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  • A cunha como instituição

    A cunha como instituição

    Título

    Salazar confidencial

    Autor

    MARCO ALVES

    Editora (Edição)

    Ideias de Ler (Maio de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Os documentos históricos têm uma enorme virtude para os investigadores, em comparação com a actualidade (objecto dos jornalistas): enquanto na actualidade, o poder tende a esconder e a manipular, depois da sua ‘queda’, tudo aquilo que se fixou no crivo obscurantista e manipulatório, e se não foi destruído, passa a ser matéria útil para caracterizar o passado. À posteriori, é certo.

    Por isto, fazer História, aparentando ser mais fácil porque baseado em documentos, nem assim revela(rá) toda a verdade. Por exemplo, daqui a uns anos podemos continuar sem saber se o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa fez ou não a ‘ponte’ – leia-se, cunha – entre o seu filho, o doutor Nuno, e o Ministério da Saúde para se usar um medicamento de dois milhões de euros em gémeas luso-brasileiras. Ora porque se destruíram provas que confirmariam para a posteridade quer porque se manipularam provas para desmentir a realidade.

    O mesmo se aplicará, por exemplo, à pandemia da covid-19, que curiosamente foi um tema muito abordado por Marco Alves, autor deste Salazar confidencial. Enquanto como investigador andava ele na Torre do Tombo a ler os calhamaços que a queda do Estado Novo lhe (nos) deixou, zurzia em simultâneo, como jornalista, naqueles que procuravam obter informação, questionar o Poder e propor medidas racionais de gestão da Saúde Pública. 

    Esqueceu Marco Alves, neste período, que apesar de serem tarefas muito distintas, tanto jornalistas como historiadores ‘amassam’ a mesma farinha – os factos –, apenas em períodos diferentes, mas onde ‘cohabitam’ duas características essenciais: a curiosidade e a desconfiança, que os obrigaria a conferir supostos factos, questionando a sua veracidade. Aliás, a História tem mostrado que os ‘factos’ na actualidade podem ser bem diferentes dos ‘factos’ na realidade, por causa da influência do Poder.

    Mas esqueçamos as ‘obras’ do jornalista Marco Alves, repórter da revista Sábado, que, disparatando, disparava a palavra ‘chalupa’ a qualquer um que questionasse a ‘narrativa oficial’, como o cão de Pavlov salivava a cada pedaço de carne, e dediquemo-nos ao seu objecto de interesse histórico, que deu neste livro: as cunhas no Estado Novo, tendo como óbvia figura central António de Oliveira Salazar. E podemos já adiantar que se saiu ele muitíssimo melhor como historiador do Estado Novo do que como jornalista da pandemia, o que convenhamos não seria difícil perante a fraca figura que nos ofereceu entre artigos e comentários nas redes sociais durante os dois primeiros anos da crise sanitária em 2021 e 2022. A História o julgará; não propriamente a ele, mas ao jornalismo.

    Passemos à frente.

    A figura de Salazar, como ditador é, convenhamos apetecível para qualquer historiador por várias razões, mas nem tanto por ter estado no poder tanto tempo: 36 anos. Se formos por aí, houve portugueses no poder com maior duração e com um domínio ainda mais absoluto: os reis D. João I (48 anos), D. Afonso Henriques (46 anos), D. Dinis (43 anos), D. João V (43 anos), Afonso V (42 anos) e D. Maria I (39 anos, embora grande parte dos quais sob regência do filho D. João VI). Mas naquelas épocas não se escrevia tanto, não se expunha tanto, e destruía-se muito mais. 

    Por isso, Salazar é um ‘objecto’ histórico apetecível sobretudo por ser um governante que, além de ser ditador ‘contemporâneo’, “recebia, aliás, correspondência sobre todos os assuntos, o que só era possível numa sociedade fortemente reverencial, hierarquizada e pequena, onde o presidente do Conselho ocupava o lugar cimeiro, incontestado, temido e ao mesmo tempo próximo e paternal”, como bem salienta Marco Alves (pg. 59).

    Ora, é exactamente por isso – por haver extensíssima correspondência, nunca destruída – que Marco Silva, tal como outros jornalistas e investigadores, possuem hoje matéria-prima riquíssima para contar detalhes mais ou menos picarescos sobre uma das principais ‘instituições’ lusitanas, que está longe de ser um exclusivo do salazarismo (antes fosse): a cunha, que inclui favorecimentos e outras ajudas por quem está no centro do poder, e que é tanto mais intenso quanto mais afastado nos encontramos da democracia (plena).

    Usando assim o ‘espólio’ de 2.466 processos individuais, onde se destacavam cartas, relatórios, currículos e fotografias, Marco Alves relata profusamente casos singulares que, se cometidos hoje (e revelados) dariam pena de prisão, onde se salientam episódios de peculato de uso, de pequenas ofertas (que poderiam ser agora classificadas de corrupção), de casos de infidelidade, de ‘jobs for the boys’, de favorecimentos, de veneração para obtenção de favores, etc., etc., etc..

    Ao longo das páginas, os casos são muitos, talvez demasiados – e se o objectivo principal era mostrar um Salazar ao estilo de um frei Tomás (‘bem prega frei Tomás, olha para o que ele diz, não olhes para o que ele faz’), Marco Alves mais do que nos convence; comprova. Desde logo na introdução, quando refere que cerca de seis mil pessoas escreveram ao governante desde que entrou em funções públicas, como ministro das Finanças em 1928, até à queda da cadeira em 1968.

    O livro de Marco Alves, como documento – e elogia-se o seu trabalho de investigação, bem protegido nas ‘catacumbas’ da Torre do Tombo durante os dois primeiros anos da pandemia – está mais próximo de um estilo de História, até pelos detalhes das transcrições das cartas e pelos pormenores cronológicos, com datas e horas precisas.

    Pessoalmente, talvez preferisse – e porventura teria ele mais leitores – que Marco Alves tivesse optado por uma selecção de casos exemplares, e os usasse como crónicas. Há ali uma boa trintena de casos apetecíveis que, em cada um, daria até para outros tantos romances. E haverá, como já houve muitos sobre uma personagem histórica muito similar a Salazar: o marquês de Pombal.

