Etiqueta: Restos de colecção

  • O (quase) holocausto de Isaac, ou Abraão a emprenhar pelos ouvidos

    O (quase) holocausto de Isaac, ou Abraão a emprenhar pelos ouvidos

    ― Meu Deus!, bem te dizia que esta família de badernas e turgimões não cessava os malfazeres… Deixa-me passar para avisar o Senhor! É urgente, uma calamidade está prestes a suceder…

    ― Continuas impertinente, como sempre. Já te avisei que não se invoca o Senhor em vão. E não o vais avocar agora. Hoje é sábado e Ele está a descansar… Que se passa?!

    ― Abraão, outra vez; mais as urdimaças dos seus patrícios… Vi-o agora a subir ao monte Moriá.

    ― E qual o problema? Vai adorar o Senhor…

    ― Vai, vai… Deixou o jumento e dois servos no sopé. Só o acompanha o seu filho Isaac. E não lhe vi nenhum cordeiro ou animália que se parecesse.

    ― Seguirá para simples adoração…

    ― Pois, pois… levando na mão utensílios de fogo e um cutelo, mais Isaac arcando com um carrego de lenha às costas.

    ― De facto, é estranho…

    scenery of white clouds

    ― Estranho e muito mais que isso. O pequeno também quis saber onde estava a vítima para o holocausto… Abraão respondeu-lhe que Deus o proviria no cimo do monte. E que eu saiba não fomos mandatados hoje para enviar um qualquer animal até Moriá.

    ―Deus conhecerá, por certo, aquilo que segue no interior do coração de Abraão… Descansa que amanhã o Senhor, na sua omnisciência e omnipotência, esclarecerá isto…

    ―Não há tempo. Temo uma tragédia… Lembras-te do caso do poço de Bercheba?

    ― Daquela querela entre Abraão e os servos de Abimélec, rei de Guerar?

    ― Sim…

    ― Ficou resolvido. O rei deu razão a Abraão e entregou-lhe o poço. E tanto ficou esse rei satisfeito que com ele estabeleceu uma aliança, depois de Abraão lhe ter oferecido sete cordeiros.

    ― Aquilo pareceu-me mais um suborno… Ou uma coacção. Abimeléc até disse que nunca soubera de poço algum escavado por Abraão… Desde o episódio com Sara que este rei lhe tem um temor de morte.

    ― O rapto da mulher de Abraão clamava castigo…

    ― Qual rapto?! Abimeléc apenas a recolheu no seu palácio. Abraão é que lhe mentiu, ao dizer que Sara era apenas sua irmã. O rei nem sequer a desonrou… Também, quem é que deseja uma mulher de cem anos?

    ― Abraão não mentiu: Sara também é sua meia-irmã.

    ― Eu já nem quero discutir essa nojosa questão da consanguinidade. Sei apenas que foi a segunda vez que Abraão usou esse expediente em seu proveito. E, tal como já sucedera no Egipto, Deus andou depois a mandar castigos, e Abraão a encher-se de prebendas à laia de indemnizações. Com Abimeléc recebeu ovelhas, bois, servos e servas, mais ainda mil moedas de prata. E do faraó também muito amealhou com essa trampolinice.

    mountain cliff photography

    ― Manténs a tua impertinência… Mas afinal que têm a ver esses casos com a subida de Abraão ao monte acompanhado do seu filho?

    ― Tem tudo. Lembras-te também de Ismael e de Agar?

    ― Tiras-me a paciência…

    ― Paciente sou eu… padecente diria mesmo, que nos últimos anos rodopio numa fona à conta desta disfuncional família que caiu no goto do Senhor… Quem é que andou à procura de Agar, por campos espinhosos e desertos rochosos, depois de ter sido humilhada por Sara? Quem teve de arrazoar para convencê-la a regressar? Tive de lhe jurar que o seu futuro rebento seria como um cavalo selvagem entre os homens, e que a sua mão erguer-se-ia contra todos, que a mão de todos erguer-se-ia contra ele, mas que ele colocaria a sua tenda em frente de todos os seus irmãos… Enfim…

    ― Essa escrava egípcia foi insolente com a sua senhora, olhando-a com desdém após engravidar de Abraão. Mereceu a reprimenda.

    ― Ainda hoje penso que razão teve Deus para não ter curado a esterilidade de Sara mais cedo… Tinha nascido apenas Isaac; e Ismael, não existindo, não era tratado como foi.

