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  • Carris vs. STCP: manutenção pela MNTC é uma ‘balda’ em Lisboa mas rigorosíssima no Porto

    Carris vs. STCP: manutenção pela MNTC é uma ‘balda’ em Lisboa mas rigorosíssima no Porto


    O contraste não podia ser mais brutal. Em Novembro de 2022, a Sociedade de Transportes Colectivos do Porto (STCP) adjudicou à MNTC — a mesma empresa que desde 2019 assegura para a Carris a manutenção dos ascensores da Bica, Lavra e Glória e do Elevador de Santa Justa — um contrato de quase 1,9 milhões de euros para garantir, durante 1826 dias (exactamente cinco anos), a manutenção de oito eléctricos históricos.

    O contrato termina no final de Novembro de 2027, e a exigência imposta no caderno de encargos da STCP ao nível da manutenção e da segurança é de uma minúcia que faria inveja a qualquer operador ferroviário europeu. Bem diferente do que a Carris exigia à mesma MNTC: vistorias a “olhómetro”, lubrificação e pouco mais, com indicação de tarefas a desempenhar estranhamente ambíguas e tecnicamente vagas.

    Eléctrico do Porto…

    O plano de manutenção preventiva da STCP, analisado pelo PÁGINA UM, é um verdadeiro manual de engenharia: 136 itens, treze secções abrangendo carroçaria, chassis, bogies, rodados, motores de tracção, sistemas de suspensão, travagem, circuitos pneumáticos, comandos, circuitos eléctricos, areeiros e ensaios finais.

    Neste último caso, estão previstos, quinzenalmente e após reparações de maior monta, ensaios completos ao carro: colocam-se pontos no controller e utiliza-se o freio de parque para confirmar, em condições reais, que o eléctrico acelera, trava e se imobiliza de forma segura, garantindo que os sistemas de tracção e de travagem funcionam correctamente antes de regressar ao serviço.

    Está igualmente prevista, em base anual, a realização do ensaio de freio estático para medir os parâmetros dos cilindros de freio, do depósito e das válvulas do sistema, assegurando que a travagem cumpre as normas da UIC – União Internacional dos Caminhos-de-Ferro, entidade que estabelece padrões técnicos internacionais para garantir segurança e interoperabilidade no transporte ferroviário.

    Yellow tram ascends a steep cobblestone street.
    … e ascensores de Lisboa: mesma empresa de manutenção; exigências avassaladoramente distintas.

    As tarefas de manutenção dos eléctricos da STCP estão distribuídas por sete periodicidades — diária, quinzenal, mensal, semestral, anual, intermédia (cinco anos) e geral (dez anos) — e são descritas com rigor quase cirúrgico: lubrificação de cavilhas e rodas de troley, verificação de estores, ensaios de magnetoscopia e ultrassons nos eixos, medições de esquadria de bogies segundo normas UIC, reapertos com torque controlado, equilibragem dinâmica de motores de tracção de acordo com a norma ISO 1940 G 2.5, ensaios estáticos e dinâmicos de travagem com registo de valores, purgas programadas do sistema pneumático, desmontagem e montagem de rodados, pintura com especificações RAL predefinidas, etc, etc.. Tudo tem de ser registado em fichas normalizadas, permitindo rastreabilidade, identificação de tendências de desgaste e planeamento de substituições antes da falha.

    Agora desçamos para Lisboa — e, ironicamente, desçamos mesmo pela Calçada da Glória. Desde 2019 — e não desde 2022, como erradamente se escreveu inicialmente — , a MNTC ficou também responsável pela manutenção dos ascensores lisboetas. Mas aqui, por opção da Carris, o cenário é radicalmente diferente. O caderno de encargos imposto pela empresa municipal de Lisboa — que vigorou até 31 de Agosto e foi prorrogado por ajuste directo por mais cinco meses — parece mais uma lista de verificação do que um plano de engenharia.

    Aquilo que exige — se se pode dizer que se trata de exigências — é, na generelidade dos casos, genérico e vago: verificar pantógrafos, baterias, cabos de tracção, purgar compressores, lubrificar roldanas. Não há referências nem explícitas, nem implícitas a ensaios não destrutivos, a medições calibradas ou a periodicidades diferenciadas de controlo que permitam detectar falhas latentes. Nada que garanta testes de segurança e de travagem.

    Páginas 1 e 4 das cinco páginas do caderno de encargos da STCP que detalha as manutenções a executar pela MNTC nos eléctricos do Porto.

    O caso do Elevador da Glória é paradigmático — e trágico. Os serviços de manutenção e segurança do funicular mais icónico de Lisboa, classificado como Monumento Nacional, não previam a realização de quaisquer ensaios mecânicos ou ensaios não destrutivos ao cabo de tracção que cedeu na passada semana, provocando o descarrilamento da cabina que descia a Calçada da Glória, causando a morte de 16 pessoas e ferimentos em mais de duas dezenas.

    Era tudo feito visualmente — ou, para usar a ironia que a tragédia quase não consente, com recurso à avançadíssima tecnologia do “olhómetro”. Apesar de a lei exigir ensaios após alterações de sistemas de segurança e comunicação ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), como o PÁGINA UM já salientou com base na lei, aparentemente nada disto alguma vez foi feito.

    Pior ainda: aparentemente nunca ninguém se apercebeu de que os sistemas de freio dos ascensores eram incapazes de travar caso houvesse, como houve, colapso do encaixe do cabo no trambolho.

    Especificações do caderno de encargos da Carris são omissas sobre as normas técnicas das verificações em função da periodicidade. Podiam ser todas visuais, como a manutenção diária estava a ser feita?

    De acordo com a consulta efectuada pelo PÁGINA UM ao caderno de encargos da Carris, apenas para a Bica e para o Elevador de Santa Justa existia referência expressa à contagem de arames partidos como critério de substituição de cabos. No caso da Glória e do Lavra, a exigência era apenas uma vaga “verificação”, sem norma técnica, sem especificação de método, sem obrigatoriedade de desmontagem ou uso de instrumentos de medição. Se a inspecção diária, semanal e mensal era apenas visual — como confirmam os registos da própria Carris — nada obrigava a que as inspecções semestrais fossem diferentes.

    O PÁGINA UM ouviu especialistas que foram claros: existem hoje métodos de detecção precoce de falhas que são standard internacional em sistemas de transporte por cabo — ensaios de magneto-indução, capazes de detectar fios partidos no interior do cabo; correntes de Foucault e ultrassons localizados, particularmente importantes na verificação da integridade da zona de ancoragem no trambolho, onde precisamente se deu a ruptura; medições de extensão sob carga para avaliar a elasticidade residual e identificar alongamentos anómalos, procedimento previsto em normas como a EN 12927-6, usada em países como a Suíça ou a Áustria.

    Nada disto estava previsto no caderno de encargos, que, como parte integrante do contrato, foi aprovado pelo Conselho de Administração da Carris, presidido por Pedro Bogas. O contrato deixava ao critério da MNTC a decisão de realizar ou não ensaios complementares. Resultado: se a empresa não os fazia por iniciativa própria, nada a obrigava.

    Manutenção em Lisboa: uma autêntica e trágica ‘balda’.

    Esta omissão poderá ser determinante na atribuição de responsabilidades civis e criminais: o município de Lisboa, através da Carris, optou por um modelo contratual minimalista para um sistema que transporta milhares de pessoas por dia num declive acentuado, expondo os passageiros a um risco inconcebível.

    Perante isto, o contraste entre Carris e STCP é avassalador e demonstra que o problema é de gestão e de exigência. No Porto, os eléctricos históricos têm direito a centenas de operações programadas, medições rigorosas, registos de torque, ensaios não destrutivos e análises de tendências de desgaste; em Lisboa, os ascensores tinham direito apenas a um olhar de relance e a um visto de conformidade. A mesma empresa, dois contratos, dois mundos.

  • Obesidade já ultrapassou subnutrição entre crianças e adolescentes

    Obesidade já ultrapassou subnutrição entre crianças e adolescentes


    Pela primeira vez na História da Humanidade, a obesidade ultrapassou a subnutrição entre crianças e adolescentes em idade escolar, alertou ontem o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Ao invés de ser uma boa notícia, este é um preocupante alerta, porque é um sinal de má nutrição sobretudo por se dever a hábitos alimentares assentes em alimentos ultraprocessados.

