zero para o gringo, reconheci. A continuar assim vai dar cabazada, como os portugas dizem no futebol quando se tomam muitos gols sem resposta. 

    Calado, concentrado, Dax vasculhou o gigantesco guarda-roupa, os criados-mudos e o interior do frigobar. Finalmente, voltou para junto do corpo da escritora espanhola.

    – Estranhou alguma coisa, senhor Dax? – perguntou Batota.

    – Muitas.

    – O senhor poderia dizer-me quais.

    – Não! De jeito nenhum. Vivo disso. Ganho uns trocos com esse tipo de coisa. Com base nos detalhes estranhos que percebi, escreverei um livro que se chamará Um cadáver lê a Bíblia.

    – Não será pecado ganhar dinheiro com uma obra que tenha esse título? – indagou o gerente do hotel.

    – Bah, se a gente olha com atenção, todas as formas de ganhar dinheiro são, na verdade, variadas espécies de trapaça – filosofou Dax. – No fundo, todos nós lutamos pra acalmar o estômago. A diferença essencial é que uns poucos matam a fome com filé e a grande maioria se contenta com carne de pescoço.

    – Os americanos comem todo o filé produzido no mundo – provoquei. – Deixam só a pelanca para os outros.

    – E daí, tchê, qual é o teu problema? – retrucou Dax, irritado. – Por que tu não vais te queixar ao Papa?

    Batota puxou-me para perto da porta e sussurrou:

    – Que tens tu, pá? Sofres da doença infantil do antiamericanismo? Por que ficas para aí a chatear o senhor Chamber? Que mal te fez ele?

    Também em voz baixa, respondi:

    – Eu o ataco porque ele é um cara muito suspeito. Usou luvas!

    – Não vejo nada de estranho que se use luvas durante uma investigação, pá.

    – Raciocine, seu Batota! Digamos que dona Miguela tenha sido assassinada. Se durante a investigação forem encontradas aqui impressões digitais de Dax, ele dirá que elas foram “plantadas” e pedirá nosso testemunho. Seremos obrigados a dizer que ele usava luvas. Compreendeu? Tudo não passou de um álibi para ele se livrar de um crime que pode ter praticado!

    – Porra, miúdo! – espantou-se o português. – Estou a ver que ou és um gênio, mais sagaz que Sherlock, ou então és uma besta quadrada!

    Depois de fuzilar-me com um olhar inamistoso, o americano deixou às pressas o apartamento 1313.

    closeup photo of USA flag

    32 – A profunda afeição dos russos pelos frascos

    De acordo com a ordem estabelecida no sorteio, Fedorova foi a segunda a investigar o apartamento de dona Miguela.

    A russa já entrou nele debulhando-se em lágrimas. Chorava aos berros, lacrimejava aos jarros.

    A chuva lacrimal era ruim para a – perdoem o cacófato! – estética dela. O riacho de lágrimas atravessava as cavernas de rímel dos olhos e corria desembestado pela planície carmim das bochechas.

    Logo surgiram duas manchas irregulares, puxando para o marrom, nas laterais do rosto da escritora eslava. As manchas nasciam afastadas, uma de cada olho, mas juntavam-se embaixo do queixo largo e, depois, pingavam da papada flácida para o chão.

    Segurando na mão direita a garrafa de pinga que recebera do garçom míope, e tendo ainda encalacrado entre os beiços um toco do formidável charuto, a camarada soviética rugia:

    – Oh, minha pequenina Mika da muléstia, por que os deuses dos infernos vieram até este país carnavalesco pra te arrebatar de nós, teus pares? Por que os céus determinaram tua morte justo hoje quando nos encontramos reunidos em torno do ardente samovar da literatura?

    Eu bebia com interesse o que dizia ela no seu arrastado e fanhoso sotaque cearense, mas me perguntava: para que todo esse show?

    Como eu sabia que Fedorova e Miguela não se amavam tanto assim, conclui que aquela performance decorria da excessiva ingestão de sumo de cana.

    Depois de ajoelhar-se diante do corpo de Miguela, Fedorova soltou a garrafa no carpete, levou as mãos aos cabelos e se pôs a puxá-los. Arrancou uns bons chumaços.

    Além dos gritos, lágrimas e extração capilar, de vez em quando ela dava murros no próprio peito. E, como pessoa possuída por espírito ruim, perorava entre baforadas:

    – Embora tenhas nascido no berço de ouro da burguesia exploradora, eu sei que tu, Mikhaila da peste, amavas os mujiques do teu país! Tua morte é uma grande perda para a literatura do crime!

    Não demorei a perceber que, apesar da autoflagelação cenográfica, a russa observava atentamente o cenário. Seus rasgados olhos cinzentos corriam pelo rosto da morta, pela sua roupa e arrastavam-se pelo chão ao redor do cadáver.

    De repente, me deu um estalo. Fedorova estava reproduzindo diante de nós trechos do célebre monólogo do arrependimento tardio de Raspadecova, a criminosa de Contravenção e penalidade. Sim, porque depois de matar a velha usurária, Raspadecova fala dela com muito carinho. Afinal, a megera está morta. E a morte, na Rússia, como no mundo todo, redime as pessoas. Lá como cá, todo canalha em vida vira gente boa quando veste o paletó de madeira.

    Sempre chorando, a novelista eslava levantou-se. Pegou o cinzeiro, mas não bateu nele o charuto para livrá-lo da cinza. Não! O que fez foi aproximar dele o seu monumental narigão para farejar resquícios de tabaco.

    A seguir, agachou-se e examinou demoradamente embaixo da cama. Depois passou aos armários, cujas portas escancarou, sempre discursando em voz alta:

    – Vejam, amarelos, como Mikhaila mantinha em ordem o danado do seu apartamento! Sua mala está aqui dentro, fechada. E parece que ninguém forçou a fechadura. De que morreu, ó deuses, a doce Mikólia?

    – Como sofre essa pobre rapariga! – sussurrou-me Batota, de olhos marejados. – A senhora Fedorova é realmente uma alma sensível, é um ser muito mais humano.

    – Todas as pessoas são igualmente humanas – contestei. – Mas não se emocione com a encenação, seu Manoel. Sem drama, a vida não tem graça para os russos. Na verdade, creio que ela já está rabiscando mentalmente o livro que escreverá depois sobre o assunto. Essa choradeira toda certamente será incorporada ao texto.

    – Como podes estar a ser tão cínico, meu pelintra? Estamos a presenciar aqui o mais comovente sofrimento, fruto derivado de sincera admiração e companheirismo, e tu vens falar-me de encenação…

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    33 – Livre dos padecimentos e turbações da terra

    A nossa discussão, entre mim e o português, ou entre eu e o português – nem sei como escrever, maldita língua! -, foi interrompida por novas e interessantes frases pronunciadas pela escritora de São Petersburgo:

    – Para onde terão ido as pequeninas garrafas de uísque que deveriam estar em cima da tua geladeirinha, Mikahilichenka? Teriam sido roubadas pelos cossacos ou pelos tártaros?

    – Viu como nada lhe escapa? – sussurrei ao português. – Ela já descobriu que os agentes de Aroeira embolsaram as garrafinhas.

    – Que monumental poder de percepção tem esta rapariga! – espantou-se Batota. – Como deu ela pela falta das miniaturas?

    – Pelo faro – expliquei. – Russos sentem o cheiro de birita mesmo quando as garrafas estão muito bem arrolhadas.

    – Para de falar mal dos russos, primata! – sibilou Batota. – Não te lembras de Tolstói, Tchecov e Gógol?

    – Mas eu até gosto muito dos russos – confessei. – Aliás, Brasil e Rússia se parecem muito. São países enormes e igualmente atrasados. Lá como cá vigoram a mais desenfreada corrupção, a violência extrema e a miséria mais hedionda. Mas nós temos uma grande vantagem sobre os russos: a cachaça deixa o sujeito mais alegre enquanto a vodca inclina o seu bebedor mais à melancolia.

    – Chega de baixa sociologia, chica!, pá! – impacientou-se o gerente do hotel. – Deixa-me degustar a alta qualidade literária das amargas lágrimas de Fedorova Smerdlova.

    Então, como se estivesse esperando que nos calássemos, a robusta senhora eslava salmodiou:

    – Oxente, a morte se encontra instalada no coração do regime capitalista. Será que Mikachenka se suicidou por ter entendido que o Ocidente está vertiginosamente descendo a ladeira dos valores humanos como um jegue sobrecarregado com odres de pinga?

    Aquela fala foi demais para o emotivo Batota, que resolveu entrar no jogo cênico de Fedorova. Rosto lavado por lágrimas, o conterrâneo de Fernando Pessoa ajoelhou-se diante do cadáver de Miguela de Alcazar e, com a mão espalmada sobre o poderoso torso, recitou, em altos brados:

    Alma minha gentil que te partiste,

    Tão cedo desta vida, descontente

    Repousa lá no céu eternamente 

    E viva eu cá na terra sempre triste.

    Fedorova voltou-se para Batota:

    – Hoteleiro da muléstia, enquanto recitavas o lírico Camões, eu me vi transportada à Rússia milenar, onde florescem os girassóis! Senti que anjos me retiravam deste quarto, entre cujas paredes se aninhou a famélica e sedenta morte, e me conduziam por entre nuvens…

    A mais contagiosa das doenças é um mal que não tem cura, mais conhecido como loucura. A desembestada maluquice da russa tinha despertado a dormente demência de Batota.

    Tudo o que relato passou-se na minha frente. Era como se eu estivesse escrevendo um livro e, de repente, enlouquecidos, os personagens tivessem assumido o controle da narrativa.

    Ou eu entrava no jogo deles, e me fazia de doido, ou dava-lhes um tranco para voltassem à chamada realidade palpável, essa coisa desprezível – odiada pela gente sofisticada e bem pensante – em que vivemos nós, os assalariados.

    Optei por fazer-me de pirado:

    – Por que choras, generosa Fedorova, se Mikhailuchenka já se encontra no vaporoso céu descansando dos padecimentos e turbações desta desolada terra?

    – Não sofro só por Mikahila, muléqui. Choro também pela pobre alma da atormentada criatura que pode ter causado o falecimento da nossa companheira.

    – Mas quem poderia ter causado, mesmo que sem querer, a morte da pobre Mikahila? – perguntei, intrigado.

    – Arre égua, meu bichinho! Nós! Potencialmente, somos todos assassinos. O mal está encravado em nossas vísceras. Se baixamos a defesa por um segundo, assim o ódio transborda do nosso coração.

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    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    28 – Especulação sobre a existência de um mundo ainda pior

    Enquanto Batota, parecendo magoado com o que eu dissera, fazia beicinho de choro, eu me concentrei na observação do rosto de Miguela de Alcazar y Casas de Bourbon.

    A velha tinha os olhos abertos, como se realmente estivesse lendo. Pareceu-me serena, embora fosse difícil detectar qualquer expressão num rosto com tantas rugas.

    Uma mantilha preta, rendada, cobria-lhe metade da cabeleira incrivelmente negra. Milagre das tinturas modernas.