    ―São insondáveis os desígnios do Senhor…

    ―Tão insondáveis são que nem Ele os entende… Acho patética aquela nossa viagem, com Ele, até ao Carvalho de Mambré, para anunciar que Sara geraria um filho de Abraão… Salvaram-se os pães, a manteiga, o leite e o vitelo que nos ofertaram, que de facto estavam uma delícia…

    ― A nossa missão era outra, se bem sabes: descer até Sodoma e Gomorra para conhecer in loco se a conduta indecorosa daqueles povos correspondia ao brado que chegara aos ouvidos do Senhor. E para salvar Lot, o sobrinho de Abraão, e sua família…

    ― E que rica missão a nossa… Se Deus é omnisciente, bem saberia que era tudo verdade. Evitava-nos aqueles apertos. Não fossem as nossas artes para cegar aquela turbamulta que estava arrombando a porta da casa de Lot e andaríamos agora escarranchados…  E aquilo que Deus fez à mulher de Lot, nas portas do Sodoma, não se compreende…

    the sun is shining through the clouds in the sky

    ― Eu avisei todos para que não olhassem para trás quando começasse a cair a chuva de enxofre e fogo. Deus viu que ela não cumpriu e transformou-a em estátua de sal. A sua decisão é soberana e inapelável.

    ― Castigou severamente uma mera curiosidade, tão típica da mente feminina. E depois nada fez quando as duas filhas de Lot, vendo o pai viúvo, o embriagaram duas noites seguidas para, cada uma, engravidar dele. Isto não cabe na cabeça de ninguém… Coitados dos moabitas e dos amonitas que nasceram de tão maquiavélico incesto.

    ― Já te avisei para não usares expressões que só fazem sentido daqui a uns milhares de anos. Niccolo Machiavelli apenas nascerá ao décimo quinto século depois da ida do filho de Deus à Terra, e a sua obra «O Príncipe» somente verá a luz do dia no ano de 1532 dessa era… E continuas a tergiversar: afinal que ligação há entre os filisteus que perderam o poço, Agar e Ismael, e os teus receios sobre a ida de Abraão e Isaac ao monte Moriá?

    ― Tudo, como já te disse… As injustiças fermentaram uma união para a vingança. Depois de Deus ter autorizado a expulsão definitiva de Agar e do seu filho, por capricho de Sara durante aquele banquete em honra de Isaac, alguns filisteus têm visitado o jovem Ismael no deserto de Paran… Ficaram chocados por Abraão ter abandonado aquele filho à sua sorte, apenas com um pão e um odre de água.

    ― Deus foi compassivo com Agar e Ismael. Deu-lhes água uns dias depois… Protegeu o menino e prometeu fazer dele um grande povo.

    ―De promessas divinas já ando eu cheio. Quantas vezes já Ele prometeu a Abraão mundos e fundos? E, ao mesmo tempo, anuncia-lhe desgraças sem fim, castiga a torto e a direito, provoca infaustos sucessos, completamente evitáveis.

    ― Continuas assim e ainda vais fazer companhia a Lúcifer… A tua sorte é ser a tua queda a minha queda, porque por ti pus as minhas asas no fogo. E agora já receio vir a ser chamuscado… Ainda bem que Deus só perscruta as vozes e pensamentos humanos, se não estávamos feitos… Mas agora deixaste-me apreensivo: que andaram os filisteus a maquinar com Ismael?!

    ― Isso não sei, porque quando me abeirei deles por algumas vezes, cessaram sempre as conversações. Ignoro se Ismael estava disposto para uma qualquer conjura. Mas, já quanto aos filisteus, ontem à noite, ao passear pela brisa da noite, encontrei alguns à janela do quarto de Abraão…

    ‘O sacrifício de Isaac’, pintura de Caravaggio exposta na Galleria degli Uffizi, em Florença.

    ― E que faziam lá?! Diz-me!

    ―Ah! Finalmente ouves-me, não é?… Estavam malvestidos com uns trapos brancos e umas rudimentares álulas… Penso que se queriam parecer connosco… Ouvi-os sussurrar várias vezes para dentro: «Abraão, Abraão: pega no teu filho, no teu único filho, a quem tanto amas, Isaac, e vai à região de Moriá, onde o oferecerás em holocausto, num dos montes que Eu te indicar».

    ― O quê???!!! Estás a mofar…

    ― Antes fosse. Ontem não liguei àquela palhaçada… Nem pensei que Abraão os tivesse ouvido. Só agora, quando o vi a subir o Moriá com o filho, é que fiquei temeroso.

