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  • A segunda morte de Miguela de Alcazar

    A segunda morte de Miguela de Alcazar


    A primeira publicação de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar ocorreu em meados de 1991, quando um amigo de peladas de futebol de salão do Clube da Imprensa, Vicente Sá, poeta e jornalista da área de Cultura, me convidou para escrever um folhetim para o BsB Letras, suplemento literário de um semanário de distribuição gratuita no Distrito Federal.

    Acho que já tinha uns capítulos escritos, mas não estou certo disso. O fato é que me comprometi a partejar um capítulo de umas quinhentas palavras por semana. E foi o que fiz, metralhando de madrugada num computador pré-histórico que me custou uma boa grana. Título da época: Morte no Brasília Palace.

    O primeiro capítulo saiu em 28 de abril de 1991. Depois, vieram 21 semanas, sem pular uma só, até que no dia 15 de setembro apareceu o derradeiro. Tenho todos esses hoje amarelados fascículos nos meus arquivos implacáveis. Para mostrar aos inimigos, se a isso for desafiado.

    Lourenço Cazarré

    Passaram-se uns dez anos e um dia falei a um amigo, Jorge Schelb, sobre o folhetim. Ele se interessou, quis ler. Passei-lhe então uma cópia. Ele leu, ou mentiu para mim que leu, e me incentivou a recuperar aquela historieta, dando a ela mais altura, largura e profundidade.

    Foi assim que, em 2001, o livro começou a crescer. Trabalhei nele por alguns anos, vitaminando episódios, apimentando diálogos e retocando os personagens. Mas sempre me rindo muito porque A Misteriosa morte de Miguela de Alcazar é, antes de tudo, um livro de humor. Ou dito de outra forma: é uma sátira aos romances policiais.

    Confissão de leitor: durante décadas consumi literatura policialesca. Comecei com o belga Georges Simenon, em 1972, quando comprei, numa promoção da Livraria Mundial, em Pelotas, dez volumes protagonizados pelo detetive Jules Maigret. Depois, li os americanos Raymond Chandler e Dashiell Hammett.

    Voltando ao Miguela. Em 2009, com o apoio do Fundo de Cultura do Distrito Federal, o livro foi publicado pela editora Bertrand Brasil. Pelo que sei, não teve lá uma vendagem muito boa. Talvez até se possa dizer que foi péssima. Mas a verdade é que o panfleto teve uma boa recepção por parte da crítica. Guardo cópias de várias dessas resenhas positivas. Para mostrar aos inimigos, se isso eles me exigirem.

    Pois bem, rolaram mais alguns anos e lá por 2017 conheci em Lisboa um escritor português, Pedro Almeida Vieira, autor de romances históricos e crónicas que se passam no Brasil (Assim se pariu o Brasil e O profeta do castigo divino). Encontramo-nos no Chiado, ao redor de um bacalhau, Pedro, Enio Squeff e eu. Enio é um artista plástico gaúcho radicado em São Paulo que ilustrou livros meus e do Pedro.

    Edição original em livro de ‘A misteriosa morte de Miguela de Alcazar’, publicada no Brasil em 2009.

    Algum tempo depois, falei para o Pedro sobre A misteriosa morte. Confessei a ele que nunca havia ficado satisfeito com as frases que inventara para o personagem coadjuvante, o lusitano senhor Joaquim Manoel Batota.

    Mal comparando, o Batota, o gerente de um hotel de Brasília, é feito da mesma matéria-prima que Watson, o auxiliar de Sherlock Holmes.

    Aliás, já que falamos do ajudante, não custa nada dizer algumas palavras sobre o principal personagem do livro, Campestre de Campos Campelo, um jovem jornalista gaúcho recém-chegado ao Planalto Central. Anarquista e debochado, é ele quem narra a confusão que ocorre durante um Seminário Internacional de Escritores Policiais, que não se realizou em Brasília em meados dos anos 1970.

    Voltando ao Pedro. Depois de ler o original, ele decidiu a participar da brincadeira. Mais que isso, eu diria que ficou muito entusiasmado diante do desafio de assumir a grave missão de dar à dicção de Batota a parecença de uma fala realmente lusitana. E de plantar, aqui e ali, flores de sarcasmo português pelo meio de um folhetim tupinambá.

    Seguindo. Pode-se dizer, sem medo de errar, que este é também um romance sobre alguns dos muitos sotaques da língua portuguesa. Título da resenha do poderoso O Globo: “Uma divertida homenagem à literatura”.

    Pois muito que bem, todos os escritores que participam do tal Seminário falam português, com diferentes sotaques brasileiros.

    A russa Fedorova Smerdlova Dornascostasviskáia, por exemplo, fala exatamente como o vigarista cearense – conhecido nos seus anos de degredo na Sibéria – que consertava relógios, no escuro, usando só os cotovelos.

    Primeiro capítulo publicado em 28 de Abril de 1991 no BsB Letras do folhetim então intitulado ‘Morte no Brasília Palace‘.

    Já a inglesa Lady Águeda Christine pratica o mineirês, um jargão no qual a palavra você perde o v. Aliás, os mineiros, quando conversam, ficam o tempo todo girando. “Aí, ela virou pra mim e disse”. “Aí, eu virei pra ela e disse”.

    Já o belga Sim et Nom se socorre do carioquês, dialeto em que os esses deslizam, os erres derrapam e o esse final é trocado pelo x (pronuncia-se doix, treix).

    Vem depois o americano Dax Chamber, conhecedor do gauchês, um linguajar meio espanholado, cheio de metáforas campeiras (quase sempre grosseiras), cujos falantes, em todas as suas frases, metem um bah e um tchê, expressões que não têm significado algum.

    O chinês Foo Li Shi Man fala como um paulistano, ou seja, alguém que chama os outros, o tempo todo, ou de mano ou de meu. Ah, e que pronuncia cinqueinta por ceinto.

    Só agora, passados trinta e tantos anos, vejo que não dei um sotaque específico ao argentino Jorge Luís Bugres. Se o desse, hoje, seria o curitibano, difícil de satirizar porque as pessoas da capital do Paraná pronunciam perfeitamente todas as letras como elas parecem dentro de uma palavra.

    São conhecidas por falarem corretamente a frase “leite quente da dor de dente”, brincadeira que não pode (obviamente) ser reproduzida em um texto (obviamente) impresso.

    Pois bem, agora, durante vinte e duas semanas, se é que a matemática não em engana, Pedro e eu trabalhamos na versão final, que é essa que os leitores do PÁGINA UM tiveram diante dos olhos. Sinceramente, espero que nossos improváveis leitores tenham se divertido tanto quanto nós, ao escrever. Trocando (a trocar) e-mails todas as semanas, fomos afinando a ironia e a zombaria, a mofa e a galhofa. Rindo sozinhos diante do écran (tela) luminescente, destilamos doses de veneno bem maiores que as das edições anteriores.

    Uma das recensões do folhetim policial aquando da sua publicação original em livro.

    Como se sabe, escritores do Brasil gostam de falar mal do seu país tanto quando os portugueses adoram atacar a mítica Terrinha (vide Eça).

    Agora, nos unimos, Pedro eu, para, pela primeira vez na História da Humanidade, apresentar uma novela policialesca escrita por gajos separados por quase oito mil quilômetros de distância. Sim, senhoras e senhores luso-falantes, orgulhem-se: nós saímos na frente. Porque não se sabe de iniciativa semelhante levada à frente por americanos e ingleses, que, como dizia Oscar Wilde, são separados por um oceano e por uma língua.

    Assim como nós, na falta de coisa melhor para fazer, imagino que aqueles que passaram os olhos por essa história deram algumas boas risadas. E, se houve alguém que não soube ou quis apreciar esta obra de finíssimo e sutil lavor, nele daremos, Pedro e eu, como sugeriu Machado de Assis, uns valentes piparotes.


    Leia todos os capítulos de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    64 – Álibis mais furados que penico de tiro-ao-alvo

    O chinês voltou a sorrir. Ou melhor dizendo, sorriu de outro modo. Sim, um riso mais brejeiro, latino, correu-lhe pela face redonda. Certamente estava se divertindo muito e também ele queria tirar sua lasquinha daquele pobre policial brasileiro.

    – Não matei a velhinha, meu! Eu apenas topei o desafio que ela me fez. Mandei o gás, exatamente como ela pediu.

    – De todo modo, o senhor é aqui o sujeito que mais tem jeito de bandido. – Aroeira levantou-se. – Aliás, tem cara de frio assassino oriental.

    – Não discordo, mano, mas não posso ser responsabilizado pelo conjunto da obra. Eu assumo só a parte do pulmão. Mas tem um detalhe sórdido: é quase certo que dona Miguela já estava morta quando mandei o gás.

    Aparvalhado, Aroeira voltou a sentar-se e, com uma pungência hamletiana, interrogou-se ou interrogou-nos em voz alta:

    – Que devo fazer? Prendo todos ou mando todos embora? Um alega que foi o outro, e assim por diante. É o maior jogo de empurra que vi na minha vida.

    Suspirou fundo e depois de encarar os escritores, com olhos úmidos de lágrimas que desejavam se libertar, acrescentou:

    – Acho que vocês vieram ao Brasil com o fim único e exclusivo de me enlouquecer. Prefiro os bandidos brasileiros!

    Resolvi dar apoio moral ao desolado policial:

    – É isso aí, doutor Aroeira. Perto desse povo, bandido brasileiro é fichinha. Aqui é só tiro na cara e facada no bucho. Não tem essas firulas de veneno e zarabatana!

    Com um breve gesto de cabeça, o policial me agradeceu e a seguir apontou um dedo para Dax Chamber:

    – E o senhor aí, que tentou se fazer de invisível, calado o tempo todo, por acaso, não se meteu no assassinato de dona Miguela de Alcazar?

    – Bah, tchê, tô fora! Sou o único inocente. Nunca vi tanta gente malvada junto. Olha, vou te dizer uma coisa: já na chegada ao hotel eu notei que a velhota castelhana estava em pânico, mais sobressaltada que cozinheira de hospício.

    – Como assim?

    – Perguntei pra ela: “Por que tu tá tão encagaçada, Miguelita?” Ela me respondeu: “Bah, Dax, sinto que vou morrer aqui nesta cidade muquirana”. Como a coitada da velha chorasse de fazer barro, pedi a ela que se acalmasse. Aí, ela se lamentou: “Dax, tu ganha muito mais dinheiro do que eu”. Eu respondi que isso não tinha importância porque dinheiro na minha mão dura tanto quanto cuspe em ferro quente.

    – Quer dizer que o senhor era amigo íntimo dela?

    – Não muito. Ela era dissimulada. Quando queria enrolar alguém, ela arrodeava mais que cachorro com pulga na cola. E tinha mau hálito, a vivente, fedia mais que arroto de urubu.

    – Mas ela lhe disse alguma coisa concreta sobre o seu mau pressentimento?

    – Necas, delegado. A pobrezinha estava desanimada, mais caída que orelha de perdigueiro. Pra consolar a coitada, eu disse: “Não te preocupa que tu ainda vais escrever um livro que preste”. Pra quê? A mulherzinha ficou mais braba do que touro laçado pelos bagos. Aí, ela me disse: “Por que você não aproveita que está aqui no Brasil e vai à merda?”

    – Só isso? O senhor não tentou depois, por nenhum meio, matá-la?

    – Bah, claro que não! Se tivesse tentado matá-la, acertava de primeira. Americanos são eficientes em tudo que fazem. Não sou como essa gente aqui que fica apresentando desculpas mais esfarrapadas que camisas de pobre. Os álibis deles são mais furados do que penicos de tiro-ao-alvo. Eu, se fosse o senhor, prendia todos eles. E ficava famoso no mundo todo. Mas, infelizmente, acho que o assassinato foi cometido verdadeiramente por uma pessoa de menor importância…

    – Como assim? – Aroeira agitou-se. – O senhor tem algum suspeito?

    – Não! Suspeito é coisa para quem tem dúvidas, tchê. Eu conheço o assassino, sei o nome dele.

    black and white round analog clock

    65 – Ameaça velada de boicote à compra de bananas

    Vagarosamente, o americano estendeu seu braço esquerdo. Depois espichou o indicador. A seguir, sempre lentamente, foi girando o braço. Deteve-se quando na sua mira estava a carantonha de Manoel Joaquim Batota.

    – Foi o portuga! – gritou Dax. – Ele está mais quieto que guri cagado porque sabe quem tem culpa no cartório. Foi ele quem meteu arsênico na comida da castelhana.

    – Bem sacado! – exclamou Aroeira.

    E de imediato pôs a mão no ombro do gerente do hotel. Por fim, tinha um criminoso. Sorriu feliz. Não, mais que isso. Exultou como Arquimedes ao descobrir que banheira, quando cheia, transborda se alguém entra nela.

    – Considere-se preso! – disse o policial. – É você o principal culpado, sem dúvida. Agora, vejo tudo muito claramente. Sem dúvida, a morte da velha decorreu do rango envenenado. Depois, já agonizando, lambeu estricnina, recebeu o golpe na cabeça e a zarabatana no pescoço. O veneno inodoro, obviamente, só foi injetado no apartamento depois da porta ter sido fechada, quando a velha já estertorava. O enfarte, acredito eu, decorreu também do almoço. Sim, tudo partiu de você.

    Estarrecido, diante daquela reviravolta que o levava ao inferno, Manoel Joaquim Batota abriu a boca, mas não conseguiu emitir uma só palavra. E a seguir, enquanto torcia as mãos dramaticamente, seu rosto foi assumindo um assustador tom arroxeado.

    Senti muita pena do pobre lusitano. Resolvi então me intrometer na conversa:

    – Delegado, acho mesmo que o seu Batota é inocente!

    – O que sabe você, gaúcho? Que sabem fazer os gaúchos além de ordenhar vacas e roubar ovelhas?

    – Perdão, doutor Aroeira, mas a verdade confirmada pela estatística é que portugueses só matam sardinha. Nem bacalhau matam mais, deixaram o serviço sujo e cruel para os noruegueses. O senhor, por acaso, já prendeu um português?

    – Pensando bem, nunca, nenhum – admitiu o delegado. – Mas tudo me leva a crer que o almoço envenenado pelo cidadão português desencadeou o falecimento da bruxa velha. Havia arsênico na comida, segundo o laudo. O resto veio depois, de cambulhada.

    Voltei-me para o gerente do Imperial Hotel da República e o interroguei:

    – Seu Manoel, reflita antes de responder: o senhor, por acaso, encontrou com alguém pelos corredores do hotel enquanto levava a comida para dona Miguela?

    – Acho que não – respondeu o lusitano, quase chorando.

    – Pense bem! – insisti. – O senhor corre o risco de ir parar atrás das grades. Quem estava por perto do senhor, no restaurante, enquanto preparava a comida?

    – Ah, sim, o senhor Chamber! – o português exultou. – Ficou ao meu lado, o tempo todo, a recomendar-me quanto deveria colocar no prato. Disse-me que era próximo de dona Miguela e que sabia exatamente aquilo que ela gostava de comer. Ah, fez também questão de pôr o sal. E foi bastante. Disse-me que a senhora espanhola era apaixonada por comida bem salgada.