    Em suma, Marco Alves deveria dedicar-se mais à investigação histórica, e menos a assuntos de Ciência (que mostrou nunca saber dominar), até porque sobre assuntos do passado (ou seja, em temas não actuais) ele até demonstra capacidade de isenção, de rigor e de honestidade. Neste Salazar confidencial não se vislumbra, como deve sempre fazer um historiador (e um jornalista), qualquer tipo de ‘ideologite’, e por isso esta obra consegue apresentar-nos a figura de Salazar como era perante o povo e como este (infelizmente, diremos agora) então o via: “seu dono e senhor, como uma figura tutelar, acima dos outros, que tanto podia ser um pai, um chefe, um mestre, ou o próprio Deus”.

  • Estórias de vida

    Estórias de vida

    Título

    Mentiras de mulher

    Autora

    LUDMILA ULITSKAYA (tradução: Nina Guerra e Filipe Guerra)

    Editora (Edição)

    Cavalo de Ferro (Outubro de 2023)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Mentiras de Mulher é um romance muito original porque não tem uma narrativa contínua em que as personagens se mantêm do princípio ao fim. É mais um “patchwork” narrativo, constituído por uma manta de retalhos de seis momentos particulares da vida da personagem principal, Génia, única personagem recorrente.

    No primeiro retalho, que dá o mote ao livro, conhecemo-la: uma intelectual soviética, com um casamento fracassado que, na companhia do filho, uma criança de três anos, está de férias numa estância balnear na Crimeia. O ambiente é pacato e rotineiro, até que chega Irene, uma ruiva exuberante, faladora e divertida que é hóspede habitual na casa e conta a Génia, que é russo-inglesa, viúva, filha de um espião comunista da Irlanda britânica e faz adivinhar que teve uma vida cheia de peripécias mirabolantes.

    As duas mulheres encontram-se todas as noites ao serão, bebericando vinho do Porto (feito na Crimeia – os tradutores optaram por designá-lo por Portwein), e Irene vai contando as desgraças pelas quais passou: quatro filhos e um marido todos mortos em circunstâncias diversas, carregadas de pormenores dramáticos, levando Génia às lágrimas e a nós leitores a compadecer-nos com o seu destino fatal. Com a chegada de outros hóspedes, Génia descobre que tudo o que ouviu de Irene era mentira e, desiludida, sem confrontar a mentirosa, parte para outro destino. Esta primeira história é um choque para nós também. Apanha-nos de surpresa, porque o relato é verosímil e cheio de pormenores perfeitamente plausíveis, apesar de muito dramáticos.

    Génia encontrará depois outras mulheres que com ela partilham histórias e episódios, uns mais caricatos que outros, mas que revelam a fascinante vida interior de mulheres e que a autora, num estilo ao mesmo tempo mordaz e terno, vai contando. São relatos de intimidade, histórias de lutos, adultérios, ligações escandalosas e ilusões perdidas, algumas artificiosas e rebuscadas, outras inofensivas e quase infantis.

    As histórias desenvolvem-se: a de Nádia, de 10 anos de idade, que inventa um irmão mais velho e mente de maneira muito divertida e invulgar; a mitomania de uma rapariga de 13 anos que diz ter um caso amoroso com um homem de 40, casado, pintor famoso e familiar de Génia, o que se revela ser uma fantasia dela embora o desenlace permita saber que há de facto, um adultério, mas com outros protagonistas.

    A história de uma jovem futura engenheira que descobre a poesia com uma velha professora de literatura, e que, após a morte desta, descobre que toda a poesia que lhe lera, como se fosse sua, era afinal de grandes poetas russos do início do século XX.

    Há também a aventura suíça de Génia que, tendo sido contratada para escrever um guião de um documentário, tem de entrevistar várias prostitutas russas que lhe contam todas a mesma história: são todas filhas de um comandante da Marinha, morto num acidente, violadas pelo padrasto e obrigadas a sair de casa e a fazerem-se à vida.

    É uma pena que com o decorrer da narrativa já não sejamos apanhados de surpresa e fiquemos, logo à partida, vigilantes à espera da próxima mentira, porque Ulítskaia construiu um naipe de histórias ternas e enternecedoras que relevam muito do sentido trágico da condição humana.

  • Uma cura natural para uma doença fatal

    Uma cura natural para uma doença fatal

    Título

    Como viver sem diabetes

    Autor

    MANUEL PINTO COELHO

    Editora (Edição)

    Oficina do Livro (Outubro de 2023)

    Cotação 

    17/20

    Recensão

    Nas sociedades modernas, a diabetes mellitus (tipo II) é já uma verdadeira epidemia; ‘sintoma’ do nosso estilo de vida moderno, muito assente em hábitos alimentares prejudiciais à saúde e um sedentarismo endémico. Tão prevalente, esta doença é erradamente vista como uma sentença – uma vez diagnosticada, a única via possível, de acordo com a “Medicina Convencional”, parece ser o seu controlo através de medicação e injecções de insulina. Contudo, para Manuel Pinto Coelho, nada poderia estar mais longe da verdade, e explica-nos porquê no seu mais recente livro Como viver sem diabetes, editado pela Oficina do Livro.

    Com mais de 50 anos de prática clínica (como já aqui referimos numa outra recensão do mesmo autor), Manuel Pinto Coelho tem-se notabilizado por apregoar uma mensagem fundamental que de tão simples deveria ser seguida com naturalidade: precisamos de aprender a olhar para as causas das doenças, e a preveni-las através das nossas escolhas diárias, em vez de camuflá-las com medicamentos (a abordagem mais usual e convencional). E se esta visão se aplica à generalidade das possíveis afecções ou doenças, aplica-se também, naturalmente, à diabetes tipo II.

    Como se salienta neste livro, à escala global 537 milhões de pessoas padecem desta condição; um número que se prevê duplicar até 2050. Em Portugal, “a doença mata quase uma dúzia de pessoas por dia” (pág. 29). Apesar destas assombrosas estatísticas, a boa notícia que nos traz Manuel Pinto Coelho é que através de uma alimentação adequada, exercício físico regular, um sono reparador e algumas ferramentas adicionais – como suplementos alimentares adequados e jejum intermitente – é possível evitar, ou até mesmo curar, a diabetes. 