    ― Credo! Meu Deus, que fazemos agora?

    ― Pois, era mesmo para isso que eu vinha aqui. Para Lhe perguntar: «Meu Deus, que fazemos agora?»

    ―Não O vou incomodar. Ele tem mau acordar… Deixa-me ver uma coisa…

    ― Abrenúncio!!! O jovem Isaac está já preso sobre o altar, com lenha por debaixo… Benza-deus, Abraão brande um cutelo… Rápido, agarra naquele carneiro, voa até ali e prende-o pelos chifres ao silvado… Abraão! Abraão! Que fazes?!


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  • Os nove justos sodomitas e um funeral

    Os nove justos sodomitas e um funeral

    Deus escolheu Abraão como patriarca de um povo para, através da prática da justiça e da rectidão, seguirem o Seu caminho. Entretanto, por portas travessas, soube o Senhor que as perversidades em Sodoma e Gomorra se agravavam em extremo. Enviou, portanto, dois mensageiros em averiguações de conduta, decidido a exterminar aquelas pecaminosas cidades se se confirmassem os clamores que Lhe haviam chegado.

    Dúvidas não tinha Deus sobre o remédio para as perversidades, mas vacilou numa questão: “Ocultarei a Abraão o que vou fazer?” Decidiu contar-lhe. “E será que vais exterminar, ao mesmo tempo, o justo com o culpado?”, objectou Abraão, com olhar exprobratório.  “Talvez haja cinquenta justos na cidade; matá-los-ás a todos?”, continuou. “Longe de ti proceder assim e matar o justo com o culpado, tratando-os da mesma maneira! Longe de ti! O juiz de toda a Terra não fará justiça?”, concluiu, inquisidor e censor em simultâneo.

    Sodoma e Gomorra em chamas , pintura de Jacob de Wet II (1680), exibida no Hessisches Landesmuseum Darmstadt (Alemanha).

    Deus pôs a mão na consciência – força de expressão, porque não a tem; pelo menos escasseiam provas da Sua existência, da mão. “Se eu encontrar em Sodoma”, garantiu a Abraão, “cinquenta justos perdoarei a toda a cidade, por causa deles”. Abraão atalhou então: “E se faltarem cinco, destruirás toda a cidade, por causa desses cinco? Que não, prometeu Deus: “Não a destruirei, se lá encontrar quarenta e cinco justos”. Abraão aproveitou a onda: e se fossem quarenta justos apenas? Deus assegurou-lhe que pouparia a cidade. E se fossem apenas trinta justos, questionou Abraão. Deus condescendeu em isentar os culpados se porventura houvesse esse pequeno número. E vinte? Idem, disse-lhe Deus.

    Abraão sabia estar a esticar a corda da paciência divina. E assim, asseverando que não falaria “mais do que esta vez”, ponderou que, talvez, em Sodoma e Gomorra não se encontrassem mais do que dez justos. Complacente, o Senhor afiançou-lhe que, em atenção a esses dez justos, não destruiria a cidade. “Terminada esta conversa com Abraão, o Senhor afastou-se, e Abraão voltou para a sua morada”.

    Nessa noite, ao longe, ao fundo do vale, em Sodoma, tristes e contemplativos, Néfeb, Elisafan, Gérson, Gamaliel, Abidan, Surichadar, Paguiel, Chediur e Ailézer velavam o corpo de Natanael, fulminado horas antes por ataque cardíaco.

    “Morreu um homem justo”, lamentou-se Abidan.

    “Como nós”, acrescentou Elisafan.

    “O Senhor, na sua inalcançável sapiência e justiça, chamou à sua presença o nosso irmão Natanael”, aditou Néfeb.

    brown stick with fire during night time

    “O Senhor teve, por certo, um insondável motivo para o retirar da nossa presença”, disse Chediur.

    “Somente nos resta continuar a nossa vida proba; o Senhor nos recompensará”, consolou-se Gérson.

    “Que possamos todos ser tão rectos e fiéis quanto foi Natanael”, declarou Gamaliel.

    “Que a sua alma encontre a paz na eternidade, como a sua vida a trouxe para nós”, sustentou Surichadar.

    “O vazio que nos deixa em nossos corações será preenchido pela memória da sua eterna boa acção”, afirmou Paguiel.

    “O Senhor, em sua infinita justiça, saberá amparar-nos nesta hora de dor perante a perda de um justo”, finalizou Ailézer.