    – O senhor não terá confundido o saleiro com um potinho de arsênico? – perguntou Aroeira ao americano.

    Dax moveu-se inquieto na cadeira e defendeu-se:

    – Bah, esse português é mais falso que idade de mulher. Ele jamais vai conseguir provar o que disse aqui. Mas, mesmo que tivesse provas, de que valeriam elas? Pelo que sei, até hoje nenhum americano foi condenado num país latino-americano. Não daria certo pra vocês.

    – Por que não daria certo? – perguntei.

    – Porque pararíamos de comprar bananas e a economia de vocês afundaria em uma semana.

    – O duro é que esse gringo safado tem razão – suspirou Aroeira. – Se prendo ele, tomo um inquérito disciplinar pelos cornos.

    – Mas então o senhor não vai prender ninguém pela morte de Miguela de Alcazar? – indignei-me. – Esses sujeitos vêm pra cá, cometem um múltiplo e bárbaro assassinato e não lhes acontece nada!

    – Como não acontece nada? – perguntou o policial, ofendido.

    E deu então o mais poderoso dos seus muito murros naquela pobre mesa:

    – Todo mundo em cana! Todos para o xilindró! Assassinos!

    Como aquela situação estivesse mais parecendo uma cena de manicômio, eu ainda tentei reagir:

    – Mas, doutor Aroeira, eu e o português não participamos do crime!

    O delegado olhou-me fixamente e sentenciou: – Esses bandidos estrangeiros não poderiam ter cometido esse crime sem a ajuda de cúmplices locais!

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    66 – Fecham-se as cortinas

    À meia-noite, chegamos à penitenciária da Papuda. Lá, fomos enfiados os oito – os seis escritores, Batota e eu – em um enorme xadrez onde já se encontravam os três assassinos, os seis assaltantes e os nove sequestradores presos naquele dia.

    Antes da uma da madrugada, começaram a pipocar telefonemas na casa do secretário de Segurança Pública de Brasília. Eram vários embaixadores credenciados junto ao governo brasileiro, indignados, gritando cada um em um idioma diferente.

    Homem público sério como lápide, o secretário da Segurança Pública resistiu o máximo que pode. Acho que quase meia hora.

    Por volta das duas da madrugada todos os escritores estrangeiros estavam de volta ao Imperial Hotel da República. Lá, arrumaram suas malas e, na companhia da defunta Miguela de Alcazar, embarcaram pouco depois em um jatinho fretado com destino a São Paulo, de onde voariam depois para seus países de origem.

    Quanto a Batota e eu, bem, nós dois ficamos em cana por uma semana inteirinha, isolados em duas pequenas selas, submetidos a uma dieta que nos ajudou bastante na redução do peso.

    No dia seguinte ao da misteriosa morte de Miguela de Alcazar, o delegado Jerônimo Aroeira e seus agentes, aqueles sujeitos mal-encarados que haviam roubado as garrafinhas de bebida do hotel, foram até a sede do meu jornal e lá, em breve conversação, recomendaram ao Medalhão que nada publicasse sobre o tal Congresso porque, de fato, na verdade, ele não havia se realizado.

    Manoel Joaquim Batota recebeu visita semelhante dez dias depois, ao reassumir a gerência do Imperial Hotel da República. Talvez por ser ele estrangeiro, os policiais foram ainda mais enfáticos na sua admoestação. Fizeram saber ao lusitano que ele, se abrisse o bico sobre o tal Congresso, acabaria comendo capim pela raiz. Aliás, quando me informou dessa ameaça, disse-me o bom Batota:

    – Os gajos disseram que me iam lerpar…

    – O significa essa palavra horrorosa?

    – Lerpar é o mesmo que arranjar acomodação no Hotel dos Pés Juntos para ser tratado pelo doutor Torrão.

    Foi por isso que não cheguei a escrever uma só palavra da tal reportagem que iria me tornar planetariamente famoso.

    Aquele tempo, final dos anos setenta, foi bastante ruim para a imprensa brasileira. Mas agora, quase meio século depois, resolvi reviver aqueles dias. Liguei um velho gravador e escutei as muitas fitas gravadas na época. Reli também todas as minhas anotações, E, por fim, me entreguei ao teclado do computador.

    Foi assim, senhoras e senhores, que nasceu este livro, que é o meu testemunho sobre o Primeiro Congresso Internacional dos Escritores de Histórias Policiais, infelizmente não realizado em Brasília.

    Pena que não existam fotos para provar a autenticidade da minha história. Lembram que o fotógrafo do jornal só iria ao hotel no dia seguinte?

    Pois bem, visitei ainda os arquivos da Polícia, mas não encontrei lá nenhum laudo sobre a morte de uma mulher chamada Miguela de Alcazar. E, obviamente, não localizei as fotografias tiradas pelo lambe-lambe da Perícia.

    Pois bem, o Batota já não está mais por aqui.

    Dias atrás, visitei o Imperial Hotel da República para saber notícias dele.

    – O senhor Batota reformou-se – disse-me o atual gerente do hotel, também lusitano, de Quinta de Comichão, na Guarda.

    – Reformou-se? – me espantei. – Como assim? O Batota parou de meter medo nas pessoas com aquele seu gigantesco canivete?

    – Sim, aposentou o canivete. Não precisa dele em Portugal. Mas reformar-se, em Portugal, é o mesmo que aposentar-se por aqui. O senhor Batota voltou para a terrinha, mais especificamente para a aldeia de San Tiago de Piães, em Cinfães, e por lá, como um “brasileiro” de Eça de Queiroz, cultiva rosas numa casinha erguida no alto de um outeiro.

    Se agora eu divulgo este meu relato é porque, como dizia o falecido Medalhão, a verdade, como defunto afogado, sempre acaba vindo à tona.

    Já a morte de dona Miguela, defunta no seco, nunca pode ser esclarecida.

    red theater curtain

    FIM


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    61 – Eu só acredito em heróis loiros de olhos azuis

    Antes que Aroeira me pedisse o nome do suspeito seguinte, uma figura pequena, entalada num terno preto, levantou-se do outro lado da mesa.

    – Palavras servem mais pra enganar do que pra apontar a verdade – começou Foo a filosofar. – No Oriente também é assim, mas nós, pelo menos, botamos um pouco de poesia no meio: flores, pássaros e luares. Todos nós nos perdemos na escura floresta das palavras, manos. Mas o que diferencia um escritor de um homem comum é que o escritor sabe escapar do intrincado labirinto das frases sinuosas. Ele segue a exata e reta rota das palavras e acha a saída, mesmo que ela esteja próxima da porta da cadeia. Sacou, meu? Delegado, o senhor está tentando agarrar com a mão um peixe ensaboado.

    – Belo discurso – constatou o policial, seco. – Pelo visto, o senhor também pretende irar o corpo fora. É isso mesmo?

    – Brasil e China são países amigos – disse o risonho escritor. – Por isso, vou auxiliar já o senhor a desvendar o caso. Quando eu entrei no apartamento 1313, notei que a mantilha de dona Miguela estava abaixada num ponto. Pensei: ôrra, mano, essa velha levou uma cacetada na cabeça! O assassino mais frio sempre ataca na cabeça.

    Adensou-se o silêncio. Os escritores não estavam gostando daquela conversa porque o chinês parecia disposto a falar a verdade, o que, para todos, seria algo inaceitável.

    – Orientais são mais pacientes. Temos mais saco, mano, entende? Calmamente, com muita atenção, examinei o tapete. Encontrei estranhas marcas de sapato, sapato de senhora, com salto alto e ponta fina. Percebi que as marcas desses sapatos quando avançavam pra dona Miguela eram diferentes das marcas desses mesmos sapatos quando eles deixavam o apartamento. Entendi então, mano, que ao se aproximar de dona Miguela, a dona do tal sapato fazia mais pressão sobre o pé direito. Depois, ao sair dali depois, apressada, essa mesma pessoa deixou marcas que se inclinavam para esquerda. Que puta mistério, meu! Aí a verdade apareceu inteira diante de mim: uma senhora tinha entrado no apartamento carregando um troço pesado na mão direita e saído depois, às pressas, levando esse mesmo objeto na mão esquerda…

    Nesse ponto a narrativa foi cortada por um espirro nervoso de Batota.

    – Passei então a examinar a cabeça de dona Miguela – continuou Foo Lee Shi Man. – Logo percebi que a idosa senhora havia sido ferida por algo arredondado como… halteres! Pensei: puta, mano, usaram o meu próprio halter pra matar a espanhola!

    Aroeira lançou-me um olhar esperançoso, um olhar que falava: agora vai!

    Eu, porém, gato escaldado, tinha dúvidas. Preconceito meu, reconheço. Desde que me conheço por gente vejo filmes em que os orientais são sempre os bandidos. Quero dizer, nos filmes americanos os bandidos são sempre asiáticos, russos, alemães, índios, africanos e latinos. Reconheço que o cinema americano fez mal à minha cabeça: eu só acredito em heróis loiros de olhos azuis, preferencialmente protestantes. Aliás, não creio que heróis possam nascer na América Latina. O que mais nos aparece por aqui é bandido sanguinário. Do México ao Brasil temos metade dos assassinatos do mundo. Ou quase.

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    62 – Silenciosos como gatos de pantufas

    Aroeira me pareceu estar cada vez mais confuso. Era como se fosse um detetive inglês que investigava um crime cometido em uma mansão servida por meia dúzia de mordomos.

     – Halter? – perguntou o delegado. – Que bicho é esse?

    – É um treco de fazer ginástica – explicou Foo. – É uma haste com bolas de ferro nas pontas.

    – Sei. Mas por que o senhor trouxe um bagulho desses pra cá?

    – Nas minhas viagens, sempre carrego um halter pra me exercitar…

    – Volte então à sua investigação – ordenou Aroeira, impaciente.

    – Aí, mano, quando cheguei à conclusão de que o meu halter havia sido usado no crime, levei um puta susto. Tremi na base, meu. Lembrei então de um negócio estranho que tinha acontecido pouco antes. Eu havia esquecido meu halter no restaurante durante o almoço, mas ele, misteriosamente, reapareceu depois no meu apartamento…

    O delegado Aroeira sacudiu-se como se tomado por calafrios e disse:

    – Vamos por partes, seu China, que estou ficando zonzo. Voltemos aos sapatos. De quem seriam os tais sapatos de salto alto?

    – De lady Águeda Christine – respondeu o sempre sorridente escrevinhador. – Aliás, ela está com eles neste exato momento.

    Todos os que se encontravam à mesa voltaram-se, num só movimento, para a escritora inglesa, que permaneceu impassível.

    – O senhor está querendo me dizer que essa velhinha de cabelo azul matou a centenária com um halter? – questionou o policial.

    O chinês não pode responder porque a escritora inglesa se intrometeu na conversa:

    – Esse senhor oriental tem razão. Por incrível que pareça, ele chegou à verdade. Sim, entrei no apartamento de Miguela com um halter na mão direita e de lá saí com ele na esquerda. Mas não fui lá com a intenção de matar Miguela, não! Tratava-se apenas de uma aposta…

    – Mais uma aposta, meu Deus do céu? – lamentou-se Aroeira e ergueu os olhos para o teto, como que esperando uma ajuda vinda do alto.

    O delegado já estava lutando bravamente contra o choro. Seu desespero era visível, genuíno e comovente.

    – Uai, foi isso mesmo! – prosseguiu a autora nascida no Reino Unido. – Nós, anglo saxões, adoramos apostar. Neste nosso caso, foi uma aposta inocente…

    – Inocente? – espantou-se o delegado. – Como foi essa aposta?

    – A gente vinha de camionete do aeroporto pra este hotel. De repente, Miguela se virou pra mim e debochou: “Admiro seus assassinos, Águeda, porque eles todos são silenciosos como gatos de pantufas”. Eu virei pra ela e retruquei: “Bobinha, meus assassinos são como eu, que não faço ruído ao caminhar”. Ela virou pra mim, riu e disse: “Se você é a pessoa mais silenciosa, eu sou a que tem o melhor ouvido, pois escuto até a grama crescendo”. Então, eu me virei pra ela e disse: “Aposto que me aproximo d´ocê sem qu´ocê perceba”. Aí ela virou pra mim e disse: “Ninguém se aproxima de mim sem que eu perceba”. Eu virei pra ela e falei: “Quand´ocê notar minha presença vai ser tarde demais da conta, ocê já estará morta”. Ela riu muito e estendeu a mão pra mim: “Vamos fazer uma posta: tente se aproximar de mim sem que eu perceba. Mas não seja burra. Se me matar, ocê ganha a aposta, mas não leva a grana”.

    A ficcionista inglesa colocou a mão diante dos olhos e contemplou um bocado seus muitos anéis antes de continuar.

    – Hoje, depois do almoço, quando vi aberta a porta do apartamento de Miguela, lembrei da aposta. Parei no corredor. Ela estava lendo bem quietinha. Resolvi me aproximar dela levando na mão um cortador de unhas, que representaria uma arma. Mas, ao abrir a bolsa, minha mão bateu em algo duro. Era um halter de três quilos que eu havia achado debaixo da mesa enquanto almoçava. Decidi empunhar aquele trem pra dar mais realismo à cena. Aí, pé por pé, entrei no apartamento dela. Mas eu estava com as mãos molhadas de suor. De nervosismo. Bem rapidinho me aproximei-me dela, por trás. Levantei o peso sobre a cabeça dela. Quando fui chamar, pra que ela visse que tinha perdido a aposta, o halter resvalou da minha mão úmida. O trem acabou batendo na cabeça de Miguela, que não reagiu. Achei que ela tinha desmaiado. Saí dali imediatamente, triste por ter sido desastrada. Saí sem cobrar os dez mil dólares da aposta.

    – A senhora assume a autoria da morte? – perguntou um vacilante Aroeira.

    A resposta foi imediata:

    – Não! Na verdade, quando soubemos que Miguela estava morta, cheguei a pensar que tinha matado a pobre mulher… Mas agora tenho certeza de que não a matei. Quando aquele troço de ferro bateu na cabeça dela, a bichinha já estava morta. Duas vezes morta, pra ser exata. Já tinha sido envenenada por Fedorova e pelo dardo de Sim Et Non.

    Aroeira sentou-se e levou suas patas dianteira à cara. Pensei que ia escorregar para o pranto.

    macro photography of black cat

    63 – Breves considerações em torno da palavra bofetada

    O delegado esteve assim, sentado, durante longos segundos, e depois soltou um suspiro que consumiu um minuto e meio entre o seu começo, sibilante, e o seu final, gutural. O mais tocante suspiro de desalento que presenciei até hoje. Depois, lentamente, voltou-se para o escritor chinês:

    – O que fazia a bosta do seu halter debaixo da merda da mesa do restaurante?

    – Aproveito o almoço pra fazer exercícios, mano. Boto o halter no peito do pé e fico levantando. Fortalece a panturrilha.

    Um tique nervoso repuxou com violência o rosto de Aroeira. Acostumado a enfrentar bandidos chinelões, sentia que pela primeira vez na sua vida profissional estava encarando suspeitos muito mais espertos que ele.