    Ao observar melhor o pescoço dela meu sangue gelou. Aquilo que me parecera uma minúscula sarda isolada não era uma sarda. Olhando bem de perto, percebi que era vermelha demais para ser sarda. Então me caiu a ficha. Aquilo era uma gotinha de sangue, bem em cima de uma grossa veia azulada. Percebi a seguir que, no meio da gota, havia um furinho quase invisível. Como a polícia não tinha visto aquilo?

    Mil e uma hipóteses explodiram no meu bestunto. Pensei inicialmente em mordida de cobra venenosa. Mas só se fosse cobra desdentada porque as mordidas delas sempre deixam dois furos.

    Pensei depois em uma seringa. Uma injeção de veneno? Mas por que no pescoço e não num braço?

    Mas aquilo poderia ser também uma mordida de mosquito coçada até sangrar…

    Devorei livros policiais em demasia. Como conheço todos os truques, meu cérebro fervilhava. As hipóteses se sucediam na minha mente com a rapidez de bombeiros embarcando em um caminhão de sirena ligada.

    – Que fazemos com o raio deste bilhetinho? – o português cortou-me as reflexões. – Entregamos ao delegado?

    Não quis dar a Batota a minha descoberta.

    – Vamos guardá-lo conosco – eu disse. – Ele funcionará como chamariz para atrair o assassino, se é que houve assassinato. Quando souber que o bilhete está conosco, o matador da espanhola virá para cima de nós, e, aí, nós o pegaremos…

    – Ou ele mata-nos antes – completou Batota, assustado. – Ao descobrir que o bilhete está conosco, poderá mandar-nos desta para melhor.

    – Ou pior – ponderei. – Reconheço que nosso mundo não é dos melhores. Tem guerras, miséria e muita fome. Mas eu, como pessimista fanático, penso que, se existir outro mundo, ele só pode ser bem pior.

    – Deixa-te de filosofices! – atalhou-me o gerente do hotel. – Vou agora deixar que os escritores examinem a cena do crime. Mas ficarei atento. Aquele que olhar a Bíblia com maior interesse passa a ser o suspeito número um, porque, de certeza, estará a procurar o bilhetinho.

    – Cuidado com essas lógicas simples, para não acusar inocentes! – eu o adverti. – O mais provável é que todos se interessem por esta Bíblia, que parece muito antiga e certamente é de uma edição rara…

    Não pude concluir a frase. Tive que correr atrás do português, que, em largas passadas, voltava ao salão.

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    29 – Gaúcho macho limpa lágrima com tapa

    Três dos escritores – Sim et Non, Dax e Foo – estavam à mesa rabiscando. Certamente já esboçavam romances baseados na misteriosa morte de Miguela de Alcazar.

    De cabeças baixas, Águeda Christine e Fedorova caminhavam ambas com as mãos às costas. Ou atrás das costas, como dizem os lusitanos de gema e de clara.

    Com o nariz quase roçando a parede, aparentemente interessado em descobrir falhas na pintura, Bugres recitou:

    – Todos os corredores nos conduzem a um labirinto, onde nos perderemos. Nós e o nosso outro eu. Às vezes morremos nós; às vezes, o outro. Sempre alguém acaba definhando na solidão dos labirintos.

    – Bah, tchê, não se trata só de uísque ruim – gritou Dax Chamber. – O castelhano se faz de louco pra passar bem.

    Dax era grande conhecedor de uísque. Seus olhos permanentemente raiados, sua papada vermelha e seu bafo de tigre eram sinais de sua intimidade com o licor escocês. Segundo notícia que li num tabloide inglês, não se passava um só dia sem que ele secasse duas garrafas. De litro.

    Parado na porta do salão, Batota ergueu a voz:

    – Venha, senhor Dax! Chegou a sua vez de investigar o quarto de dona Miguela.

    O americano levantou-se com esforço. Era gordo do tipo gelatinoso, recoberto por uma larga camada de banha trêmula, mais concentrada na cintura, tinha braços muito finos e compridos, que nasciam de ombros estreitos. Visto de costas, lembrava um losango.

    Apesar de ter escrito mais de cem obras, Dax era famoso especialmente por três livros: Atire antes e pergunte depois, Não abra a porta nem para o carteiro e Chumbo não derrete como gelo.

    – Como é que o senhor aprendeu a falar tão bem o gauchês, seu Dax? – perguntei, quando chegávamos ao apartamento 1313.

    – Foi em Nova Iorque, tchê. Conheci um gaudério de Camaquã que vendia churrasquinho pelas esquinas. Me enturmei com ele. Aprendi a falar até com o jeito de maconheiro de Porto Alegre, mas me amarro mesmo é no sotaque do pessoal de Uruguaiana.

    O americano limpou a garganta com três pigarros e recitou com o carregado sotaque do povo do Pampa:

    Virabosta é preguiçoso,

    Mas velhaco passarinho;

    Pra não fazer seu ninho,

    Se apossa do ninho alheio;

    Este há de, segundo creio,

    Seguir o mesmo caminho.

    – Que diabo é isso? – perguntou o Batota. – Também estará a enlouquecer o senhor Chamber?

    – Ele recitou “Antonio Chimango” expliquei, comovido. – É o mais belo poema da minha terra.

    Uma furtiva lágrima escapou-me do canto do olho para a bochecha. Limpei-a com um gesto viril, um tabefe. Depois, com voz trêmula, dirigi-me ao americano:

    – Sua pronúncia, seu Dax, é louca de especial.

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    30 – Procurando alguém que sinta vertigens

    Largas passadas levaram o americano rapidamente para junto do corpo da espanhola.

    De saída de bola, ele enfiou um par de luvas de borracha, que retirou do bolso da calça. E, sem que perguntássemos, explicou:

    – Uso luvas por questão de segurança. Vocês, cucarachas, não gostam de nós, gringos. Se eu deixasse impressões digitais aqui, vocês se serviriam delas, depois, pra me incriminar. Seria a glória para vocês, se eu fosse preso nesta cidade. Só assim um país de quinta categoria como o Brasil poderia ser citado no New York Times.

    – Temos tradição em incompetência e corrupção, mas não em canalhice! – reagi em voz alta. De vez em quando, como todo imbecil, sofro uns ataques de nacionalismo. – Dizer-me isso na cara não é só paranoico como revela megalomania. Nós, brasileiros, somos chegados a um jeitinho, é verdade. Preferimos a praia ao escritório, sim. Mas não somos, de modo algum, cretinos.

    Indiferente à minha indignação patrioteira, Dax afastou-se do cadáver e foi explorar a vasta janela envidraçada, da qual se avistava o jardim do hotel. Só então notei que havia alguns galhos roçando a vidraça. O americano tentou abrir a janela, mas não conseguiu.

    – A janela está perra por causa da ferrugem – explicou Batota.

    – Entonces o animal não passou por aqui – comentou o escritor, e tomou notas numa cadernetinha.

    – Animal? – perguntou Batota, espantado. – O senhor acredita que um bicho possa ter matado a dona Miguela?

     – Nada disso, tchê – Dax voltou-se para o gerente do hotel. – Animal, na elegante linguagem dos gaúchos, é o mesmo que ser humano, gente. Na verdade, eu me referia ao sujeito que fez a limpeza do apartamento. Se ele tivesse passado por aqui, a janela não estaria emperrada.

    – O que o senhor quer dizer com “sujeito que fez a limpeza”? – perguntei. – O senhor se refere aos empregados do hotel que fazem a faxina do apartamento ou a um possível ladrão que, além matar dona Miguela, teria roubado alguma coisa?

    Intrigado, o americano me olhou de alto a baixo. Ou não entendera a minha pergunta ou a entendera bem demais e ficara impressionado com a minha argúcia.  Não me respondeu. Anotei este detalhe na minha caderneta.

    Indiferente ao que se passava entre Dax e eu, Batota comentou:

    – É preferível mesmo que a janela fique permanentemente trancada, pois o quarto tem ar-condicionado.

    – Buenas, se a janela pudesse ser aberta, a gente teria que encontrar logo uma pessoa que sente vertigens – comentou Dax.

    – Por quê? – indaguei. – Ora, se uma pessoa sente vertigens, é óbvio que ela não se aproximaria da janela.

    – Mas é exatamente por isso, bagual! – explicou-me o americano. – Precisaríamos encontrar essa pessoa para tirar o nome dela da lista dos suspeitos.

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    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    25 – Vergonha é roubar e não poder carregar

    Finda uma muito demorada medição, na lateral, na longitudinal e até na transversal, o “topógrafo” dirigiu-se ao Batota:

    – A perícia está concluída, chefe. O povo que recolhe o corpo vem mais tarde.

    – Quando? – indagou o português.

    – Não posso precisar. É provável que venham ainda hoje…

    – Mas é claro que tem de ser hoje! Não tem outra forma.

    – Essa questão não é com a gente. É com o pessoal do Instituto Médico Legal.

    – E eles costumam demorar assim tanto? – indagou Batota.

    – Não quero assustar o senhor, mas eles sempre demoram – respondeu o agente. – Eles têm dois rabecões, que nunca funcionam ao mesmo tempo. Sempre um está avariado. Quebra uma peça, eles substituem com a do outro carro. Um dia, por milagre, os dois rabecões estavam funcionando. Aí, faltou dinheiro pra gasolina.

    – Mas isso é uma vergonha!

    – Vergonha é roubar e não poder carregar – retrucou o fotógrafo, belicoso.

    O português ia replicar, mas eu lhe fiz um sinal para que ficasse calado. E murmurei, pelo canto da boca:

    – A demora vai ser boa pra nós, seu Manoel. Poderemos investigar o local com calma.

    Depois que os peritos embarcaram no elevador, o lusitano interrogou-me:

    – As perícias nesta cidade são sempre assim, tão malparidas?

    Respondi:

    – Eu, se fosse o senhor, mudaria a pergunta. Indagaria: as perícias aqui em Brasília são sempre assim, tão minuciosas?

    – Mas esses sujeitos não constatariam o assassinato de Mikahilucha mesmo que ela tivesse sido morta por um tiro de canhão – comentou Fedorova. E tomou um gole imenso para repor a saliva gasta naquela frase.

    – Concordo com o jornalista – disse Águeda Christine. – Esses peritos só se esmeraram muito porque a morta é famosa demais da conta.

    – Bah, vou então ser o primeirão a investigar – disse Dax Chamber. – Fui eu que tive a ideia.

    – Sem essa, meu irmão – estrilou Sim Et Non. – Que tal fazer um sorteio?

    – Sorteio? – perguntou Bugres. – Por que não um azareio? A vida dos homens é regida pelo azar e não pela sorte.

     – Que o destino escolha nossos nomes em pedaços de papel! – disse Foo Lee Shi Man e rasgou uma folha. – Vou escrever nossos nomes aqui. Um sorteio decidirá a ordem de entrada no quarto… Bem, somos seis…

    – Sete! – berrei. – Sou o único brasileiro aqui. Exijo que o Brasil seja representado nessa investigação. Basta de colonialismo!

    – E os peritos, uai? – perguntou Águeda Christine. – Por acaso, eram suecos?

    – Eram funcionários públicos – contra-argumentei. – Funcionários públicos não contam para nada, em nenhum país do mundo. E acho que o Brasil ainda faz parte do mundo. Ou não?

    Para minha surpresa, um longo e generalizado silêncio, recheado de cabeças que assentiam, patenteou a aceitação da minha tese.