    Então, no dia seguinte, erguendo-se o sol sobre a terra, uma chuva de enxofre assolou os vales, dizimando gado, a vegetação e os habitantes daquelas cidades, incluindo os nove justos de Sodoma e o frio cadáver de Natanael.


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  • Babel, ou os equívocos de um acordo ortográfico

    Babel, ou os equívocos de um acordo ortográfico

    Emigrando do Oriente, os descendentes de Noé inundaram a planície de Chinear. Foi a conta-gotas. Primeiro chegou Cuche e seu filho Nimerod, um valente caçador diante do Senhor; depois o primo, a seguir o sobrinho do cunhado, mais tarde o sogro do tio, pouco depois o genro do neto, e as respectivas mulheres, e tantos e tantos outros que, em pouco tempo, era tamanha a batelada de parentescos cruzados que já ninguém entendia ou percebia quem era quem em relação a Noé. Pouco importava: constituíam um povo uno e navegavam pelo quotidiano ao sabor de uma única língua.

    Havia um clima aprazível, sem alterações, a paisagem se mostrava venusta, da terra manavam gados e verduras, os homens entretendo-se em labores e muito ócio, as mulheres em desvelos pelos filhos e comidas, e os velhos gozando resplandescentes tardes de cavilhadas num chão sempre húmido de refrescantes e curtas chuvas. Harmonia, paz e sossego reinavam naquelas paragens. O paraíso terreno pós-Éden. Andavam assim todos satisfeitos em suas vidinhas, sem malquerenças nem segregamentos.

    tower, factory, headframe

    Enfim, por tudo isto, vivalma queria arredar pé daquela planície, que de arraial passara a lugarejo, de lugarejo evoluíra para póvoa, de póvoa transmutara-se em aldeota, de aldeota crescera para vilarejo. E chegando-se a vila, quis-se mais. «Faça-se uma cidade», disse Nimerod. E a cidade fez-se. Muralhas, fortalezas, casas sólidas, poisos de descanso e de ócio. E o povo viu que era coisa boa, feita apenas pela mão do homem, sem qualquer ajuda nem orientação divina. E ambicionaram mais. «Uma torre, cujo cimo atinja os céus», decretou Nimerod, aplaudido por conselheiros.

    Para isso, aditou alguém, havia de se encontrar alternativa às pedras. Nomeou-se portanto comissão adequada, task force como sói dizer-se agora, escolhendo para a liderar ancião hirsuto nos modos, mas de alva e imaculada barba, que, à quarta semana de investigações e experiências, inventou os tijolos, cozidos em fogo, e ainda um betume de asfaltos vindos mar e das fontes de água da terra de Sinar. «Assim, havemos de tornar-nos famosos para evitar que nos dispersemos por toda a superfície da Terra», declarou logo Nimerod.

    Um arquitecto foi então nomeado para orientar uma grandiosa e não pouco majestática torre. Andando a obra em bom ritmo, os tijolos tão sólidos, que nem ferro precisavam, e já se alcançara os quatrocentos e sessenta e três cúbitos de altura, foi Deus servido descer à terra e, vendo aquela empreitada, vociferou: «Não gosto disto». «Mas quando os acabamentos se fizerem, vai ficar uma beleza», argumentou o arquitecto. «Não é uma questão de estética. Se principiarem desta maneira, coisa nenhuma vos impedirá, de futuro, de realizaram todos os vossos projectos», atirou o Senhor. «E qual é o problema? Se somos semelhantes a Vós, também podemos construir nesta terra sob os céus algo idêntico ao que presumimos exista nos próprios céus. Estou mesmo a conceber uma broca para, quando nos abeirarmos da porta, a furarmos para saber se é feita de barro, de latão ou de ferro», ainda replicou o arquitecto. «Pode ser útil para subirmos mais», acrescentou.

    Deus saiu do sério: «Mas que estupidez é essa?! Era o que faltava quererem-me igualar. Os humanos vão para o céu quando eu os arrebato da Terra. E ponto final nesta conversa e nesta obra. E é para já».

    ai generated, tower of babel, scattered tribes

    Temeroso destas divinas ameaças – até porque, após o Senhor se ter eclipsado, trovejou rijamente, e um relâmpago estilhaçou um parapeito e deslocou um andaime –, o arquitecto remeteu um relatório circunstanciado às autoridades, solicitando que, com urgência e de forma clara, lhe indicassem se o seu projecto deveria ser reequacionado.

