Etiqueta: Recensão

  • O tradutor, criador ou traidor?

    O tradutor, criador ou traidor?

    Título

    Miséria e esplendor da tradução

    Autor

    JOSÉ ORTEGA Y GASSET (tradução: Pedro Ventura)

    Editora (Edição)

    Guerra & Paz (Janeiro de 2024)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Pelo menos até ao século XVIII, a tarefa da tradução foi altamente elogiada, porque se considerava que se o escritor tinha completa liberdade criativa, o tradutor sofria as amarras do escrito (impostas pelo escritor), exigindo-se que fizesse mais do que substituir as palavras de um para outro idioma. E isso era mais do que um trabalho. Era, e é, efectivamente, uma arte maior.

    Miséria e esplendor da tradução, obra seminal do espanhol José Ortega y Gasset, originalmente publicada em 1937 num diário de Buenos Aires, enquanto ainda estava exilado na França, mergulha na complexidade e nuances do acto de traduzir, mas não vai, longe disso, pela parte técnica, mas sim filosófica e até humanista. É obra para todos os amantes das línguas e da linguagem. E lê-se de um fôlego.

    Contrariando a visão da tradução como uma mera tarefa mecânica, Ortega y Gasset defende, como esplendor, a interpretação e recriação do texto original, mas que se pode transformar – ou traduzir – numa traição (traduttore, traditor) ao escrito original, se na nova língua não forem consideradas as particularidades culturais, históricas e contextuais envolvidas.

    Um dos conceitos-chave discutidos por Ortega y Gasset é o da capacidade fundamental de todas as línguas serem capazes de serem (bem) transpostas noutro idioma, negando a visão tradicional de que algumas línguas são intraduzíveis ou que a tradução inevitavelmente resulta em perda de significado. E isso porque, embora as línguas possam diferir no seu vocabulário e estrutura, comungam uma essência permite a compreensão mútua entre diferentes culturas.

    Contudo, para que tal seja feito com sucesso, Ortega y Gasset explora no seu texto a relação entre tradução e criatividade, envolvendo escolhas estilísticas e interpretativas, de modo a ser transmitido ao destinatário da obra traduzida  algo que seja compreendido face à suas sensibilidades e aspectos culturais.

    Em todo o caso, a ‘radical tradutibilidade’ nem sempre é uma realidade prática, sobretudo quando se trata de expressões idiomática, trocadilhos e conceitos culturais específicos. Ortega y Gasset fornece exemplos curiosos: “Face à nossa paupérrima classificação dos nomes em masculinos, femininos e neutros, os povos africanos que falam as línguas bantas apresentam outra riquíssima: uma destas, há vinte e quatro signos classificadores – quer dizer, frente aos nossos três géneros, nada menos que duas dúzias. As coisas que se movem, por exemplo, são diferenciadas das inertes, o vegetal do animal, etc. Onde uma língua mal estabelece distinções, outra exibe uma exuberante diferenciação. Em jeje há trinta e três palavras para expressar outras tantas formas diferentes do andar humano, do ‘ir’. Em árabe, existem cinco mil setecentos e catorze nomes para o camelo” (pg. 46-47).

    Por esse motivo, mais do que um ser invisível e transparente – que, na maior parte das obras surge, se tanto, na ficha técnica –, Ortega y Gasset defende a figura do tradutor como um intérprete e criador, que deve ser destacado na obra.

    Por isso, de uma forma muito apropriada, e coerente, a Guerra e Paz – que é a primeira editora portuguesa a publicar o ensaio de Ortega y Gasset em Portugal – identifica Pedro Ventura como tradutor (e introdutor) logo na capa.

  • A divina gastronomia das beiras

    A divina gastronomia das beiras

    Título

    Receitas que contam histórias

    Autor

    AA. VV. (org. Associação das Aldeias Históricas de Portugal)

    Editora (Edição)

    LeYa (Novembro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Ler este livro é um castigo, um tormento, ou antes, uma verdadeira Via Sacra, como quem visita todas as capelinhas do Calvário, carregando aos ombros a cruz da gula, em que cada capítulo se revela como um abismo de tentações. Mergulhar na leitura deste livro, e na cornucópia de receitas que nos dá a conhecer, é como entrar de mão dada num antro de perdição culinária. Aqui e ali, são várias as receitas que nos titilam o paladar, quase como um convite para que tomemos o caminho da cozinha e avancemos à descoberta destes sabores beirões.