    – Vamos logo, tchê – disse Dax a Foo. – Estou mais nervoso que galinha agarrada pelo rabo. Hoje mesmo começo a trabalhar duro num livro sobre a morte de Miguela de Alcazar.

    – Deixe de ser bobo, sô – ralhou Águeda Christine. – No Brasil, o único trabalho duro que essa gente faz com gosto é comer rapadura.

    Por incrível que pareça, fui o primeiro a ser sorteado. Pela ordem, vieram depois os papéis com os nomes de Dax, Fedorova, Águeda Christine, Sim et Non, Foo e Bugres. Parecia cena de um roteiro de filme. Ou de um guião, como dizem os torcedores do Benfica.

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    26 – Recordando a aula sobre a beleza do crime

    Depois da surpresa, o pânico. De repente, tremi na base.

    Representar dignamente meu país naquela investigação, diante de tão destacados concorrentes, mais do que um desafio, seria um dever patriótico indeclinável.

    Bem, confesso que não sou dos mais patriotas. Cheguei a torcer pela seleção argentina de futebol num jogo contra a nossa. Sei que muita gente morreu por menos que isso. Mas o jogo foi no auge da nossa ditadura militar e eu acreditava que o regime cairia se a seleção brasileira fosse massacrada. E tem mais: o nosso treinador era antipático.

    Tendo então resolvido pedir ajuda ao gerente, peguei-o pelo braço:

    – Seu Manoel, nós dois, que falamos a língua do divino bardo que escreveu Os Lusíadas, precisamos juntar forças. Que tal unirmos a esperteza portuguesa à inteligência brasileira!

    – Não seria melhor unirmos a esperteza brasileira à inteligência portuguesa? – reagiu ele.

    – Seja como for! – respondi entusiasmado. – Imagine se conseguimos desvendar a morte de Miguela de Alcazar antes desses gênios da criminalística! Seria a glória para a comunidade das nações lusófonas.

    – Não sei se é isso uma boa ideia, pá – o português vacilou.

    – Mas o senhor me deu aquela magnífica aula sobre a beleza do crime perfeito!

    – Era aula teórica. Na prática, a coisa muda de figura. Não percebo nada de crimes. Desconfio até dos mortos.

    – O senhor é muito modesto! – empurrei-o para dentro do 1313. – Entre!

    Entramos, ou entrámos, como falam do outro lado do Atlântico. Como já disse, a cena proporcionaria um belo quadro a Velázquez. A velhota estava recostada na poltrona a mirar com olhos vagos um exemplar da Bíblia que sustentava, aberto, nas mãos. Lembrei de Medalhão lendo o Eclesiastes.

    Aproximei-me da morta e lancei um olhar ao livro, que estava aberto na última página, de número 1313. O fim do Apocalipse.

    – Isto é coincidência demais pra ser apenas coincidência – murmurei.

    – Qual coincidência? – quis saber Batota.

    – A Bíblia está aberta na página 1313, que é o mesmo número deste apartamento.

    – Minha Nossa Senhora de Fátima! – o português persignou-se. – Já não estou a gostar da brincadeira. Isto é sobrenatural, com certeza. Até fico com os cabelinhos do sovaco em pé.

    Inclinando-me sobre a defunta, percebi que havia uma pequena tira de papel solta na página 1313. Discretamente, peguei-a.

    – É um bilhete! – excitado pela descoberta, passei-o a Batota. – Vamos ler! Leia!

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    27 – Há lugar para todos na lista de suspeitos

    O tal bilhete estava escrito em português, em letras de forma, tremidas como se rabiscadas por alguém muito velho ou nervoso.

    Batota o leu em voz baixa para que ninguém – além de mim, é óbvio – o escutasse:

    Durante o Congresso, eu te desmascararei, Miguela. Apontarei os trechos dos vários livros que plagiaste ao escrever O touro maltês.

    A assinatura era uma só letra: S.

    – Raios! Não há dúvida! Este bilhetinho é a prova que dona Miguela foi assassinada! – concluiu logo o português.

    – Não prova nada – retruquei. – Mostra apenas que ela corria o risco de ser desmascarada por alguém. Ou que alguém a queria chantagear.

    – E quem será esse misterioso S? – perguntou ele.

    – Poderia ser o S de Shi, ou de Sim et Non.

    – Sem dúvida!

    – Mas poderia ser também o S de Strandford – acrescentei. – É o sobrenome de solteira de Águeda Christine.

    – Que loucura! – exclamou Batota. – Assim, só ficam de fora o argentino e o americano.

    – O americano, não! – estrilei. – Ele é conhecido no seu país como Dax “Speedy” Chamber. Em português, seria: Dax “Ligeirinho” Chamber.

    – Então, só fica de fora o argentino – concluiu o portuga.

    – Esse não! – gritei. – Ele estará em qualquer lista de suspeitos que eu fizer porque tem dois esses perdidos no meio do seu nome.

    – Mas também valem agora os esses espalhados pelo nome? – indagou Batota, olhando-me pelo canto de olho. – Nesse caso, Campestre de Campos, tu entras também para a relação dos suspeitos. Só eu, Manoel Joaquim Batota, estou livre dessa letra fatídica.

    – Justamente por isso, por ser o único aqui que não tem a tal letra no nome, o senhor é suspeitíssimo.

    – Era o que faltava! Disponho de várias testemunhas a meu favor! Tenho um bom álibi. Desde o início desta manhã, não estive um só momento sozinho.

    – Também tenho um álibi – retruquei. – Desde que entrei neste hotel, estou ao seu lado. Ou seja, estamos juntos desde quando o senhor ameaçou me matar…

    – Esquece aquilo. Foi uma brincadeirinha. Porém, vi que, quando chegaste ao hotel, antes de entrares no prédio, foste ao jardim. Durante esse tempo, poderias ter escalado a parede, entrado no apartamento de dona…

    Aquela afirmação me indignou. Eu tinha ficado um só minutinho no pátio. E exercendo uma tarefa romântica: curtir o aroma da terra molhada pela chuva!

    – E o que fazia o senhor antes de chegar à portaria do hotel, onde tentou arrancar-me o braço?

    – Ora essa! Eu estava no meu escritório, mais precisamente no quarto de banho do meu escritório.

    – Num local onde nunca há testemunhas, não é?

    – Tu és paranoico, pá! Do gênero dos que veem pentelhos até em bolas de bilhar.

    – Se ocorre uma morte num congresso de escritores policiais – retruquei –, até mesmo um pacato português tem de virar suspeito.

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    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    22 – Turistas estrangeiros têm o péssimo hábito de morrer no Brasil

    Jerônimo Aroeira lançou um olhar de desprezo aos escritores, e depois voltou a encarar a falecida.

    – Vi milhares de mortos ao longo da minha carreira – disse o delegado. – Os que se vão naturalmente desta vida têm no rosto um ar de triunfo. Veja esta cara enrugada! Parece estar dizendo: bem-feito pra vocês, que ficaram aí nesse vale de lágrimas.

    – É verdade – concordou Batota. – Dona Miguela devia estar muito feliz na hora da morte.

    – Já os assassinados têm sempre uma expressão de contrariedade – o delegado se pôs a andar pelo quarto. – Ninguém gosta de ser despachado às pressas deste mundo.

     – Sem dúvida – admitiu Batota. – Ser empurrado para fora da vida é algo muito irritante.

    – Bem, mesmo estando certo da morte natural. Enviarei pra cá os homens da Perícia Criminal – acrescentou Jerônimo Aroeira. – Afinal, não é todo dia que eles têm um cadáver de alta categoria pra autopsiar.

    – Precisamos provar que dona Miguela teve morte natural – insinuou em voz baixa o gerente. – Se alguém levantar suspeitas de um homicídio, a imagem do hotel fica beliscada.

    – Devíamos proibir a entrada de estrangeiros no Brasil – filosofou Aroeira. – Morrem por qualquer coisinha, às tantas até de resfriado. Turistas estrangeiros só nos dão dor de cabeça. Gastam pouco dinheiro aqui, e depois ainda costumam ter o hábito de morrer atropelados por motoristas bêbados ou então fuzilados por assaltantes. Isso quando não se metem na frente de balas perdidas.

    – Sim, temos de passar a aceitar apenas turistas imortais – palpitei. – Porque, mesmo quando eles morrem de causas naturais, os jornais do exterior sempre arranjam um jeito de atacar este pobre  nosso país, tão pacífico e seguro.

    – Você continua metido a engraçadinho, gaúcho? – indagou o policial.

    – Ganho pouco, delegado. Preciso me divertir de vez em quando.

    – Não há divertimento melhor do que lambuzar a bunda de mel e sentar-se sobre um formigueiro – recomendou-me Aroeira. E, voltando-se para Batota, indagou: – Quer dizer que toda essa velharia que está aqui no corredor escreve livros policiais?

    – Sim. Vieram de todos os cantos do mundo, de propósito para um congresso aqui em Brasília. Desejavam conversar sobre novas tramas para os seus livros policiais, as modernas técnicas de assassinato e como criar personagens marcantes.

    – Se visse esse povo na rua, diria que são fugitivos de uma clínica geriátrica ou de um hospício – comentou o delegado enquanto se encaminhava para o corredor, seguido pelos seus auxiliares.

    Os agentes de Aroeira ostentavam grossas correntes de ouro nos pulsos e no pescoço. Meganha sem corrente ou pulseira de ouro é como criança pobre sem vermes, dizia meu pai.

    Da porta do elevador, o delegado ainda gritou: – Seu gerente, não deixe que ninguém entre no quarto antes dos peritos! Depois, se for constatado que a velha foi assassinada, eu volto!

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    23 – Preferência pelos assassinatos em série

    Pouco depois da saída de Jerônimo Aroeira, já reunidos em torno da grande mesa redonda, destinada inicialmente ao debate das mais altas questões literárias, os romancistas decidiram investigar o caso.

    Quem começou a conversa foi Águeda Christine:

    – Gente, se todos os policiais brasileiros forem do nível desse delegado, o índice de esclarecimento de crimes não deve ser dos mais altos. Ele acha que Miguela morreu de velha. Esse moço parece não ter um espírito científico muito forte.

    – Discordo – disse Sim Et Non, sorrindo cinicamente. – Ele está tão preocupado com os aspectos científicos que, inclusive, mandará vir a Perícia. Cada macaco no seu galho.

    – Sim, deve pertencer à elite dos investigadores brasileiros – constatou Fedorova ao mesmo tempo em que olhava a garrafa contra a luz para ver o tanto de bebida que ainda havia dentro dela. – Ele até me lembrou bastante o chefe da Polícia de Moscou, Frascóvio Ilitch Botelhowhisky, que inventou uma técnica porreta de investigação. Antes do interrogatório, ele pega o suspeito pelo gogó, dá-lhe uns tapas na cara e diz: “Ô cabra, ou tu bebe uma garrafa de vodca todinha ou te espremo os bagos”. Quase sempre o sujeito prefere preservar os colhões, mas fica totalmente bebum e confessa o crime, mesmo não o tendo praticado.

    – A gente podia adaptar essa técnica para o Brasil – palpitei. – É só trocar a vodca por cachaça.