    Isto porque, como o médico sublinha, a diabetes é sobretudo uma doença “nutricional”, uma “filha indesejada do ‘desenvolvimento’” (pág. 35), que se instala quando o corpo se torna resistente à insulina – uma hormona segregada pelo pâncreas para “controlar o armazenamento de glicose dentro das células adiposas” (pág. 46).

    Manuel Pinto Coelho explica também em detalhe a “cura” por si sugerida: quais os alimentos a privilegiar, como fazer o jejum, e indica-nos um conjunto de suplementos nutricionais com “provas dadas” que poderão ser benéficos para quem se defronta com a doença, ou àqueles que se encontram em risco. Entre os suplementos naturais que mostraram resultados promissores em estudos científicos no controlo da glicemia, destaca-se a berberina, extraída através de uma planta (pág. 100).

    Além disto, embora por si só não seja suficiente, o médico sublinha a importância de controlar a qualidade e a quantidade dos hidratos de carbono ingeridos, nomeadamente o açúcar. Nesse sentido, fala-nos de 147 potenciais malefícios do açúcar; uma lista que assusta de tão comprida.

    Sobre este aspecto, devemos ter presente que o açúcar se “esconde”, com frequência, por trás de um sem-número de designações. Por isso, nas idas ao supermercado, recomenda-se atenção aos rótulos de modo a identificar estas outras formas que o açúcar pode tomar; e nas quais se contam, entre outras, a glucose, a frutose, a lactose, a dextrose e a maltodextrina. 

    Ainda assim, o melhor é que não seja necessário olhar a rótulos, privilegiando-se uma dieta à base de alimentos integrais, que não veem em embalagens. Até porque, infelizmente, nem os adoçantes comuns como o Aspartame e o Acessulfame K, são uma alternativa aconselhável ao açúcar: não são úteis no controlo do peso, e ainda “agravam o risco de cancro” (pág. 161).

    Manuel Pinto Coelho enfatiza a obesidade como o maior factor de risco para a diabetes mellitus, e mostra como esta doença, por sua vez, pode depois desencadear uma série de outras maleitas. Como estratégia de prevenção, explica também ao leitor como pode, através de análises ao sangue, perceber se está a desenvolver um quadro inflamatório ou de resistência à insulina, antes de chegar ao ponto de adoecer.

    Quanto à “cura” que a Medicina Tradicional tem para oferecer aos diabéticos, o médico mostra-se crítico: a insulina não resolve a questão, podendo até ser mais uma fonte de problemas. No seu entender, não são os doentes quem beneficia com esta abordagem, mas quem dela retira dividendos financeiros. E sustenta a tese com alguns dados, adiantando que “o mercado mundial da insulina humana deverá atingir os 29,9 mil milhões de dólares norte-americanos até 2025” (pág. 131).

    Escrito com base em evidências científicas, Como viver sem diabetes apresenta-se como um guia de leitura aprazível mas sobretudo de uma extrema utilidade para quem sofre desta doença ou para quem está em risco de a desenvolver ou para quem a quer evitar. Ou seja, potencialmente para todos. Afinal, quem pode recusar a possibilidade de uma cura natural, barata, e livre de efeitos adversos para um flagelo que assola tantas pessoas em todo o Mundo?

  • Ler a Bíblia de faca e garfo

    Ler a Bíblia de faca e garfo

    Título

    A Mesa de Deus – Os Alimentos da Bíblia

    Autora

    MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI

    Editora (Edição)

    Quetzal (Novembro de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Como todos talvez saibam, a Bíblia continua a ser não só um dos livros mais lidos e traduzidos no mundo, como também um dos mais estudados, interpretados e analisados, servindo o seu conteúdo a um surpreendente manancial de abordagens diferentes. Nos últimos tempos, uma dessas abordagens diz respeito aos alimentos mencionados na Bíblia, bem como aos utensílios, as práticas à mesa, aos animais, plantas, entre muitas outras referências de igual curiosidade e importância.

    Depois de, em 2011, o Chef Luís Lavrador ter dado à estampa Ao sabor da Bíblia (edição Casino Figueira, que registou outra publicação em 2017 na editora Alêtheia), eis que surge uma nova dissertação em língua portuguesa acerca da temática da alimentação na Bíblia, desta feita pela mão de Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti (n. 1950), jornalista e investigadora de gastronomia, que nasce após uma conversa entre a autora com o então padre Tolentino Mendonça, que assina o texto de abertura do livro.

    “Entrar na Bíblia pela porta da cozinha é um argumento mais sério do que se possa supor. E também mais espiritual”, assinala Tolentino Mendonça, uma vez que o livro oferece “estratos complementares de conhecimento: constitui uma espécie de micro-história da Bíblia”. De acordo com o agora Cardeal, a autora precisou de mais de uma década para concretizar este projecto, que, nas suas palavras, “não é apenas um ensaio exaustivo sobre a mesa bíblica: é um convite a entrar, um abrir da mesa, uma coreografia de odores, uma prática do saborear”.

    Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti leu e releu a Bíblia tendo o cuidado de anotar todas as referências ao tema: “E em cada passagem revela hábitos do povo de Deus, incluindo os alimentares: os sabores estão por toda a parte, do fruto proibido à Última Ceia, do maná no deserto do Sinai aos pães de cevada da Galileia, dos peixes secos do lago de Tiberíades (…) ao vinho que jorrava das talhas de uma casa em Caná”.

    Ficamos assim a saber que “a cozinha da Bíblia era feita com uma grande quantidade de ervas, especiarias, cereais e leguminosas, trazidos em caravanas da Índia e da Península Arábica, que eram usados na preparação dos pratos e no fabrico de pão e cerveja”, que “os hebreus utilizavam azeite de oliveira; da uva, faziam vinho e vinagre; com o leite de cabra, ovelha e vaca, preparavam queijos frescos ou secos” e “adoçavam os produtos com mel de abelha”. De todos os alimentos, “o mais importante foi sempre o pão”.

    Este livro revela um trabalho minucioso, de filigrana, na recolha de citações referentes à alimentação, todas elas com indicação do respectivo versículo, “desde os livros mais antigos (Pentateuco), até aos posteriores (Novo Testamento), do primeiro (Génesis) até ao último (Apocalipse)”, com notas acerca do contexto histórico, social ou religioso, igualmente cheio de menções a outras obras literárias como a Ilíada, a Odisseia, O Épico de Gilgamesh.