    Num relatório intitulado Feeding Profit: How Food Environments are Failing Children, divulgado no final desta semana, a UNICEF traça um retrato inquietante: já uma em cada 10 crianças entre os 5 e os 19 anos — cerca de 188 milhões em todo o Mundo — vive já com obesidade, enfrentando riscos acrescidos de doenças potencialmente fatais, como diabetes tipo 2, hipertensão, problemas cardiovasculares e certos tipos de cancro. Para crianças, a obesidade é definida como ter um índice de massa corporal (IMC) igual ou superior ao percentil 95 para idade e sexo.

    a person holding a plate with a sandwich on it

    Os números mostram uma inversão completa da tendência dos últimos 25 anos. Se, no ano 2000, quase 13% das crianças em idade escolar estavam abaixo do peso e apenas 3% eram obesas, hoje a proporção de crianças subnutridas caiu para 9,2%, enquanto a obesidade disparou para 9,4% — ultrapassando pela primeira vez a prevalência do baixo peso em quase todas as regiões do Mundo. Ou seja, a prevalência da obesidade nestas faixas etárias triplicou em pouco mais de duas décadas.

    O relatório dedica particular atenção à África do Sul, onde a situação é descrita como “profundamente preocupante”: entre as crianças com menos de 5 anos, a taxa de excesso de peso e obesidade passou de 13% em 2016 para 23% em 2024. No grupo etário dos 5 aos 19 anos, os números também são alarmantes: de 9% em 2000, a prevalência de excesso de peso subiu para 21% em 2022, com a obesidade a mais que triplicar no mesmo período, de 2% para 7%.

    Segundo a UNICEF, este fenómeno está intimamente ligado à substituição crescente de frutas, legumes e proteínas por produtos ultraprocessados e refeições rápidas, cada vez mais presentes em escolas, supermercados e na dieta diária das famílias. “As crianças não escolhem este ambiente alimentar: ele é-lhes imposto”, denuncia o relatório, que responsabiliza a indústria alimentar pelo papel dominante na modelação das preferências infantis, recorrendo a estratégias de marketing agressivas, muitas vezes direccionadas para o público mais jovem.

    a woman holding a burger

    Num inquérito global conduzido pela plataforma U-Report em 2024, três em cada quatro jovens entre os 13 e os 24 anos declararam ter visto publicidade de refrigerantes, snacks ou fast-food na semana anterior, e 60% reconheceram que estas campanhas aumentaram a sua vontade de consumir tais produtos.

    Nos Estados Unidos, segundo a autoridade de saúde (CDC), a prevalência de obesidade entre crianças e adolescentes aproxima-se dos 20%, significando que 14,7 milhões de jovens americanos com idades entre 2 e 19 anos têm excesso de pessoa.

    A prevalência deste problema atinge mais as populações pobres, mostrando que as famílias com menos recursos são forçadas a recorrer a mais alimentos utraprocessados. A questão da melhoria dos hábitos alimentares dos norte-americanos, incluindo a retirada de ingredientes e aditivos sem padrões de segurança, tem sido uma das batalhas de Robert Kennedy Jr, secretario de Estado da Saúde, mas que tem tido uma contestação da influente indústria alimentar que se aproveitou de brechas legais.

    woman sitting in front of white front-load clothes washer inside brown room

    Se nada for feito para deter a nível mundial a ‘epidemia da obesidade’ assente na chamada ‘junk food’, a UNICEF prevê impacto futuro poderá ser devastador, tanto para os sistemas de saúde como para as economias nacionais. Estima-se que o custo global da obesidade e do excesso de peso poderá ultrapassar os 4 mil milhões de dólares anuais até 2035.

    Para inverter esta trajectória, a UNICEF propõe um pacote de medidas robustas: proibição de venda e marketing de ultraprocessados em ambiente escolar, implementação de políticas obrigatórias de rotulagem clara e restrição da publicidade alimentar dirigida a menores, além de programas de apoio social que assegurem o acesso das famílias mais vulneráveis a dietas nutritivas. O relatório insiste ainda na necessidade de blindar a formulação das políticas públicas contra a interferência das grandes indústrias alimentares, de forma a colocar o interesse das crianças acima dos lucros corporativos.

  • Os erros de Pedro Henriques: anatomia de uma negligência médica recorrente

    Os erros de Pedro Henriques: anatomia de uma negligência médica recorrente


    Os graves erros e más práticas de Pedro Cavaco Henriques, cirurgião do Hospital de Faro, alvo de uma proposta de suspensão de apenas 40 dias por parte da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS), são considerados inqualificáveis por médicos consultados pelo PÁGINA UM, ainda mais por terem sido cometidos em tão curto espaço de tempo (três meses) por um clínico com prática de mais de duas décadas em operações.

    O PÁGINA UM, que teve acesso, em exclusivo, ao relatório da IGAS — enviado para a Unidade Local de Saúde do Algarve, para a Polícia Judiciária e para o Ministério Público —, analisou em detalhe os quatro casos clínicos destacados no processo disciplinar, onde apenas estão referidos alguns dos episódios denunciados pela médica Diana Pereira, então a fazer internato no Hospital de Faro e que ficou chocada com o modus operandi de Pedro Henriques, o seu próprio orientador.

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    Apesar da gravidade dos quatro casos, estranhamente a IGAS não analisou o passado de intervenções deste médico, que ao longo dos anos mais recentes também colaborou com a ULS do Médio Tejo. Num relatório exaustivo e minucioso, destacam-se sobretudo execuções cirúrgicas tecnicamente incorrectas, imprudentes e contrárias às boas práticas, confirmando a violação das chamadas leges artis. E se, para o cidadão comum, a terminologia pode parecer distante, o que ali se lê é inequívoco: houve doentes que sofreram lesões, internamentos prolongados e riscos graves de vida que poderiam ter sido evitados.

    O primeiro caso analisado remonta a 5 de Janeiro de 2023 e envolveu uma cirurgia complexa a um doente do sexo masculino realizada em dois tempos. No denominado tempo abdominal, realizado por outra equipa, não se registaram complicações, mas no tempo perineal — o que envolve o recto e o canal anal — o cirurgião Pedro Cavaco Henriques foi acusado de utilizar um dispositivo eléctrico para dissecar tecidos de forma “brutal”.

    Não se tratou apenas de um testemunho isolado: os exames histológicos confirmaram lacerações e dissecções realizadas fora dos planos anatómicos adequados, e o relatório anatomo-patológico descreveu mesmo uma lesão iatrogénica, ou seja, causada pela própria cirurgia.

    Relatório do processo disciplinar contra Pedro Cavaco Henriques analisou apenas a prática cirúrgica em três meses de 2023.

    Já no segundo caso, envolvendo também um doente do sexo masculino, embora os autos não descrevam de forma detalhada o dia ou a sequência da intervenção, o processo foi sustentado quase exclusivamente em prova documental e pericial. Pareceres técnicos da Ordem dos Médicos e da IGAS convergiram no diagnóstico de que a cirurgia não respeitou as boas práticas e que as lesões sofridas pelo doente não foram complicações inevitáveis, mas sim consequência de execução técnica inadequada.

    A defesa tentou desvalorizar o caso alegando que se tratava de um risco cirúrgico inerente, mas não conseguiu rebater as conclusões periciais. Uma das testemunhas arroladas não chegou a ser ouvida e outra optou por não comentar quando confrontada com os pareceres. O instrutor concluiu que nada abalava a acusação e manteve a nota de culpa.

    O terceiro episódio disciplinar é particularmente sensível porque se tratou de uma emergência médica. A 31 de Março de 2023, Pedro Cavaco Henriques tentou colocar dois cateteres torácicos num doente com pneumotórax — situação em que o ar invade a cavidade torácica e provoca o colapso de um pulmão.

    black and white abstract painting

    As duas tentativas falharam e o doente entrou em insuficiência respiratória, tendo de ser rapidamente transferido para o serviço de urgência, onde acabou estabilizado com drenagem torácica. A médica presente confirmou então a sequência de acontecimentos – e os erros de Pedro Cavaco Henriques – e a perícia médica apontou falha técnica do cirurgião, ainda que reconhecendo que o ambulatório tinha então falta de equipamentos, facto que terá dificultado o procedimento.