    Batota resolveu solidarizar-se com o delegado:

    – Todos aqui estão a tirar o cavalinho da chuva, como dizemos em Portugal. Estão a tirar o corpo fora, senhor doutor Aroeira. Sugiro-lhe que aperte o chinês! Seja duro, que ele certamente confessará. O senhor doutor delegado precisa de um culpado pra encerrar este caso. Sem culpado, os jornalistas vão escrever reportagens exigindo a vossa demissão.

    A mensagem do lusitano chegou rapidamente ao cérebro de Aroeira, que se aprumou. Levantou o queixo, ajeitou os ombros e encheu o peito de ar. As palavras de Batota tinham injetado nele a adrenalina de que necessitava para fechar o interrogatório.

    Então o delegado estendeu o braço direito na direção do chinês e falou com uma voz que era um verdadeiro trovão:

    – Até agora o interrogatório foi público, mas eu posso transformá-lo em reservado, o que é sempre ruim pra saúde dos depoentes. Em geral, só costumo começar as perguntas após o que chamo de bofetada inaugural. O senhor chinês conhece o significado pleno da palavra bofetada?

    – Seria o mesmo que tabefe? – indagou Foo Lee Shi Man. – Lá em Macau, quando eu era menino, usávamos também outros sinônimos: bofete, bolacha, lapada, chapuletada ou tapa de mão aberta…

    – É exatamente isso! – entusiasmou-se Aroeira. – A bofetada não visa ferir o interrogado, não. Serve apenas pra desmoralizá-lo. Porque pior que a bofetada propriamente dita é o estalo da mão espalmada na bochecha. Esse forte estalido nas proximidades do ouvido incomoda bastante o interrogado. Agora, falando em termos gramaticais, eu, pessoalmente, não gosto da palavra bofetada. Minha preferência vais para formas mais concisas, como tapona ou bifa…

    – Prefiro confessar em público – apressou-se o chinês a dizer. – A verdade, mano, é que eu também contribuí pra morte de Miguela de Alcazar.

    – Foi por causa de uma aposta maluca também? – perguntou Aroeira, ressabiado.

    – Infelizmente, foi. No aeroporto do Rio de Janeiro, lady Águeda me disse: “Foo, pra mim, um dos maiores mistérios do mundo é a mediocridade chinesa. Vocês são o povo mais numeroso da terra, mas contribuíram pouco pra história da humanidade”. Eu respondi que o mundo de hoje só é como é por causa dos chineses. Lembrei a ela que inventamos a pólvora e que, sem ela, e sem as guerras, a terra estaria superpovoada. Falei ainda do macarrão, do papel e da bússola. Então dona Miguela comentou: “Por que um povo que criou quatro coisas importantes no passado vive hoje só copiando o que fazem os outros povos?”

    – Escutando isso, você ficou com raiva e decidiu matá-la? – concluiu Aroeira.

    – Não. Eu retruquei dizendo que as grandes invenções chinesas eram cinco. Pólvora, papel, macarrão e bússola e mais uma, nova, bem recente. E lancei um desafio: “A senhora deveria conhecer essa quinta invenção porque se trata de uma maravilhosa técnica de assassinato”. Dona Miguela me respondeu com arrogância: “É claro que sei do que se trata. Use essa tal técnica contra mim. Se eu não o desmascarar no momento em que estiver me atacando, não me chamo Miguela de Alcazar”.

    – Qual é a quinta invenção chinesa, afinal? – o delegado mostrou-se interessado.

    – O gás paralisante inodoro. Por acaso, eu trazia comigo uma grande ampola com esse gás. Então hoje, por volta da uma hora, enfiei pelo buraco da fechadura do apartamento de dona Miguela uma agulha de seringa hipodérmica e injetei o gás, como ela havia pedido…

    – Mas esse gás é mortal?

    – Quase sempre, mano. Dependendo da umidade relativa do ar e da temperatura.

    – Mortal ou não, o que importa é que o senhor tentou matar dona Miguela!

    selective focus photo of brown and blue hourglass on stones

    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    58 – A fundamentação ética dos atos humanos

    Empregando um timbre de voz que me surpreendeu, porque eu parecia estar falando como um juiz ao fim de um julgamento, sentenciei:

    – Georges Sim Et Non!

    De imediato, o francês apontou o cachimbo para mim, como se ele fosse uma pistola, e disparou:

    – Te cuida, malandro! O inferno está cheio de neguinho dedo-duro! Se tu provar o que tu diz, dou meus punhos pro delegado enfeitar com algemas. Mas se tu não provar, eu vou botar meia dúzia de advogados em cima de tu. Calúnia e difamação. Os causídicos vão te arranjar tantos processos que tu vai ter que alugar um apartamento perto do Fórum. Pra economizar na condução.

    – Não tente amedrontar minhas testemunhas! – berrou Aroeira, em meu auxílio, e bateu com a mão na mesa. – Se um sujeito aqui tem o direto de encagaçar alguém, esse sujeito sou eu. Pronuncie-se, jornalista!

    Assustado com a ameaça pistoleira do francês, inseguro, recomecei então a falar com uma voz tão baixa que quase nem eu mesmo me ouvia:

    – Tentarei reproduzir aqui frases estranhas que o senhor Sim Et Nom pronunciou. Porém, se eu estiver enganado, espero que ele, por favor, me corrija.

    – Deixe de ser cagão, Campestre! – urrou Aroeira. – Vamos ao que interessa!

    – Enquanto investigava o apartamento, o senhor Sim Et Non levantou a tese de envenenamento do almoço de dona Miguela. Como mostrou o laudo, arsênico foi misturado à comida. Seria só coincidência? Não me parece. Além disso, o senhor Sim Et Non chamou dona Miguela de “bruxa espanhola” e disse que ela morreria envenenada se mordesse a língua. Seria outra coincidência? Não me parece.

    – Sacanagem! – reagiu o francês. – Esse moleque é um pilantra. Eu jamais misturaria arsênico francês num prato de feijão-com-arroz. Ainda se fosse um fricassé de faisão… Delegado, quero registrar já o meu mais veemente protesto…

     – Envie seu protesto ao embaixador da França – respondeu o policial, fazendo uma vênia. – Prossiga, neto de Getúlio Vargas!

    – Dona Águeda disse que o senhor Sim Et Non odiava profundamente dona Miguela porque ela era a escritora policial mais apreciada pelos críticos franceses.

    – Nunca vi pivete mais otário que esse aí! – resmungou o escritor francês e, com dedos visivelmente trêmulos, encheu de fumo seu cachimbo. – Como é que eu, um francês de Paris, um verdadeiro monsieur, poderia ter inveja de uma espanhola? 

    – O senhor quer dizer que não tem nada a ver com a morte de dona Miguela? – indagou o delegado.

     – Isso também não! – respondeu o gaulês, em tom de mofa ou galhofa, não identifiquei bem. – Eu também tirei a minha lasquinha.

    A seguir, baforando, com as mãos às costas, ele passou a caminhar pela sala:

    – Vou falar a verdade. Na batata. Depois do almoço, eu passava pelo corredor. Trazia na mão uma caneta esferográfica baratinha, de plástico transparente, sem carga dentro. A caneta estava pronta para funcionar como uma pequena zarabatana.

    Estávamos todos tão atentos à narrativa do francês que o silêncio entre uma palavra e outra poderia ser cortado com uma tesoura.

    – Aprendi a soprar zarabatana na África – continuou Sim. – Quando moleque, eu passava férias na fazenda do meu avô, que criava hipopótamos no Senegal. Lá, de manhã, eu lia Molière para os nativos que, em troca, à tarde, me ensinavam a soprar zarabatana… Pois bem, hoje, vinha eu por este corredor pensando. Aliás, franceses estão sempre refletindo sobre coisas como o obscuro sentido da existência, o trágico destino da humanidade e a fundamentação ética dos atos humanos. De repente, virei o rosto. O que vi eu pela porta aberta do apartamento? Miguela de Alcazar comodamente instalada em uma poltrona lendo um livro. Num movimento muito rápido, furtivo, levei a zarabatana improvisada aos lábios. E, pronto, fiz o que pensava fazer: soprei.

    Glass Bottles on Shelf

    59 – Abrir o coração não é o mesmo que confessar

    A forma descontraída com que Sim Et Nom confessou ter mandado uma zarabatana em direção a Miguela de Alcazar deixou-nos aturdidos, como se nós também tivéssemos sido atingidos pelo dardo peçonhento. Não podíamos esperar tal reação depois da forma veemente com que ele protestara contra as minhas suspeitas.

    – O senhor poderia nos dizer o que havia dentro da zarabatana? – perguntou Aroeira.

    – Um pequeno dardo – respondeu o francês.

    – E o que havia na ponta desse dardinho?

    – Não apenas na ponta – detalhou o escritor francês. – O dardo todo era puro veneno, uma substância líquida endurecida por congelamento.

    – Em que direção esse dardo foi soprado?

    – Ora, como já disse, o alvo era uma velha senhora espanhola.

    Um mosquito sobrevoou a mesa. No seu voo errático, avançava de lado, como um avião de caça atingido na asa. Provavelmente havia picado Fedorova.

    Aroeira, que começou a piscar doidamente os olhos, como se tivesse perdido o controle das pálpebras, indagou:

    – De que sustância fora feito o tal pequeno dardo?

    – De peçonha de víbora. Mais que pura. Concentrada.

    Muitas cadeiras se movimentaram ao mesmo tempo. Os escritores pareciam dispostos a sair correndo daquela sala.

    – Onde se alojou o tal dardo? – indagou o policial.

    – Em uma grossa veia azulada de um enrugado pescoço.

    – Parece que o senhor Sim Et Nom é o primeiro a admitir aqui, claramente, que pretendia matar a vítima.

    – Não, meu irmão, não foi tentativa de homicídio. Eu só soprei aquela zarabatana pra ganhar uma aposta literária.

    Três cadeiras movimentaram-se traduzindo claramente a reação de seus ocupantes: inquietude, desconfiança e incredulidade.

    – Explique-se! – rosnou Aroeira.

    – Quando desembarcamos no aeroporto do Rio de Janeiro, Miguela me perguntou se eu conhecia algum método realmente surpreendente e criativo de assassinato. Contei a ela que cientistas franceses inventaram recentemente um método de congelar veneno na forma de pequenos dardos. Carregados em estojo térmico, esses dardos só podem ficar uns poucos segundos na mão de quem vai arremessá-los. Soprados em zarabatana, matam a vítima na hora, caso acertem numa veia. No Rio de Janeiro, quando concluí minha fala, Miguela caiu na risada e disse: “Dardo de veneno congelado? A única invenção científica decente dos franceses é o perfume, que eles criaram para substituir o banho”.

    Batota soltou uma bela gargalhada. Compreendi sua reação. No Brasil, é raro alguém contar uma piada que não seja de português. E, pelo que ouvi falar, os portugueses preferem fazer piadas de alentejanos. Não fazem piadas de brasileiros porque acham que os brasucas, por falarem outro idioma, não as entenderiam.

    – Putisgrila! – grunhiu Sim Et Non, com os lábios tremendo. – Naquela hora, o sangue me subiu aos cornos. Pensei: tu vai ver só, mocreia, se existe ou não o tal dardo! Ao chegar aqui neste hotel, meti na geladeirinha do meu apartamento uma mostra do tal veneno, que eu trazia comigo. Então, quando passava pelo corredor, me veio a ideia. Fui ao meu apartamento, abri a geladeirinha e…

    – Confissão plena, completa e absoluta! – determinou Aroeira. – Considere-se preso!

    – Manera, delegado! Eu não confessei nada, apenas abri meu coração, como fizeram Bugres e Dornascostasviskáya. Eu, em tese, sou apenas o terceiro assassino.

    – O senhor, por acaso, também vai alegar que sua dose não foi letal?

    – Não! Eu não vou usar uma desculpa tão esfarrapada. Tolice! Eu posso provar que não sou o assassino por uma simples razão: Miguela já estava morta quando meu dardo lhe atingiu o pescoço. Além disso, veneno de víbora não mata víbora. A homeopatia diz que semelhantes se anulam. Soro antiofídico se faz com veneno de serpente.

    swarm of bees on metal post

    60 – Da impossibilidade de se assistir a um filme francês até o final

    À beira de um ataque de choro, Aroeira deixou cair a cabeça. Tivera três suspeitos debaixo do olho, mas eles, embora tivessem mais ou menos confessado, haviam tirado o corpo fora. O pobre policial brasileiro sentia que estava sendo enrolado e se desesperava por isso.

    Apiedado daquele que era o meu único compatriota ali, aproximei-me dele e murmurei:

    – Ainda não acabei de ler minha relação de suspeitos, delegado.

    Aroeira voltou-se na minha direção e o olhou-me de um modo estranho. Creio quer levou algum tempo para reconhecer-me.

    – Sim, Campestre – disse, por fim, sem convicção. – Leia lá então o nome do próximo acusado.

    Lady Águeda Christine – anunciei com voz firme. – Ela começou a se incriminar quando defendeu no início das investigações a tese do envenenamento das folhas da Bíblia. Desconfio que seja cúmplice de dona Fedorova. Cúmplice ou mentora! Não acredito em simples coincidências.

    – Eu também não – concordou Aroeira. – A senhora Águeda teria algo a nos dizer sobre isso?

    – Uai, admito que é coincidência estranha demais da conta. Mas é muito pouco provável que uma aristocrática e culta dama britânica possa ter ideias semelhantes às de uma russa de baixa extração.

    Aroeira voltou-se para mim:

    – Continue, com as acusações, promotor! Vamos lá acabar com isso!

    Lady Águeda garantiu que dona Miguela havia sido assassinada quando a porta de seu quarto já estava fechada. Insistiu nisso com muita segurança. Por que teria essa convicção?

    O delegado dirigiu-se à a escritora inglesa:

    – O que a levou a pensar assim?

    Depois de fuzilar-me com um olhar que pingava sangue, Águeda Christine respondeu:

    – Elementar, uai! Eu vi o gerente abrir a porta do apartamento e Miguela estava lá dentro, morta. Raciocinei logo: foi assassinada com o quarto fechado. Reconheço que é uma hipótese sofisticada, inaceitável num país primitivo. Mas apostei nela porque, afinal, aqui estão reunidos escritores de livros policiais. E mesmo os escritores mais imbecis são mais espertos que a média das pessoas…

    Reunindo coragem, decidi interrompê-la:

    – Lembro que o senhor Georges Sim Et Non insinuou que a senhora odiava mortalmente dona Miguela por causa do sucesso que ela teve com a adaptação cinematográfica dos seus romances. 

    A escritora inglesa explodiu numa gargalhada pouco britânica, contorceu as mãos cheias de anéis e sacudiu negativamente a cabeça de cabelos azuis:

    – Eu me recuso a responder a insinuações de um francês. O que um francês pode saber sobre cinema? Quem consegue assistir a um filme francês sem sair correndo antes do fim?

    Depois de comemorar com um cacarejo a piada que fizera, a escritora da pérfida Albion continuou a falar:

    – Este interrogatório estúrdio está me fazendo perder a elegância. Mas quem leu meus livros sabe que os interrogatórios ingleses transcorrem sempre em clima de alta civilidade. As pessoas vão sendo paulatinamente acusadas. As suspeitas ora convergem ora para um, ora para outro. Aí, de repente, quando o leitor acha que identificou o assassino, eu puxo o tapete. Aparece então o verdadeiro culpado.