    O livro, naturalmente, está recheado de referências, numa abordagem muito interessante, completa e abrangente, onde se vislumbram as influências históricas da actual Dieta Mediterrânica. Mas também se mencionam os animais domesticados para a alimentação ou para outras finalidades, como o gado bovino, que, além da carne, também fornecia leite, queijo e couro, sendo a sua carne especialmente utilizada em ocasiões especiais. O gado caprino, desde o cabrito ao cordeiro, da cabra à ovelha, era o tipo de carne mais presente nas mesas da época.

    Acerca de aves, a Bíblia é profusa na referência de muitas espécies, embora para a alimentação algumas fossem consideradas impuras. Já aquelas permitidas “eram quase sempre assadas; mas também podiam ser salgadas e secas ao sol, ou cozidas e conservadas em gordura dentro de grandes recipientes”.

    Não sendo possível aqui referir todas as suas singularidades, apenas deixo umas breves notas assaz curiosas e inusitadas que a leitura deste livro proporcionou. Por exemplo, os alimentos estranhos que se encontram mencionados na Bíblia, como os insectos que então se comiam, como gafanhotos ou grilos, sendo João Baptista um dos mais gulosos, pois “preferia comê-los com mel” silvestre. Os excrementos de pessoas ou de animais, em determinadas situações, “também serviram de alimento”. Mas havia também quem se alimentasse de cinza, “do próprio vómito” ou o mais extremo, praticasse o canibalismo.

    Um livro que seguramente não deixará ninguém indiferente, seja qual for a orientação religiosa do leitor, pois uma coisa é certa: todos precisamos de comer e o mais importante é saber aquilo que comemos e como comemos.

  • Da feminilidade na pós-modernidade

    Da feminilidade na pós-modernidade

    Título

    Seios e óvulos

    Autora

    MIEKO KAWAKAMI (tradução: Renato Carreira)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Agosto de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Apesar deste Seios e óvulos ser o seu primeiro livro traduzido para português, Mieko Kawakami, nascida em 1976 em Osaka, estreou-se na literatura como poetisa em 2006 e publicou a sua primeira novela, My ego, my teeth and the world, em 2007.  

    A autora já recebeu diversas distinções literárias no Japão, incluindo o Prémio Akutagawa, o Prémio Tanizaki e o Prémio Murasaki Shikibu. Mieko Kawakami também fez parte da lista dos autores seleccionados para o International Booker Prize em 2022, com o livro Heaven (2021). Traduzido para inglês como Breasts and eggs, tornou-se um grande êxito internacional, considerado um livro “notável” pelo New York Times, e um dos 10 melhores livros de 2020 pela revista TIME.  

    O título do livro em inglês e a respectiva tradução em português remetem directamente o/a leitor/a para os temas das duas partes da história de três mulheres japonesas: Natsu, a narradora, é uma jovem escritora de 30 anos que vive em Tóquio; Makiko, a sua irmã mais velha, é anfitriã num bar de Osaka, e a sua filha de 12 anos, Midoriko.  

    Na primeira parte do livro, mãe e filha fazem uma visita a Natsu em Tóquio, com o objectivo de Makiko fazer uma operação de implantes mamários a um preço acessível. Porquê aumentar o tamanho das mamas? O ponto de partida para uma descrição tão realista como peculiar dos mamilos de Makiko. O corpo feminino é, com efeito, um dos protagonistas do livro. A sua transformação e a sua experimentação, narrada por intermédio do diário da adolescente Midoriko, contribui para o diálogo interior da narradora sobre o papel da mulher na sociedade patriarcal japonesa.  

    Mais do que as questões de género associadas às identidades sociais que tendem a pautar as discussões contemporâneas, o que está em causa é o poder que a mulher tem para decidir sobre o seu corpo e os papéis atribuídos às mulheres, ainda de submissão, em muitos contextos, nomeadamente da pobreza, no qual as irmãs Makiko e Natsu cresceram em Osaka e do qual lutaram para sair. Sem êxito – o que percebemos na primeira parte do livro. Os ovos (de aves) parecem ser a principal fonte proteica para estas mulheres e são uma metáfora para o que se segue.

    Na segunda parte do livro, dez anos após aquela visita, Natsu continua a escrever, mas sem grande convicção – mais por falta de concentração e foco. A sua atenção está centrada, principalmente, em como ter um filho sem o acto sexual. O sexo é algo que abomina.

    A sua pesquisa pela procriação (não muito clinicamente) assistida – tema tabu no Japão – transporta-nos para outras questões éticas relacionadas com a parentalidade, nomeadamente sobre a necessidade que os filhos, com pai desconhecido, têm em saber quem é o seu progenitor biológico. 

    Estas e outras questões são as angústias vívidas da narradora, que se refugia, numa primeira parte, na descoberta da identidade feminina manifestada no diário da sobrinha adolescente. O salto para a segunda parte do livro é de tal ordem, que o contacto com a irmã e a sobrinha são apenas isso: telefonemas e mensagens. 

    É natural que esta obra seja cativante, na medida em que esta narrativa de autoficção realista permite que o/a leitor/a se identifique com os dilemas das personagens. A perspectiva feminina sobre o seu corpo não costuma ser descrita de forma tão natural como crua, levando a leitora a questionar-se sobre a sua própria feminilidade e qual a origem do seu auto-conceito. 

    Os media muito têm contribuído para essa hétero-construção, muito raramente consentânea com o modo como cada mulher observa e sente o seu próprio corpo. Além dos padrões e falsas expectativas disseminados pelos media, também os papéis da mulher, nomeadamente o da maternidade, perpassam as conversas e o quotidiano das personagens, quase todas mulheres. 

    Os ditames e normas sócio-culturais tendem a formular uma ideia de maternidade que ultrapassa a mulher, de tal modo que muitas mulheres se sentem menos mulheres por não serem mães. Isto, por um lado. Por outro, a reflexão interior da narradora sobre a ideia de maternidade ainda associada à paternidade. 