    A defesa de Pedro Henriques ainda sustentou que não houve violação das leges artis e que a decisão de não insistir após as tentativas falhadas foi prudente, mas o perito da IGAS sublinhou que deveria ter sido pedido um raio-X logo após a primeira tentativa para confirmar a evolução da situação — algo que não foi feito. Também aqui a nota de culpa foi considerada procedente, ainda que com atenuação, dado que a carência de meios foi considerada um factor contribuinte.

    O caso mais grave, porém, envolveu uma doente irlandesa, que deu entrada no Hospital de Faro no dia 2 de Abril de 2023 com apendicite aguda perfurada e peritonite. Pedro Cavaco Henriques decidiu fazer uma apendicectomia laparoscópica, isto é, a remoção do apêndice feita através de pequenas incisões no abdómen e com auxílio de uma câmara. Trata-se de um método menos invasivo e, em condições normais, mais rápido na recuperação.

    Trecho do processo disciplinar contra Pedro Cavaco Henriques.

    Porém, no caso desta doente, a situação era de elevada gravidade: o apêndice estava perfurado e havia peritonite, ou seja, infecção disseminada na cavidade abdominal, o que torna a cirurgia muito mais difícil e arriscada. Nestas circunstâncias, é prática recomendada — e ensinada nas escolas de cirurgia — que o cirurgião converta o procedimento para cirurgia aberta (laparotomia), abrindo o abdómen para ter melhor acesso e visão directa dos órgãos.

    Essa conversão não é sinal de erro técnico, mas sim de prudência clínica: permite reduzir o risco de lesões acidentais, limpar adequadamente a cavidade abdominal e tratar de forma mais segura o foco de infecção.

    Ora, Pedro Cavaco Henriques decidiu manter a cirurgia por via laparoscópica, mesmo perante a dificuldade de visualização e o risco acrescido de complicações. Essa decisão — de continuar “às cegas” com instrumentos laparoscópicos — foi justamente o ponto mais criticado no relatório da IGAS, que concluiu que a manutenção desta via contribuiu de forma decisiva para as lacerações do intestino delgado.

    Em fase de instrução do processo disciplinar, Pedro Henriques chegou a mostrar arrependimento, mas as consequências foram enormes: no dia seguinte, já com um quadro clínico preocupante, a doente teve de ser reoperada por outra equipa cirúrgica, que encontrou abundante pus na cavidade abdominal e múltiplas lacerações do intestino delgado. Foram necessárias suturas e a ressecção (remoção) de cerca de 20 centímetros de ansa intestinal (parte do intestino delgado) para reparar os danos. Estas lesões foram confirmadas como iatrogénicas, ou seja, causadas pela primeira cirurgia.

    Página das conclusões do processo disciplinar contra o médico Pedro Cavaco Henriques. O PÁGINA UM expurgou os nomes dos cinco doentes referenciados por razões de legítima privacidade e por não ter relevância pública.

    O perito de cirurgia geral foi taxativo ao referir que o protocolo operatório não mencionava manobras que poderiam ter prevenido as perfurações. A doente permaneceu internada cerca de um mês, recebendo alta apenas a 12 de Maio de 2023. Apesar de o arrependimento do cirurgião ter sido tido em conta como atenuante, o relatório final da IGAS concluiu pela violação grave das normas técnicas e reforçou que a decisão de manter a cirurgia por laparoscopia foi errada face ao elevado risco presente.

    Lidos em conjunto, os quatro casos compõem um retrato inquietante da prática clínica de Pedro Cavaco Henriques, com erros repetidos e lesões evitáveis em doentes, alguns em situações de risco de vida. A suspensão de apenas 40 dias, aplicada como sanção disciplinar, aparenta assim ser curta face à gravidade dos factos e à convergência das conclusões periciais. Mas mostra também uma intervenção burocrática da IGAS: perante um médico que em apenas três meses cometeu quatro infracções desta gravidade, como as descritas, não seria prudente analisar o seu histórico?

  • Lei exigia que a substituição do cabo do elevador da Glória tivesse autorização e concordância do Instituto da Mobilidade e dos Transportes

    Lei exigia que a substituição do cabo do elevador da Glória tivesse autorização e concordância do Instituto da Mobilidade e dos Transportes


    Mesmo tratando-se de verdadeiras relíquias do património urbano, como o Elevador da Glória, a lei nunca desresponsabilizou a Carris nem a dispensou de submeter ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) um vasto conjunto de elementos sempre que realiza intervenções estruturais. Ao contrário daquilo que o IMT tentou fazer passar numa primeira fase do acidente, antes de se saber da ruptura do cabo, uma leitura atenta do diploma legal que regula o regime especial para instalações de interesse histórico, cultural ou patrimonial é, na verdade, apenas uma flexibilização documental, e não uma dispensa de obrigações de segurança ou de fiscalização.

    O cabo é o coração do sistema dos ascensores históricos: sem ele, os elevadores não sobem nem descem — e se falham, como falhou na semana passada, a viagem transforma-se em tragédia. Por isso, a lei trata-o como componente de segurança crítica, exigindo homologação, ensaios e autorização antes de transportar passageiros.

    Com efeito, o regulamento em vigor desde 2020, e que revogou um decreto-lei de 2002, estabelece que as chamadas “instalações por cabo classificadas como instalações de interesse histórico, cultural ou patrimonial” — como os elevadores da Glória, Bica e Lavra — apenas beneficiam de dispensa da marcação CE ou da apresentação de declarações europeias de conformidade para componentes especialmente concebidos para elas.

    Porém, a regra de fundo mantém-se: qualquer alteração significativa que inclua “os subsistemas e componentes de segurança das instalações” carece de autorização prévia do IMT, e só pode ser executada após a apresentação de projecto, plano de ensaios e uma análise de segurança por organismo independente, escolhido pelo dono da obra (no caso, a Carris) mas aceite pela entidade reguladora.

    Isto significa que a substituição do cabo tractor, efectuada no ano passado no Elevador da Glória pela MNTC – e que a Carris ainda não quis disponibilizar ao PÁGINA UM –, não poderia ter sido tratada como uma mera operação de manutenção rotineira. Por lei, mesmo para elevadores históricos, a Carris deveria ter instruído um processo administrativo prévio junto do IMT, contendo “análise de segurança para a fase de entrada em serviço e relatório de segurança” e posteriormente uma declaração que a alteração fora terminada acompanhada de “documentos que demonstrem a conformidade da instalação com os requisitos essenciais do regulamento”. Nessa linha, teria de ser enviado um “dossier técnico contendo o relatório final dos ensaios e verificações realizadas”.

    A yellow tram travels uphill on its tracks.

    Se este procedimento não foi cumprido na íntegra, o elevador poderá ter estado a operar de forma irregular, sem cobertura legal para transportar passageiros. E esta não é uma mera formalidade: trata-se do coração do sistema de segurança pública, destinado a prevenir acidentes graves e a responsabilizar as entidades exploradoras por todas as etapas do ciclo de vida do equipamento.

    Mas as obrigações da Carris não se esgotam nesta fase em que houve uma alteração de uma componente do funcionamento e da segurança do elevador da Glória. E nem o IMT pode lavar as mãos por se tratar de infraestruturas de transporte histórico. Com efeito, em nenhum aspecto da legislação se isenta a empresa transportadora da obrigatoriedade de manter um sistema de manutenção documentado e um sistema de gestão da segurança capaz de lidar com situações normais e excepcionais.

    Além disso, a lei impõe ainda que, de três em três anos, o IMT realize uma inspecção completa e emita autorização de continuação em serviço, após análise de um relatório intercalar de segurança que a Carris tem de enviar, acompanhado da prova de que dispõe de quadro técnico adequado, contratos de subcontratação aceites pelo IMT e seguro de responsabilidade civil válido.