    O conteúdo deste livro é ditado pela geografia das Aldeias Históricas de Portugal, encontrando-se o dito dividido em duas partes: a primeira intitulada “Receitas que Contas Histórias”, com textos da autoria de Olga Cavaleiro e Marta Gonçalves; e a segunda dedicada ao tema “O Vinho das Aldeias Históricas: História, Tradição e Formas de Consumo”, com texto assinado por Constança Vieira de Andrade, Virgílio Loureiro e Maria Pilar Reis.

    As Aldeias Históricas abrangem um vasto “território repartido pela clássica divisão Beira Alta, Beira Baixa, Beira Central”, que engloba 12 municípios e onde os rios que os atravessam servem como elementos referenciais, “como os vasos comunicantes, agregadores da uniformidade e diferenciadores da diversidade, de um território que encerra dentro de si várias Beiras para além das distinções habituais”: o rio Côa, que liga Trancoso, Castelo Mendo, Sortelha, Castelo Rodrigo, Almeida, Marialva; o rio Mondego e a sua importância para Linhares da Beira e Piódão; o rio Zêzere, unindo Castelo Novo e Belmonte; e por fim, o rio Ponsul, influenciando Idanha-a-Velha e Monsanto. Não só os rios caracterizam e dão corpo às práticas alimentares destes territórios como também o seu “coração telúrico” formado pela Serra da Estrela, da Gardunha, da Marofa, da Malcata e do Açor.

    Para cada aldeia, apresenta-se informação acerca “Da Paisagem”, da “Arqueologia Alimentar”, dos “Patrimónios de um Calendário Alimentar”, “A Matança”, “O Natal”, “O Entrudo, a Quaresma e a Páscoa”, com indicação de “As Receitas do Quotidiano e dos Trabalhos Agrícolas”, onde o “cruzamento da informação documental e dos testemunhos recolhidos junto da população” permitiu “descrever e definir a identidade gastronómica de cada aldeia histórica”, bem como fixar as “singularidades alimentares de um território de modo a criar instrumentos úteis que permitam diferenciar a sua oferta turística”.

    De acordo com as autoras, “mais do que buscar a origem das receitas, o princípio do sabor, importou trazer à luz a emoção de cada receita, procurar o conteúdo que a contextualiza. Sozinha, escrita numa folha branca, uma receita é quase vazia. Acompanhada por um sorriso, ou por um rosto de emoção, a receita conta histórias, acompanha-nos para o resto da vida.”

    No capítulo dedicado ao vinho, somos surpreendidos por um recorrido histórico sobre a implantação da vinha nestes territórios, desde os primórdios até aos dias de hoje, sendo que a “Denominação de Origem Beira Interior ainda não tem três décadas de existência”, com destaque para um rol muito interessante dedicado às principais castas da Beira Interior, revelando todo o seu potencial vitivinícola. Felizmente, ainda há muito para descobrir e inovar.

    Em boa hora se resgata do olvido e se preserva em letra redonda todo este património culinário que enobrece uma região, as suas gentes e a sua transmissão às gerações vindouras. Um trabalho exaustivo, meticuloso, mas ao mesmo tempo humano, de partilha e de cumplicidade, na relação estreita com as pessoas, verdadeiras arcas da memória culinária destes territórios.

    Um livro para ler lentamente, como quem segue confortável a bordo de uma canoa, rio abaixo, ao sabor da corrente, deliciando-se com as histórias que aqueles territórios contam. Um livro com muitos tesouros dentro e, acima de tudo, um legado para o futuro, para que a memória não se olvide e a identidade se reforce. Não esquecer é sempre um acto de resistência.

  • Eça de Queirós, Rússia e Brasil

    Eça de Queirós, Rússia e Brasil

    Título

    Ecos do Mundo

    Autor

    Eça de Queiroz

    Editora (Edição)

    Editora Carambaia, Brasil (2019)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    Um dos maiores escritores da língua portuguesa do século 19 – tinha do outro lado do Atlântico um rival (e adversário?) de idêntico quilate: Machado de Assis -, José Maria de Eça de Queirós (1845-1900) foi também um formidável cronista que por décadas colaborou com inúmeras publicações de seu país e do Brasil.

    A observação implacável dos fatos, calcada em informações idôneas; a construção de perfis de grandes homens públicos; o esquartejamento impiedoso das idiossincrasias de certas nacionalidades e a análise acurada das tendências políticas e comportamentais de sua época; tudo isso – temperado por uma prosa elegante e uma ironia corrosiva – marca as crônicas jornalísticas do criador de Os Maias e A ilustre casa de Ramires.