    Parou por uns segundos e girou um dedo apontando para todos os que estavam em redor da mesa, como se aquele dedo estivesse municiado. E continuou:

    – Mas o que estamos vendo aqui? Seis escritores, um policial, um repórter e um português. O que têm em comum? Estão bêbados como bodes. Pergunto: o que se pode esperar de um trem desses?

    Irritado, Aroeira deu um formidável murro de mão fechada na mesa:

    – A senhora pode ser mais chique e coisa e tal, mas, no fundo, só quer tirar o corpo fora! Porém, se acha que vai escapar da cadeia porque no Brasil só os pobres vão em cana, está muito enganada!

    Multi Colored Chairs in Row

    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    55 – O duro tratamento dado aos safados na Rússia

    Naquele momento, a cabeça de Aroeira encolheu e se transformou rapidamente num focinho de cobra venenosa. Uma naja, digamos. Ou vá, para os que vivem em países onde há menos bichos peçonhentos, uma víbora. Creio que ter visto até mesmo uma bifurcação na ponta da língua dele.

    Mastigando lenta e dificultosamente as palavras, consegui elaborar uma pergunta:

    – Se estou entendendo bem, o senhor delegado quer que eu banque o alcaguete, o dedo-duro, o informante…

     – Não exatamente, gaúcho. Encare a questão por outro ângulo. O que eu estou pedindo a você é que aja como um patriota. Ajude uma autoridade constituída de seu país, no caso eu, apontando as frases mais comprometedoras desses estrangeiros suspeitos.

    – Compreendo, doutor Aroeira. Isso talvez seja possível, posto que, durante toda a tarde, mantive o gravador ligado. Assim, registrei tudo o que aqui se falou. E, antes da chegada deste belo carrinho com tantas garrafas desencaminhadoras, eu escutei as fitas já gravadas e rabisquei na minha caderneta as frases mais interessantes. Jornalisticamente falando, é claro…

    – Ótimo. Me fale dessas frases. Você é um garoto espertinho. Se me ajudar nessa investigação, terá depois informações privilegiadas, de primeira mão, sobre assassinatos e atropelamentos de gente famosa aqui em Brasília.

    – E eu também estou disposto a ajudar a Justiça brasileira – intrometeu-se o Batota. – Como tenho uma memória implacável, confirmarei as frases verdadeiras do jornalista e impugnarei as falsas.

    Entusiasmado, Aroeira esfregou as mãos:

    – O mundo lusitano se une diante do avanço dos godos e visigodos! Vamos, filhote de abigeatário, consulte sua cadernetinha!

    Engoli todo e qualquer dever moral que tinha, se é que o tive um dia. A seguir, mandei minha consciência banhar-se nos licores que me borbulhavam no estômago. Senti que chegara um momento importante da minha vida. Não havia do que me arrepender. Que atire a primeira pedra quem nunca… Havia ali algo mais importante a ser conquistado. Ali estava a ocasião para demonstrar aos mais famosos escritores do mundo que eu nada ficava a dever a eles. Não, eu não era apenas um simples jornalistazinho!

    Como precisava estar calmo para desfilar diante deles o meu cérebro atilado e a minha fina argúcia, respirei profundamente antes de falar:

    – Na verdade, delegado, fui muito além de simplesmente anotar frases. Eu elaborei uma escala de suspeição. Alinhei, por ordem decrescente, os nomes daqueles que me pareceram os maiores suspeitos.

    Aroeira bateu palmas entusiasmadas, embora seu rosto estivesse retorcido por um esgar galhofeiro:

    – Excelente! Mas em que critério se baseou você, Campestre, para criar tal lista?

    – A pontuação variou em função do número de frases comprometedoras. Quanto mais frases equívocas ou inquietantes, mais pontos negativos ganhava o seu autor.

    – Estupendo! E quem seria o suspeito número um nessa sua lista?

    Antes de responder, mais vez enchi lentamente a caixa torácica, tanto para obter um pouco de ar quanto para reunir de coragem:

    – Dona Fedorova Smerdlova Dornascostasviskáya.

    Como já esperava uma reação forte, consegui abaixar a cabeça uma fração de segundo antes da passagem de uma garrafa voadora de rum, cheia até a tampa, lançada contra mim com força e destreza pela escritora eslava, que me interrogou aos berros:

    – Você sabe o que a polícia faz com jornalista xibungo como você na Rússia? Tira a roupa do safado e manda ele correr pelas ruas nevadas até que o pinto dele fique do tamanho exato do seu dedo mindinho. Se ainda ficar maior, corta o excesso.

    – Controle-se, dona Fedorova! – ordenou Aroeira. – Enquanto depõe, o jornalista está sob minha proteção. Depois, se quiser, a senhora poderá colocar em prática nele o tal método cirúrgico soviético, embora seja difícil achar neve por aqui. Continue, bisneto de Simões Lopes!

    Engoli em seco e molhado.

    red and blue concrete house

    56 – A morte do siberiano que lia os livros de Pablo Conejo

    As ameaças da ficcionista de São Petersburgo tinham surtido efeito porque, quando voltei a falar, minha voz tremelicava como vela de feitiçaria de encruzilhada em dia de ventania.

    – Dona Fedorova foi a primeira pessoa a levantar aqui a possibilidade de morte. Ao reclamar do garçom, que demorava com a cachaça, ela perguntou: Será que o condenado aproveitou a viagem para assassinar Mikahilucha?

    Silêncio na sala. Os escritores estavam positivamente surpresos com o meu desempenho inicial.

    Apertando com fúria o gargalo de uma garrafa de cachaça, com o olhar fixo no meu pescoço, Fedorova dava a indicação do que faria se o delegado Aroeira não estivesse por ali.

    Mesmo já amedrontado, continuei:

    – Mais tarde, ao investigar o quarto da falecida, dona Fedorova falou que estava rezando pela “atormentada criatura” que havia matado a espanhola…

    – Não vejo nada demais nessa frase – atalhou-me Aroeira. – Foi a reação natural de uma pessoa religiosa.

    – Mas dona Fedorova é ateia! – argumentei. – E nem sabíamos ainda que dona Miguela havia sido assassinada! Como poderia ela saber que o criminoso estava atormentado pelos remorsos? A não ser que fosse ela própria a assassina.

    – Raciocínio razoável – reconheceu o delegado.

    – Mas teve mais – continuei, já estava gostando de desempenhar ali o papel de acusador. – Em seguida, dona Fedorova disse que a alma da escritora espanhola ainda vagava pelo hotel…

    O delegado voltou-se para a russa e indagou:

    – A senhora dispõe de poderes mediúnicos?

    Como a escritora não respondesse, continuei:

    – Dona Fedorova disse ainda que nenhuma mulher, nem mesmo uma espanhola, aceitaria morrer com uma mantilha tão horrorosa quanto a usada por dona Miguela. Daí, concluiu ela que se tratava de uma morte fulminante…

    – Considerações sobre vestuário não têm importância em uma investigação tão intrincada quanto esta…

    – Têm, sim, delegado – discordei. – Passaram a ter agora que se sabe que dona Miguela teve um ferimento na cabeça. Morreu sem poder tirar a mantilha. E, para culminar, quando se retirava do apartamento, dona Fedorova mostrou-se invejosa da maior vendagem dos livros de dona Miguela.

    Ouvimos um crash. Era o gargalo da garrafa cedendo à pressão da mão de Fedorova. A escritora russa bateu a mão na mesa para se livrar dos cacos e, a seguir, acendeu um charuto, das mesmas dimensões do anterior.

    – O que diz a senhora depois de ouvir o nosso jovem centauro? – indagou o policial, com um ar misto de Torquemada e bufão. – Reconhece que está em maus lençóis?

    Fedorova levantou-se de um pulo, já sugando o charuto e expelindo furiosamente a fumaça, e deu início ao seu já manjado pranto dramático. Batia no peito, puxava os cabelos e salmodiava:

    – Oh, a doce Mikahilichenka foi levada deste mundo pela sua própria arrogância. Tudo começou no aeroporto de Paris, enquanto esperávamos a chamada do voo para o Brasil. Falávamos mal de editores, críticos e autores de livros de auto-ajuda. Subitamente, ela me perguntou se eu conhecia um novo método de envenenamento. Virgem do Crato, oxente, para que Mikahila levantou aquele assunto?

    Sentindo que ganhara a atenção do público, a russa imprimiu maior dramaticidade ao ritual de autoflagelação: passou a esbofetear-se também:

    – Mika me disse que precisava assassinar, com morte inovadora, uma personagem do livro que estava a escrever. Querendo ajudar aquela quenga, contei a ela que, na Sibéria, uma muié tinha matado o corno do marido colocando veneno nos livros do paraguaio Pablo Conejo, que o chifrudo vivia lendo. Expliquei direitinho que a muié danada passou estricnina no pé das páginas, pois era justamente ali que o cretino colocava seus dedos depois de lambuzá-los na língua pegajosa.

    A russa parou a sua representação dramatúrgica para emborcar uns valentes goles de uísque, pela boquinha da garrafa.

    black and white airplane on airport during daytime

    57 – Aqui o impossível ocorre a todo instante

    Notei que naquele momento, enquanto Fedorova arquejava para se recompor da quase meia garrafa emborcada, Águeda Christine lançava um olhar triunfante na direção de Sim Et Non. A história da escritora russa reforçava a tese do envenenamento que fora levantada inicialmente por ela.

    Continuou a escrevedora do Kremlin:

    – Em resposta ao que falei, a soberba Mikuchina me disse que só uma besta de uma camponesa russa podia acreditar numa história tão furada. E, desaforada, concluiu: “Deixe de ser ignorante, Feda!” Ora, nós, russos, não toleramos esse tipo de ofensa intelectual. Fervi de ódio.

    Após breve pausa, para que alguma fumaça fosse sacada do charuto e expelida, Fedorova continuou:

    – De Paris ao Rio, viajamos lado a lado. Notei então que Mikólia molhava os dedos na saliva para virar as páginas da Bíblia, mas segurando-as pelo alto. Percebi também que estava lendo o Apocalipse. Perguntei se estava gostando. Debochada, ela me respondeu que o Apocalipse é a melhor novela policial de todos os tempos porque, no fim, não fica um sobrevivente para contar a história.

    Em uma breve parada para reabastecimento, a russa sugou um quarto de uma garrafa de absinto, sem pestanejar, e avançou:

    – Como Mikutina era esnobe! Sabem o que ela me disse depois? Disse-me que de tanto ler e reler o Apocalipse já estava quase decifrando a profecia. Aquilo foi demais pra minha religiosa alma russa, mesmo eu sendo ateia juramentada. Minha raiva se transformou em ódio. Aí, quando ela foi ao banheiro do avião, peguei de minha bolsa uma ampola de estricnina concentrada e derramei no alto das páginas do Apocalipse. Depois, aproximei o livro santo da saída do ar refrigerado, para que o veneno secasse rapidamente…

    Em voz alta e grave. Aroeira a interrompeu:

    – Quer dizer, então, que a senhora Smerdlova assume publicamente a autoria do assassinato por envenenamento de dona Miguela?

    – De jeito nenhum! Reconheço que, arrastada por uma raiva bem fundamentada, derramei um pouco de veneno nas páginas da Bíblia da desgraçada. Mas eu não a queria matar. Só queria provar a ela que é possível envenenar um vivente com aquele método siberiano.

    – Não me interessa sua intenção – reagiu Aroeira. – O que me importa é o resultado do seu ato criminoso.

    – Arre, égua, delegado! Raciocine comigo: se o argentino pode alegar que bilhete dele não causou o enfarte, eu também posso dizer que o meu veneno não matou a jararaca. Como poderia ela morrer depois de ler apenas umas dez páginas? Ora, o siberiano que lia Pablo Conejo morreu depois reler cinco vezes o livro Vera se decide a falecer-se, o que, convenhamos, mesmo sem veneno, mataria um elefante. A polícia russa considerou, naquele caso, que a leitura foi mais devastadora que o veneno.

    – A senhora assume o assassinato ou não? – perguntou o policial.

    – Não. Só aceito ser acusada de ter botado no organismo dela a porção de estricnina. Mas vou requerer uma perícia. Ao verificarem o nível de veneno no sangue, certamente concluirão que a espanhola não morreu por minha culpa.

    O delegado ficou parado e em silêncio por um momento, pensativo. Pareceu-me desalentado porque um segundo suspeito estava a escorrer por entre seus dedos. Mas concordou com a reflexão da russa:

    – No Brasil, tudo pode acontecer. Aliás, aqui, o impossível ocorre a todo instante, enquanto o possível raramente se concretiza… Bem, se a estricnina e o enfarte não mataram a velhota, temos que seguir procurando um outro culpado, certo?

    Num rápido e único aceno, todas as cabeças ao redor da mesa concordaram com ele.

    O delegado voltou-se novamente para mim:

    – Então quem o nosso Sherloque dos pampas vai acusar agora?

    Lancei um rápido olhar à minha caderneta em busca do nome do número dois na minha escala de suspeição. Respirei fundo e preparei-me para o embate.

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    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    52 – Americanos não crêem na existência de outros países

    O silêncio foi quebrado pela voz metálica de Dax, que estalou no outro lado da mesa:

    – E dos meus livros, castelhano, tu não tens nada a dizer? Tu também achas que a velha cucaracha imitou meus best sellers?

    – Imitou, sim, mas só no desprezo pela geografia.

    Rimos todos, mesmo com a tensão que emergia pela expectativa da presença do delegado. É sempre bom debochar da cara de um americano.

    Águeda Christine agitou os anéis como uma serpente sacudiria seu chocalho e comentou:

    – Rir dos americanos é o único prazer que eles ainda não nos confiscaram. Eles destruíram a música com a invenção do roque e arrebentaram o cinema com seus filmes estúpidos.

    Quando a gorgolejante gargalhada geral definhou, Bugres retomou o hipotético microfone:

    – Em certo trecho da primeira edição de O touro maltês, Juanito Saavedracruza a fronteira entre Bolívia e Colômbia. Pensei que se tratava de uma brincadeirinha maldosa de Miguela, que odiava os países latino-americanos, mas, não, era burrice geográfica mesmo.

    Fez uma breve pausa e ainda acrescentou:

    – Já o detetive Sem Spada, criado pelo senhor Dax, fez uma proeza ainda mais notável. No livro Não abra a porta nem para o carteiro ele atravessa, caminhando, a fronteira entre Venezuela e Uruguai…

    – Leitores americanos cagam e andam para a geografia mundial – retrucou Dax. – Aliás, nem acreditam que existam na Terra outros países, além dos Estados Unidos. E, aliás, pensam que a América Latina é apenas uma invenção de agentes turísticos vigaristas.

    O argentino voltou ao ataque:

    – Já que estamos frente a frente, senhor Dax Chamber, aproveito para saciar uma velha curiosidade que tenho a respeito de seu detetive. Por que Sem Spada só se fere de raspão nos muitos tiroteios em que se mete? Por que nunca tomou um tiro, por exemplo, nas chamadas partes pudendas?