    Mesmo em regime patrimonial, a lei é clara: cópias do relatório de segurança, declarações de conformidade, documentação técnica dos componentes e registos de restrições de utilização teriam de estar disponíveis nas próprias instalações para que a fiscalização pudesse, a qualquer momento, auditar o histórico da infraestrutura. Caso se verificasse falhas graves, o IMT tem competência para determinar a suspensão da exploração, com um prazo máximo de seis meses para reposição das condições de segurança, sob pena de revogação da autorização.

    E mais: mesmo em elevadores históricos seria inadmissível que fossem colocados cabos que não estivessem homologados. A legislação refere que caso o IMT verificasse que “um componente de segurança provido de marcação CE de conformidade” pudesse colocar “em risco a segurança e a saúde de pessoas ou a segurança de bens” tinha a competência para determinar “a proibição da sua utilização ou a restrição ao seu campo de aplicação”. Ora, a Carris nem sequer quis informar ainda o PÁGINA UM quem foi o fornecedor do cabo e qual foi o custo.

    Em suma, o discurso de que o estatuto patrimonial dos elevadores justificaria uma espécie de auto-regulação artesanal é, assim, insustentável. A responsabilidade continua a ser da Carris, que responde perante os utentes, trabalhadores e terceiros pelos riscos de exploração e pelos contratos de fornecimento de produtos e serviços. A subcontratação de técnicos ou de empresas para realizar inspecções e manutenções não transfere essa responsabilidade: apenas é admitida se os contratos forem previamente aceites pelo IMT e se for assegurado que os trabalhadores cumprem os requisitos de qualificação e que permanecem sob a direcção funcional da entidade exploradora.

    Conselho de Administração da Carris.

    A pergunta que agora se impõe, perante o desastre do Elevador da Glória, é simples: cumpriu a Carris todos estes passos? Foram submetidos ao IMT o projecto de substituição do cabo, a análise de segurança e o plano de ensaios? Existe relatório final de ensaios assinado por entidade independente? Foi emitida autorização de entrada em serviço antes de o elevador retomar a operação?

    Questões para as quais não há resposta da Carris, até porque a empresa municipal, em relação às questões anteriores do PÁGINA UM, respondeu ontem a dizer que “está a receber inúmeras solicitações de entidades e de órgãos de comunicação social”, prometendo apenas que será “dada resposta com prioridade e a maior brevidade possível”. Foram endereçadas mais questões, que serão incluídas quando e se houver resposta.

  • Manuais digitais: Porto Editora factura quase 40 milhões do Estado em três anos

    Manuais digitais: Porto Editora factura quase 40 milhões do Estado em três anos


    Sem papel, mas com cada vez mais ‘papel’ a escorrer dos cofres públicos. Enquanto em diversos países se começa a repensar o modelo de ensino para regressar às origens, como sucede na Suécia e na Finlândia, em Portugal a adopção de manuais digitais está em incremento. E o vencedor é o do costume: novo ano lectivo, novo Euromilhões nos “bolsos” da Porto Editora.

    A conhecida casa editorial, que sempre teve uma forte presença no livro escolar, detém um quase monopólio no sector dos manuais digitais e só este ano já facturou 11,3 milhões de euros em 71 contratos públicos. Grande partes destes contratos foi por ajuste directo, mas abrangendo tanto licenças de software como material informático,

    person standing near brown concrete wall
    Foto: D.R.

    Mas a factura será porventura maior, à semelhança de anos anteriores, uma vez que alguns contratos adjudicados podem ainda não ser públicos e não constarem do Portal Base, onde ficam registados os contratos feitos por entidades públicas.

    Este ano, o contrato de valor mais elevado foi adjudicado pela Escola Secundária Francisco Franco, no Funchal. O contrato foi assinado no dia 12 de Junho na sequência de um concurso público e custou aos contribuintes o valor de 1.129.313,60 euros.

    Este contrato abrange não só a contratação de licenças de manuais digitais para o ensino secundário, mas também 700 computadores portáteis e respectivas bolsas de protecção para serem entregues aos alunos que irão frequentar o 10.º ano este ano lectivo. O custo por aluno, entre portáteis e licenças, fica em 907,52 euros.

    Para os alunos do 11º ano, o custo unitário, apenas pela aquisição de licenças de manuais digitais, de software e de acesso a uma plataforma de conteúdos educativos sai por 416,64 euros. Para o 12º ano, o valor sobe para 514,54 euros, para o mesmo tipo de produtos.

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    Foto: D.R.

    Mas a editora, controlada e presidida por Rosalia Fernandes Teixeira, ainda deverá facturar mais este ano, à semelhança do que sucedeu em anos anteriores.

    Em 2023, a Porto Editora facturou 12.465.505 euros em 115 contratos públicos. No ano passado, apesar de ter efectuado menos dois contratos — 113 — facturou 15.452.192 euros, segundo uma análise do PÁGINA UM aos contratos publicados no Portal Base.

    No total, nos últimos três anos, a editora obteve receitas de 39,2 milhões de euros na venda de manuais digitais, computadores portáteis e licenças de software a escolas públicas.

    woman wearing blue denim jacket holding book
    Foto: D.R.

    O que é certo é que a empresa detém um quase monopólio neste tipo de contratos públicos. Numa breve pesquisa no Portal Base com as palavras “manuais escolares digitais”, todos os contratos que se encontram foram adjudicados à Porto Editora.

    Dos 71 contratos públicos efectuados com a editora este ano, mais de metade — 44 — foram adjudicados por ajuste directo.

    Não se sabe este é um negócio com futuro já que há uma crescente contestação ao uso de manuais escolares digitais e alguns países têm mesmo vindo a recuar na adopção desta ferramenta de ensino.

    red apple fruit on four pyle books
    Foto: D.R.

    Até agora, pelo menos nos contratos adjudicados por escolas públicas à Porto Editora, não se observa um recuo na utilização dos manuais digitais, ainda que como complemento aos manuais em papel.

    Por outro lado, já se perspectiva a eventual entrada de inteligência artificial no ensino, e estudantes já recorrem a este tipo de ferramenta, pelo que travar o avanço da digitalização de conteúdos educativos poderá ser um objectivo desafiante. Mas irão sempre ser necessários computadores, pelo que, mesmo que os manuais digitais “vão à vida”, a Porto Editora terá sempre licenças de software e portáteis para vender às escolas públicas.

  • Agência Nacional de Inovação está a dar os últimos suspiros, mas administração ainda quer almoços com directores de jornais

    Agência Nacional de Inovação está a dar os últimos suspiros, mas administração ainda quer almoços com directores de jornais


    A Agência Nacional de Inovação — cuja polémica fusão com a Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) foi já aprovada em Conselho de Ministros — contratou esta semana uma consultora de comunicação para, entre outros serviços, promover e organizar almoços com directores de órgãos de comunicação social e também com outros jornalistas. Objectivo: dar boa imagem desta entidade e, claro, dos seus administradores com vista a uma eventual condução para a liderança da nova estrutura: a Agência para a Investigação e Inovação (AI2).

    O contrato, que tem um custo de 70.110 euros para os contribuintes, foi assinado na passada segunda-feira e adjudicado à empresa Llorente & Cuenca Portugal, tendo um prazo de duração de 12 meses.

    clear glass cup on table
    Foto: D.R.

    Isto apesar de a ANI estar prestes a ser extinta para se fundir com a FCT, conforme já estabelecido pelo Governo em Conselho de Ministros do passado dia 5, que aprovou o diploma que cria a nova agência, apesar da forte contestação de investigadores. Actualmente, uma petição dinamizada por diversos investigadores conta já com mais de 1.500 assinaturas.

    Ainda assim, três dias depois, a ANI assinou o contrato com a consultora num procedimento que foi feito sem a realização de concurso, tendo sido antes efectuada uma consulta prévia. A ANI justificou a opção por esta modalidade de contratação com o facto de o Código dos Contratos Públicos permitir que seja feita apenas uma “consulta prévia, com convite a pelo menos três entidades, quando o valor do contrato seja inferior a 75.000 euros”.