    Este ‘ainda’ é, por assim dizer, o busílis de Natsu. Este ‘ainda’ é um tema do antropocentrismo. Sem dúvida que muitas outras ‘dificuldades’ estão a ser estudadas com o objectivo de nós, humanos, ultrapassarmos esse ‘empecilho’ que é o corpo, do qual somos proprietários e em relação ao qual, cada vez menos, saberemos o que fazer. 

    Desta feita, o livro é cativante para quem aprecia as questões de género e do papel da mulher nas sociedades contemporâneas.  

    O realismo das descrições é, igualmente, envolvente, na medida em que ao contrário de outros autores japoneses, como Haruki Murakami, temos acesso à cultura e modos de vida deste país tão fascinante como longínquo.

  • Uma autobiografia em dois contos

    Uma autobiografia em dois contos

    Título

    A Tília – Aniversário

    Autor

    CÉSAR AIRA (tradução: Miguel Filipe Mochila)

    Editora (Edição)

    Cavalo de Ferro (Setembro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Pode escrever-se uma autobiografia em dois contos? César Aira pode. E fê-lo com mestria, neste livro que nos conta a sua infância, no primeiro conto, e a idade depois dos cinquenta anos, no segundo. 

    A infância, em Pringles, foi marcada por uma árvore, a “Tília Monstra”, porque era enorme: “(…) vinte tílias das outras fundidas numa não teriam feito esta. Eu dera-lhe o nome de “Tília Monstra”, diz-nos o autor, logo na primeira página.

    Era à Praça da Tília que ia com o pai colher as flores para fazer chá: “O meu pai, consuetudinária vítima de insónia, ia à Praça com um saco, no começo do Verão, colher florzinhas de tília que depois secava e usava para fazer um chá que tomava à noite após o jantar. (…) E era bastante evidente que precisava daquilo, pois não houve homem mais nervoso do que ele. (…) além de nervoso, era irascível em último grau, sempre à beira de explodir, sempre em polvorosa. Bastava-lhe uma palavra, um gesto, e desatava logo aos berros como um louco furibundo. Precisava de muito menos para perder o controlo; subtilizava as causas até à magia; o adejar de uma borboleta no Japão provocava-lhe um ataque em Pringles.” A criança não saberia, mas o nervosismo do pai advinha do facto destes acontecimentos se passarem durante a presidência de Juan Perón.

    O pai de Aira (“um peronista convicto”) desenvolve uma profunda ambivalência em relação à vida após a queda do governo de Perón. A sua mãe, por outro lado, torna-se uma antiperonista convicta e dada a discursos “difamatórios e verdadeiramente delirantes”. Aira oferece pistas sobre as causas subjacentes do suposto desacordo político entre os pais, mas, surpreendentemente, não explora esses factos e leva-nos, antes, a apreciar outros episódios que lhe aconteceram a ele enquanto miúdo, filho único, num bairro operário, e fá-lo de uma forma encantadora.

    “A minha memória mais antiga do meu pai é vê-lo montado na bicicleta que usava para se deslocar para todo o lado na vila, até aos mais remotos confins, com uma longuíssima escada encaixada no ombro. A escada era o mais notável, e não creio que a cena me tivesse ficado gravada na memória se não estivesse presente. Era uma escada de madeira com pelo menos quatro metros de comprimento (não quero exagerar), e levar equilibrado semelhante trambolho na bicicleta devia requerer certa arte, ou pelo menos um hábito assíduo”. Ou então: “Em frente à casa havia um escritório de contabilidade onde passava os meus tempos livres. Fazia recados ao contabilista e ao empregado, que era seu sobrinho. Como o empregado faltava muito, o contabilista costumava deixar-me a tomar conta do escritório quando saía. A minha única função era estar ali e, se alguém viesse, dizer-lhe que ele saíra e que voltava já.”

    Deu-se o caso dele e da família terem vivido num palácio abandonado, disputado numa questão de heranças que se prolongou durante anos, e que atiçou, também a imaginação do miúdo: “Todos os meus amigos viviam em casinhas mesquinhas e apertadas. A nós, sobrava-nos espaço, mas, num gesto de soberba dignidade de pobres, desprezávamo-lo e vivíamos num quarto. Até da galeria só usávamos o espaço correspondente ao nosso quarto. A mim, tinham-me proibido de entrar nos outros, embora a maioria não tivesse portas e fosse percorrida apenas pelos ratos.”

    “Uma vez a minha mãe contou, a meio do incessante tagarelar que empregava para acalmar o meu pai, que quando foram viver para ali, logo após o casamento, usava a lareira para cozinhar, com fogo de lenha, como na Idade Média. Entusiasmei-me, com o histórico snobismo das crianças. Teria gostado de vê-lo. Pedi que preparasse uma refeição, nem que fosse apenas uma, ao velho estilo, mas ela não me deu tal prazer. Prometi a mim mesmo que, quando fosse grande, voltaria à Idade Média as vezes que quisesse, a despeito do progresso.”

    No conto seguinte, o registo é completamente diferente. Uma conversa aleatória que teve com a mulher, enquanto passeavam e o leva a fazer esta declaração: “Tenho cá para mim que nos enganaram quando nos disseram que a sombra da Terra é que produzia as formas da Lua quando se interpunha entre a Lua e o Sol. Precisamente agora o Sol e a Lua estão ambos no céu, a Terra não se interpõe minimamente entre eles, e ainda assim não se vê completa. Mentiram-nos!”

    A mulher esclarece que ele é que está enganado e isso leva-o a uma reflexão sombria sobre a juventude desperdiçada, por causa de toda a informação que reteve e que pode, eventualmente, estar errada, o que o leva a uma desconsideração artística do seu próprio trabalho que, por sua vez o leva ao seu futuro potencialmente sombrio.

    Relembra que aos 40 anos iniciou um grande projeto, que implicaria um afastamento consciente dos seus “pequenos romances”, que ele considera marginais. Chama a esse projeto, Enciclopédia, imaginando-a como um livro abrangente de inúmeros conhecimentos. Mas aos 50 anos (é nos dias após esse aniversário que ele começa a narrativa), tudo o que ele tem é uma coleção de esboços e planos, sem uma única página manuscrita, e é improvável que este ambicioso projeto seja concluído. O conto passa a ser assim, também, uma profunda reflexão sobre a vida e o envelhecimento.