    – É, de fato, um método bom e barato – ajuntou Fedorova. – O chefe de polícia anterior ao Frascóvio costumava meter a porrada nos amarelos, mas a posterior internação deles em hospital saía muito cara.

    – Bah, que coisa mais ignorante! – meteu-se Dax Chamber. – Nos Estados Unidos dominamos as melhores técnicas de investigação. Ficámos um país rico porque nosso povo tem espírito científico. Somos pragmáticos e eficientes. Se me derem cinco minutos, descubro o que levou Miguela ao outro mundo. Americanos fazem tudo mais rápido e gastando menos dinheiro.

    – Em se tratando de morte, ninguém parece ser mais eficiente que os americanos – concordou Bugres. – Bons atiradores, eles matam dezenas de pessoas todos os dias em variadas chacinas nas escolas, estacionamentos ou supermercados. Mas, vejamos, na literatura, a eficiência não é atributo relevante. Embora os serial killers dos Estados Unidos matem mais gente em menos tempo, eu prefiro os assassinatos em série praticados na Inglaterra. Têm mais apelo literário.

    – Que conversa furada, mano! – chiou Foo Lee Shi Men, entediado. – Quem sabe apostamos pra ver quem descobre primeiro o motivo que levou dona Miguela à morte?

    Dax colocou a mão no ombro de Batota:

    – Seu gerente, será que a gente não podia ficar uns minutinhos na cena do crime, depois da Perícia. Só pra fazer uma investigaçãozinha. – Está bem – concordou o português. – Mas tenho de convencer os peritos para vos deixarem entrar no quarto. Não vos dou grandes esperanças, porque eles vão sentir-se ofendidos. Os brasileiros não gostam muito de trabalhar, mas ficam furiosos se alguém lhes propõe fazer de maneira eficiente aquilo que eles costumam fazer de má vontade.

    Criminologist

    24 – Debate sobre a secreta natureza dos defuntos

    Para nossa grande surpresa, até pelas últimas palavras de Batota, os agentes da Perícia Criminal – um fotógrafo e um agente –  não demoraram a chegar.

     E mais rápidos foram no trabalho. O retratista encerrou seu trabalho em um segundo: fez uma foto da morta e cruzou os braços.

    – O senhor não gostaria de fazer mais fotografias? – indagou Batota, cordial. – Dona Miguela era muito famosa. Certamente, no futuro, jornalistas e historiadores virão a Brasília para examinar o laudo policial. Seria assim melhor se houvesse…

    – É uma foto por defunto, meu chapa – bocejou o fotógrafo. – Ordem da chefia da poupar. Aqui, em Brasília, matam doze figuras por dia. Dá um filme certinho. Quando matam mais de doze, os últimos ficam sem o retratinho póstumo, entendeu?

    – Claro, mas no caso…

    – Para mim, morto é todo igual – o retratista bocejou de novo. – Olhe essa velha! Nem com maquiagem pesada a cara dela melhora.

    Quando o gerente do hotel lançou um olhar desalentado na nossa direção, resolvi apoiá-lo. Gritei então para o fotógrafo:

    – Amizade, o negócio é o seguinte: essa morta é famosa pra cacete no mundo inteiro. As agências de notícias pagarão o que tu quiseres pelas fotos. Com essa grana, depois, poderás até trocar de bicicleta.

    A minha informação chegou rapidamente ao cérebro do indivíduo. Mesmo dando ares de contrariado, ele sacou a máquina e desembestou a flashar dona Miguela de tudo quanto era ângulo.

    Igualmente sacudido pelas minhas palavras, o outro agente, de posse de uma trena, começou a mostrar serviço, medindo furiosamente o apartamento. Verificou a distância da morta à cama, à janela, ao armário, à porta. Depois, anotou a distância entre os diversos móveis. Tudo o que antes não fizera.

    – Estou agora comovido com a dedicação do “topógrafo”, meu – murmurou Foo Lee Shi Men. – Será que ele desvenda muitos crimes com aquela trena?

    – Ele não é pago pra desvendar nada – meti minha colher torta. – O coitado ganha um salário tão mixuruca que o máximo que exigem dele é que faça relatórios legíveis. No caso, com números legíveis.

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    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    19 – O risco que se corre ao beber uísque do país errado

    Os escritores, Batota, o garçom e eu formávamos um bolo compacto de gente ansiosa. Nossos olhos comiam cada centímetro de abertura, corriam para cima e para baixo, varriam o carpete e as paredes do quarto de Miguela de Alcazar.

    – O que os olhos não vêem o coração não sente – disse Bugres, com forte entonação de desprezo.

    Então, por fim, vimos Miguela de Alcazar y Casas de Bourbon a cinco metros de nós, sentada numa confortável poltrona, junto à janela, lendo.

    Respirei mais aliviado.

    Naquela hora, pensei que, se quisesse retratar a paz, um artista bem que poderia pintar aquela cena: a empertigada mulherinha lendo, tranquila e concentrada.

    O português sussurrou:

    – Está tão entretida que se esqueceu do compromisso. Olhem que serenidade!

    – Está pra lá de serena, meu – disse Foo Lee Shi Man. – Eu diria mais: está assustadoramente tranquila. Não, mano, eu diria: está mortalmente em paz.

    As palavras do escritor chinês – autor de livros famosos como Guerra na Praça da Paz Celestial e Arroz envenenado – caíram como uma ducha de água fria sobre nós.

    – Valha-me, Deus! – murmurou Batota e avançou pelo quarto.

    Deteve-se a um metro da poltrona e, espichando o tronco, observou atentamente o rosto de dona Miguela. Por fim, voltou-se para nós e sussurrou:

    – Parece não respirar.

    – Caraca, malandro! – chiou Sim Et Non. – Na França, pessoa que não respira quase sempre está morta.

    – A morte esteve por aqui – acrescentou Bugres. – Sinto seu cheiro no ar. Exala um odor pestilencial. A traiçoeira morte caminha silenciosamente como os tigres. Conheço-a há muitos anos, mas tenho conseguido enganá-la até hoje. Espero dar de cara com ela só depois que embolsar os dólares do Prêmio Nobel, se é que serei laureado. Com aquele dinheiro talvez consiga corrompê-la. Na América Latina até mesmo a morte é subornável. 

    Concluída a frase, o argentino rompeu a gargalhar como um possesso.

    – Bah, não tem nem dúvida – disse Dax Chamber. – A espanhola bateu com a alcatra na terra ingrata, deu com o rabo na cerca, defunteou-se, ou seja, passará a comer capim pela raiz.

    – Cacete, mermão! – voltou Sim Et Non. – Este congresso não vai ser apenas teórico. Será prático também porque já temos uma morte pra desvendar.

    – Bah, me deixem examinar a defunta – disse Dax Chandler, e saiu do meio do bolo em que estávamos imprensados. – Pode ser que essa velhusca esteja se fazendo de morta só pra gozar das nossas fuças.

    – Nada disso! – berrou Batota e, metendo a mão no peito do americano, o empurrou para fora do quarto. – Eu bem sei que o Brasil não é um país sério. E por isso sei também que os brasileiros conhecem bem as leis, mas só para as contornar melhor. Porém, lembrem-se: somos estrangeiros e o melhor é chamar a Polícia. Afinal, o país é deles.

    – Chamar a Polícia brasileira? – perguntou Foo Lee Shi Man. – Pra matar quem, meu?

    – Calai-vos, por favor! Basta de piadas! – urrou o português e, depois de empurrar-nos a todos para o corredor, fechou a porta do 1313. – Ninguém entra neste quarto, e ponto final! Vossas senhorias deixariam marcas por todos os lados, só atrapalhariam a investigação dos peritos…

    – Aprecio demais da conta o seu humor finíssimo – disse Águeda Christine, sorrindo pelo canto da boca, dirigindo-se ao luso. – Muito bem, ocê vai chamar peritos em quê? Em samba? Maracutaias? Ziriguiduns?

    – Os espelhos não conseguem refletir o escaveirado rosto da morte – disse o poeta argentino e bateu a bengala no chão. – A eternidade foi aprisionada nos livros. O tempo não passa de uma execrável metáfora escrita nas listras de uma zebra. Não acredito na dupla imortalidade: ou morrerei eu ou morrerá o Outro, o Impostor.

    – Nénada disso, sô – disse a escritora inglesa, encarando Bugres. – O seu uísque, meu véio, é que foi produzido no país errado. É por isso que ele lhe fez tanto mal. É por modo desse uísque qu’ocê está tendo essas visões.

    – Caluda! – berrou Batota. – É extraordinária a vossa falta de humanidade! A mais famosa escritora espanhola morreu no meu hotel, e os senhores e as senhoras não param de dizer disparates. Silêncio, por favor! Vou ligar já para a Polícia!

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    20 – Quando a matéria-prima é a tragédia

    Mesmo durante o discurso do Batota os escritores não se calaram, é claro. Continuaram a entrecruzar diálogos nervosos enquanto Batota no telefone do corredor disparava ligações em busca de uma autoridade policial que se dispusesse a dar uma olhada na falecida.

    Encostado na parede, fazendo cara de sonso, eu observava atentamente o que ocorria diante de mim: os olhares, gestos, tiques e cacoetes de todos os escritores. E, com o uso do gravador, registrava todas as frases pronunciadas ali. Frases que, se bem analisadas, teriam outro significado além daquele que o mero alinhamento das palavras parecia indicar. Frases que eu deveria escutar novamente, com atenção ainda maior, mais tarde.

    Naquele momento eu me senti realmente um verdadeiro profissional do jornalismo em ação. Subitamente, minha reportagem ganhara intensidade, densidade e profundidade. Na minha cabeça já era uma reportagem que simplesmente se iniciava com a morte de uma das mais famosas escritoras de livros policiais do mundo. Era sorte demais! Do ponto de vista jornalístico, claro. O que posso fazer se a mais preciosa matéria-prima da minha profissão é a tragédia?

    De repente, uma ideia penetrou na minha cachola com a fulguração e a contundência de um raio. Eu, Campestre de Campos Campelo, jovem e modesto repórter do Correio de Brasília, estava ali e era simplesmente o único jornalista de toda a vasta terra a presenciar um acontecimento histórico: a morte de Miguela de Alcazar na abertura de um congresso de escritores policiais.

    Um tremor nervoso me sacudiu dos pés ao cabelo.

    Imaginei então, naquele já distante fevereiro de 1978, que, no dia seguinte, as primeiras páginas de todos os jornais de todo o mundo exibiriam a minha assinatura. By Campestre de Campos Campelo, from Brasília. Pour Campestre de Campos Campelo, en direct de Brasília. E em outras línguas mais esdrúxulas e que desprezam as vogais. E abaixo das manchetes garrafais, meu texto. Nervoso, ágil e irônico. Vívido. Envolvente. Uma obra-prima de concisão e ironia, segundo o The New York Times. Só receava que, ao registrarem meu nome, errassem a grafia.  Por exemplo: que esquecem o P do último sobrenome.

    Suspirei fundo para me livrar daquele delírio.

    Perguntei-me em silêncio: de que terá morrido a maior escritora espanhola de todos os tempos?