    Em 2019, a editora Carambaia lançou no Brasil o livro Ecos do Mundo – reunião de 40 crônicas – que nos permite descobrir quanto o trabalho diplomático de Eça certamente contribuiu para que se tornasse o grande articulista que glosou, como fina inteligência e implacável sarcasmo, os principais acontecimentos do seu tempo.

    Essa obra traz artigos que podemos dividir em quatro grandes blocos. No primeiro, temos oito crônicas que fazem referência ao Brasil ou a brasileiros. No segundo, aparecem oito composições sobre a Inglaterra, país no qual o diplomata morou por 14 anos. No terceiro, há mais oito escritos sobre assuntos da França, onde Eça de Queirós atuou por 12 anos. Finalmente, na quarta parte, vêm 16 escritos sobre 13 nações.

    Golpes de tacape

    Ao final da leitura, a primeira pergunta que pode ocorrer ao leitor dos nossos dias é: como Eça de Queirós – ainda que sob pseudônimo – pode escrever o que escreveu sem perder o emprego no Ministério dos Negócios Estrangeiros?

    Sim, porque é incontável o tanto de ferozes e certeiros golpes de tacape que desfere contra civilizações, países, potentados e culturas. Mesmo quando traça um retrato simpático de alguém, como é o caso do Czar Alexandre III da Rússia, Eça não deixa de ser incisivamente crítico.

    “Ora, o Czar é um autocrata onipotente e de uma onipotência sem igual na história, pelo menos na história da Europa civilizada. Mesmo nas grandes civilizações asiáticas, os soberanos não dispõem de um poder tão incircunstrito”.

    Já a fotografia que Eça faz do mais extenso país do mundo é ainda mais vitriólica: “A Rússia é de fato uma velha casa asiática com uma varanda rasgada sobre a Europa… Um pouco do ar da Europa penetra então pela varanda levando o rumor de nossas ideias, de nossas inovações morais. Mas é um ar que mal passa das grades. E quando as portas da varanda se fecham, só há dentro um oriente antigo e muito estranho, que nós não podemos compreender”

    O livro todo

    A inclinação natural de alguém que escreve um artigo sobre Ecos do Mundo é a de pedir ao editor do jornal (hoje, blog) a mera transcrição dos trechos mais surpreendentes, certeiros e divertidos. Ocorre, porém, que esses belos trechos são tão numerosos que, no fim da conta, melhor seria reproduzir o livro todo, crônica a crônica.

    Vamos aqui nos concentrar principalmente na Rússia – onipresente na mídia mundial desde que há cerca de dois anos desencadeou uma “operação militar especial” para “desnazificar” a Ucrânia – e no Brasil.

    Maior que a Europa

    Comecemos por uma análise que Eça faz do trabalho de um jornalista do Times, de Londres, que escreveu sobre vários países da América do Sul, entre eles o Brasil, do qual traça um retrato favorável.

    Transcreve Eça do jornal britânico: “Doze milhões de homens estão perdidos num Estado que é maior que toda a Europa; a receita pública que é de doze milhões de libras esterlinas é muitos milhões inferior à de Holanda e Bélgica; com uma linha de costas de 4 mil milhas de comprimento, e com pontos de uma largura de 2.600 milhas, o Brasil exporta em gêneros a quarta parte menos que o diminuto reino da Bélgica”.

    Mais adiante, o filho de Póvoa do Varzim se refere à Suíça, “que tem dois milhões de habitantes e juntamente os mesmos dois milhões de libras de receita, e vive em condições de prosperidade, de liberdade, de civilização, de intelectualidades bem superiores à tenebrosa Rússia, com seus 80 milhões de libras de receita e os mesmos 80 milhões homens”.

    Populações

    Esses números certamente causam uma grande surpresa nos leitores de hoje porque, como vimos, em 1880 (data da publicação da crônica), a Rússia tinha uma população quase sete vezes maior que a brasileira.

    Porém, enquanto o último censo brasileiro apontou, em 2023, a existência de 203 milhões de habitantes, estima-se que a pátria de Tolstói, Tchecov e Gógol teria agora cerca de 143 milhões de habitantes. Mesmo que possa haver alguma imprecisão nesses indicadores, o certo é em pouco menos de um século e meio a população russa cresceu 80 por cento, enquanto a brasileira multiplicou-se por cerca de 17 vezes. Dito de outra forma: o Brasil tem atualmente a sexta maior população do mundo, enquanto a Rússia fica em nono lugar.