  • Um repasto de encher a alma

    Um repasto de encher a alma

    Título

    Histórias e curiosidades à mesa

    Autor

    VÍRGILIO NOGUEIRO GOMES

    Editora (Edição)

    Marcador (Outubro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Tendo em conta a época natalícia que se aproxima, muito dada a bródios e a oferendas, eis o livro ideal para as mentes curiosas se empanturrarem sem problemas de consciência, tal a cornucópia de histórias e curiosidades que Virgílio Nogueiro Gomes (n. 1949) nos serve, que são um regalo e bem nos satisfazem o conhecimento acerca destas coisas do comer e do beber.
    Como verdadeiro e acérrimo defensor da gastronomia portuguesa, da sua autenticidade e da sua boa confecção, Virgílio Nogueiro Gomes tem vindo ao longo dos últimos anos a manifestar as suas opiniões, defesas ou increpações através de inúmeros formatos, sendo a crónica um deles e que pratica com obstinada regularidade na sua página online (www.virgiliogomes.com).

    Na Nota Introdutória, o investigador em História da Alimentação confessa que este livro surge agora por insistência dos leitores habituais do seu site, que lhe haviam manifestado o desejo de ver impressas a maioria das suas crónicas. 

    Embora a presente edição não seja a transcrição completa dos textos que Virgílio Nogueiro Gomes publicou nesse espaço, são antes “uma seleção” do autor, “juntamente com textos publicados em outras obras”, sendo alguns inéditos, e outros alterados ou actualizados.

    Assim, o autor dividiu o livro em três grande capítulos: o primeiro, dedicado às Histórias e Curiosidades, com textos “que abordam momentos históricos interligados com os alimentos”, que vão desde “Macarons à Portuguesa” até “São Lourenço, padroeiro dos cozinheiros”, das “Sopas de cavalo cansado” à “Coleção de cardápios de Olavo Bilac” ou a “Tradição à mesa, ou a educação do gosto”, assunto tão corrente nas exposições do autor.

    No segundo capítulo, intitulado, Produtos, Histórias e Estórias, Virgílio Nogueiro Gomes discorre acerca de produtos e ingredientes e a maneira de como eles chegaram até nós. Este é um capítulo muito interessante, uma vez que o autor não só nos dá um enquadramento desses produtos ou ingredientes que entram na culinária portuguesa, como nos traça um roteiro de várias receitas confeccionadas por todo o país onde esses produtos ou ingredientes são protagonistas, como por exemplo o Alho, “produto fundamental na cozinha portuguesa”, os doces confeccionados com azeite (Económicos, Dormidos, Bolas Sovadas). Destaque para o texto que aborda a Banha de Porco e a Doçaria Portuguesa ou a simples e humilde cebola.

    Para o terceiro capítulo, Receitas, Histórias e Curiosidades, o autor deixou um apanhado de histórias acerca de algumas receitas, com as indicações para que os leitores as possam confeccionar, que vão desde um Bolo Rico de Amêndoa e Chila até um humilde Caldo Verde. Das muitas receitas que Virgílio Nogueiro Gomes nos dá a conhecer, destaque para o Empadão de Bacalhau, uma receita criada pelo autor em 1993, “para uma edição da revista Marie Claire” e que se tornou bastante afamada ou para os Pastéis de Santo António, marca registada e originários de Pernes, “na sequência de um processo organizado pela Junta de Freguesia de Pernes”, com uma bela história.

    Contudo, no meio de todas estas crónicas, cheias de histórias e curiosidades, importa também referir os inúmeros episódios que Virgílio Nogueiro Gomes revela, num tom muito confessional e intimista, acerca das suas experiências pelos restaurantes, tanto nacionais como internacionais, e as peripécias que lhe sucederam, seja pela negativa ou pela positiva, mas de todos eles podemos inferir o amor pela gastronomia portuguesa e a defesa intransigente que o autor faz. E este livro é também isso mesmo, um manifesto pela dignidade e história da Culinária Portuguesa.

  • Um livro desconfortável

    Um livro desconfortável

    Título

    Shy

    Autor

    MAX PORTER (tradução: Manuel Alberto Vieira)

    Editora (Edição)

    Elsinore (Setembro de 2023)

    Cotação

    12/20

    Recensão

    Estamos em 1995. Shy é um adolescente de 16 anos com um currículo impressionante de delinquência e de comportamento de risco. “Grafitou, snifou, injuriou, roubou, feriu, esmurrou, fugiu, galgou, estampou um Ford Escort, destruiu uma loja, vandalizou uma casa, partiu um nariz, espetou uma faca no dedo do padrasto”. A lista poderia ser ainda mais extensa. 

    Por exemplo, num momento de descontrolo emocional, numa festa, pegou numa garrafa de cerveja, partiu-lhe o gargalo e “traça uma linha reta através do alto da testa do puto, abre-lhe a pele e vê uma mancha de sangue que escorre como numa foleira e sórdida cena de efeitos especiais”. Foi “expulso de duas escolas. Primeira advertência em 1992, aos treze anos.”

    É aluno do internato Last Chance, descrito como uma instituição “não convencional” para a reabilitação de “alguns dos jovens infratores mais perturbados e violentos do país”, e descrito por Shy como “uma mansão velha de merda, convertida em escola para meninos malcomportados, no meio de uma merda de lugar nenhum”.

    Parte do inferno em que vive Shy é precisamente o Last Chance e é lá que Shy vive, apesar de ter família. Deixando de lado a ironia do nome, o próprio Last Chance tem em si a sua própria condenação, uma vez que tem uma morte anunciada, esperando só o avanço da especulação imobiliária para se marcar a data em que o edifício vai despejar os jovens residentes e acolher gente abastada e desejosa de se instalar em apartamentos de charme, naturalmente renovados com os melhores acabamentos.

    Quando o romance começa é de noite, e Shy, com uma mochila cheia de pedras às costas, caminha sozinho em direcção a um lago. Atravessa os campos escuros com um walkman e um charro. A sua vida é um desastre de erros sucessivos e ele está farto.