    Uma banal morte por velhice empobreceria o meu relato, mas um assassinato…

    Eu queria travar os pensamentos que me acossavam, para me concentrar no que estava vendo, mas a minha excitação era muito grande. A reportagem que eu escrevesse a respeito daquela morte, morrida ou matada, fosse como fosse, seria vendida para o mundo inteiro e desviaria rios de dinheiro para o meu bolso. Em dois ou três dias, eu seria famoso mundialmente. E rico. Logo, minha reportagem seria editada em livro e adaptada para o cinema. Depois, o Nobel de Literatura e o Oscar. Adeus, miséria!

    Suspirei outra vez mais, mais fundo ainda, para me limpar mesmo deste delírio.

    – Vou dizer uma coisa pra vocês, macacada – anunciou Sim et Non, entre duas cachimbadas. – Miguela era uma figura muito venenosa. Tão venenosa que, se mordesse a língua, morreria por causa de sua própria peçonha. Portanto, por mim, está decidido.

     – A quenga era mesmo safada! – concordou Fedorova. E, depois de um grande gole bebido diretamente no gargalo da garrafa, acrescentou: – Ela não se contentava só em falar mal duma pessoa, tratava logo de humilhar também.

    – Mas não será o esnobismo maledicente uma característica comum a todos os escritores ocidentais? – perguntou Foo Lee Shi Man, fingindo-se de tolo.

     – Bah, estamos mais parados que água de poço – lamentou-se Dax Chamber. – Ou a gente começa logo esse congresso ou investiga a morte de Miguela. Se ficarmos neste lero-lero, vou pro meu quarto escrever porque americanos estão sempre ocupados…

    – Verdade! – comentou Águeda Christine. – Ocês estão sempre muito ocupados com batata frita e Coca Cola.

    – Muié, tu qué insinuar que os americanos são todos barrigudos? – perguntou Fedorova.

    – Nada disso, uai – reagiu a inglesa. – Americano é gordo por inteiro, da canela ao pescoço. Tudinho obeso. Pançudo a gente acha mais nos países pobres. É verme, minha fia.

    – Quem trabalha duro, mano, são os chineses – comentou Foo Lee Shi Man. – Eu escrevo quinze horas por dia, seis dias e meio por semana. Aproveito as tardes de domingo pra ler jornais, pingar colírio nos olhos e aparar as unhas.

    – O que é um jornal? – perguntou Jorge Luís Bugres, assim de repente. E ele mesmo respondeu: – Um museu de minúcias efêmeras.

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    21 – Morta mesmo antes de falecer

    Aproveitei a deixa do argentino

    – Por falar em jornalistas, senhor Bugres, eu lhe pergunto: o que pensa sobre a morte de dona Miguela?

    – Respondo com outra pergunta: terá ela se defrontado com sua própria morte, pessoal e intransferível; ou terá sido alcançada por morte que lhe foi imposta por outrem?

    Era uma frase forte demais para que eu não insistisse:

    – O senhor acredita que dona Miguela possa ter sido assassinada?

    Todos os escritores voltaram-se para o poeta argentino.

    – Jornalistas! – exclamou Bugres. – Não posso vê-los, mas posso senti-los. Sempre afoitos, preocupados com insignificâncias… Mesmo assim, respondo com um poema esloveno, do século VII antes de Cristo.

    Bugres limpou a garganta e recitou:

    Apagou-se a mulher como uma vela

    Seu coração era uma ardente chama

    Azeitada de ódio, brilhante de rancor,

    Que o Diabo para si reclama

    Estávamos a deglutir as misteriosas palavras do poeta quando saltaram do elevador os policiais chamados por Batota.

    Eram quatro. À frente, vinha a figura inconfundível do delegado Jerônimo Aroeira, titular da Primeira Delegacia, meu velho conhecido. Vestia-se de preto, com exceção da gravata borboleta, multicolorida. Por trás dele, estavam três policiais típicos: barrigudos, pescoçudos e mal-encarados.

    – Quem é o responsável pelo hotel? – perguntou o delegado.

    – Manoel Joaquim Batota, aqui estou às vossas ordens e para os vossos pedidos – o português estendeu a mão ao policial.

    – Onde está a presumida vítima? – Aroeira fingiu não ter visto a mão do português.

    Naquele dia, o delegado trazia duas cartucheiras cruzadas no peito, um fuzil no ombro e três granadas no cinto.

    – O senhor parece estar preparado pra guerra, delegado – comentei.

    – Eu estava numa guerra, gaúcho. Foi numa agência bancária no Setor Comercial Sul. Evitamos um assalto. De cara, matamos quatro, mas os bandidos sobreviventes fizeram alguns reféns. Lançamos granadas de gás lacrimogêneo e três outros criminosos se renderam logo. Dois deles resistiram e nós fomos obrigados a picotá-los a tiro. Mas, como sabe, só recorremos à violência em última instância.

    – A polícia brasileira é competente demais da conta – comentou Águeda Christine em voz baixa. – Proteja-nos Nossa Senhora!

    – Mal botei o ponto final na operação, recebi ordem do secretário de Segurança pra vir imediatamente até aqui – continuou Aroeira. – Parece que temos aqui um óbito de qualidade internacional…

    – Era uma famosíssima escritora espanhola – explicou Batota. – Das maiores do mundo.

    – Onde está o corpo?

    – Aqui dentro – o português abriu a porta do apartamento 1313.

    – Esse bagulho aí? – o policial avançou na direção do cadáver. – Aposto meu pescoço que já estava morta antes mesmo de falecer. Com que idade estava?

    – Noventa e seis anos, que eu saiba – respondeu Batota.

    – Morreu em boa hora, que Deus a tenha – Aroeira benzeu-se e, apontando para os escritores, indagou de Batota: – Você desconfia de algum dos integrantes desse clube da terceira idade?

    – Fale baixo – sibilou o português. – São estrangeiros, mas falam todos a nossa língua. E também são famosíssimos escritores de livros policiais.

    Black Cat Walking on Road

    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    16 – Propensão para traçar tribufus, mocreias e jaburus

    A russa interrompeu a falação no exato momento em que entrava na sala um terceiro escritor: o famosíssimo Georges Sim Et Non, criador do casmurro detetive Jales Maigrot.

    Parei de respirar, à beira de um ataque de nervos. Nunca pensei que Medalhão falava a sério quando me mandou para o tal congresso de autores de livros de suspenses.

    Como disse, simplesmente parei de respirar. E não me lembrei de recomeçar.

    O francês Sim et Non é um dos meus autores favoritos. Tenho mais de trezentos dos romances que escreveu. Reli inúmeras vezes seus livros mais importantes: O homem que via passar o bonde, Sangue na névoa e O cachorro verde-amarelo.

    Pequeno, magro, ligeiramente encurvado, ele chegou com as mãos enfiadas nos bolsos da capa de gabardina, que estava com a gola levantada. Segurava entre os dentes a haste de um cachimbo fumegante. Com passinhos miúdos e rápidos, dirigiu-se ao estrado. Parou por trás da cadeira que lhe cabia, segurando o recosto.

    Seus olhos claros, de um verde esmaecido, giraram gelados em volta da mesa até que se detiveram em mim, que estava agonizando, quase morto de falta de ar. Com o choque daquele olhar, recomecei a respirar.

    O francês sentou-se e em voz alta e forte, com acentuado sotaque carioca, cheio de xis inexistentes e de erres arrastados, dirigiu-se ao Batota:

    – Meu irrmão, me diga um negócio: vamuix ou não vamuix ter recepcionixtaix neixte Congresso? Falo de garotaix, claro.

    Havia desapontamento na voz dele. Era do conhecimento geral que Sim Et Non apreciava mulheres jovens e bonitas, especialmente se desfrutáveis. Mas também era famosa sua propensão para, na falta daquelas, traçar tribufus, mocreias e jaburus. Papava o que pintasse. Sua fama de mulherengo empedernido e de amante frenético corria o mundo.

    – Não, mestre! – disse Batota, tão vergado que parecia decidido a lamber o chão. 

    – Putisgrila! Já que estamos nos trópicos, pensei que teríamos aqui tradutoras, estenógrafas e massagistas – disse o francês, e passou a língua pelos beiços para recolher a saliva. – Enfim, os mais variados exemplares da variada população feminina nativa.

    – Ficou combinado que, além dos senhores escritores, apenas eu e este jornalista permaneceremos nesta sala – explicou o português.

    – É homem demais pro meu gosto – lamentou Sim Et Non. E, depois de lançar um rápido olhar a Fedorova e Águeda Christine, perguntou: – E escritoras? Teremos outras? Mais jovens?

    – Só está faltando aqui dona Miguela de Alcazar y Casas de Bourbon – disse Batota.

    – A bruxa espanhola? – o rosto do francês franziu-se num esgar de desprezo. – Pensei que já estivesse no inferno dando trabalho ao Diabo.

    – Ela vai entrar agora – disse o gerente do hotel consultando um papelucho que tinha na mão. – Pelo sorteio, é a quarta pessoa a adentrar esta sala. Ou seja, neste exato momento…

    Com um rápido giro de pescoço, todos – escritores, Batota e eu – voltamo-nos para a porta. Foi um movimento uniforme, bonito mesmo, como se orquestrado, aquele que nasceu das palavras do português.

    Estávamos certos de que veríamos enquadrar-se na moldura o vulto magro e rosto seco e enrugado da velha escritora espanhola. Mas passaram-se muitos preciosos segundos, um minuto, dois minutos, e nada de Miguela de Alcazar aparecer.

    – Vixe santa, o que estará a fazer a megera? – perguntou lá pelas tantas Águeda Christine. – Espanhóis não costumam se atrasar.

    brown fabric seat near brown wooden pedestal table

    17 – Morte é sempre a primeira hipótese

    Passados dois minutos, três minutos, o que apareceu na porta foi a cara de lua de Dax Chamber, o mais famoso autor americano de livros e de roteiros policiais. Após observar-nos com atenção, um por um, ele perguntou:

    – Mas, bah, tchê, adonde está a Miguelita?

    Eu já não tinha mais espanto para gastar. Acabava de ver em questão de minutos quatro dos meus maiores ídolos literários, todos falando em português brasileiro, cada um com um sotaque diferente. Para culminar, ali estava Dax Chamber falando com o sotaque peculiar da minha terra. Se quisesse ter uma emoção à altura, eu precisaria cair vítima de uma síncope, sucumbir, falecer. Para depois ressuscitar feliz.

    Notei que o americano empalidecia rapidamente. O sangue que lhe alimentava as veiazinhas da face – conferindo-lhe um tom róseo – fugia-lhe às pressas do rosto.

    – Adonde anda a piguancha baixinha? – insistiu ele. – Ela não deveria ter entrado antes de mim?

    Todos os outros escritores se movimentaram, inquietos, nas cadeiras. Fedorova tossiu e a caneta que estava diante dela rolou até o centro da mesa.

    – Ora, por certo estará a ajeitar-se no quarto – disse Batota, sem muita convicção. – Atrasou-se um pouquinho, apenas isso.

    – Miguela é pontualíssima – comentou Águeda Cristine. – Sempre chega na hora marcada que é pra poder aborrecer por mais tempo a paciência dos outros.

    – Mas, bah, viventes, me digam uma coisa: adonde é que se enfiou a castelhana? – insistiu Dax Chamber.

    O rosto do americano – que lembrava um prato, no formato; uma geléia, na consistência; e um lençol, na cor – mostrava grande preocupação.