    O objecto do contrato é, formalmente, a “aquisição de serviços de consultoria para assessoria de comunicação; serviços de consultoria em matéria de relações públicas”. E a ANI justificou a contratação da consultora de comunicação com o facto de ter diferentes projectos em curso e ter a “necessidade de apoio especializado” na assessoria de comunicação.

    A decisão de contratação da consultora de comunicação foi aprovada no dia 20 de Agosto pelo presidente da ANI, António Grilo. / Foto: D.R.

    Apesar de a ANI estar à beira da extinção, segundo o caderno de encargos consultado pelo PÁGINA UM tudo aparenta que a entidade está para durar. Entre os serviços a prestar pela consultora, está a “apresentação de uma estratégia global de comunicação, com enfoque na estratégia junto dos meios de comunicação social, gestão de crise com meios de comunicação e stakeholders, nomeadamente, Governo, tutelas e entidades congéneres, estratégia de produção de conteúdos para o site institucional e redes sociais”.

    Mas a ANI também quer ter reuniões privadas com jornalistas. Assim, exige aos consultores, a quem pagará mais de 70 mil euros ao longo de 12 meses, a “organização de encontros ‘one to one‘ [privados] com jornalistas, através, por exemplo, da promoção e organização de almoços entre o conselho de administração ou a responsável de comunicação com a direção dos órgãos de comunicação social e/ou jornalistas”.

    Sendo habitual a prática de empresas e organismos públicos reunirem em privado com jornalistas para melhor ‘venderem o seu peixe’ e encontrar aliados nas redacções, cabe salientar que, no caso de almoços promovidos por entidades do Estado, a factura será sempre paga pelos contribuintes. Além disso, mostra-se polémico que seja uma consultora a fazer ‘lobby’ com dinheiros públicos para que administradores de uma entidade pública apareçam na imprensa.

    person sitting in front bookshelf
    Foto: D.R.

    Além dos almoços, a ANI exige ainda no caderno de encargos que a consultora de comunicação consiga que sejam publicadas três notícias por mês sobre a agência ou os seus projectos nos maiores órgãos de comunicação social a nível nacional, designadamente na SIC, na RTP, no Expresso e no Público. Curiosamente, exclui todos os órgãos de comunicação social da Medialivre, como o Correio da Manhã, a CMTV e a Now. Em todo o caso, a ANI deixa em aberto a possibilidade de a consultora de comunicação conseguir publicar notícias sobre a ANI em outros media de referência. O PÁGINA UM assumirá, desde já, que não publica notícias favoráveis a uma entidade intermediada por uma agência de comunicação.

    A Llorente & Cuenca Portugal foi também contratada para fazer a “gestão da reputação da entidade adjudicante, assim como dos membros que compõem o conselho de administração”, o qual é composto pelo presidente da ANI, António Grilo, Alexandra Vilela e Sílvia Garcia, como vogais executivas, bem como Madalena Alves, presidente da FCT, e José Pulido Valente, presidente do IAPMEI, como vogais não executivos.

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    Foto: D.R.

    Mesmo assim, a ANI pode argumentar que o contrato com esta consultora de comunicação foi uma “pechincha” já que ficou abaixo do preço máximo fixado de 74.500 euros.

    Recorde-se que a ANI, que agora será integrada num novo organismo que juntará a FCT, levou a cabo há poucos meses uma sui generis acção de ‘team building‘. O evento, que teve lugar no dia 28 de Maio, custou 22.890 euros e envolveu a contratação de um touro mecânico. Os quadros da ANI foram ainda brindados com uma tábua de queijos, bar aberto com DJ e uma prova de vinhos.

    Nota:

    Notícia actualizada no dia 11 de Setembro, às 14H48, para corrigir o nome do presidente do IAPMEI e vogal não executivo da ANI. Por lapso, foi mencionado o nome de Luís Guerreiro, o qual deixou a presidência do IAPMEI no final de Setembro de 2024. A Luís Guerreiro e aos nossos leitores, apresentamos o nosso pedido de desculpas.

  • Garantia não ser preciso, mas presidente da Carris acaba por publicitar polémico ajuste directo no Portal Base

    Garantia não ser preciso, mas presidente da Carris acaba por publicitar polémico ajuste directo no Portal Base


    Não queria, mas teve de ser. Na passada quinta-feira, o presidente da Carris, Pedro Bogas, garantiu em conferência de imprensa, com a firmeza de um leão, que o ajuste directo alegadamente celebrado a 20 de Agosto com a empresa MNPC – responsável pela manutenção dos elevadores de Lisboa – não tinha de ser publicado no Portal BASE, por se tratar de um contrato no âmbito dos chamados “sectores especiais”. Mas, sem escapatória legal, o ajuste directo já é público desde o final do dia de ontem.

    Recorde-se que as declarações de Pedro Bogas sobre a não obrigatoriedade de publicação do contrato na plataforma da contratação pública foram proferidas no mesmo evento em que foi disponibilizada aos jornalistas presente uma minuta forjada para simular a existência de um contrato. O documento não tinha as assinaturas das partes, apesar de os serviços da Carris terem colocado uma tarja negra no documento – o que Pedro Bogas admitiria ao PÁGINA UM ter sido “um erro”.

    Em conversa com o PÁGINA UM no sábado seguinte, o presidente da Carris, licenciado em Direito, voltou a sustentar que a empresa não estava obrigada a divulgar os contratos na plataforma da contratação pública – uma posição que, na prática, equivaleria a admitir uma completa ausência de transparência na utilização de dinheiros públicos.

    Mas a pose altiva durou pouco: pressionada pelo PÁGINA UM, e também após diversas opiniões jurídicas que foram sendo transmitidas na imprensa sobre o facto de a a publicitação ser obrigatória – independentemente de se tratar de “sectores especiais” –, a Carris foi forçada a recuar. Ontem, 9 de Setembro, a empresa acabou por publicar no Portal Base o contrato por ajuste directo, não por voluntarismo ou por “transparência acrescida”, mas por imposição legal.

    Com efeito, já a 4 de Setembro, o PÁGINA UM sublinhava que o artigo 127.º do Código dos Contratos Públicos (CCP) é inequívoco: a publicação dos contratos no Portal BASE é condição de eficácia jurídica em quaisquer circunstâncias. Sem publicação, o contrato não produz efeitos externos nem vincula a entidade adjudicante. A obrigação de publicitação aplica-se a todas as entidades públicas, incluindo as abrangidas pelos chamados “sectores especiais”, sendo irrelevante a maior flexibilidade procedimental ou os limiares de valor que dispensam a publicidade prévia no Jornal Oficial da União Europeia.

    Conselho de Administração da Carris, com Pedro Bogas ao centro.

    Além disso, a própria deliberação do Conselho de Administração da Carris de 14 de Agosto, apenas assinada por Pedro Bogas, não deixava margem para dúvidas sobre a aplicação do artigo 127.º, uma vez que expressamente refere que não se aplicaria ao ajuste directo “o Regime da Contratação Pública, previsto na Parte II do CCP”, sendo então aplicável os procedimentos de “locação, aquisições de bens, serviços e empreitadas”, que obrigaria a uma consulta prévia, e depois à publicitação do ajuste directo.

    Por esse motivo, mostra-se completamente absurdo que o presidente da Carris tenha afirmado à imprensa o contrário daquilo que assinou em 14 de Agosto. E mais ainda a insistência da Carris em classificar no Portal Base o contrato como sendo relativo aos “sectores especiais”, o que demonstra o desnorte da empresa municipal.

    Aliás, a deliberação de Pedro Bogas mostra-se um atropelo às boas normas de gestão pública porque, no mesmo dia, cancelou o concurso público iniciado em Abril, aceita uma consulta prévia entretanto feita (que só deveria ser exequível depois do cancelamento do procedimento anterior), selecciona a empresa (a MNTC em detrimento da Liftech) e aprova a minuta do contrato.

    Registo no Portal Base do polémico ajuste directo da manutenção da Carris foi colocado ontem, dia 9.