    Enquanto caminha, vamos ouvindo o monólogo interior e atormentado de Shy num discurso confuso de más lembranças e sonhos piores. O monólogo é sobre estar perdido no escuro e aprender que está sozinho, é a história de algumas horas estranhas na vida de um adolescente problemático que ouve as vozes da sua cabeça: “não podes fazer isso contigo próprio, Shy, não te deves magoar assim…”. E vai ouvindo os seus professores, os seus pais, as pessoas que ele magoou e as pessoas que tentaram amá-lo. E sente o peso do seu passado e a pesada incógnita do seu futuro e a noite é enorme e toda a sua vida lhe dói. 

    “É cansativo seres tu?”

    E ouve as tentativas desesperadas da mãe para chegar até ele: “Mas porquê, mas o que é que te deu? Tu não me estás a ouvir, o que é que se passa contigo? Porque me fazes isso?”, e “O teu padrasto pergunta quando é que a merda de Jekyll e Hyde vai acabar?”.

    Shy é uma narrativa dura sobre um jovem a quem tudo falhou: a família, o Estado, a providência, algum equilíbrio no mundo. Ao longo destas páginas, perguntamo-nos como é que há alguém que nasça com tanta raiva acumulada, tanto desespero, tanta decepção. A linguagem é crua, muitas vezes obscena e incomodativa. A leitura perturba-nos. É um livro para ler num dia bom, porque nos vai deixar marcas. E não são boas. A capa é magnífica. O livro deixou-me desconfortável. 

  • Uma viagem pela ficção

    Uma viagem pela ficção

    Título

    Do que não existe: Repensando o cânone literário

    Autora

    ANNABELA RITA

    Editora (Edição)

    Manufactura (Julho de 2018)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    Do que não existe é o segundo livro de uma trilogia dedicada ao Cânone Literário no diálogo das Artes (Luz e Sombras no Cânone Literário, 2014; Do que não existe. Repensando o Cânone Literário, 2018; Perfis & Molduras no Cânone Literário, 2018) que Annabela Rita fundamenta também em duas obras atentas à sua emergência cultural e às relações entre o imaginário português e o europeu em que se inscreve (Sfumato. Figurações in hoc signo. Na senda da identidade nacional, 2019; Sfumato & Cânone. Na senda da identidade nacional, 2021). 

    Para Aristóteles, a matriz da poesia consiste na imitação do real, e ao poeta atribui a função de contar o que é possível, de acordo com o princípio da verosimilhança. No Século das Luzes, Alexander von Humboldt (1799) atestava, categoricamente, o papel da poesia enquanto arte realizada pela linguagem. Na Antiguidade romana, ao aludir ao universo da poesia, Horácio frisava a sua inter-relação com a pintura – ut pictura poesis. Muitos teóricos literários contemporâneos, como Paul Ricœur (t.II. 1984) ou Linda Hutcheon (1991), sublinham o facto de a literatura coeva exibir – subtil ou ostensivamente – indícios da própria génese, apontando para a materialidade do discurso em imagens autorreflexivas e pondo em causa a ontologia do universo (re)criado. 

    Como numa dança infinita, Do que não existe exibe uma performance das vivências ancestrais da Humanidade. A Professora Universitária discorre sobre a literatura e a sua imbricação nas artes, em geral. Assenta na universalidade e na gramática sistémica, que tem a faculdade de (re)criar e evidenciar uma forma de ser no mundo, palavras que tomo de empréstimo a Heidegger. Ora, se o verbo é palavra de ação, como o classifica Aristóteles, o Verbo de Annabela Rita é sinónimo de reflexão, pensamento e crítica. De uma ação que se traduz numa longa caminhada em torno e em prol das artes. 

    Na esteira de críticos como Laurent Jenny (1979) ou Umberto Eco (1991), defensores da teoria de que os textos sempre convocam outros textos, assumindo relações dialógicas entre si, a autora relembra que os textos literários extrapolam para fora de si, realizando interações com outros sistemas semióticos, que não apenas as relações dialógicas no âmbito literário. A “revolução” da perspetiva de abordagem do Cânone literário assinalada por Miguel Real e por Isabel Ponce de Leão no paratexto de dois dos seus textos, tem sido, aliás, destacada desde o início da trilogia por Fernando Cristóvão (2014) e Daniela Marcheschi (2014). Também no Prefácio à obra em análise, o filósofo Miguel Real sanciona que a análise se centra especialmente no universo ocidental, o português e o lusófono, e que o itinerário desta obra se processa deliberadamente para fora do texto.

    Neste livro, a ensaísta traz à colação a simbologia subjacente ao pensamento e à efabulação artísticos – livros, pinturas, música, monumentos… – apontando para uma reflexão que tem como base o cânone estético e cultural do Ocidente (cf. Bloom 1997; Rita 2014) e, em particular, da portugalidade. Annabela Rita verte o olhar sobre as cantigas de Dom Dinis, rei-sábio-poeta, plantador de árvores e de sonhos. E, como na contemplação de um quadro, debruça-se sobre a janela que enclausura Joaninha, a bela adormecida de olhos verdes imortalizada por Almeida Garrett. Analisando obras e autores clássicos ou coevos, põe, também, em destaque olhares e visões quase fantasmagóricos: o da feiticeira Circe, espreitando por detrás dos versos de Natália Correia, o de Ulisses, na obra de Teolinda Gersão, o do desalento omnipresente na obra de Gonçalo M. Tavares.

    Num outro prisma, focaliza-se a dicotomia pictórica: a desenhada pelas palavras e a instaurada pela tinta. À semelhança do que retrata uma pintura ou uma fotografia, no poema “De Tarde”, Cesário Verde apela ao sentido da visão, exibindo a alegoria da relação amorosa. Opõem-se lhe visões místicas recriadas por autores como Jerónimo Bosch e Marc Chagall, ou visões oníricas, como as ostentadas na pintura de El Greco. Fernando Pessoa, António Cândido Franco ou Agustina Bessa-Luís são alguns dos autores cujas obras a ensaísta se propõe analisar, sob a perspetiva caleidoscópica inter-artes. 

    Segundo a autora, os Painéis de S. Vicente (1470-1480), pintados sob a égide da cultura ocidental cristã, sancionam o modelo parenético do reino. O mesmo sucede com a edificação de complexos arquitetónicos que contribuem para a mitificação de uma geografia sagrada ou messiânica. De entre os exemplos apresentados na obra, citam-se o Convento de Tomar ou a escadaria do Bom Jesus de Braga, elos que se unem misticamente numa peregrinação que culmina em Santiago de Compostela.