    Todos os presentes se entreolharam, cismados.

    A primeira a sair do torpor foi Fedorova:

    – Onde está o corno do garçom que não volta com a minha pinga? Será que o condenado aproveitou a viagem pra assassinar Mikahilucha? Ou será que os agentes da KGB, que estão sempre tentando me liquidar, se enganaram de apartamento e mataram a velha?

    – Morte é batata! – disse Sim Et Non e soltou uma tétrica baforada. – Sempre que há um furdunço num congresso de escritores de histórias policiais, a morte é a primeira hipótese a ser levada em conta.

    Senti que havia como que uma carga elétrica no ar. Todos que estavam naquela sala trocavam rápidos olhares escorregadios.

    A pergunta de Dax Chamber – sempre pronunciada no mais genuíno gauchês – veio em nova roupagem:

    – Mas eu pergunto pra vocês, baguais: peladonde anda a cucaracha velhusca?

    Nesse momento, surgiu ao lado de Dax Chamber um homenzinho de terno preto. Por baixo de uma basta cabeleira preta, havia uma máscara amarela, na qual se destacavam dois olhos rasgados, nada mais que finos traços horizontais.

    Meu combalido coração mais uma vez disparou. Sem dúvida, aquele era Foo Lee Shi Men, o genial escritor chinês.

    Passando à frente do americano, o baixinho disse:

    – A morte, mano, se confunde com o sono mais profundo. Ou dona Miguela foi ferrada pelo sono ou foi ferrada pela morte! As chances de que uma pessoa deitada esteja morta são, meu, sempre de cinquenta por cento.

    Além do mano e do meu, Foo Lee Shi Men havia dito cinqueinta por ceinto. Seu sotaque, conclui, era paulistano da gema.

    table lamp turned-on near bed

    18 – Recorde mundial de movimentação em elevadora

    Morte.

    Também nas frases do escritor chinês surgira a palavra terrível. Ora, quando vários escritores de livros policiais, num mesmo lugar e hora, falam em assassinato ou morte, as pessoas ficam muito nervosas. Foi o que aconteceu então.

    Nós todos nos entreolhamos. Trocamos olhares surpresos, espantados, inquietos, interrogativos, suspeitosos e assustados. Nessa ordem exata. Se nossa imobilidade persistisse, logo faltariam adjetivos para descrever nossos olhares.

    Batota foi o primeiro a reagir à tétrica insinuação. Saltou da cadeira e apressado deixou a sala.

    Segui as pegadas dele.

    Ofegante, o português deteve-se diante da porta do apartamento de número 1313, ocupado por Miguela de Alcazar. Após um segundo de hesitação, bateu de leve.

    Nada de resposta.

    Estávamos já cercados pelos escritores ansiosos. O silêncio era profundo, mas pareceu-me escutar o surdo rumor daqueles cérebros brilhantes funcionando.

    Mais uma vez, mais forte, o gerente do hotel bateu à porta.

    – O silêncio está cheio de facas sedentas – disse uma voz muito rouca.

    Voltamo-nos todos na direção daquela voz. Vimos um velho magro de arrepiadas sobrancelhas grisalhas avançando pelo corredor. Tateava o chão e a parede com uma bengala.

    – É Jorge Luís Bugres! – gritei.

    – Todos aqui o conhecem – disse Batota.

    – É o divino Bugres! – continuei, excitado. – O poeta cego de Buenos Aires, o maior escritor das Américas, senhor das adagas, rei dos labirintos, domador de tigres, semideus dos espelhos…

    – Deixa-te de mariquices! – rosnou o português para mim. E, em voz alta e clara, indagou do recém-chegado: – O que quer dizer o senhor poeta com isso das facas sedentas?

    Bugres deteve-se perto de nós e falou:

    – Vocês batem à porta de Miguela porque temem pela vida dela. Bem, se ela estiver morta, será o fim deste hotel porque jornais do mundo inteiro dirão que no Brasil turistas são assassinados até mesmo dentro de quartos fechados. Porém, se Miguela estiver só sesteando, será ainda mais terrível porque os espanhóis defendem com garras e dentes o seu sagrado direito de tirar uma soneca no meio do dia. Miguela tem o gênio de um touro furioso e certamente vai matar aquele que a acordar.

    Batota levou o indicador à fronte e o girou. Para ele, o famoso Bugres não passava de um maluco. Depois, como para afrontar o poeta, esmurrou com força a porta do apartamento 1313.

    – Se a espanhola investir, sai-lhe bandarilha! – ameaçou o português.

    Passou-se um longo minuto e nada.

    Vendo o garçom que chegava, trazendo na bandeja uma garrafa de cachaça, o gerente do hotel gritou a ele:

    – Corre à portaria, pedaço de asno, e traz-me a chave-mestra. Já!

    O garçom girou nos calcanhares e sumiu no ventre do elevador que o havia trazido.

    – A minha birita! – urrou Fedorova. – Puta que pariu esse garçom! Eu devia dar-lhe um murro nos cornos! Vou morrer de sede! Volte aqui, chifrudo!

    – O serviço aqui é ruim demais da conta – comentou Águeda Christine, torcendo o nariz. – Os nativos são todos meios lesadinhos.

    Como que para contrariar a inglesa, o elevador se abriu um segundo depois e dele saiu o garçom. Acabara de bater o recorde mundial de descida e subida de elevador com bandeja. Fedorova voou em direção a garrafa de cachaça, derrubando Foo Lee Shi Men e Bugres.

    – Perdão, oxente, mas eu não suportaria ver esse baitola desaparecer outra vez com a minha pinguinha – disse a escritora russa à guisa de desculpas, e arrancou com os dentes a tampa da garrafa.

    Ofegante, o garçom entregou a chave-mestra ao gerente do hotel. Lenta e silenciosamente, Batota enfiou a chave na fechadura. E ainda mais vagarosamente a girou. Ouvimos um estalido. Em câmera lenta, o gerente foi abrindo a porta do apartamento 1313.

    hallway of building

    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    13 – A secreta ligação entre garçons e ladrões

    – Chegamos aos elevadores – digo eu.

    – Sim, chegámos aos ascensores – confirma o Batota.

    O ascensorista do hotel, como todos os seus irmãos de ofício, exibia uma tremenda unha de cinco centímetros no dedo mínimo da mão esquerda, utensílio de que se utilizava para a exploração das côncavas cavernas dos seus ouvidos.

    – Para que andar vamos, seu Manoel? – perguntou o unhudo quando embarcamos.

    – Para todos! – urrou o português. – Aperta em todos os botões. Descemos no andar que quisermos.

    De imediato, já recuperado do súbito acesso de raiva, Batota explicou-me em voz baixa:

    – Temos cinquenta apartamentos neste hotel. Vinte no primeiro andar e vinte no segundo. No terceiro, estão as dez suítes para os hóspedes de maior importância.

    Descemos. Saímos no terceiro andar.

    Abrindo os braços, Manoel Joaquim Batota sussurrou trêmulo umas palavras que trepidavam de emoção:

    – Aqui estão eles. Quatro gênios à minha esquerda, mais três gênios à minha direita. Quantos mortais no mundo inteiro tiveram o privilégio de vê-los assim, aqui reunidos, de ouvi-los, de admirá-los? Ninguém antes. Vivemos aqui um momento raro, tu e eu, Campestre. Devíamos cair de joelhos e agradecer ao Senhor por esta abençoada oportunidade.

    O lusitano respirou fundo, passou a mão pelos olhos já marejados e acrescentou:

    – Por quarenta e oito horas estas sumidades estarão no meu hotel. Enfrentarão pesada agenda, com incontáveis reuniões de trabalho. Somente duas pessoas têm autorização para permanecer na sala de debates: tu e eu. Somente um garçom virá aqui, de vez em quando. Cogitei em trazer-lhes tradutores, mas os escritores os recusaram. Como todos sabem falar inglês, francês e espanhol, escolherão a língua que quiserem. E tu, qual dessas línguas sabes falar bem?

    – Bem, nenhuma bem – respondi. – Mas me defendo em portunhol porque me criei em Bagé, na fronteira com o Uruguai. Arranho um pouco de francês, e dou uns tapas em inglês, que é a língua mais primária do mundo.

    – Como assim, néscio?! – o lusitano irritou-se. – Primária? Como podes dizer isso do idioma de Shakespeare, meu idiota?

    – Por causa da conjugação do verbo to be – expliquei. – Veja só: you are, they are. É como se a gente dissesse em português: tu és, eles és.

    O gerente do hotel permaneceu alguns segundos em silêncio coçando a cabeçorra.

    – Talvez não sejas tão estúpido como pareces à primeira vista.

    Paramos ao final do corredor. Batota esfregou vigorosamente as mãos antes de escancarar uma porta na qual se lia: Sala de Reuniões.

    – Está quase na hora dos nossos gênios saírem da toca.

    Entramos. A sala media uns quarenta metros quadrados e tinha umas trinta poltronas. Ao fundo, sobre um estrado, encontrava-se uma grande mesa redonda, em torno da qual havia sete cadeiras de assento e espaldar estofados em veludo. Em cima da mesa, sete microfones, blocos de rascunhos e canetas.

    O alfacinha apontou para um canto do estrado onde estavam duas cadeiras comuns:

    – Ficamos ali. A menos de três metros dos escritores. Mesmo que venhas a passar o resto da porca da tua vida de joelhos diante de mim jamais conseguirás agradecer-me o suficiente pelo imenso favor que hoje te presto.

    Subimos ao palco e, calados, tomamos posse de nossos modestos assentos.

    Mal nos sentamos, ingressou no salão um sujeito vestindo calça preta, paletó branco, camisa branca e gravata borboleta preta. Sem muito esforço, conclui ser o garçom. Mas, surpreso, percebi que aquele era o primeiro do seu ofício que eu via usando óculos de lentes mais grossas que fundo de garrafa. Lembrei de uma frase que o pai sempre repete quando vamos a um restaurante:

    – Nunca vi ladrão de óculos nem garçom míope, filho. Até nisso eles se parecem bastante.

    O garçom curvou-se diante de Batota:

    – Alguma recomendação especial, seu Manoel?

    – Permanece sempre invisível. Materializa-te apenas se precisarem de ti.

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    14 – Sangue, sexo e sobressaltos

    Desaparecido o garçom, o português voltou-se para mim:

    – Espero que os nossos geniais escritores sejam pontuais. Existe um protocolo minucioso do ingresso deles no salão. Entram sozinhos e com intervalo de dois minutos entre um e outro. E a ordem de entrada foi ditada por sorteio.

    Consultei meu relógio: três horas em cima da pinta.

    Voltei os olhos para porta e, um segundo depois, vi adentrar a sala de reuniões do Imperial Hotel da República nada mais nada menos que lady Águeda Christine, a quase centenária primeira-dama do crime inglês.

    Foi demais para o meu futebol. Agarrei-me à cadeira e fechei a boca para que o coração não me escapasse por entre os dentes. Ali estava em carne e osso – mais apropriadamente, em pelancas e ossos – a autora de clássicos como Assassinato no expresso Liverpool-Manchester e O sucessivo falecimento de dez meninos de cor, a criadora do famoso detetive Herculano Poire.