    Eu ia assistindo a face de Dax Chamber subir rapidamente pela escala das cores: rósea, carmim, carmesim, solferina, encarnada, vermelha e roxa. Estava a ferver de raiva o filho da nação dos bravos e fortes.

    – Espanta-me – prosseguiu o argentino – que Sem Spada, vença todas as lutas com um só soco. O senhor Dax nunca assistiu a uma luta de boxe? Às vezes, os idiotas se esmurram durante meia hora e ao fim ainda saem caminhando com as próprias patas.

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    53 – Palavras costumam dançar de braços dados

    O ambiente da sala estava, estranhamente, cada vez mais descontraído. Houve um novo e mais demorado surto de gargalhadas. Já nem parecia que estávamos ali para desvendar um crime prender um criminoso a qualquer momento.

    Águeda Christine, com falta de ar de tanto rir, perdida sua compostura britânica, abanava-se com um prato sujo.

    E Bugres prosseguiu, sempre cruel:

    – Impressiona-me ainda mais o fato de Sem Spada jamais encarar as cantadas que recebe das loiras. Por que o senhor o chama de durão, se ele se acovarda diante de um decote? Durão, onde? No queixo que ele oferece com volúpia aos punhos dos bandidos?

    Esticada na cadeira, quase caindo de costas, sacudida pelo ruidoso riso russo, Fedorova tremia dos pés à testa.

    Venenoso, avançou ainda mais o vate de Buenos Aires:

    – Perdoe-me, senhor Dax, mas, olhado pela ótica estreita do nosso machismo latino, o seu bravo Sem Spada não passa de uma bichinha masô.

    As gargalhadas na sala tornaram-se quase histéricas.

    – Meus livros têm diálogos divertidos e muita ação – retrucou Dax Chamber, já de mau humor. – Tiros, socos, corrida de carros e, às vezes, um enterro. Leitores americanos odeiam frases longas e palavras com quatro sílabas. É por isso que, em nosso país, os livros do senhor Bugres só são vendidos nos balaios de ofertas.

    O escritor argentino, que naquele dia parecia estar com a macaca, contra-atacou:

    – Por falar em dinheiro, senhor Dax, confesso que me comove a honestidade do seu herói. Por que tendo chances sucessivas de ficar milionário, Sem Spada só recebe o que foi acertado com o cliente? Ele foi escoteiro na infância?

    Entendi a renovada explosão de gargalhadas, que veio a seguir, como uma pequena vingança dos leitores de todo mundo que não suportam mais tantos heroicos policiais americanos, incorruptíveis, solitários e durões.

    – Os americanos pagam para que lhes contem histórias – defendeu-se Dax Chamber. – Se as histórias forem edificantes, melhor. Sentem que ganharam duas coisas pelo preço de uma. Americanos acreditam na eterna luta entre o bem e o mal e não se pode fazer nada a respeito. Por isso, tenho de dar aos meus leitores um sujeito que derrota os bandidos. Se esse sujeito for honesto, melhor.

    – E nisso onde fica o prazer da leitura? – indagou o poeta argentino, francamente indignado.

    – Somos puritanos, odiamos a palavra prazer – respondeu o americano. – Ninguém nos Estados Unidos lê por prazer. As pessoas leem para aprender alguma coisa. Querem, pelo menos, ganhar uma frase engraçada para usar na lanchonete, entre uma dentada e outra no hambúrguer de um quilo. Os gregos inventaram a pederastia; os romanos, os impostos; nós criamos a obesidade.

    – Basta! – berrou Aroeira, que andava a olhar para uns e outros há uns bons minutos, ao mesmo tempo em que voltou a se sentar. – Estamos aqui reunidos para investigar um assassinato e não para assistir a um torneio de piadinhas desgraciosas.

    – Perdoe-me se divago, delegado – disse Bugres. – Mas aqui no Brasil uma palavra puxa outra e, aí, de braços dados, sambando, elas vão formando um animado cordão que se perde na carnavalesca multidão.

    – C´um caraças! Que raios! – disse, em voz alta, um sorridente Batota. – O senhor Bugres é mesmo um pândego!

    Voltei-me para o português. Demorei a entender por que seu rosto estava duplicado. Dei-me conta então de que eu havia bebido muitíssimo uísque. Eu ainda escutava bem, mas minha visão estava totalmente comprometida.

    – Todos os livros se assemelham – filosofou Bugres. – Mas os livros policiais são ainda mais parecidos entre eles do que os demais.

    O americano voltou a falar:

    – Novelas policiais têm início, meio e fim, alinhavados por um enredo verossímil. Não aceitam malabarismos ou fricotes literários. Apenas contam uma boa história. Se possível, de modo cativante. É isso que modestamente faço.

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    54 – A fascinante e obscena arte da delação

    Sobreveio um longo e pesado silêncio que eu aproveitei para trocar, com bastante dificuldade, a fita do gravador.

    Sentados, pensativos, com gestos lentos e pesados os escritores cuidavam, ainda refletindo sobre o que dissera o gringo, de reabastecer seus copos. Pareceu-me que também tentavam sair do pântano de baboseiras literárias em que os afundara o poeta argentino.

    Vi Fedorova segurar o balde de prata com as duas mãos e beber sofregamente a água que resultara do derretimento do gelo durante aquela demorada discussão. Parecia tresloucada.

    Ao contrário, eu tomei um gole de uísque sem gelo e foi como se engolisse uma acha de lenha, incandescente.

    Recompus-me, peguei minha caderneta e escrevi: “O mundo soltou-se das amarras e está flutuando em pleno ar. Os rostos dos escritores são como balões de festa de aniversário que dançam em uma brisa ligeira, mas eu vejo rugas de preocupação em todos esses rostos/balões. O delegado Aroeira diverte-se. Neste momento, parece feliz com o incômodo silêncio que se instalou nesta sala. Talvez esse silêncio faça parte de sua técnica investigativa. Os olhos do delegado Aroeira vão de um escritor a escritor à procura do mais vulnerável entre eles”.

    Ergui depois os olhos ao escutar um rumoroso e demorado pigarro.

    O tal pigarro pertencia ao delegado Aroeira, que voltou a discursar:

    – Estou acostumado a interrogatórios, mas até hoje não participei de outro tão interessante quanto este. Aqui, temos comida e bebida à vontade. Em geral, na delegacia, deixo meus interrogados à míngua. Não dou a eles nem pão nem água. Aqui, hoje, reina um clima de cordialidade. Ainda não se ouviu, por exemplo, o estrondo de um tabefe. E eu ainda não soltei um palavrão cabeludo. Cabe uma pergunta: por quanto tempo eu me manterei, aqui, hoje, gentil e cordato?

    Todos ali conheciam suficientemente a língua portuguesa para perceber, afinal, a ameaça embutida naquela última frase.

    Bruscamente, Aroeira voltou-se para mim e me interpelou em voz alta:

    – Gaúcho, é verdade que você gravou tudo o que foi dito aqui hoje?

    Embora quase batendo com a testa na mesa, concordei com um gesto afirmativo de cabeça. E, com um dedo incerto, apontei para o gravador que estava à minha frente, ligado.

    – Muito cuidado com este gravador, gaúcho – continuou o policial. – As fitas por ele gravadas serão fundamentais para a minha investigação. Digo mais: por causa delas, você certamente se transformará no alvo preferencial de um provável segundo assassinato.

    Inundado pelo uísque, eu nem tinha condições de avaliar o risco que corria. Mesmo assim, com uma piscada de olhos, naquele momento estrábicos, voltei a concordar com o policial. Talvez por inércia.

    Aroeira continuou:

    – Então, gauchinho, antes que esses camaradas almocem você, faça com que eles sejam o meu jantar. Denuncie-os.

    Abri os olhos de espanto. Lutei bravamente contra a quase impossibilidade de mover minha mandíbula, mas acabei saindo vencedor na luta contra ela:

    – Não percebo exatamente onde o senhor deseja chegar, delegado – falei, com voz pastosa.

    – É simples: dedure os escritores. Conte-me o que eles falaram de comprometedor. Eu levaria muito tempo para ouvir as fitas do seu gravador. Mas você é um jornalista e todos os que exercem esse ofício estão sempre atentos aos deslizes dos outros. Para, é claro, melhor poder destruí-los ou difamá-los depois. Você também deve ter registrado muita coisa interessante com esta sua caneta perversa. Vamos, meu filho, exerça agora a obscena e fascinante arte da delação.

    Acho que os meus neurônios demoraram a perceber o convite para passar da nobre arte de desinformar o público para a velhaca artesania de informar a polícia.

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    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    49 – Os melhores pesadelos são os pós-prandiais

    Batota interpôs-se entre Bugres e o delegado. Pensei, de início, que pretendia proteger o argentino. Depois apontou seu dedo gordo na minha direção. O danado do utente de comboios vai me denunciar de algo, pensei com os meus botões e com as casas em que eles estavam enfiados.

    – Senhor delegado, aqui este jovem jornalista tem o tal bilhete que, aliás, foi escrito em português. 

    Levei um susto. Nem lembrava mais do tal bilhete. Estupidificado, atrapalhado, tateei os bolsos à procura dele. Finalmente, puxei por ele, já amarrotado.

    – Leia! – ordenou o delegado.

    Limpei a garganta e li com voz incerta:

    Durante o Congresso, eu te desmascararei, Miguela: apontarei os trechos dos vários livros que plagiaste ao escrever O touro maltês.

    – Tem assinatura? – perguntou o policial.

    – Só uma letra, maiúscula, um S – respondi.

    Aroeira dirigiu-se a Bugres:

    – Por que o senhor escreveu em português? Por que não escreveu na língua que compartilhava com a defunta?

    – Ora, porque, se escrevesse em espanhol, não resistiria à tentação de construir frases elegantes, que acabariam me denunciando. Utilizando-me de uma língua primitiva, no caso, o português, fui obrigado a ser quase grosseiro.

    Indignado com a ofensa à última flor do Lácio, Batota levantou-se bruscamente. Seus olhos lampejavam uma raiva atroz, mas que não intimidou o conterrâneo de Carlos Gardel, claro. Porém, é certo que o menestrel dos punhais e labirintos captou integralmente a fúria que, a seguir, veio entranhada na voz do lusíada:

    – Língua primitiva é essa coisa a galope que vocês falam. Na Argentina, todos falam como se fossem locutores de corridas de cavalo. Como ousa tamanha ignomínia!

    Até a mim o Batota surpreendeu a seguir. Fulo da vida, o português apanhou no prato um resto de bife, que jogou contra o escritor portenho. Atingido pelo sangrento projétil no rosto, Bugres, lenta e gravemente, limpou-se com um lenço imaculado. E, depois de passar a ponta da língua pelo lenço, disse:

    – Que desperdício! Mas, vendo bem, era carne uruguaia, entrecot de segunda. E o animal, provavelmente, estava com febre aftosa. Da próxima vez que tentar me matar, por favor use um legítimo bife de chorizo argentino.

    Alguns escritores ensaiaram uns risinhos, mas Aroeira os calou com um olhar gélido. E, depois, indagou do autor de História universal da infâmia:

    – Mas afinal onde o senhor aprendeu tão bem o português?

    – Minha querida mamãe leu para mim, mais de dez vezes, Os Sertões, de Euclides da Cunha – respondeu Bugres, sorrindo.

    – Voltemos ao nosso crime. Não lhe passou pela cabeça que dona Miguela poderia levar um susto fatal ao ler o bilhetinho?

    – Não, de modo algum.

    – Mentira! – explodiu Batota, e deu um tapa de mão aberta na mesa. – O porteiro do meu hotel ouviu quando o senhor sugeriu a dona Miguela que lesse o final do Apocalipse após o almoço.

    – Porteiros de hotéis são sempre abelhudos! Admito, sim, que sugeri a Miguela a leitura do Apocalipse, após o almoço. Mas só o fiz porque julgo que o livro sagrado é aquele que proporciona os melhores pesadelos pós-prandiais. Aliás, por falar nisso, é importante registrar aqui que os sonhos ruins das tardes são mais apavorantes que os noturnos. Portanto, são sonhos mais proveitosos, literariamente falando. Ou seja, eu só queria ajudar Miguela.

    – Mas por que o senhor assinou com a letra S? – indagou, no entanto, Aroeira, levantando-se.

    – Porque é a nona letra do meu nome. E o nove, na mitologia pérsica, corresponde ao semideus do pesadelo, Hilomeus Katrei, o Nove Dedos, meio homem, meio tigre.

    A resposta não satisfez o delegado que, movendo a cabeça de um lado a outro, negativamente, deu uma volta inteira, teatral, ao redor da mesa.

    – O seu bilhete é crudelíssimo – disse o policial. – Criminoso, eu diria. Ele seguramente desencadeou o enfarto que matou a nossa escritora.

    Um silêncio constrangedor desceu sobre a mesa. Estranhamente, por mais de um minuto, chafurdamos nele até que Bugres resolveu reagir:

    – Não gostei do emprego da palavra seguramente, delegado. Não temos o direito de ser peremptórios. Nem mesmo quando aquilo de que estamos falando se passou diante do nosso nariz. Entre um fato e sua enunciação, mesmo que simultânea, há um abismo colossal. Assim, se for facultado ao senhor o emprego da palavra seguramente, eu terei direito a retrucar usando a expressão de modo algum. E com isso, ambos, teremos razão, em um ou em outro momento.


    50 – Prova não tem importância no Brasil

    Satisfeito consigo mesmo, encantado por estar embromando o policial, o poeta portenho não conseguiu esconder o sorriso maroto que lhe veio ao rosto.

    Depois, ao fim de um demorado pigarro retórico, continuou:

    – Sua tese do bilhete fatídico é interessante, delegado, porém falsa. Admitamos que Miguela leu o bilhete e que, em função dessa leitura, tenha sofrido um enfarte. Mas, aí, eu lhe pergunto: como poderá o senhor provar cientificamente que há uma ligação direta entre dois fatos de natureza distinta: a leitura, que é algo espiritual e elevado, e a morte, que é um fato físico, rasteiro e sem transcendência.

    O delegado, que mantivera a cabeça abaixada enquanto o poeta falava, ergueu bruscamente o rosto e contra-atacou:

    – O senhor tenta erguer aqui uma barricada verbal para fugir à Justiça brasileira, mas não conseguirá se safar. Isso eu lhe garanto. O Brasil é um país de amantes da palavra falada. Praticamos com gosto uma algaravia mestiça mais vigorosa e doce que o idioma original. Mas, essencialmente analfabetos, odiamos a palavra escrita porque ela permite e propicia enrolações, como a que o senhor está encenando aqui.

    – Que tenho eu a ver com essa inclinação brasileira pelo analfabetismo?

    – Tudo! – grunhiu o delegado. – Indiciado por mim, o senhor será levado a júri. No Tribunal, prestarei um depoimento emocionado contra o senhor. Os jurados acreditarão em mim porque sou brasileiro. O senhor, estrangeiro, será considerado o culpado.

    – Mas e as provas? – indagou Bugres, assustado. – Onde ficam as provas nesse hipotético julgamento?

    – No sistema judicial brasileiro provas não têm muita importância. Ao começar meu pronunciamento, direi que o senhor é argentino. Imediatamente os jurados farão uma ligação com o futebol e…

    – Mas eu odeio futebol! – gemeu Bugres. – Escrevi isso repetidas vezes.