    O Monumento de Mafra erigiu-se a sete léguas da capital do V Império: Lisboa. No imaginário sustentado por Camões, a cidade é celebrada como Nova Roma; António Vieira denomina-a Cidade Eterna, tomando de empréstimo o epíteto a Vergílio, que assim cognominava Roma. Na senda da antiga e mítica portugalidade, Lisboa edificou-se numa área de sete colinas, à semelhança de Jerusalém ou de Constantinopla, referências arquetípicas e simbólicas para os mundos Judaico, Muçulmano e Cristão. Mitologicamente fundada por Ulisses e osculada pelo Tagus, o rio que alardeava areias de ouro, facto anotado por Ovídio e Cervantes, Lisboa é, também, objeto de análise neste livro. O percurso de Belém ao Cais das Colunas evoca uma dupla cartografia: a do império real e a do império mítico que anseia pela chegada triunfal de Dom Sebastião. 

    Muito haveria a enunciar sobre esta obra, que diria enciclopédica. Mas apenas a leitura pode preencher as lacunas deste puzzle que me propus completar. Balzac definiu a Constantia como a virtude da permanência. Emoldurando as artes, de que a literatura é exemplo, Annabela Rita define, de forma douta e refinada, o cânone literário Do que não existe, construindo uma tela que obriga a uma reflexão dialógica entre a imaginação da ficção literária e das artes, em geral.

  • Não pensar: a via para a iluminação

    Não pensar: a via para a iluminação

    Título

    O caminho do Zen

    Autor

    ALAN WATTS (tradução: Alexandra Guimarães)

    Editora (Edição)

    Albatroz (Setembro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Alan Watts foi um filósofo britânico, reconhecido por ter sido um dos primeiros a interpretar a sabedoria do Oriente, incluindo o budismo zen e o taoísmo, contribuindo para a sua divulgação no mundo ocidental. Nascido em 1915 em Chislehurst, Inglaterra, faz 50 anos, a 16 de novembro, que morreu em 1973 nos Estados Unidos.

    Em 1951 mudou-se para São Francisco, onde começou a ensinar estudos budistas, e em 1956 começou o seu popular programa de rádio, “Way Beyond the West”. No início dos anos 1960, já a viver em São Francisco, as suas palestras, na rádio, eram transmitidas a nível nacional e o movimento da contracultura adoptou-o como porta-voz espiritual. 

    A sua abordagem única à filosofia e espiritualidade fez dele um dos pensadores mais populares e amados do seu tempo, sendo este O caminho do Zen um dos seus principais contributos. Esta obra, agora publicada pela Albatroz (original de 1957), é uma leitura muito útil para quem está interessado em aprender sobre a filosofia do Zen e, porventura, a iniciar-se nesse caminho. 

    Tendo em conta que o livro foi publicado na década de 1950, poderá parecer, em alguns momentos, desactualizado. Não tanto pelo tema, ancestral, mas eventualmente pelo interesse que um leitor submerso numa vida pautada pelos valores da produtividade, o trabalho como condição humana, ou pelo flagelo do imediatismo e pragmatismo da contemporaneidade, lhe possa consignar. Nada disto tem lugar no Tao – uma das grandes influências da prática Zen, ainda que pouco ou nada se possa afirmar sobre esta filosofia, pois

    “Aqueles que sabem não falam;
    Aqueles que falam não sabem”
    (pág. 13).

    Pese embora a sua manifesta cautela, Alan Watts explora a tradição filosófica e religiosa chinesa que se concentra no entendimento e na harmonia com o Tao, ou o Caminho, com o objectivo de resgatar a sua influência na prática do Zen – uma escola de pensamento e prática budista que se desenvolveu a partir do Mahayana.

    O autor inicia este ensaio histórico-filosófico descrevendo e explicando o Taoísmo e o Budismo Mahayana. Sempre com a ressalva de que

    “O Tao é algo turvo e indistinto,
    Tão indistinto! Tão turvo! (…)

    A qualidade das fontes a que o autor recorre e o seu trabalho exaustivo sobre a filosofia e espiritualidade orientais tornam esta obra especialmente valiosa. Está bem evidente, ao longo de todo o livro, que Alan Watts tem, como principal objectivo e até mesmo como missão, o desejo de que o leitor sinta curiosidade em pesquisar e pôr em prática alguns dos preceitos do Zen.

    Antes disso, porém, é necessário que nós, leitores ocidentais, ultrapassemos um dos grandes obstáculos à nossa própria compreensão, nomeadamente o pensamento dualista e a linguagem eminentemente classificatória. É neste contexto que o autor contrasta o pensamento oriental com o ocidental, salientando que o taoísmo está relacionado com a espontaneidade e o desapego, tão difícil ao conhecimento convencional do Ocidente. 

    Watts aborda, então, a importância do paradoxo e da não dualidade no Zen, realçando que, muitas vezes, as respostas para as questões mais profundas não podem ser explicadas verbalmente, podendo ser compreendidas somente pela experiência directa.  Isto significa que o caminho do Zen não pode ser descoberto pela aquisição de conhecimento ou pelo pensamento, na medida em que é algo que está além da existência material, por isso, indizível – um dos paradoxos do Zen. 

    Assim, ter como objectivo o “despertar” ou ser iluminado é, paradoxalmente, deixar de tentar alcançar o Caminho – tão-somente por se ter pensado nisso de forma convencional. Para saber o que é o Zen e, sobretudo, o que não é, a única alternativa é a sua prática, a sua experienciação.

    É na parte final do livro que Alan Watts dá exemplos de práticas do Zen e de como a sua vivência e experiência directa – fundamental neste caminho – podem conduzir a uma certa ‘ideia’ de iluminação, independentemente das crenças religiosas. O autor enfatiza, ainda, a importância da meditação como uma prática central no Zen – uma forma de acalmar a mente e alcançar uma compreensão mais profunda da realidade.

    Algumas das artes descritas pelo autor, e por intermédio das quais se pode experimentar o Zen, são o haiku, a caligrafia, a jardinagem, a cerimónia do chá, a pintura e o tiro com arco. Fica o convite.