    Aliás, dizem as más línguas que aquilo que os russos mais desejavam, com a guerra que desencadearam em 2022, era incorporar à sua estatística mais 43 milhões de cidadãos (mulheres, crianças e homens ucranianos).

    Economias 

    Ao longo desse tempo, a posição das duas economias também se alterou radicalmente. Nos anos 80 do século 19, a produção russa de riquezas era quase sete vezes maior que a brasileira. Hoje, o Brasil, nona maior economia do mundo, tem um PIB de 2,1 trilhões de dólares, ao mesmo tempo em que a Rússia, a décima-primeira, produz o equivalente a 1,8 trilhão de dólares

    Se nós, brasileiros, temos muitas reclamações quanto ao desempenho do nosso país, que jamais cresce no ritmo que desejamos e consideramos possível, o que podem pensar os russos da sua própria nação?

    O czar mujique

    Eça dedica à Rússia dois longos artigos. No primeiro deles esboça um até generoso retrato do Czar Alexandre III, conservador empedernido que pôs abaixo todas as iniciativas modernizadoras seu pai, Alexandre II, combateu qualquer influência vinda da Europa e agarrou-se firmemente à fímbria do manto da Igreja Ortodoxa.

    Nesse texto, Eça revela que o grande (1m90) Alexandre III preferia a vida familiar à da Corte, veraneava na pacata Dinamarca e pouco frequentava São Petersburgo por medo de seu explodido por uma bomba, como seu pai.

    “Do mujique tinha a robustez enorme e malfeita, o andar bovino, o olhar cismador. Os seus prazeres eram os trabalhos rudes dos homens do campo, em luta com a natureza áspera – desbastar mato, derrubar árvores e rachar lenha”. E, mais adiante, crava um prego: “O imperador substituía a pequenez do gênio pela imensidade da aplicação”.

    Guerras e roubalheiras

    Num dos artigos mais extensos do livro – na verdade, a reunião de seis crônicas escritas entre abril de 1877 e março de 1878, intitulado “Rússia e Turquia” – Eça de Queirós analisa a guerra entre aquelas duas nações.

    Sobram alfinetadas para os dois países em conflito, mas as mais corrosivas são às destinadas aos russos.

    “Outros atos desagradáveis têm sido praticados no exército russo; assim, o comissário-geral dos fornecimentos acaba de ser fuzilado sem processo. Esse funcionário estimável introduziu na farinha uma quantidade de cal que realmente não era possível deixar de lhe meter algumas balas no peito. Uma certa quantidade de cal na farinha, como uma certa quantidade de pau campeche no vinho, são procedimentos razoáveis que dão honra, grandes proveitos e ordinariamente uma condecoração. Mas uma tal porção de cal, que torna a farinha mais própria para pintar paredes do que para fazer pão, é realmente abusivo, e o conselho de guerra foi apenas justo dando àquele funcionário uma disponibilidade… na eternidade”.

    E acrescenta: “As falsificações dos comissários, a vergonhosa qualidade das rações, a insuficiência dos socorros sanitários, a desorganização das ambulâncias, das pagadorias, de tudo; os hospitais apinhados, a imbecilidade visível dos generais – não são condições para aumentar o respeito pelo regime autocrático”

    Talvez relinchando

    A crônica mais hilariante, sem dúvida, vem no bloco brasileiro. Seu título: “Aos estudantes do Brasil: sobre o caso que deles conta Madame Sarah Bernhardt”.

    Deus poupou a divina Sarah (1844-1923) do aprendizado do português porque, caso tivesse lido essa crônica de Eça no original, certamente teria sentido uma forte inclinação para o cometimento de um ato extremado, como o de beber um frasco de formicida. Diretamente no gargalo.

    A grande atriz concedeu uma entrevista tão extensa quanto imodesta ao Fígaro que seu título, segundo Eça, deveria ser: “História da minha missão e da minha influência civilizadora na América do Norte e do Sul“.