    Horas depois, uma lacónica missiva de Nimerod chegou às mãos do arquitecto. «Em reunião de emergência, malgrado o que está em causa, e considerando as palavras do Senhor, informo que, sobre a questão em apreço, a nossa decisão é peremptória: NÃO, PARA JÁ». Portanto, assim sendo, lido o escrito, e sobretudo as maiúsculas, o arquitecto continuou obedientemente a obra, e sacou então de uma broca para furar os céus, convencido estava de o amanuense ter usado uma preposição.

    Mas não: o amanuense apenas cumprira a norma de um novo acordo ortográfico que estabelecera a supressão do acento agudo na forma verbal do presente do indicativo do verbo parar.

    Equívoco grave, como sabeis: com o barulho da broca entrando pelos céus, Deus irritou-se e tratou de confundir a língua deste povo. Os erros de construção sucederam-se, a torre colapsou, as gentes desentenderam-se e todos os descendentes de Noé acabaram se dispersando em caótica algaraviada pelos quatro cantos do Mundo, incluindo para o pequeno pedaço da Europa onde hoje ainda se fala português, e se escreve em acordo ou em desacordo com o tal acordo ortográfico…


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  • Evidências e enigmas do Dilúvio

    Evidências e enigmas do Dilúvio

    No ano mil seiscentos e cinquenta e seis do Anno Mundi 1656, ao décimo sétimo dia do Marcheshvan, rompendo todas as fontes do grande abismo e abrindo-se as cataratas do céu durante quarenta dias e quarenta noites, Deus salvou Noé pela segunda vez. A primeira foi quando Deus incumpriu a sua sentença, decretada ainda antes do cataclismo, em encurtar os dias dos homens para centos e vinte anos. É que Noé já contava seiscentos anos quando entrou na arca.

    *

    Noé, sua mulher, seus três filhos e noras não eram uma família justa ou perfeita; na verdade, eram uma família misantrópica. Só assim se compreende que Deus os tenha escolhido; só assim se compreende que Noé, avisado por Deus do extermínio sobre a Terra – uma violência divina contra a violência humana –, não tenha tentado auxiliar os seus patrícios mais próximos. Nem sequer os compadres.

    closeup photography of water drops on body of water

    *

    Enquanto serrava as madeiras resinosas e comprava betume, enquanto construía a arca de trezentos côvados de comprimento, cinquenta côvados de largura e trinta côvados de altura distribuídos por três pisos, enquanto carpintejava tudo isto e calafetava tudo aquilo, enquanto reunia os animais para o acompanharem, que desculpas ou justificações deu Noé a quem lhe perguntava o que estava fazendo?

    *

    Se de antemão Noé sabia que apenas ele e a sua família mais próxima entrariam na arca, que apenas ele e a sua família mais próxima se salvariam do dilúvio, terá comprado a madeira e o betume a pronto ou a crédito?   

    *

    Os oceanos, mares e baías possuem 1,386 mil milhões de quilómetros cúbicos de água, os lagos salgados e doces cerca de 176.400 quilómetros cúbicos, os rios somente 2.120 quilómetros cúbicos e os pântanos 11.470 quilómetros cúbicos. Deus tinha assim disponível para inundar a Terra apenas cerca de 47,8 milhões de quilómetros cúbicos, contabilizando as águas das calotes polares, dos glaciares, das neves permanentes, do pergelissolo, do gelo subterrâneo e dos aquíferos doces e salgados, bem como o vapor de água e a água existente no solo e nos seres vivos animais e vegetais, embora neste último os matasse logo a todos se a utilizasse.

    Ora, sabendo-se que a superfície terrestre total é de 509,6 milhões de quilómetros quadrados; sabendo-se ainda que, para uma inundação uniforme, teria de se fazer chover nos oceanos, nos mares, nas baías, nos rios, nos lagos, e nos pântanos similar volume ao que se precipitasse em terra; então concluiu-se que um dilúvio global apenas atingiria 93,79 metros acima do actual nível médio das águas do mar. Como se diz ter Deus coberto os altos montes existentes debaixo do céu, ultrapassando em quinze côvados (cerca de 9,9 metros) o cimo de todas as montanhas, incluindo portanto os montes de Ararat, onde haveria de pousar a arca, que se situa a 5.137 metros acima do nível do mar, e sobretudo o monte Evereste, na cordilheira dos Himalaias, que se encontra 8.848,43 metros, uma questão se coloca: onde foi Deus desencantar tanta água? E para onde foi depois do Dilúvio?

    body of water surrounded by fog

    *

    Antes de aplacar o Dilúvio, solicitou Deus a Noé que recolhesse tudo quanto houvesse de comestíveis e os armazenasse na arca, a fim de servirem de alimento à sua família e aos animais. Ora, se muitos desses animais eram carnívoros, quantas espécies se terão extinguido em plena arca durante os cinto e cinquenta dias que durou a inundação, sem contabilizar também os animais que padeceram de doenças, de má nutrição ou de desadequadas condições higieno-sanitárias?