    Águeda Christine era mais alta, mais magra e mais velha do que eu pensava, mas reconheci-a pelos cabelos pintados de azul. Logo meus olhos correram para as mãos da escritora inglesa. Eu sabia que era apaixonada por joias. Naquele dia ela usava oito anéis de diamantes grandes como bolas de golfe.

    De imediato, liguei o gravador.

    Manoel Joaquim Batota não se aguentou dentro das calças, correu até ela e, meio ajoelhado, resfolegante, babujou-lhe os anéis.

    – Credo! – disse Águeda Christine, em português, com forte sotaque mineiro. – Não foi boa a safra do vinho qui´ocêandou bebendo, Chateau Gauchier, 1972.

    Incrível! A escritora inglesa havia descoberto a marca e até a safra do vinho só pelo bafo do filho da Lusitânia!

    – Brilhante descoberta, lady Águeda! – extasiou-se o Batota. – Foi mesmo um Chateau Gauchier, mas nem dei atenção ao ano da safra. Mas por saber que vos encontraria, após o almoço, escovei furiosamente os dentes, a língua e as gengivas. Como pôde a senhora descobrir que…

    – Uai! Depois da criação de Sherlock Holmes, todos nós, britânicos, ficamos bem mais espertinhos.

    – Fantástico! – continuou o gerente do hotel. – Eu bebi apenas…

    – Três taças!

    Batota arregalou seus olhos negros:

    – Como a senhora sabe até o número de taças?

    – Pelo número de raias vermelhas nos seus olhos, bobão!

    – Estou absolutamente pasmado. Venha comigo, lady Águeda, vou conduzi-la ao lugar que lhe cabe na mesa. Mas diga-me, no entretanto, apenas uma coisinha: onde a senhora aprendeu a falar tão bem a língua do glorioso Camões?

    – Foi em Londres com o meu jardineiro, um rapaz bobinho de Minas Gerais, chamado Bonifácio. Toda hora ele virava pra mim e recitava um trechinho de Os Lusíadas. A parte de que gosto mais é aquela que diz assim:

    Antes, em vossas naus vereis cada ano,

    Se é verdade o que meu juízo alcança,

    Naufrágios, perdições de toda sorte,

    Que o menor mal de todos seja a morte!

    – Oh! – entusiasmou-se o português. – É lúgubre, mas divinal!

    – Belo livro de aventuras! – acrescentou a inglesa. – Os Lusíadas é uma obra atulhada de tempestades, guerras, traições, cobiça e mulheres bonitas. É disso que gostam os leitores.

    – Belíssima tese! – disse Batota, sacudindo com movimentos concordantes sua cabeçorra. – Mas, fale-me da vossa receita de sucesso. Como faz para deter tantos apreciadores em todo o mundo?

    – Eu minto, uai! Quanto mais inacreditável a história, mais leitores eu arranjo. Escritores de livros policiais apenas repetem a fórmula dos jornais populares: sangue, sexo e sobressaltos.

    – Permita-me discordar! – disse Batota, lançando um olhar enviesado na minha direção. – A senhora está a ser muito modesta. Diga antes ser a vossa prodigiosa imaginação que vos permite inventar tantas histórias maravilhosas. E a vossa imensa gentileza depois concede-nos a benesse de nos deleitarmos com essas maravilhas.

    – Deixa de ser bobo, sô! Invento nada, não. Os fatos mais estúrdios acontecem primeiro com as pessoas e só depois de relatados pelos jornais é que surgem nos meus livros. A gente só faz adaptar o que leu nas gazetas.


    15 – A paixão brasileira por chope e dança

    A segunda escritora a adentrar o salão, exatamente dois minutos depois, foi a impressionante Fedorova Smerdlova Dornascostasviskáya.

    Era outra santa que tinha lugar de honra no altar dos meus deuses da escrita. Mundialmente famosa, ela havia passado quarenta e cinco dos seus cinquenta e oito anos nas prisões da Sibéria e da ilha de Sacalina. Durante trinta anos esteve em cana, na jaula propriamente dita. O restante ela viveu, ainda menina, numa casa ao lado da prisão onde se achava preso seu pai, o poeta anarquista Fiodor Iuri Ivan Igoróvitch Dornascostasviésky.

    Sou capaz de jurar que ela tinha uns cinco centímetros a mais do que a altura registrada na sua biografia oficial, que era de um metro e oitenta e cinco.

    Seu rosto tinha a cor de uma barra de giz. Por isso, ganhavam força o vermelho do batom que ela usava nos lábios grossos, o carmim que ostentava nas bochechas e o preto do rímel que lhe sublinhava os esgazeados olhos cinzentos.

    Não sou especialista em vestuário, mas julgo que o roxo predominante na saia xadrez que ela vestia não combinava bem com os riscos amarelos da blusa vermelha nem com o estampado do blêiser verde-limão.

    – Boa tarde, apostemas! – gritou para nós a russa, com sua voz de baixo profundo, num fortíssimo sotaque nordestino.

    Fedorova trazia firmemente preso pelos dentes um charuto cubano de dez centímetros. De circunferência. O comprimento era o dobro.

    Ela avançou a passos largos pela sala e com um salto acrobático pulou para cima do estrado, que tremeu e gemeu. Com um alentado suspiro, causador de uma tormenta que agitou as folhas do seu bloco de anotações, sentou-se ao lado de Águeda Christine.

    A seguir, seus olhos correram nervosos pela sala, como que procurando microfones escondidos.

    – Isso aqui mais parece um velório, cacete! – gritou. – Cadê a música? Russos não fazem nada sem bebida e dança. Dizem que a grande paixão dos brasileiros é por chope e dança. Cadê os músicos?

    – Não me deram ordem para providenciar música! – desculpou-se Batota, curvado diante de Fedorova.

    Apontando com o charuto fumegante para o português, a mulherona indagou:

    – Mas diga-me, cabra da peste, onde tão aqueles bronzeados e bronzeadas, que, seminus, rebolam, obscenos, ao som de pandeiros e tamborins? Por aqui só vejo rostos sombrios. Onde está a histérica alegria dos brasileiros?

    – Valha-me Santo Antônio! – meio zonzo, Batota pediu ajuda ao céu.

    – Deixe de embromação, seu filho de uma égua. Onde está a cachaça? Você deve saber que um russo, quando abre uma garrafa, só para de beber quando ela fica seca ou quando ele próprio vai para o hospital.

    – Bebida posso conseguir-lhe imediatamente – disse o gerente do hotel e bateu palmas.

    Como combinado, o garçom materializou-se imediatamente.

    Agarrando o garçom pela lapela, a autora de Contravenção e penalidade, Um dia na vida de Ivã, o Terrível e Guerra é guerra gritou:

    – Você, seu amarelo, traga logo uma garrafa de cana! Pode ser de qualquer marca, mas tem que estar cheia até os cornos!

    O garçom desmaterializou-se em fração de segundo.

    Fã de carteirinha da autora russa, eu estava simplesmente aparvalhado. Agarrado à cadeira, eu tentava dominar os tremores de frescura que me percorriam o corpo. Quando, por fim, Fedorova dirigiu seu olhar na minha direção, eu quase me derreti de tanta emoção. E ela continuou a discursar:

    – Estou avexada com Brasília. Esta bosta aqui lembra Moscou. Milhares de funcionários vagabundos, gordos todos, de ternos mal cortados, rodando o tempo todo em carros negros; um bêbado em cada quarteirão; e mendigos por todo lado. Realmente, estou me sentindo em casa.

    – Onde vossa excelência aprendeu a falar esse português castiço? – indagou Batota, pasmo por perceber que também Fedorova arranhava bem a última flor do Lácio.

    – Na Sibéria, com um vigarista cearense chamado Alencar. Ele foi pego vendendo vodca falsificada no Metrô de Moscou. Cumpriu pena de vinte anos de trabalhos forçados na Sibéria. Na prisão de Gorógrado, fundou uma fábrica de redes. Foi lá que o encontrei. Alencar era tão habilidoso que consertava relógio no escuro usando só os cotovelos…

    white and black ceramic teapot beside clear wine glass

    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    10 – Ganância, inveja, ingratidão e loucura

    O português piscou indeciso. Não sabia se eu falava a sério ou se estava de gozação. Quando falam com brasileiros, os lusos partem sempre de uma premissa: este gajo está a engambelar-me. Ou a endrominar-me, como dizem eles, do outro lado do oceano. Batota sacudiu a cabeça para recuperar-se do golpe e perguntou:

    – Andas armado, ó estupor?

    – Não. Ando mal de numerário, mas confesso que ainda não pensei em assaltar.

    – Num país com tantos criminosos, como o Brasil, devemos andar sempre com uma arma à mão. Andam por aí bandidos à solta pelas ruas aos milhares, matando e assaltando. E, no final, fica tudo na mesma. A polícia não os prende. Inconcebível!

    – Não seja tão trágico – ponderei. – Olhe a questão pelo meu ângulo. Preciso desses assaltos e assassinatos. Escrevo sobre eles. Em troca, o patrão me dá um dinheirinho para sobreviver até o final do mês. A isso, a essa rotina, eu chamo vida, minha vida.

    Sou assim mesmo, bastante sardônico. Minhas frases sempre escondem um tantinho de horror por trás das brincadeiras.

    O gerente do Imperial moveu-se inquieto na cadeira:

    – A tua rotina, patife, é apenas um fragmento insignificante da grande tragédia humana. Fazes parte de um espetáculo maior, embora me pareças um mau ator. Já ouviste falar em Shakespeare?

    – Qual era a área do sujeito? História em quadrinhos?

    Ele nem me ouviu. Melhor assim.

    Rei Lear é a peça dele que mais aprecio. Ela escalpeliza os traços mais marcantes dos homens: a ambição, a inveja, a ingratidão e a loucura.

    Manoel Joaquim Batota levantou-se bruscamente da cadeira. Mas isso não o ajudou: ele continuou baixinho. Lenta e teatralmente, enfiou a mão no bolso interno do paletó e dele retirou um canivete.

    Não era um canivete comum, desses que as pessoas usam para tirar sujeira das unhas ou para desmanchar tabletes de maconha prensada. O imenso canivete era daqueles que têm, além da lâmina, saca-rolhas, abridor de garrafa, termômetro, bússola, tesoura, relógio, calculadora e radinho de pilha.

    A lâmina que saltou do miolo do canivete remeteu-me à minha infância. Lembrei-me do gigantesco facão que era usado pelo nosso açougueiro lá em Canguçu.

    Vagarosamente, o gerente do hotel caminhou na minha direção, recitando um poema de João Cabral de Melo Neto:

    O que em todas as facas

    é a melhor qualidade:

    a agudeza feroz,

    certa eletricidade,

    mais a violência limpa

    que elas têm, tão exatas,

    o gosto do deserto,

    o estilo das facas.

    Parou a dois passos de mim, ameaçador, teatral:

    – Vais confessar, antes de morrer, o verdadeiro motivo que te trouxe até aqui? Vieste para me matar ou para jogar uma bomba no meu hotel? Percebi logo que, embora parvo, és um verdadeiro criminoso.

    stainless steel knife on black surface

    11 – Mentira para assustar babacas do terceiro mundo

    Naquele baita canivete estava a confirmação da demência que eu vislumbrara, logo na primeira mirada, nos olhos de Manoel Joaquim Batota. Das paixões humanas, citadas há pouco, a mais pronunciada neste cidadão lusitano era a loucura.