    A preocupação do poeta era já, neste momento, visível nas suas sobrancelhas, ainda mais espetadas que o pelo de um gato que acorda em meio a um pesadelo. Comecei sentindo pena dele. Nós, gaúchos, somos treinados, desde o berço, a odiar os argentinos. Diz o ditado: com sino, menino e argentino, só na pancada! Quase comovido, resolvi intervir em favor dele:

    – Doutor Aroeira, acho que o senhor Bugres estava brincando quando escreveu que dona Miguela era uma plagiária contumaz.

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    51 – Autores emprestam seus defeitos aos personagens

    Detectando a solidariedade e a cumplicidade das minhas palavras, o escolhido das musas voltou a falar, corrigindo-me:

    – Na verdade, nenhum livro está isento de plágio, no todo ou em parte. Gênios ou escritores de quinta categoria, nós só rabiscamos pastiches do livro infinito que foi, está e estará sempre sendo escrito pelos deuses. Quem se utiliza da palavra escrita, recorre a um único e inesgotável manancial de símbolos, que é do uso também das divindades. Em contrapartida, os deuses nos exigem moderação…

    – Saia do labirinto! – berrou Aroeira. – Esqueça os deuses e volte ao plágio.

    Nervosas e assustadas, as mãos do argentino tamborilaram dramáticos trechos de um tango no tampo da mesa. E, só depois desse espetáculo digital, ele voltou a falar:

    – Sim, o plágio! Descendo à linguagem mais rasteira, delegado, eu diria que a ambiguidade sexual do detetive Juanito Saavedra, de O touro maltês, parece ter sido copiada da discreta afetação feminil de Herculano Poire, o detetive criado por Águeda Christine.

    Depois de um suspirado oh! de espanto, todos os olhares se voltaram para a escritora inglesa, que piscou os olhos, piscou, piscou, mas nada falou.

    Continuou o poeta:

    – De outro lado, Juanito Cervantes também lembra Jales Maigrot, o comissário inventado por Georges Sim Et Non. São semelhantes na estupidez. Indago: teria Miguela de Alcazar calcado seu herói no de Sim et Non? É possível, mas sabe-se também que, quase sempre, autores buscam na própria mente os defeitos que emprestarão aos seus personagens…

    – Seria por isso, meu irmão, que Dom Isidoro Paródia é tão pedante? – perguntou Sim Et Non. – Seria esse teu detetive, inverossímil e livresco, um resumo de toda a obra escrita por tu?

    As bochechas chupadas do autor francês estavam vermelhas e tremiam, raivosas.

    Já o argentino tentava aparentar calma, mas a agitação histérica de suas sobrancelhas o desmentia. Como se sabe, ele tinha muito orgulho de ter criado Dom Isidoro Paródia

    Fechando as mãos e alçando os ombros, como alguém que vai entrar em um combate corporal, Bugres voltou a cuspir veneno:

    – Eu diria ainda que os trechos mais ridículos de O touro maltês lembram as passagens mais banais de Contravenção e penalidade…

    – Banal é a senhora sua mãe, aquela quenga da peste! – berrou Fedorova e fez menção de levantar-se. Mas não conseguiu. A provisão de cachaça que armazenara no bucho a puxou para baixo e a fez sentar-se novamente. Furibunda, acrescentou: – Espero que você arda para sempre no círculo dos baitolas no inferno, castelhano filho do cão!

    Sem se abalar com a gritaria da russa, o poeta de Buenos Aires despejou outra dose de peçonha:

    – Se pudesse falar, sem ser interrompido por grunhidos, eu afirmaria ainda que os mais tediosos trechos de O touro maltês guardam forte semelhança com as mais áridas passagens de Guerra na Praça da Paz Celestial.

    Voltamo-nos todos para o escritor chinês, que abrindo um pouco mais o permanente sorriso e fechando, em idêntica proporção, os olhos, declarou:

    – O tédio é estado em que um espírito cultivado permanece a maior parte do tempo. O que há de mais grandioso na terra? O deserto. O deserto é a metáfora perfeita para a aridez de nossas vidas. O deserto é o nada e o nada é o vazio. De que está cheio o vazio, meu? De tédio. Leitor culto é o que sabe apreciar os trechos mais áridos de um livro.

    As sobrancelhas de Bugres sossegaram por um instante, reconhecendo que o chinês também era bom em frases sinuosas.

    Nisto, olhei para o Batota e para o delegado que assistiam a estes bate-bocas como se estivessem acompanhando a partida final de um torneio de tênis.

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    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    46 – A satisfação de um meganha lendo um belo laudo de autópsia

    Jerônimo Aroeira empertigou-se, tossiu, limpou a garganta e lascou:

    – Na análise do corpo da senhorita Miguela de Alcazar y Casas de Bourbon, espanhola, 96 anos, solteira, foi identificada a presença de três tipos de veneno. Nas vísceras, em meio a restos de uma refeição, composta de arroz, feijão, carne e batata frita, detectamos a presença de arsênico em alta concentração. No sistema nervoso central, encontramos neurotoxina de serpente, do tipo viperidae, que pode ter sido injetada no corpo da vítima a partir de uma minúscula perfuração que localizamos no pescoço. Por fim, encontramos também traços significativos de estricnina, notadamente nos lábios e na língua da vítima.

    O olhar do delegado, desejoso de constatar a surpresa dos escritores diante daquela bela peça de oratória necrológica, percorreu ligeiro ao redor da mesa. Correu em vão, porque, até mais do antes, os olhares dos escritores estavam cravados na toalha suja.

    Do outro lado da mesa, mas exatamente na minha frente, Batota ergueu seu polegar direito, que era grosso como tronco de sequoia. Com aquele gesto, ele queria me informar que estava favoravelmente impressionado com o trabalho do legista.

    Após um fundo suspiro, o policial retomou a leitura:

     – Quando analisávamos a caixa craniana da vítima, observamos um ligeiro afundamento, na nuca, resultante de golpe. Pelo exame da região occipital, verificamos que se tratava de ferimento recentíssimo. Tal lesão foi causada por objeto pesado, certamente arredondado. Embora não tenhamos podido avaliar, no pouco tempo que nos foi concedido, a total extensão do referido dano, se mortal ou não, podemos assegurar que ele foi considerável, tendo em vista a fragilidade dos ossos da vítima pela sua idade muito adiantada.

    O pasmo era geral. Ninguém ali, nem os escritores, nem Batota, nem eu, esperava um estudo tão detalhado e tão bem escrito. E realizado em tão pouco tempo.

    – Estou abismado com esta peça criminalística – comentou Batota. – O mundo inteiro, sejamos sinceros, nada espera de um brasileiro que não a mais completa e absoluta incompetência.

    Com o braço direito dobrado, bati com força no bíceps. Ou seja, respondi-lhe com uma banana. Ou com um manguito, como dizem nas tavernas onde cantam os fadistas.

    Ignorando minha pantomima, o delegado prosseguia:

    – A análise dos pulmões mostrou danos recentes e extensos: paredes violentamente corroídas e alvéolos estranhamente rígidos. Na parte inferior do pulmão esquerdo, havia importante quantidade de sangue. Concluímos desses indícios, que a vítima evidentemente inalou algum tipo de gás letal. Esse gás, inequivocamente, lhe enrijeceu os alvéolos, que ficaram como que petrificados. Logramos recolher uma pequena amostra do elemento químico que causou os severos danos às paredes do órgão respiratório. Submetemo-lo a um exame, mas não conseguimos identificá-lo com precisão. Acreditamos, porém, que se trata de um novo composto mortífero, sintetizado recentemente em laboratórios do Leste europeu, o russorum venenorum mortalis, do qual tivemos notícia através de publicações acadêmicas. 

    Havia soberba, e muita, na cara feiosa de Aroeira enquanto lia aquele belíssimo documento oficial.

    Ora, esta leitura tão arrasadora fez evaporar parcela considerável do álcool que eu havia ingerido. Que, convenhamos, não fora pouco. Cada palavra pronunciada pelo delegado soprava para mais longe a nuvem que toldava minha cachola. A cada frase dele, eu ficava mais esperto.

    Por fim, veio o arremate:

    – Concluindo, ao examinarmos o coração, detectamos também que a vítima sofreu um enfarto agudo do miocárdio. Não se pôde constatar, com precisão, se esse evento determinou o óbito ou não. Experiências científicas recentes comprovaram que, em pessoas de idade avançada, tais infartos são menos devastadores. Em função disso, julgamos que, no caso em estudo, são significativas as possibilidades de o ataque cardíaco ter apenas contribuído para a morte. Dito de outra forma: só se juntando aos demais prejuízos sofridos pela vítima, quais sejam envenenamento múltiplo e pancada, a síncope cardíaca pode ter acarretado o falecimento. Fazemos, no entanto, uma ressalva. Em se tratando de uma morte tão intrincada como a que tivemos sob as lentes do nosso microscópio, não se pode afastar a hipótese de estarmos diante de um enfarte malignamente induzido.

    Aroeira dobrou o laudo com gestos vagarosos e majestáticos e o guardou no bolso interno do casaco. Julgando-se, no íntimo, o Rei da Cocada Preta.


    47 – A vacilante habilidade dos cachaceiros

    Depois daquela leitura, as engrenagens do meu cérebro voltaram a se movimentar. Em baixa velocidade, devo admitir. Mas o certo é comecei a perceber a ligação entre certas frases ditas pelo delegado e outras frases que eu escutara ao longo daquela tarde.

    No entanto, sem sequer esboçar um pedido de autorização, Jerônimo Aroeira abriu uma garrafa de vinho, levou-a aos beiços e sugou, num só gole demorado, tudo o que nela havia. E, a seguir, com a maior calma deste mundo cão, voltou a falar em um tom de voz ainda mais grave:

    – Em uma já longa carreira policial, nunca tive caso semelhante em minhas mãos. Morte em cima de morte. O crime mais parecido a este de que me lembro foi praticado, no Rio de Janeiro, por um louco que tinha a mania de se dizer poeta. Depois de matar a pauladas um companheiro de hospício, também versejador, o sujeito resolveu degolá-lo para não deixar aberta a possibilidade de uma ressurreição. Mas como a cabeça, já autônoma, continuasse a declamar dodecassílabos, o poeta alucinado decidiu jogá-la ao mar para que se afogasse. Por que tudo isso? Porque o poeta assassinado tinha a mania de dizer que pertencia à Academia Brasileira de Letras e que, portanto, era imortal.

    Era visível e bem palpável o nervosismo dos escritores perante a leitura de Aroeira. Perguntei-me: estarão tensos apenas porque não esperavam laudo tão acurado ou terão algum outro motivo, mais profundo, para ficarem inquietos?

    Implacável, continuou o delegado, como se apreciasse mais o impacto de suas revelações do que a sua função de meganha:

    – Hoje, aqui, tivemos uma vítima à qual foram impostas muitas mortes: triplo envenenamento, inalação de gás letal, pancada e, para culminar, um belo enfarte. Seguramente provocado. Senhoras e senhores, eu nunca ouvi falar em crime semelhante. É crueldade demais! E foi cometida neste hotel.

    O policial voltou-se então para o gerente do hotel:

    – Senhor Batota, vamos ter uma longa noite pela frente. Assim, ordene ao garçom que traga novas garrafas para completar a lotação do carrinho! Como as pessoas aqui presentes terão de falar bastante, quero uma boa provisão de líquidos para que todos refresquem permanentemente a garganta. In vino veritas.

    Fiquei surpreendido com a sagacidade, digamos, etílica, demonstrada ali pelo homem da lei e da ordem. O português se levantou e, um tanto vacilante, foi até o telefone.

    Enquanto em voz baixa o Batota se entendia com o garçom, o delegado Aroeira levantou-se e, com as mãos às costas, calado, pensativo, passou a caminhar ao redor da mesa.

    Pouco depois, surgiu o garçom equilibrando precariamente uma imensa bandeja na qual luziam incontáveis garrafas. O pobre homem estava ainda mais bêbado. Temi que ele derrubasse alguma botelha ao passá-la para o carinho, mas não ocorreu nenhum acidente. Ele era dotado da vacilante habilidade dos cachaceiros escolados. Detinha-se sempre a um milímetro do desastre.

    Sentado na pontinha da cadeira, muito tenso, assisti à transferência das garrafas. Se aquele garçom quebrasse uma só delas, eu lhe arrebentaria os óculos com um murro. Tomo como ofensa pessoal qualquer dano a uma garrafa, seja de que bebida for.

    Conheço muito garçons que trabalham embriagados. Afinal, não é tarefa das mais complicadas trazer pratos cheios e levá-los embora depois, vazios. E eles sempre podem tomar de graça uns restinhos de vinho caro porque as mulheres, para se mostrarem sofisticadas, costumam deixar um golinho no fundo da taça.

    Pois bem, abastecido o carrinho, o garçom tentou achar o caminho de volta ao elevador, mas, seu caminhar incerto e trêmulo o levou diretamente a uma janela aberta. Pensei que escolheria a forma mais rápida de descer ao térreo: voando. Porém, um tropeção em uma cadeira o desviou da morte o lançou com precisão na porta escancarada do ascensor, que o engoliu.

    Espichei uns olhos babosos para o carrinho de bebida. Já estava praticamente sóbrio de novo, pronto para mais uma saturnal. Bebida de graça é uma coisa muito linda, bebida boa de graça é algo maravilhoso.

    – Sirvam-se, senhores – comandou o delegado.

    Voei para o carrinho e, com gestos rápidos e precisos, enchi um copo com Joãozinho Caminhador de quinze anos, rótulo azul. Nunca, jamais coloco cubos de gelo no meu copo. Segundo um amigo meu, engenheiro físico-químico, cubo de gelo só serve para ocupar espaço no copo. Além disso, cá entre nós, gelo pode irritar a garganta do bebedor.

    Enquanto os escritores se serviam, Aroeira, mamando no gargalo de uma garrafa de gim, os observava com atenção. Eu também estava alerta porque, como o delegado, ali me encontrava a serviço.

    Bugres e Fedorova pegaram pelo pescoço garrafas já destampadas. Ele foi de vinho; ela, de cachaça. Pragmáticos, evitavam desse modo o trabalho de encher o copo a todo instante. O poeta argentino, o mais agitado da mesa, falava em voz alta e ria nervosamente. Seu comportamento atraiu a atenção do delegado, que se dirigiu a ele em tom casual:

    – Senhor Bugres, o que tem o senhor, um homem cultíssimo, a nos dizer sobre a morte, ou, melhor, sobre as múltiplas mortes de Miguela de Alcazar?

    O autor de A biblioteca de Babel só respondeu depois de tomar um quase infindável gole de vinho:

    – Pouca coisa. Miguela era uma espanhola e, como sabemos, os espanhóis sofrem de um avassalador sentimento de inferioridade diante de nós, argentinos. Não suportam que sejamos mais ricos, elegantes e inteligentes do que eles. Mas a pobre Miguela de Alcazar me odiava também porque há décadas venho sendo lembrado para receber o Nobel, enquanto o nome dela jamais foi sequer mencionado.

    Batota intrometeu-se:

    – Mas, ao final das contas, o senhor também nunca recebeu o Nobel!