    *

    Deus decretou que Noé recolhesse sete pares de cada espécie de animais puros e apenas um par de cada espécie de animais impuros, porque o primeiro grupo podia ser comido e servia também para sacrifícios em holocausto durante o período de inundação. Quantas espécies se extinguiram às mãos de Noé enquanto todos estavam na arca?  

    *

    Se na Criação fez Deus todos os seres vivos – aves, monstros marinhos, peixes, animais domésticos, répteis e animais ferozes – em apenas um dia e meio, qual a razão para depois, aquando do Dilúvio, ter sobrelotado a arca com sete pares de todos os animais puros, mais um par de todos os animais impuros, e sete pares de todas as aves? Não terá sido mais fácil recriar todos os animais de novo, tornando assim mais cómoda, para Noé e sua família, a estadia na barcaça?

    a book open with a drawing on it

    *

    No decurso do Dilúvio, as chuvas caíram durante quarenta dias e quarenta noites. Por mais cento e cinquenta dias esteve o mundo coberto pelas águas. Depois, «Deus recordou-se de Noé e de todos os animais, tanto domésticos como selvagens, que estavam com ele na arca», mandando «encerrar as fontes do abismo e as cataratas dos céus», ao mesmo tempo que «mandou um vento sobre a terra e as águas começaram a descer». No dia dezassete do sétimo mês do ano de mil seiscentos e cinquenta e seis após a Criação, «a arca poisou sobre os montes de Ararat. As águas foram diminuindo até ao décimo mês. No primeiro dia do décimo mês, emergiram os cumes das montanhas». Somente ao fim de quarenta dias Noé abriu a janela da arca e soltou um corvo, que «saiu repetidas vezes, enquanto iam secando as águas sobre a terra». Mais tarde, largou uma pomba que, «não tendo encontrado sítio para poisar», regressou à arca. Somente sete dias depois foi feita nova largada da pomba que, desta vez, regressou com uma folha verde de oliveira no bico. Noé aguardou mais sete dias e tornou a soltar a pomba «mas, desta vez, ela não regressou mais para junto dele». Desconhece-se as razões, mas a hipótese de esta pomba ter morrido está fora de hipótese, pois o seu par, o pombo, tê-la-á encontrado mais tarde, de contrário a espécie extinguia-se. Porém, subsiste um enigma: como sobreviveu a viçosa e verdejante oliveira durante todo o tempo do Dilúvio?


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  • Dia décimo sexto de Marcheshvan do Anno Mundi 1656

    Dia décimo sexto de Marcheshvan do Anno Mundi 1656

    ― Estás mesmo decidido a romper amanhã as fontes do grande abismo e a abrir as cataratas do céu?

    ― Assim será!

    ― E julgas, portanto, que com esse simples acto lavarás e renovarás a Humanidade…

    ― Fecundarei de novo a Terra, extinguindo a iniquidade e a corrupção. O novo Homem deixará de ter os seus pensamentos e desejos guinados sempre e unicamente para o mal.

    ― Estás optimista! Amanhaste este mundo em sete dias criando metendo a tudo um homem e a sua costela, e apenas bastaram quatro destes seres para , logo se assistir a uma desobediência grave, diria uma traição, e até a um homicídio por inveja. E depois foi o que se viu até agora. E ainda supões que, desta feita, tudo será diferente…

    sun rays through white cumulus clouds

    ― Estabelecerei uma nova Aliança. Colocarei o meu arco nas nuvens para que aqueles que aqui se mantiverem vejam o sinal desse pacto entre mim e a Terra.

    ― Divina ingenuidade! As quezílias humanas serão perpétuas. Quando terminar o flagelo que anuncias para amanhã, cedo o teu escolhido se embebedará, se colocará em pelota e depois zangar-se-á com um dos seus filhos, lhe lançará uma maldição. Lá se vai a concórdia por água abaixo… Se fosses mesmo presciente, como eu sou, escusavas de lançar esse cataclismo. Ou então não salvarias ninguém. Nunca acabarás com a maldade nos homens, por mais flagelos que apliques. A maldade nos homens vive porque os homens vivem.