    Com o enorme canivete apontado para o meu pescoço – que, como todo humano pescoço, não tem osso –, ele continuou:

    – Que te parece preferível, pancrácio, o impacto seco de uma bala nos duros ossos do teu crânio ou o suave deslizar de uma lâmina afiada na tua rubra e cálida garganta?

    A extensa frase era mesmo assustadora, mas, convenhamos, o estilo poético não era dos piores. Como sou especializado em manusear pensamentos tolos em horas impróprias, pensei o seguinte: com um fraseado tão elegante, este portuga, se quisesse, entrava na hora para a Academia Brasileira de Letras. Pensei e disse:

    – Se o senhor Batota pleiteasse uma cadeira na ABL, talvez ficasse com a 23, que foi de Machado de Assis, com a benção de Quincas Borba.

    – Cala-te energúmeno! Como podes brincar com coisas sérias? Não sabes tu que a cadeira 23 pertence ao grande Jorge Amado, autor da maior novela humorística brasileira, que é A morte e a morte de Quincas Berro D`Água?

    Não respondi porque o gigantesco canivete seguia a perigosos cinco centímetros da minha carótida, presumo que para me desaconselhar o emprego de chufas, motejos, pilhérias, chistes e assemelhados.

    Com gestos ainda mais demorados, mas sempre sem tirar os olhos de mim, o português virou-se ligeiramente de lado e, com a mão esquerda, abriu uma gaveta. Dela retirou um revólver. Na verdade, um mísero calibre 22. Talvez aquela arma não fosse capaz de acabar com a minha raça, mas certamente me causaria algum dano.

    – Escolhe, cão dos infernos! – berrou ele. – Bala ou faca?

    Finalmente, compreendi a pergunta dele em toda a sua plenitude: altura, largura e profundidade. Aparentemente, ele não estava brincando. Queria mesmo saber se eu preferia morrer degolado ou fuzilado. Não era um dilema filosófico que me atraísse muito. Prefiro sempre discutir questões de menor transcendência. Como, por exemplo: por que o condicionador acaba sempre antes do xampu?

    Naquele momento, pela primeira vez na vida, achei que realmente corria o risco de ser mandado para o beleléu.

    Aí, me perguntei: que vim eu, descendente da brava estirpe dos centauros dos pampas, fazer nesta terra de árvores enfezadas e retorcidas? Vim para morrer nas mãos de um doido, de um lusitano lunático, de um lusitanático? Se vim para isso, por que gastei tanto com a passagem de avião? Por que não peguei um ônibus?

    É assim mesmo. Quando se defronta com a morte, a gente faz um monte de perguntas. Por que não passei uma cantada na minha prima, aquela gostosa? Por que não fui morar em Florianópolis, que é a cidade preferida dos maconheiros gaúchos? Lá, pelo menos, tem praia.

    Suspirei fundo.

    Com um insano sorriso pendurado nos lábios, Manoel Joaquim Batota aguardava minha resposta. Faca ou bala? Nas provas da faculdade, eu não gostava de questões desse tipo. Preferia as de múltipla escolha, com possibilidade de três opções.

    Pigarreei para ver se tirava da garganta o medo pegajoso que tomara conta dela ou de mim:

    – Se pudesse escolher um tipo de morte, eu optaria pelo atropelamento, seu Manoel. Gostaria de ser esmigalhado por um caminhão carregado com pedras. Seria uma morte indolor.

    – Indolor e sem graça, estúpido! Não passas de um simplório. Não te seduz o crime intrincado, ardiloso e requintado? O crime que faz jus às nossas origens latinas? A casca de banana na sala da velha perneta. O etanol na botija do cachaceiro. O cidadão claustrofóbico preso no elevador de um prédio comercial durante o fim de semana. O excesso de medicação dado pelo enfermeiro negligente. A sabotagem nos travões do carro.

    Entusiasmado como político diante de câmera de televisão, o luso não parava:

    – Pensa nos homicídios que nem chegam à polícia e nem aparecem nos jornais. Todo dia, no mundo todo, milhares de crimes perfeitos são praticados por pessoas comuns. Na verdade, não há nada mais excitante do que cometer um crime e nada se pagar depois…

    – Aqui no Brasil não é bem assim – contestei. – Os ricos, é certo, sempre livram o pescoço. Só a chinelada vai em cana.

    – Não se trata de dinheiro, lorpa! – atalhou-me. – Estou a falar-te de inteligência assassina. Conheço mulheres simples, lavadeiras ou faxineiras, que moem vidro para colocar no feijão-com-arroz dos maridos infiéis. Outras ateiam fogo aos barracos onde eles cozinham as bebedeiras. Tivemos uma camareira aqui no hotel que matou o marido com veneno de rato na farofa. Como ela moía muito o feijão, o desgraçado nem percebeu… Por acaso, já notaste que no Brasil o número de viúvas é mais expressivo entre as mulheres mais pobres?

    – Não! – respondi, verdadeiramente surpreso.

    – Pensa um pouco, palerma, naqueles crimes maravilhosos relatados pelos engenhosos escritores de livros policiais. Os assassinatos em série. O crime do quarto trancado à chave. O morto assassino. As crianças diabólicas. Os objetos com vida própria, que se movem.

    – O senhor tem razão – disse eu, já francamente bajulador. – Realmente, a morte pode ser uma coisa de extremo bom gosto e sofisticação.

    – Então, como podes tu, meu grande bobo, preferir a sensaboria de um camião carregado de pedras?

    – Por causa da minha origem, doutor Batota. Nós, gaúchos, amamos a simplicidade até mesmo na hora da morte. Uma facada no bucho, um tiro na testa, uma paulada no cocuruto, uma capação sem anestesia. E pronto.

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    12 – Argumentação a favor do serial killer

    – Sim, Campestre, sei que os gaúchos são uns primitivos! Todo o mundo sabe! Porém, eu, nascido na pátria de Gil Vicente, Luís Vaz de Camões e Fernando Pessoa, sou um homem refinado. Por exemplo, para me deliciar com tua agonia, eu poderia agarrar-te pelo pescoço com a mão esquerda e, simultaneamente, com a direita enfiava teus dedos na tomada

    – Sim, mas, nesse caso concreto, o senhor tomaria o choque junto comigo.

    Às vezes, principalmente nos momentos menos indicados, sinto a tentação de ser didático. Quando permanece dentro de mim, sem ser compartilhado, o conhecimento me sufoca. Na verdade, amo a humanidade, gosto de dividir com ela minha inteligência. Ali, por exemplo, eu falava com conhecimento de causa. Formei-me rádio-técnico pela Escola Técnica de Pelotas e possuo razoável noção de eletricidade. Levei uns dez choques terríveis.

    – Pois, palerma… Então amarrava-te os braços e as pernas e depois cortava-te os pulsos. E arrematava com golpes pequenos, porém profundos. Ficarias a esvair-te em sangue. Quantas horas pensas que seriam necessárias para ficares sem pingo de sangue?

    Decidi, pensando estar já livre de funestos tormentos, dar trela ao gerente do Imperial Hotel da República. Como se sabe, todo maluco gosta de papo. Decidi espichar a conversa com ele até que aparecesse alguém para me socorrer.

    – O senhor Batota tem toda a razão. O estilo é tudo em um criminoso. Mas eu, pela minha humilde extração, sou um bronco. Morte por morte, prefiro a bomba atômica. Uma só explosão leva milhares de pessoas desta pra uma melhor. Sem gritos, sem sofrimento.

    – Deixa-te de parvoíces, meu estulto! Só ingênuos acreditam na existência da bomba atômica. Isso é mais uma das mentiras dos russos e americanos para assustar os babacas, como vocês dizem, do Terceiro Mundo.

    Olhei espantado para Manoel Joaquim Batota. Aquela ideia era interessante. Sem dúvida, ele era um biruta acima da média. Prossegui:

    – O que o senhor Manoel acha dos serial killers? – indaguei.

    – São uns reputados imbecis que acabam apanhados e sempre mortos. A parte mais doce de um crime é justamente o momento posterior, ou seja, é o prazeroso usufruto da impunidade.

    – Gosto dos serial killers porque sabem transplantar a eficiência americana para os morticínios em massa. Ninguém mata mais gente em menos tempo, gastando menos projéteis, que um americano,

    Sem perceber a agudeza da minha argumentação, Batota virou o pulso que empunhava o revólver e consultou o relógio. Aproveitei para olhar o meu também. Estava curioso para conhecer a hora exata da minha morte, se ele decidisse afinal disparar. Faltavam dez minutos para as três da tarde.

    Um calafrio percorreu-me a coluna cervical. Teria aquele bigodudo assassino predileção pelas horas redondas para praticar seus crimes?

    – Vamos lá embora. O nosso Congresso está para começar – disse, de repente, o português e, empertigando-se, guardou o revólver na gaveta. – Passaste no meu teste de coragem. Sendo tu mais um tolo, nem és dos mais cagões.

    Em seguida, num gesto rápido e elegante, ele recolocou o canivete gigante no bolso interno do paletó.

    Uma onda de raiva subiu-me à cabeça. Maldito portuga! Tudo não passara de brincadeirinha. Pensei em baixar o braço nele. Mas desisti logo porque ele era – como dizem os gaúchos – mais reforçado que sapato de padre, mais pescoçudo que touro de exposição, maior que geladeira de açougue. Um armário, repito, como dizem em português de discoteca.

    Durante o tempo todo da brincadeira eu permanecera firme, mas, no desfecho, aliviado, veio-me uma formidável frouxidão nas pernas. Manaram suores por todo o meu corpo e eu senti a urgente necessidade de recolher-me a um local privado.

    – Cadê o banheiro? – perguntei. – Há um por aqui?

    – Ali!

    Batota apontou para uma porta onde se lia: “Perigo. Depósito de Produtos Químicos”.

    Minutos depois, ainda mais aliviado, de barriga vazia, em companhia do gerente do hotel, deixei aquele maldito escritório.

    – Quer dizer que vai haver mesmo esse tal Congresso? – perguntei-lhe, no corredor. – Pensei que não passava de um trote em cima do pobre Medalhão.

    – A pensar morreu um burro da tua idade. Fui eu quem deu a informação ao Medalha, a esse grande camoniano, um excelente cidadão e cristão convicto. Nunca o enganaria.

    – Sem dúvida, ele é um homem muito sensato e comedido.

    Chegamos ao saguão de entrada.

    Vários dos sujeitos engravatados tinham resvalado para o sono sonoroso.

    – Estes pobres diabos aparecem de todos os cantos do país para tratar aqui em Brasília de problemas de seus municípios – disse Batota. – Mas nem sempre conseguem audiências nos Ministérios, e vão ficando. Vês aquele ali, com cara de índio? Vai fazer um ano que aqui está. É o Zé Tapajós, Veio de Macapaiutubanarema, ou coisa parecida, no Amazonas. Ouviram falar por lá que foi inventada a penicilina, O Tapajós quer umas doses, mas parece que o encarregado dos remédios no Ministério da Saúde foi para Inglaterra fazer um doutoramento.

    Nem sei bem para que estava me contando aquilo.

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    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).