    – Felizmente. Se eu o tivesse recebido, provavelmente Miguela de Alcazar teria cravado um punhal no meu coração. Não suportaria essa derradeira, embora justa, humilhação.

    – Não estou interessado na disputa de vaidade entre cucarachas – rosnou Aroeira. – Tendo em vista a autópsia, meus homens neste momento estão fazendo uma varredura no apartamento 1313. Certamente, encontrarão traços de sua passagem por lá, senhor Bugres. Portanto, poupe-me a trabalheira e me diga: por que motivo o senhor matou a velha?

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    48 – Palavras vivem trocando de sentido

    A dureza daquela pergunta – feita de chofre, como dizem na terrinha dos comedores de bacalhau – espantou a todos nós.

    – Não gosto das suas frases, delegado! – o poeta bateu com a ponta da bengala no chão. – O senhor vai diretamente ao ponto. A verdadeira linguagem, no entanto, é labiríntica, sinuosa. Devemos andar por ela em círculos, tateando. Feito o alerta, eu lhe respondo: não matei Miguela de Alcazar, mas não afirmo isso de forma categórica.

    – Como assim? – espantou-se o policial. – Explique-se melhor!

    Bugres prosseguiu:

    – Reconheço, no entanto, que posso ter contribuído para a morte dela, sim. Porém, se isso ocorreu, foi sem que eu o desejasse.

    – Não sou bom em gramática – disse o delegado, fazendo cara de nojo. – Aliás, das incontáveis regras que regem nossa intrincada língua portuguesa, só guardei uma: não se coloca vírgula entre sujeito e verbo. Portanto, não entendi exatamente aonde o senhor quer chegar com esse palavrório.

    – Realmente, para meter bandidos na cadeia, o senhor delegado não necessita de sintaxe sofisticada – comentou o argentino. – Mas, voltando ao principal, falarei agora da minha hipotética participação na morte de Miguela de Alcazar. Se contribui para o falecimento dela, foi com uma inocente brincadeirinha…

    – Brincadeirinha?

    – Exato, delegado. Miguela costumava ler logo após o almoço. Sabedor disso, coloquei um bilhetinho zombeteiro dentro do livro que ela estava lendo. Pode ser que ela tenha visto o tal bilhete…

    – Conte melhor essa história! – exigiu o policial.

    – Bem, tudo começou na portaria deste hotel. Quando nos registrávamos, escutei o porteiro dizer a Miguela que ela ficaria hospedada no apartamento número 1313. No mesmo instante, lembrei-me de que a Bíblia que Miguela costumava ler tinha exatamente 1313 páginas. Possuo um exemplar da mesma edição, que saiu do prelo do impressor Juan Cabeza de Toro, em Barcelona, em 1796. Foi com grande gosto que li essa edição, num internato suíço. Quando ainda não era cego, é evidente…

    – Volte para a história central – resmungou o delegado, já impaciente.

    – Ali mesmo, na portaria, discretamente, rabisquei um bilhetinho. Escrevi-o com a mão esquerda para disfarçar minha letra. Depois, pedi a Miguela que me deixasse tocar sua Bíblia. Aleguei que queria cheirar a encadernação em couro. Coloquei então o bilhete na última página. E pensei assim: se por acaso o encontrar, Miguela terá um belo susto.

    – O que dizia o bilhetinho?

    – Não lembro, delegado. Usei várias palavras, mas não me recordo em que ordem eu as escrevi. Dizem que as palavras costumam trocar de lugar na frase depois de escritas. Assim, com o passar do tempo, os textos assumem novos sentidos. Por vezes divergentes dos originários. Num conto famoso levantei a hipótese de que, fechado um livro, as palavras se movem de uma página a outra, a fim de confraternizar…

    – Não li esse conto – cortou o policial, seco. – E, se o tivesse lido, decerto não teria gostado. Não me venha com lengalengas! Não tente tirar o corpo fora! O senhor sabe exatamente o que escreveu no bilhete. Portanto, fale a verdade!

    E avançou ameaçador para o argentino, talvez para dar-lhe um susto, levando-o a confessar. Não levou em conta que o grande vate argentino, como os imensos Milton e Homero, vivia na escuridão perene.

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    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    43 – De como os dinossauros inventaram o vinho

    Assim que Batota saiu para comandar a discretíssima transferência da morta para o rabecão do IML, todos os escritores se dirigiram aos seus apartamentos.

    Só eu permaneci no salão. Jogado em uma cadeira, escutava atentamente as fitas que já gravara. A medida que os registros refrescavam minha memória, eu registrava na minha caderneta todas as frases mais fortes e retocava aquelas que, antes, anotara precariamente.

    Aquilo se estendeu por muito tempo. Fiquei impressionado com o grande número de frases ambíguas, comprometedoras mesmo, pronunciadas pelos escritores. O que o meu gravador registrara não os ajudava em nada. Aliás, provava que todos eles em algum momento, como diz a gíria, haviam pisado no tomate. Por duas ou três frases, todos eles surgiam como potenciais suspeitos. Todos ou quase todos tinham falado muito mal de Miguela de Alcazar. Caso se constatasse que a anciã fora mesmo assassinada, todos eles poderiam ser, em tese, autores do crime.

    Tendo como base o número de frases comprometedoras pronunciadas por cada um, esbocei uma detalhada tabela de suspeição.

    Depois, rascunhei o esquema da reportagem que escreveria para o Correio de Brasília.

    Lá pelas tantas, cabeceei. Acomodei-me em uma poltrona da plateia e cai num sono agitado. Sonhei com facas ensanguentadas, estampidos, gemidos, gritos de terror, corpos sem cabeça e cabeças sem corpo.

    Despertei sobressaltado com uma vigorosa palmada que Batota me deu no joelho.

    – Como podes estar a dormir num dia como este, pá?

    – Cansaço acumulado – bocejei. – Que horas são?

    – Sete menos dez. Vamos começar a noite com uma sessão de aperitivos.

    Em cima do estrado, o garçom míope distribuía pratos e talheres pela imaculada toalha branca que cobria a mesa redonda. Num carrinho ao lado da mesa, havia muitas garrafas.

    Garrafas! Esse é o meu ponto mais fraco, confesso. Sei que quase invariavelmente elas contêm líquidos relaxantes. Gosto igualmente de vinho, gin, rum, uísque ou cerveja. Em grande quantidade, de preferência. A qualidade é importante, eu sei, mas, como meu salário é modesto, em geral, não me concentro nesse quesito. Antegozando o surdo estouro das rolhas ou o suave rascar de tampas sendo giradas, comecei a salivar.

    Lembrei, então, que não havia bebido um só copo de água durante aquela longa tarde. Minha língua colou-se de imediato ao céu da boca.

    – Água! – gemi.

    O garçom veio até onde eu estava com uma bela garrafinha verde de água Perrier. Bebia-a de um só gole.

     – Me dê mais duas – pedi.

    – Nunca vi ninguém gostar tanto de água! – espantou-se Batota.

    – Odeio água – expliquei. – Só bebo água quando preciso lavar o salão antes de um baile.

    – Salão? Baile?

    – Baile de destilados e fermentados – apontei o carrinho das bebidas. – Pretendo beber uma barbaridade. São raras as ocasiões em que me vejo diante de tantas belas garrafas.

    – Gostas de beber?

    – Gostar é um verbo que não expressa a grandeza do meu sentimento, seu Manoel. Ainda não foi inventado um verbo que…

    – Em Portugal, adoramos o vinho.

    – O verbo adorar não está mal, mas ainda está bem distante de descrever o meu verdadeiro sentimento por destilados e fermentados.

    Resolvi então deitar um pouco de falação sobre essa minha paixão:

    – A ligação dos homens com a bebida começou com o vinho. No início dos tempos, nossos ancestrais não eram nem carnívoros nem herbívoros. Eram bebedores. Bebiam água com lodo. De quando em quando, engoliam um peixinho e isso melhorava a dieta deles. Certo dia um raio fez cair uma videira num riacho. Aí, no dia seguinte, as uvas foram pisoteadas por uma manada de dinossauros. Um hominídeo que ia passando bebeu aquela água avermelhada e ficou eufórico…

    Batota olhou para mim entre o interessado e o espantado. Talvez estivesse a pensar que aquelas garrafinhas verdes de água Perier, que eu devorara, continham afinal puro uísque.

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    44 – Sobre os hábitos alimentares dos brasileiros

    Minha empolgada historieta sobre a gênese do vinho foi interrompida pela chegada dos escritores. Às sete horas em ponto, em silêncio, formando um bloco, regressaram à sala de reuniões. Ao ver que não faltava nenhum dos seis, senti-me aliviado.

    Depois que todos assumiram seus lugares à mesa, Batota, com um gesto firme de cabeça, ordenou-me que sentasse. Por sorte, minha cadeira estava ao lado do carrinho de bebidas. Espichei um rápido olhar sedento às garrafas. Não registrei ali a falta de nenhum dos principais destilados. Havia desde vomitórios, como vermute, até o néctar dos biriteiros, que se chama uísque.

    – Façamos os devidos brindes aos deuses da literatura! – berrou Batota.

    Verti uísque num copo. Controlei-me para não encher até a borda. Recusei, com um esgar de asco, os cubos de gelo que o garçom me ofereceu.

    – Viva Gógol! – gritou Fedorova.

    – Salve Shakespeare! – silvou Águeda Christine.

    – Glória a Mérimée! – fumaceou Sim Et Non.

    – Vida eterna a Lao Tsé! – prosseguiu Foo.

    – Uísque farto para o cachaceiro do Poe! – berrou Dax.

    – E vinho para Cervantes! – acrescentou Bugres.

    A cada saudação, eu esvaziava um copo, com um só gole.

    Quando chegou a ocasião que julguei propícia para o meu pronunciamento, berrei:

    – Que não falte um boteco no céu para Graciliano Ramos!

    – Para sempre viva Camões! – ecoou Batota. – E, já agora, que Fernando Pessoa esteja ao seu lado!

    – Felizmente, os deuses da literatura são numerosos – disse Fedorova, segurando pelo gargalo uma garrafa de vodca. – Viva Tchecov!

    Só então notei que todos ali, como eu, eram grandes apreciadores de substâncias líquidas. Embora idosos, todos eles vertiam generosas doses nos respectivos copos e imediatamente os esvaziavam.

    O derradeiro viva foi dado por Sim Et Non:

    – Que Deus acolha Miguela de Alcazar na sua bem guarnecida adega!

    Às oito horas em ponto, como anunciara Batota, transportadas em carrinhos, chegaram as muitas travessas fumegantes. O português levantou-se para ajudar o garçom a servir.

    Mesmo já bastante zonzo, lembrei que precisava forrar o bucho. Bem alimentado, eu poderia lutar melhor contra o carrinho de bebidas. Saco vazio não para em pé, dizia meu pai.

    Confesso que fiquei espantado com a capacidade de absorção de líquidos e de sólidos por parte daquela velharia. Sou incapaz de dizer quem mais mastigou ou engoliu. Até escritores milionários saem do sério quando a boca é livre e a bebida é de graça.

    Lá pelas tantas, os comes e os bebes desataram todas as línguas. Passou a reinar naquela sala um clima de total descontração. Bolinhas de miolo de pão, embebidas em molho, voavam de um lado a outro. Azeitonas e ervilhas eram os outros projéteis utilizados. Senti-me de volta à hora da merenda no grupo escolar do Alegrete onde estudei. Enfiei um aspargo pelo decote de Fedorova. Ela adorou.

    Por uma longa hora estendeu-se aquela comilança.

    Aqui, neste exato trecho do livro, permitam-me breve digressão a respeito dos hábitos alimentares dos brasileiros.

    O Brasil é o país onde mais se come no mundo. Dizem que na França come-se a melhor comida. Pode até ser, mas lá não se come muito. Nós, brasileiros, desprezamos molhos sofisticados, condimentos raros e porções delicadas. Comemos no atacado. Quer carne? Pois muito bem, aqui vai um quilo de picanha gorda. Bom proveito, seu animal, coma até morrer! Quer feijoada? Pois engula três pratos cheios até a borda e depois procure ajuda veterinária, seu cavalo!

    Eu poderia aqui dizer também que em certas áreas do Brasil come-se mal. E pouco. É um calango hoje, um ratinho daqui a uma semana. E mandioca, quando há, pouca. Poderia até me estender sobre isso, mas não o faço porque sei que leitores de livros policiais, em geral, odeiam ler sobre fome ou miséria.

    Ainda me lembrei de perguntar como era a comilança em Portugal ao Batota, mas o gerente estava sempre de boca cheia, comendo bacalhau como se não houvesse amanhã.

    roasted chicken

    45 – Grupo orquestrado de assassinos cruéis

    Voltemos ao regabofe.

    Entre gargalhadas e arrotos, comemos. Muito.

    Só paramos de mastigar quando a porta do salão se abriu em par e deu passagem à figura miúda e bem armada de Jerônimo Aroeira.

    – Rango pra mais um! – gritou o titular da Primeira Delegacia de Polícia de Brasília e se acomodou em uma cadeira que colocou ao lado da do Batota.

    O clima descontraído dissipou-se. Consigo, Aroeira trouxera da rua uma nuvem escuríssima, que estacionou sobre nós. Perdemos a alegria e o restinho de apetite. Com exceção do Batota, que continuava a aterrar, com grandes garfadas de bacalhau, o seu mui dilatado ventre.

    – Bacalhoada! – ordenou o delegado, depois de lançar um olhar famélico ao prato do português.

    Veio a bacalhoada num prato tão monumental que alimentaria, facilmente, um time de rúgbi. Aroeira o derrotou em pouco tempo. O delegado era daquele tipo de gente que considera o ato de mastigar uma insensatez que só nos leva ao desgaste desnecessário dos dentes. Engolia garfada em cima de garfada. Parecia foguista de trem antigo alimentando a caldeira com pás de carvão.

    Enquanto comia, Aroeira matutava. Via-se, pela vibração das veias das têmporas, o esforço dos neurônios do policial. Estava mergulhado em elucubrações profundas. 

    De repente, meu coração brasileiro se encheu de esperança: e se Jerônimo Aroeira, aquele modesto delegado tupinambá, sobrepujasse em argúcia os criadores dos mais famosos tiras fictícios do mundo?

    Foi um impulso ingênuo, reconheço hoje, mas a minha inteligência estava bastante comprometida pela ingestão de licores proibidos para menores de idade.

    Depois de atirar a última pá de bacalhau para dentro da goela, Aroeira comandou:

    – Que o garçom se retire!

    O pobre trabalhador míope, que se encontrava completamente embriagado, sumiu sem fazer ruído. Eu havia percebido que ele bebia discretamente toda vez que se voltava de costas para nós a fim de servir mais uma dose. Com gestos rápidos, enchia um pequeno copo com uísque, que a seguir sugava por um canudo. Inicialmente, tolo que sou, acreditei que ele estava provando as bebidas para ver se alguma delas estava envenenada. Assim, gastei um bom tempo até perceber que o garçom catacego era só mais um pinguço em uma sala cheia de cachaceiros.