    Esta questão – da eficácia e até da própria existência formal de contrato válido à data do acidente com o Elevador da Glória – pode ter implicações relevantes no apuramento de responsabilidades pela tragédia que vitimou 16 pessoas e feriu mais de duas dezenas. A seguradora Fidelidade, que cobre a Carris, poderá alegar irregularidades colocando em causa nos tribunais a validade do contrato à data do acidente.

    O contrato agora publicado no Portal BASE é o mesmo que a Carris tinha enviado ao PÁGINA UM – e só uma análise forense poderá determinar se foi efectivamente assinado a 20 de Agosto ou apenas após o acidente –, contendo já as assinaturas de dois administradores da Carris e do gerente da MNTC. Tem um prazo de 153 dias, decorrendo assim até 31 de dezembro de 2026, e um montante máximo de 221.333 euros, mas, segundo as cláusulas, não será executado se os elevadores permanecerem inactivos.

    Mesmo que venha a ser cumprido na parte que respeita aos outros elevadores, o caderno de encargos é extremamente vago, limitando-se a exigir lubrificações e verificações visuais. A MNTC é ainda responsável pela substituição dos cabos – operação sensível que poderá ter estado na origem da ruptura do cabo do Elevador da Glória, que desencadeou o acidente.

    Mantém-se, contudo, o secretismo sobre a maioria dos contratos anteriores. Garantidamente, sabe-se apenas que a MNTC presta serviços desde 2022, sendo que Pedro Bogas sublinhou que a manutenção está externalizada “pelo menos desde 2007” e que “a segurança é uma prioridade absoluta da Carris há 152 anos”.

    Em 2022, a MNTC venceu o concurso público com uma proposta de cerca de 995 mil euros – cerca de 42% abaixo do preço-base. Apesar de não ter qualquer experiência no sector e de não possuir sequer o alvará da Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) à data do concurso, venceu com base no único critério de adjudicação: o preço. Porquê? A Carris ainda não explicou.

  • Impresa: em 10 anos, Balsemão pai & filhos sacam 6,6 milhões em salários e pensões

    Impresa: em 10 anos, Balsemão pai & filhos sacam 6,6 milhões em salários e pensões


    Francisco Pinto Balsemão, fundador e ainda ‘patrão’ da Impresa, tem recebido nos últimos tempos várias homenagens e galardões públicos, como a Ordem de Camões na semana passada. Mas também tem levado para casa outros valores: mais concretamente milhões de euros em salários e complementos de pensão pagos pelo seu grupo de media, que vive uma crónica crise financeira.

    Mas não é só o ‘pai’ que tem amealhado fortuna à custa de uma holding que tem um saldo negativos de resultados acumulados na última década de 47,3 milhões de euros, com prejuízos particularmente elevados em 2017 e no ano passado. Os seus filhos Francisco Pedro e Francisco Maria – que estão a herdar os destino do grupo que detém, entre outros, a SIC e o Expresso -, não se têm saído nada mal, segundo uma análise do PÁGINA UM aos vencimentos dos três Franciscos que constam nos relatórios e contas anuais.

    Francisco Pinto Balsemão, fundador e ‘chairman’ da Impresa, dona da SIC e do Expresso, num vídeo de apresentação do livro ‘Memórias’, em 2021./ Foto: D.R.

    No global, se a Impresa é conhecida por nunca ter pagado dividendos aos accionistas, a cúpula da família Balsemão tem visto os frutos da sua gestão do grupo de media caírem à sua mesa: na última década, contabilizam-se quase 6,6 milhões de euros apenas em salários e complemento de pensão. De fora, estão outros benefícios eventuais, incluindo viaturas e despesas diversas pagas pela Impresa.

    No caso do patriarca da família, Francisco Pinto Balsemão – que foi CEO até 2012, passando a partir daí, aos 75 anos, a ser a chairman (sem funções executivas) – tem auferido anualmente um salário de 106.400 euros a que acresce 184.739 euros de complemento de pensão da própria empresa. Somado, Balsemão tem recebido desde 2016 mais de 291 mil euros por ano do seu grupo. Ou seja, uma média mensal de quase 21 mil euros em 14 meses. Na última década, amealhou 3,0 milhões de euros, valor que inclui as verbas recebidas em 2015 e também os três anos em que auferiu de prémios no valor global de 79.800 euros.

    Já Francisco Pedro, actual CEO com 45 anos, tem recebido 280 mil euros de vencimento como presidente-executivo do grupo desde 2017. Em 2016, o salário foi de ‘apenas’ 236 mil euros. Assim, em 10 anos, o filho/gestor recebeu 2,7 milhões de euros da dona da SIC. O valor engloba um total de prémios de 240 mil euros obtidos em três exercícios, mas exclui despesas e outros benefícios pagos pela Impresa, como viatura, despesas de deslocação, subsídio de almoço e outras.

    Francisco Pedro Balsemão tem desempenhado o cargo de CEO da Impresa desde 2016, levando para casa 280 mil euros por ano, excluindo extras. / Foto: D.R.

    Quanto a Francisco Maria, nascido em 1970, mantém-se na administração há mais de uma década. Em 2015, ganhaou, como vice-presidente da Impresa, 406 mil euros em vencimento fixo. Com a entrada de Francisco Pedro para o cargo de presidente-executivo, o seu vencimento passou para apenas 49 mil euros, excluindo eventuais extras. Tudo somado, na última década, ganhou 847 mil euros em vencimentos na Impresa.

    Os rendimentos da cúpula Balsemão contrastam com os resultados do grupo: do lucro líquido de 11 milhões de euros que a Impresa ainda registou em 2014, há uma década, o grupo passou para um prejuízo recorde de 66,2 milhões de euros no ano passado.

    Mas o passivo subiu de 80 milhões em 2014 para quase 128 milhões de euros no ano passado, mesmo depois de se ter libertado dos ‘activos tóxicos’ da Impresa Publishing, que dariam origem à Trust in News, nas mãos de Luís Delgado, agora em insolvência. Enquanto isso, as receitas quebraram: eram de 237 milhões de euros em 2014 e no ano passado ficaram nos 182 milhões, ou seja, uma queda de 23% – e isto sem contabilizar a inflação.

    Evolução em bolsa das acções da Impresa.

    Nos seus relatórios e contas, a Impresa aponta que um dos critérios usados para decidir as políticas de remuneração dos quadros de gestão é o facto de a empresa estar cotada em Bolsa e, portanto, querer alinhar os salários dos gestores aos de outras cotadas de similar dimensão. Isto apesar de as acções da Impresa estarem hoje a cotar em Bolsa na casa dos 10 cêntimos quando em Abril de 2014 ainda chegaram a aproximar-se dos 2 euros. Daí para cá, em pouco mais de 11 anos, a queda em bolsa foi de quase 95%.

    Mas, além do trio formado pela cúpula da família Balsemão, também Mónica Balsemão, filha do patrão da Impresa, tem trabalhado no grupo, ocupando um lugar de destaque no sector do marketing há mais de 30 anos. Começou no Expresso, mas, mais tarde, também assumiu a pasta de marketing tanto da Impresa Publishing como das marcas da SIC. Esteve durante mais de uma década à frente da direcção de marketing, comunicação e criatividade, do grupo.

    Desde 2023, Mónica Balsemão deixou estas funções para passar a tratar do reforço de imagem e reputação institucionais da Impresa bem como do desenvolvimento de projectos transversais, com apoio directo à comissão executiva.

    Foto: PÁGINA UM

    Assim, enquanto o grupo vai sangrando ao longo dos anos, com o despedimento de quadros, incluindo jornalistas, a família Balsemão vive uma era de ouro, como se não houvesse crise no seu grupo de media nem no sector da imprensa.

    Mas a crise está lá. Com efeito, como o PÁGINA UM noticiou, o império de media da família Balsemão, através da empresa Balseger, está em verdadeiro colapso financeiro. E a sua manutenção no controlo da Impresa – onde só detém 35,9%, uma vez que tem 71,41% dos direitos de votos via Impreger – está a transformar-se numa mão ‘cheia de quase nada’.