    ― Estarei atento; de futuro não os deixarei perder o norte!

    ― Concedeste-lhes o livre arbítrio; desorientam-se por mor das suas paixões. Eles nunca buscam o norte ou o sul, nem o este ou o oeste; em breve desejarão atingir o céu. E tu cometerás então um erro crasso: quando estiverem construindo uma torre, lhes confundirás as vozes, os obrigarás a dispersarem-se pela Terra. Quebram-se os laços, aumentam as cobiças, as violências, as guerras… Vais andar num fandango, por séculos…

    ― Se algo correr mal, tenho em mente enviar o meu filho.

    ― Será crucificado…

    ― Lavará os pecados dos homens com o seu sangue, se necessário for; com o meu sangue. E os homens se emendarão aos pés de uma nova igreja…

    ― … que somente alimentará mais cóleras. Sob a tua bandeira, serão cometidas violências sem fim, por tempos infindáveis. Pretextando defenderem a tua obra, bispos e reis matarão e oprimirão justos e pecadores, maus e bons, crentes e incréus. Pelo que sei, apenas dois milénios após a chegada desse teu filho à Terra, essa tal igreja minguará em poder, deixando de produzir e alimentar maldades.

    graysclae photography of calm body of water

    ― Ainda haverá tempo para então se salvarem muitas almas antes do Juízo Final.

    ― Não sei como. És mesmo um incorrigível optimista. Aliás, só assim se justifica a tua imprudência em engendrar o Homem e pensar tê-lo como inquilino num mundo que desejavas perfeito. Falhaste e falharás. E os teus homens, os homens dessa tua igreja, mesmo quando se tornarem mais mansos, em nada contribuirão para aplacar o mal. Olha-me aqui para o futuro: ali estão eles, visitando umas pobres gentes, em postura solene, hirtos e retraídos, agaloados nas suas ricas vestes, chorando lágrimas de compaixão. Mas céleres regressarão ao aconchego dos seus aposentos, esquecendo o que viram, calando a raiva sob os poderosos, recusando perder as suas mordomias e sinecuras terrenas… Enfim, achas mesmo necessário amanhã abrir as comportas do Céu?


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  • O prenúncio do primeiro homicídio

    O prenúncio do primeiro homicídio

    ― Porque estás zangado e de rosto abatido?

    ― Senhor, todos os dias me levanto de madrugada para cavar, fresar, esmigalhar, plantar ou semear, sachar, raspar, amontoar, regar, colher, acarretar e, sei eu, e vós também, o que mais… Tudo isto faço, quer sob o sol inclemente quer sob a impedieosa chuva.

    ― Cuidado, rapaz… A chuva e o sol são criações minhas…

    reflective photo of clouds

    ― E também o jardim no Éden, que Vós concebestes sem enxadas nem enxertias. Imagino que Vos bastou um estalar de dedos… E depois de terdes mostrado o paraíso a meus pais, expulsaste-os, destinando-nos a estas terras, que amaldiçoastes, e de que só à custa de penoso trabalho, todos os dias das nossas vidas, conseguimos arrancar parco alimento.

    ― Não sejas insolente! Os teus pais transgrediram. Dei-lhes a vida, dei-lhes tudo para viverem sem esforço, apenas sob a condição de não comerem do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Violaram essa única regra. Eu até fui misericordioso, porque os ameaçara com a morte.

    ― Morte?! O que é isso?! Nunca vi tal bicho?

    ― Não é nenhum bicho, rapaz. Morte é o que sucede aos seres vivos quando por mim são chamados para a terra de onde foram tirados.

    ― Na terra ando já eu, desde que o sol nasce até fugir do horizonte. Bem que me queria tirar daqui…