    Quando se desfez o barulho do elevador, o que significava que o garçom havia chegado ao térreo, Aroeira abriu o paletó. Com um gesto muito lento, teatral, puxou do bolso um envelope lacrado e, com voz solene, anunciou:

    – Senhoras e senhoras, passo agora a ler o laudo da autópsia realizada, pelo doutor Abelardo Nepomuceno Crescente, no corpo da senhora Miguela de Alcazar…

    Fez uma breve pausa e completou:

     – Que foi brutalmente assassinada.

    O silêncio adensou-se em torno de nós.

    Por cima da mesa, entre restos de comida, manchas de molho, talheres sujos e copos embaçados, rastejavam, ariscos, os assustados olhares dos escritores.

    – Sim, contrariando a abalizada opinião de um policial experimentado como eu, a escritora espanhola foi morta. Aliás, ela foi morta mais de uma vez, se é que se pode dizer isso. Foi assassinada por um profissional do crime, impiedoso e sádico. Aliás, eu me sinto mais inclinado a considerar que ela foi morta por um grupo orquestrado de assassinos cruéis e implacáveis.

    Neste ponto, de volta ao silêncio, o olhar do delegado passou a circundar a mesa. Movia-se lentamente de um rosto a outro. Por um demorado minuto, digamos, aquele olhar arguto fixava-se em cada face. E depois passava a outra.

    Acossados por aqueles cintilantes olhos inquisidores, os escritores baixavam a vista, constrangidos, já meio culpados. Com a exceção, é claro, do poeta argentino, que parecia olhar diretamente para as lâmpadas do lustre.

    Concluída a observação de todos os rostos, o delegado anunciou: – Passo agora a ler o laudo!

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    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    40 – Uma tempestade não dura um dia

    Chegando ao apartamento 1313, o escritor da nação mais populosa da Universo dirigiu-se logo à cama da escritora morta. Para minha surpresa, enfiou-se debaixo dela, para logo sair, espirrando forte. Eu e o gerente ficámos pasmos.

    – Que poeirada, meu! – disse ele entre um espirro e outro. – Na China, mano, quando tem muita poeira debaixo da cama, a gente costuma dizer: ou o cabo da vassoura é curto ou a camareira é preguiçosa.

    – Não se preocupe, senhor Foo! – disse Batota, embaraçado. – Vou tratar de arrancar a cabeça da nossa camareira. Os malditos empregados são todos brasileiros, ou seja, são todos preguiçosos!

    – Segura a franga, Batota! – estrilei. – Não fale mal dos brasileiros outra vez na minha frente! Tivemos que aturar vocês, portugas da Europa, por mais de trezentos anos. Foi demais. Roubaram o que puderam daqui e só nos deixaram, em troca, meia dúzia de piadas ruins.

    – Meia dúzia? Mentira! São milhões!

    Nossa discussão foi interrompida por uma intrigante frase dita pelo escritor que, naquele momento, examinava as cobertas da cama, perfeitamente estendidas:

    – Nem os fortes nem os violentos morrem no seu próprio leito, mano.

    Batota piscou um olho zombeteiro para mim e dirigiu-se ao chinês:

    – O que quer dizer o senhor Foo com essas palavras? Que dona Miguela era forte ou violenta? Que foi assassinada?

    – Creio que foi assassinada, meu. Mas ainda não achei nenhuma pista concreta sobre sua morte.  Diz o Tao te king: “O bom andarilho não deixa pegadas”.

    – Já também começo a pensar que dona Miguela foi mesmo assassinada – palpitou Batota. – Nesse caso, oh, como eu gostaria de estrafegar o pescoço do assassino desta pobre espanhola com as minhas mãos! Ou quebrar-lhe a nuca…

    – Interessante – Foo encarou interrogativamente o português. – O mano gostaria de decapitar a camareira e de esgoelar o assassino… Puta, meu, você resolve tudo com a força das mãos?

    – É só o meu modo enfático de falar – defendeu-se o lusitano. E, dando-me uma cotovelada nas costelas, perguntou: – Sou ou não sou um homem pacífico, Campestre?

    – Eu, fora! – reagi.

    – Sabe o que diz o Tao te king sobre o uso inadequado das mãos? – perguntou Foo. E ele próprio respondeu: – “Quem toma a seu encargo o lugar do céu para aplicar a morte, faz como quem quer serrar no lugar do carpinteiro: ao serrar, dificilmente salvará sua mão”.

    – Que belo ensinamento! – extasiou-se o gerente do hotel. – Estou a admirar muito as frases chinesas. São breves, plenas de poesia e verdade.

    – As palavras verazes não são belas, mano, já as palavras belas, pelo seu lado, não são verazes!

    Parado diante da morta, o chinês observava atentamente a sua cabeça:

    – Ôrra, meu, essa mantilha está muito esquisita aqui no alto da cabeça! Parece ter sido apertada contra o crânio.

    – O senhor está a querer dizer o quê? – perguntou Batota.

    – A sabedoria chinesa ensina que devemos nos preocupar com o conjunto e não com os detalhes.

    – E que raio de conjunto é esse? – quis saber o lusitano.

    – Ô, mano, não me obrigue a falar demais Falar pouco é o natural. Uma ventania não pode durar uma manhã, uma tempestade não dura um dia.

    – Desculpe-me se lhe faço tantas perguntas – insistiu o português. – Mas o senhor está a falar por parábolas e eu cá prefiro coisas mais diretas: pão, pão, queijo, queijo. Mas, admito que, de entre todos os escritores neste hotel, o senhor é aquele que se mostra mais sábio.

    – O sábio cala, quem não sabe fala – retrucou Foo.

    Depois dessas palavras, o luso cruzou os braços e, emburrado, calou-se.

    Já o escritor ajoelhou-se e começou então a examinar, com lupa, o tapete persa que cobria boa parte do chão do apartamento. Findo o demorado exame, disse:

    – Tentei ir além do limite das aparências, mas permaneceu em mim o mistério. Talvez porque eu tenha falado demais, mano. No caminho do céu não devemos fazer perguntas, pois o certo é que sempre obteremos as respostas.

    – Ao fim e ao cabo, o senhor não saiu de cima do muro! – exaltou-se o gerente do hotel. – E nem Não sabe se dona Miguela foi morta ou se morreu. Pois muito bem… Então eu pergunto-lhe à queima-roupa: foi o senhor quem matou dona Miguela?

    Espantado, voltei-me para o português. Com o rosto arroxeado de indignação, me pareceu que ele estava disposto a dar um murro no chinês. Mas em vez de temer a reação de Batota, o homem continuou a filosofar:

    – Quem segue o caminho do bem, não utiliza a violência, meu, porque aos atos armados sempre responderá a violência. 

    Sempre rindo e pisando macio, Foo foi deslizando para o corredor.

    – Chinesinho escorregadio, não achas? – murmurou Batota.

    – Escorregadio e esperto – completei. – Mas até gostei das frases ocas que ele recitou para nós.

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    41 – Seres humanos só têm paz quando estão lendo

    De novo retornamos ao salão, a fim de buscar Jorge Luís Bugres, que seria o último a examinar o fatídico apartamento 1313.

    – Não estou com muita fé no argentino – disse-me Batota, no corredor. – Acho que não bate bem da bola.

    – Mas é um grande contista – ponderei. – Ele se diverte bastante zombando dos seus leitores.

    Olhei o relógio. Eram exatamente cinco horas quando chegamos à porta do salão. Paramos no umbral. Diante da janela, de costas para nós, Bugres recitou:

    O mais era morte e somente morte

    Às cinco horas da tarde.

    Ai que terríveis cinco horas da tarde!

    Eram cinco horas em todos os relógios!

    Eram cinco horas da tarde em sombra!

    Batota bateu palmas entusiasmadas. Dava para entender que adorava mesmo o homem.

    Ainda estendida na poltrona, Fedorova abriu seus olhos cinzentos e os cravou em nós. Sim Et Non baforou mais forte.

    – Viemos buscá-lo, senhor Bugres – anunciou o português. – Que belo poema era esse que o senhor recitava?

    – “Pranto por Ignácio Sanchez Mejias”, de Federico Garcia Llorca. Meu relógio de pulso tem um alarme que sempre vibra às cinco em ponto da tarde. É a hora preferida da morte. E a morte é a negação da aventura, a extinção das personagens, o fim do narrador.

    De braços dados, Bugres e Batota iniciaram então a caminhada em direção ao apartamento da defunta. Estranhamente, foram em silêncio até lá.

    Já dentro do 1313, o argentino pediu ao português que o sentasse na beirada da cama, de onde, mais que falar, discursou:

    – As camas guardam o calor e o formato de todos os corpos que desfrutaram delas. Heráclito de Halicarnasso assegura no Rerum delirium que existe uma cama primordial onde estão reunidas todas as formas humanas, mesmo as mais hediondas.

    – Vossas frases são lindas, senhor Bugres! – deslumbrou-se o Batota. – Pena que eu não as compreenda completamente. Como, aliás, pouco entendi o escritor chinês. Aprecio frases filosóficas, embora nem sempre apanhe todo o significado delas.

    – A verdade e a beleza morrem junto com o som das palavras, quando este se desfaz no ar.

    – Ai, Jesus, mais uma bela frase! – aplaudiu o português. – Devia trazer comigo papel e caneta para apontar. Mas diga-me: o que exatamente quer fazer o senhor neste quarto, visto que nada vê?

    – Os cegos investigam com todos os outros sentidos, melhor do que aqueles que vêem. Recorrendo ao olfato, posso lhe afirmar que Sim Et Non esteve parado no centro deste apartamento pois o cachimbo dele fede tanto quanto o baú de roupas íntimas da tripulação de um navio pirata. Sei também que o chinês meteu-se debaixo desta cama – e o poeta argentino bateu com a mão ossuda na colcha. – porque ele usa um perfume adocicado que é praticamente um vomitório. Eu poderia falar também da movimentação de Fedorova e de Águeda Christine, mas, como as mulheres abusam dos perfumes, não haveria mérito nas minhas constatações.

    Batota e eu nos entreolhamos impressionados.

    Bugres voltou a falar:

    – Recorrendo a outro sentido, a audição, eu diria que neste exato momento soa o melancólico lamento de uma sirene de ambulância. Pela premência com que ecoa, eu diria que está vindo para cá a fim de levar o corpo da nossa desventurada Miguela de Alcazar.

    Só passados alguns segundos, Batota e eu ouvimos o som de uma ambulância, ainda distante.

    O argentino pigarreou antes de perguntar:

    – Poderiam vocês me dizer em que posição está a nossa morta?

    Batota, solícito, sintetizou:

    – Recostada à poltrona, junto à mesa, ao lado do abajur, diante da janela aberta. Estava lendo. Parece muito serena.

    – Serena, sim. O ser humano só tem paz enquanto lê. Durante a leitura, nossa alma vagueia pelo ilimitado mundo da imaginação.

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    42 – O corpo sem vida da nossa colega falecida

    Burges regastou-nos do silêncio reflexivo no qual nos havia mergulhado:

    – Mas que livro lia Miguela? – perguntou.

    – O livro santo, don Jorge! – disse o português, profundamente emocionado. – A Bíblia Sagrada!

    – Mas em que trecho ela se encontrava? Lia a erótica canção de amor do rei Salomão? O conto satírico de Jonas? Ou antes a turbulenta peroração de Jó contra a insensibilidade de Deus?

    – Nenhum desses livros, mestre – respondeu Batota. – Palmilhava a derradeira página do Apocalipse.

    Mortalmente pálido, o escritor argentino levantou-se de um salto. Trêmulo, com a ponta da bengala metralhando o piso, murmurou:

    – Tirem-me já daqui!

    Quando Batota e Bugres de braços dados deixavam o apartamento de dona Miguela, ouvi bem próxima a sirene. Cheguei na janela a tempo de ver a espetacular freada do veículo no estacionamento do hotel. Era uma camionete tetricamente negra que ostentava letras imensas no capô: IML.

    Dela desceram três homens que se encaminharam a passos largos para a entrada do hotel. Saí do apartamento e fiquei parado perto do elevador à espera deles.

    Pouco depois, abriu-se a porta do elevador e por ela saíram os homens que eu vira pouco antes. Levei-os até a sala de reunião, onde se encontravam Batota e os escritores.

    Depois que o gerente informou aos agentes que aquelas pessoas ali reunidas, oriundas de diversos países, eram autoras de livros policiais e que sabiam falar muito bem português, o mais baixo e mais gordo dos três pronunciou-se no mais puro sotaque curitibano:

    – Sou o doutor Abelardo Nepomuceno Crescente, legista-chefe do Instituto Médico Legal de Brasília. Coincidentemente, nas horas vagas, escrevo livros policiais, desses que são vendidos em bancas. Portanto, sou colega dos senhores. Conheço bastante bem o metiê. Fiquei muito abalado ao saber que a morta é doña Miguela de Alcazar. Assim, aqui estou para levar o corpo sem vida da nossa colega falecida ao meu laboratório, onde farei, em pouquíssimo tempo, a mais meticulosa autópsia da minha vida.

    – Abra bem os olhos ao cortar o cadáver dessa pobre mulher – disse Bugres. – São inúmeros e intrincados os caminhos que levam ao inferno.

    – Ainda não gastou seu rol de frases ambíguas, senhor Bugres? – mais ralhou que perguntou Batota, talvez agastado pela forma intempestiva como quisera sair do 1313. – O senhor não poderia ser mais preciso nessa insinuação?

    – Claro que não! – retrucou o argentino. – Faço parte do grupo dos autores oraculares, aqueles cujas frases têm que ser decifradas. Mas esperemos a leitura do documento de alta literatura que certamente será o laudo do doutor Abelardo Nepomuceno. Só depois desse laudo, se necessário, falarei abertamente.

    – O ministro das Relações Exteriores se interessou pessoalmente por este caso – continuou o legista, mantendo a pose de sujeito de grande importância que exibia desde a chegada. – Ligou-me ainda há pouco pedindo empenho e dedicação. Garanti a ele que o resultado da autópsia, impecavelmente científica, sairá ainda hoje.

    – Será bom demais da conta se ocorrer o que o senhor anuncia – comentou Águeda Christine. – Temos urgência em saber se a pobrezinha foi morta ou não.

    O gerente se intrometeu.

    – Venha por aqui, doutor! – agitou-se Batota, empurrando o legista em direção ao corredor. – Precisamos retirar o corpo com muita discrição, pelo elevador de serviço, para não assustar os demais hóspedes!

    O português voltou-se para nós e, fazendo o gesto de quem parece querer espantar galinhas, disse:

    – Os senhores podem descansar um pouco. Aqui ou em vossos quartos. Mas regressem às sete horas, quando a gerência do hotel vos oferecerá uns drinques. O jantar será servido pontualmente às oito da noite.

    – Bah, tchê, pra mim, qualquer corte de carne de vaca serve – disse Dax. – Pode ser costela ou picanha. O importante é que venha sangrando, porém sem veneno.

    – Quer dizer, então, que hoje não teremos uma reunião de trabalho? – indagou Fedorova. – Eu estava arretada por um debate. Russos gostam mais de polêmica do que baiano de rede.

    – A gente debate amanhã, sô- sugeriu Águeda Christine. – Desde que nenhum outro de nós morra até lá, claro.

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    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).