    Segundo uma análise do PÁGINA UM, a erosão financeira da Balseger – a holding criada em 2010 por Francisco Pinto Balsemão para concentrar os seus interesses na Impresa – é gigantesca: em apenas década e meia, os capitais próprios caíram de cerca de 75 milhões de euros para apenas 9,4 milhões, uma perda de 87%, quase nove décimos do “património mediático” de Pinto Balsemão.

    Resultados anuais da Impresa entre 2015 e 2024. Fonte: Relatórios e contas da Impresa. Análise: PÁGINA UM

    Além disso, o nome Imprensa tem estado envolvido em controversias. As dificuldades financeiras têm levado o grupo a fazer alguns negócios polémicos, como a venda do portefólio de revistas à Trust in News (TIN), de Luís Delgado, que está em situação de insolvência. Delgado está mesmo a cumprir uma pena suspensa de cinco anos devido a dívidas fiscais acumuladas pela TIN e arrisca novas condenações que o podem levar a cumprir pena efectiva.

    Outro negócio polémico foi a venda, e posterior recompra, ao Novo Banco do seu edifício-sede em Paço de Arcos. Estes negócios levaram o Ministério Público a investigar a existência de eventual corrupção envolvendo a Impresa, mas concluiu, com fraca fundamentação, pela não existência de matéria criminal.

    Foto: D.R.

    Recentemente, Francisco Pedro Balsemão tentou vender, de novo, o edifício, desta vez a um fundo imobiliário do BPI, grupo onde o actual vice-presidente da Impresa foi administrador até 2024. Mas o negócio ruiu devido a alegados problemas fiscais passados em torno do imóvel.

    Seja como for, nem os prejuízos recorde, a desvalorização das acções ou os negócios estranhos têm afectado o estilo de vida abastado dos membros família Balsemão, nem os seus rendimentos. Pelo menos os que vêm da Impresa.

  • Cabo do elevador da Glória: Carris esconde relatório de instalação em 2024 e não revela fornecedor

    Cabo do elevador da Glória: Carris esconde relatório de instalação em 2024 e não revela fornecedor


    A substituição do cabo do Elevador da Glória — que rompeu na passada quarta-feira, causando a morte de 16 pessoas e ferimentos em mais de duas dezenas — foi executada no ano passado pela MNTC, empresa responsável pela manutenção dos ascensores de Lisboa desde Setembro de 2022, mas não existem garantias de que os seus técnicos possuíam as certificações exigidas por lei para inspeccionar e intervir em sistemas técnicos desta complexidade.

    De acordo com a análise dos relatórios de manutenção disponibilizados pela Carris na sexta-feira passada, a MNTC usou quatro técnicos – João Antunes, Rafael Rosado, Sérgio Carvalho e Tiago Ribeiro. De acordo com as normas, quando uma empresa solicita o alvará EMIE à Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) , tem de indicar pelo menos um técnico responsável pela execução (TRE) e, se aplicável, um técnico responsável pela exploração. Estes técnicos ficam associados ao registo da empresa e constam da sua ficha no processo de licenciamento.

    Mas a empresa MNTC recusa responder às questões do PÁGINA UM sobre este assunto – aliás, apenas quebrou o silêncio por uma vez para indicar que estava a ser representada pelo advogado Ricardo Serrano Vieira, mas sem adiantar contactos –, embora tudo indique que estes mesmos colaboradores já executariam tarefas de inspecção e manutenção ao longo do período de três anos de um contrato saído de um concurso público que vigorou entre Setembro de 2022 e 31 de Agosto de 2025.

    A certificação EMIE não é um mero detalhe burocrático: trata-se de uma exigência destinada a assegurar que apenas profissionais qualificados, com provas dadas e reconhecidas pela autoridade reguladora, possam intervir em sistemas cuja falha representa risco directo para a segurança de passageiros. Por outro lado, a Lei n.º 65/2013 exige que empresas e técnicos de manutenção e inspecção de elevadores (EMIE, TRM, EIIE, directores técnicos e inspectores) tenham reconhecimento prévio da DGEG. Ora, nas três manutenções diárias de Setembro e na mensal, realizada no dia 1, um técnico de nome Tiago Ribeiro é sempre o mesmo que valida os relatórios.

    Esta questão ganha ainda maior gravidade quando se sabe que o cabo de tracção — peça crítica do sistema dos elevadores — foi substituído no âmbito de contrato entre a Carris e a MNTC, por via de uma reparação intermédia realizada entre finais de Agosto e o início de Outubro do ano passado. Essa intervenção, que deveria ter sido acompanhada de rigorosos procedimentos de ensaio e registo documental, foi executada pela MNTC, conforme era obrigação prevista no caderno de encargos, sem que haja provas de que técnicos certificados tenham participado na sua montagem.

    O PÁGINA UM solicitou formalmente à Carris que esclarecesse a data exacta da instalação, se foi elaborado algum relatório técnico, quem foram os engenheiros ou técnicos presentes na operação, se existem fotografias ou imagens que documentem o acto, e que tipo de testes foram realizados para aferir da resistência e da correcta colocação do cabo. Solicitou ainda a identificação do fornecedor e cópia da factura da compra do cabo.

    Na resposta recebida, a Carris limitou-se a afirmar que “a substituição do cabo do Ascensor da Glória decorreu no âmbito da reparação intermédia realizada entre 26 de Agosto e 1 de Outubro de 2024” e que “os trabalhos foram acompanhados por técnicos da Carris”, acrescentando que “a documentação solicitada está na posse das entidades que conduzem a investigação no âmbito do inquérito em curso”.

    Contudo, apesar da insistência do PÁGINA UM, a Carris não revelou se detém cópia desse relatório nem confirmou se a presença de técnicos próprios era suficiente para suprir a eventual falta de certificação da equipa da MNTC. A empresa municipal também se recusou a fornecer o nome do fornecedor do cabo, não enviou a factura nem revelou o respectivo custo, criando um manto de opacidade sobre uma operação que deveria ser transparente, sobretudo quando está em causa um acidente com 16 mortes e mais de uma dezena de feridos.

    No passado sábado, em conversa com o PÁGINA UM, o presidente da Carris, Pedro Bogas, prometeu “máxima transparência”, incluindo a colocação de relatórios de inspecção no seu site. Ora, o relatório mais fundamental para desvendar eventuais falhas – a colocação do cabo, operação que nunca antes tinha sido realizada pela MNTC – é logo escondido, alegando-se ter sido enviado para a equipa de investigação.

    Fontes ligadas ao sector da manutenção de sistemas de transporte vertical sublinham que a instalação de cabos de tracção deve ser acompanhada por engenheiros especializados, sujeita a procedimentos de tensionamento controlado e seguida de ensaios mecânicos que comprovem a correcta fixação.

    A ausência de documentação acessível ao público e a falta de clareza sobre a qualificação dos técnicos da MNTC colocam novas interrogações sobre a forma como a Carris supervisionou os contratos de manutenção. Recorde-se que o caderno de encargos que vigorou até ao passado dia 31 de Agosto é completamente vago ao ponto de apenas exigir a realização de verificações diárias, semanais, mensais e semestrais, sem especificar que tipo de ensaios ou medições deviam ser efectuados. A expressão usada — “verificação” — deixa em aberto se bastava uma inspecção visual ou se seriam obrigatórios testes com instrumentação.

    Pedro Bogas, presidente da Carris.

    A revelação de que o cabo foi instalado por técnicos sem certificação reconhecida pela DGEG torna-se ainda mais inquietante tendo em conta que este mesmo componente falhou menos de um ano depois da sua colocação, num acidente que se transformou na maior tragédia nos tempos recentes envolvendo um sistema de transporte público em Lisboa.

    Apesar das tentativas de agora se debater o acidente numa perspectiva de responsabilidade política a ser ‘resolvida’ nas eleições autárquicas de Outubro, o PÁGINA UM continuará a pressionar a Carris e a Câmara Municipal de Lisboa para que toda a documentação referente à substituição do cabo e à manutenção do Elevador da Glória seja tornada pública, incluindo relatórios técnicos, lista de intervenientes, fotografias, facturas e comprovativos de ensaio.