    ― Irra! Estou bem fornido contigo. Eu deveria ter desconfiado da minha ideia em deixar os humanos se reproduzirem por si próprios, pela fornicação. Não deu bom resultado!… No Éden ficou a árvore da Vida, rapaz. Se os humanos comessem do seu fruto viveriam para sempre. Assim, sem isso, serão atingidos pela morte lá para os oitocentos ou novecentos anos, conforme me aprouver, caso a caso. A vossa vida cessa como a dos outros animais. Deixam de respirar, o coração pára os movimentos, ficam estáticos, os animais vos devoram, os insectos vos chupam, os fungos vos decompõem e os microorganismos vos desintegram até nada mais sobrar que nutrientes misturando-se na terra de onde eu formei teu pai…

    silhouette photography of person

    ― Não estou a entender nada… Sei apenas que meus pais comeram uma certa fruta no jardim, e que deu nisto… Mas eles não falam muito disto, a mim e ao meu irmão. Dizem que a culpa foi de um animal rastejante… Serpente, penso ser esse o nome. Poderíeis ter sido condescendente e apenas castigar o raio da besta do animal. Ou ter-lhe tirado a língua, quando o criaste, para que não falasse com minha mãe. Ou, melhor ainda, não o terdes deixado entrar no Éden… 

    ― Rapaz, pensas demais e mal, e isso leva-te ao pecado. Cuidado, ele tem muita inclinação para ti, mas deves dominá-lo.

    ― Inclinado ando eu todos os meus dias, na labuta da terra. E nem um sorriso levei de agrado quando ontem Vos fiz uma oferta de frutos da terra. Escolhi para Vós os mais viçosos pimentos verdes da minha horta… Ao invés, só tivestes olhos para aquele carneiro mal morto, cheio de banhas, entregue pelo meu irmão. Ainda por cima, ele fez uma fogueira e deixou aquilo esturricar-se tudo!

    ― Desgraçado. Não entendeste mesmo! As oferendas devem ser-me feitas sempre em holocausto, rapaz. É a mais nobre, diria a única, forma de me honrar e agradar desde o tempo dos tempos.

    ― E como eu haveria de imaginar isso, se somos os primeiros humanos e nunca nos orientaste para o melhor proceder?…

    ― O teu irmão, de bom coração, intuiu o meu gosto…

    Close-up of a Lot of Green Peppers

    ― Pois, pois… Fartou-se de se pavonear por o elogiares, o fedelho; E logo a mim, que lhe tomo a primazia na idade. Fiquei-lhe com uma fúria…

    ― Acalma a tua raiva. Vai chamar o Abel, e ele que te leve ao campo para mostrar como se faz um bom holocausto…

    ― E queres que eu asse os meus pimentos?!

    ― Sim!… Mas, olha, Caim: junta-lhe umas sardinhas!


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  • Coisa

    Coisa

    Nenhuma outra coisa se afigura mais obscura ao génio e simultaneamente mais clara ao néscio do que a natureza das coisas. Sendo tudo e nada, tocando o corpóreo e o incorpóreo, tangendo o incognoscível e o sabido, tratando do desmesurado infinito e do imensurável infinitésimo, tropeçando no inanimado e no animado, e transcorrendo o nominado e o inominado – que, em abono da verdade, podem ser a mesma coisa, dependendo do conhecimento das coisas que cada um detém –; repito de novo: e transcorrendo o nominado e o inominado, dissertar sobre coisas pode resultar em tratado de epistemologia, ou simplesmente redundar em sudário de imbecilidades. Sai sempre uma das duas coisas.

    Fina e ténue é a fronteira entre uma coisa e uma outra. Temo, assim, que, por ausência de aptidão, por falhas de preparação, e por inabilidades de volição, abrolhe deste texto coisas sem jeito, triste desenlace para quem, em seu íntimo, até almejava coisa grande, nada menos que coisa maior que Da Natureza das Coisas, do filósofo romano Tito Lucrécio Caro – ou, para dar ares de coisa grandíloqua, do autor do poema De Rerum Natura, que isto de escrever em latim é outra coisa.

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    Antevejo que escrevendo eu assim todas estas coisas sem conta, pensareis, talvez com razão, que me deu coisa má, que já não digo coisa com coisa, e que, enfim, este texto não é lá grande coisa. E, de facto, não estou bem em mim, que ontem sucederam-me coisas do arco-da-velha, que desconfio terem sido coisas do coisa-ruim. Apenas vos digo que se me ficaram bem pretas as coisas, e só depois de obrar coisas e loisas consegui escafeder-me do demo.

    Portanto, não tive sezão para melhor endireitar a coisa, ou seja, compor um decente texto. E, por isso, se desprazimento aqui vos trago, desculpai qualquer coisinha. Ou então, parafraseando Machado de Assis nos prolegómenos de Memórias Póstumas de Brás Cubas, se esta coisa não te agradar, fino leitor, talvez seja melhor te pagar “com um piparote, e adeus”. Ou coisa e tal.


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