    Entretanto, Pedro Bogas, presidente da Carris, mantém-se em incumprimento legal quanto à publicitação no Portal BASE do ajuste directo da manutenção dos ascensores iniciado este mês, que chegou a exibir aos jornalistas — numa conferência de imprensa — sob a forma de minuta sem assinaturas, forjada para parecer um contrato válido.

    Apesar de o presidente da Carris insistir que tal publicação não é obrigatória para entidades dos “sectores especiais”, como os transportes, esta alegação cai por terra com a própria prática da empresa municipal. Ainda hoje, a Carris publicou dois contratos no Portal BASE, incluindo um concurso público para a manutenção de 123 autocarros MAN no valor de 430 mil euros e a aquisição de 15 mini-autocarros eléctricos para serviço urbano no valor de cerca de 4,4 milhões de euros.

    O argumento de isenção legal, além de contrariado por juristas, fica assim desmentido pela evidência documental fornecida pela própria Carris. Aparentemente, Pedro Bogas considera que usufrui do direito de disponibilizar contratos não de acordo com a lei, mas com as suas vontades pessoais, que incluiu enganar jornalistas com uma minuta mal forjada, culpando depois os seus serviços por excesso de zelo em meter tarjas negras onde nem sequer existiam assinaturas.

  • Elevador da Glória: empresa de manutenção nem sequer tinha licença (nem experiência) quando se candidatou ao concurso público de 2022

    Elevador da Glória: empresa de manutenção nem sequer tinha licença (nem experiência) quando se candidatou ao concurso público de 2022


    A Administração da Carris aceitou que a MNTC – a empresa que assegurou, nos últimos três anos, a manutenção dos ascensores da Glória, Lavra, Bica e do Elevador de Santa Justa – concorresse ao concurso público lançado em 2022 sem sequer possuir, na altura, o obrigatório alvará EMIE, emitido pela Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), que certifica a aptidão técnica para executar trabalhos de manutenção de instalações de elevação. Ou seja, nos últimos três anos, os elevadores de Lisboa estiveram literalmente nas mãos de uma ‘empresa novata’.

    A exigência de alvará, prevista na lei para a esmagadora maioria das actividades económicas mais complexa, visa precisamente garantir que apenas empresas com competências reconhecidas e equipas qualificadas possam intervir em equipamentos de transporte vertical, cuja segurança depende de rigorosos procedimentos de manutenção.

    Porém, de acordo com informação obtida pelo PÁGINA UM, a MNTC só viria a obter o alvará para o sector da manutenção de equipamentos de elevação no dia 29 de Junho de 2022 – cerca de três semanas depois de terminado o prazo de apresentação de propostas para o concurso, que fora aberto em 11 de Maio desse ano. Ou seja, à data da candidatura, a MNTC não tinha qualquer histórico ou experiência certificada no sector de manutenção de ascensores. Antes, a MNTC somente tinha contratos públicas para manutenção de piscinas e de revisão de veículos eléctricos.

    Contudo, em 2022, a Administração da Carris, já então presidida por Pedro Bogas, achou que não era necessário que os concorrentes tivessem ainda certificação ou outra habilitação para apresentarem propostas. À data do concurso existiam, segundo os registos da DGEG, exactamente 100 empresas em Portugal com o alvará EMIE válido, pelo que não se pode alegar falta de oferta no mercado.

    Apesar disso, a Carris permitiu que empresas sem alvará, e portanto com experiência nula, apresentassem propostas para a manutenção dos quatro ascensores públicos de Lisboa – equipamentos classificados como Monumentos Nacionais ou de elevado valor histórico e turístico.

    Desastre do elevador da Glória: colapso ‘repentino’ do cabo coloca dúvidas sobre qualidade da manutenção.

    O caderno de encargos do concurso não atribuía qualquer ponderação à experiência ou ao currículo técnico das concorrentes: o critério de adjudicação era exclusivamente o preço. Assim, numa decisão que hoje se revela catastrófica, a Carris escolheu a proposta mais barata, independentemente da falta de historial ou de capacidade comprovada do adjudicatário.

    No concurso de 2022, cuja adjudicação foi decidida a 21 de Julho, a MNTC apresentou um preço de apenas 995.515 euros para um contrato de três anos, valor que representa cerca de 58% do preço base fixado pela Carris, que era de 1.728.000 euros. Ou, noutra perspectiva, 42% abaixo do preço base. A diferença foi esmagadora e tornou praticamente impossível às empresas com histórico e experiência competir em igualdade de circunstâncias.

    Importa referir que a MNTC não foi a única empresa sem alvará que a Carris deixou concorrer. Entre as quatro concorrentes – MNTC, Gasfomento, GMF e Liftech –, apenas esta última detinha o alvará EMIE e experiência consolidada no sector.

    Pedro Bogas, presidente da Carris: em 2022 aceitou que empresas sem experiência e sem licença activa pudessem concorrer para a manutenção dos elevadores.

    A Liftech – que pertenceu até 2002 ao Grupo Efacec – é, de facto, uma referência na manutenção de ascensores, funiculares e teleféricos em Portugal, contando no seu portefólio com o funicular dos Guindais, no Porto, o teleférico da Penha, em Guimarães, o funicular de Viseu, o funicular de São João da Malta, na Covilhã, e o funicular de Santa Luzia, em Viana do Castelo, entre outros.

    Em Lisboa, esta empresa foi ainda responsável pela instalação do funicular da Graça, gerido pela Carris e inaugurado no ano passado, tendo mesmo recebido o Prémio Valmor de Arquitectura. A Liftech foi também, pela sua experiência de reabilitação de equipamentos histórica, a responsável pela remodelação profunda do elevador de Santa Justa também em 2024. Tem ainda contratos relevantes com entidades públicas, incluindo a manutenção de elevadores nos bairros sociais da Gebalis, contrato esse renovado em Abril deste ano por 4,6 milhões de euros.

    A opção da Carris, em 2022, de escolher exclusivamente com base no preço, sem qualquer valorização da competência técnica ou da experiência acumulada, é tanto mais grave quanto o caderno de encargos permitia que as “verificações” fossem meramente visuais.

    Não havia qualquer obrigatoriedade de ensaios mecânicos ou testes não destrutivos aos cabos de tracção, limitando-se o contrato a prever que as empresas entregassem relatórios de verificações diárias, semanais, mensais e semestrais – relatórios que, como se veio a verificar, se resumiam muitas vezes a registos com a palavra “OK”.

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    Elevador de Santa Justa teve uma profunda remodelação em 2024.

    Aquilo que então parecia ser um bom negócio para a administração presidida por Pedro Bogas revelou-se ruinoso. O trágico descarrilamento do Elevador da Glória na passada quarta-feira, que provocou 16 mortes e mais de duas dezenas de feridos, tornou evidente que a opção por uma manutenção de preço mínimo pode ter comprometido a segurança.

    O desastre resultou também em danos irreversíveis num dos veículos, na suspensão por tempo indeterminado da operação dos quatro ascensores de Lisboa – todos eles rentáveis e importantes para a mobilidade e o turismo da cidade – e numa crise reputacional grave para a Carris, para Lisboa e para o turismo de Portugal.

    Funicular dos Guindais, no Porto, foi instalado e mantido pela Liftech / Foto: STCP/D.R.

    Convém ainda sublinhar que o processo de obtenção do alvará EMIE não é complexo: é um procedimento administrativo, praticamente automático para empresas já detentoras de certificação de qualidade ISO 9001, não exigindo auditorias nem verificações prévias da existência de técnicos qualificados para o serviço. Este dado reforça a estranheza de a MNTC só ter obtido o alvará depois de concorrer e não antes, bem como a permissividade da Carris em aceitar uma proposta de quem ainda não tinha sequer dado esse passo formal.

    No final, o que deveria ser um procedimento de contratação pública destinado a assegurar a melhor relação qualidade-preço para um serviço de segurança crítica acabou por se transformar numa escolha baseada exclusivamente no preço, ignorando a qualificação e o histórico das empresas. Hoje, com um elevador destruído, quatro ascensores parados, dezenas de vítimas e danos reputacionais incalculáveis, a decisão de há dois anos revela-se um exemplo paradigmático do que acontece quando se confunde poupança com gestão eficiente.