    Nela, candidamente, Madame Sarah relata suas viagens pelo mundo. Diz que na sua passagem pelo Canadá “o meu trenó andava seguido e acompanhado por todos os senadores e deputados”. O escritor lusitano deita e rola: “E bem podemos, pois, pensar que as duas câmaras eletivas seguiam Madame Bernhardt funcionando, providas do seu presidente e dos secretários, e da tribuna, e do copo de água…”

    Madame Sarah passa também pela Austrália, onde morre, no palco, em quase todas as peças que interpretava. Registra o português: “De tal sorte que se ela não cessasse de morrer… a Austrália seria hoje uma província da França… onde o último inglês estaria comendo o último canguru à sombra do último eucalipto”.

    Mas o melhor de sua graça zombeteira ele dedica aos brasileiros. Relata dona Sarah que, na sua visita à terra dos tupinambás, “os estudantes arrancavam os sabres e distribuíam cutiladas, porque os não deixavam desengatar os cavalos, meter os ombros aos varais e puxar eles a minha carruagem”.

    Eça descreve o episódio: fecha o tempo na frente do teatro, apresenta-se um policial que quer evitar o ridículo pátrio, mas é ferido pelos estudantes. A esses estudantes o autor se dirige no fecho do artigo: “… depois de duras cutiladas naqueles que vos queriam salvar do humilhante serviço, desengataste as éguas de Sarah, lançaste aos ombros democráticos os tirantes de Sarah, e puxastes a caleche de Sarah, trotando, talvez relinchando!”.

  • O menino que amava o Senhor, seu pai

    O menino que amava o Senhor, seu pai

    Título

    Somos o esquecimento que seremos

    Autor

    Héctor Abad Faciolince (tradução: Margarida Amado Costa)

    Editora (Edição)

    Alfagura (Outubro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Este livro deve o seu título a um verso de um belíssimo poema de Jorge Luís Borges (associado a ele há uma polémica interessante que pode ser lida aqui) que o pai do autor trazia, em manuscrito, no bolso, juntamente com uma lista de ameaçados de morte na Colômbia da época, e que foi salpicado de sangue no dia em que o assassinaram, a sangue frio, na rua, quando se dirigia ao velório de um amigo.

    Somos o esquecimento que seremos é um retrato íntimo de uma família, e descreve uma relação onde pai e filho se idolatram mutuamente; onde o filho mais do que justifica a sua adoração pelo progenitor, mas que parece nunca perceber o que leva o pai a confiar e a gostar de si tão incondicionalmente. Em que o pai é personagem principal e o filho lhe presta um maravilhoso tributo por ter sido, como homem, a todos os títulos, um ser superior. Diz o autor, logo na primeira página:

    O menino, eu, amava o senhor, seu pai, acima de todas as coisas. Amava-o mais que a Deus. Um dia, tive de escolher entre Deus e o meu pai, e escolhi o meu pai.” 

    E, de facto, trata-se de um amor filial enorme em que o autor, único filho rapaz, numa casa cheia de irmãs e outras mulheres, desenvolve numa relação íntima, visceral, com o pai e que não é muito comum ver-se.

    Eu gostava do meu pai com um amor que nunca mais voltei a sentir até ao nascimento dos meus filhos. Quando estes nasceram, reconheci-o, porque é um amor igual em intensidade, embora diferente e, de certa maneira, oposto.

    A 25 de Agosto de 1987, o pai, o médico colombiano Héctor Abad Gómez é assassinado por paramilitares em Medellín, uns dias antes de umas eleições em que era um dos candidatos. Seis balas na cabeça puseram fim a uma vida de luta contra a opressão e a desigualdade social, num país amordaçado pelo narcotráfico e pela política suja.

    Este é, pois, um livro dedicado às memórias, ao pai e a uma época conturbada e de crescente violência política na Colômbia dos anos de 1970 e 80. Duas décadas depois, o filho, um dos mais prestigiados autores da Colômbia escreve esta obra-prima.

    Médico de profissão, o pai de Hector dedicou-se a lutar contra a falta de oportunidades iguais num país mergulhado em violência, desigualdades sociais e violação constante dos direitos humanos. Entre diversos episódios – uns caricatos, que arrancam sorrisos; outros comoventes, capazes de nos levar às lágrimas -, somos apresentados à sociedade colombiana e a outros modos de vida.

    O meu primeiro contacto com o sofrimento não foi em mim, nem em minha casa, mas nos outros, porque, para o meu pai, era importante que os filhos soubessem que nem toda a gente era feliz e afortunada como nós e parecia-lhe necessário que conhecêssemos desde crianças o padecimento, quase sempre devido a desgraças e a doenças associadas à pobreza, de muitos colombianos.

    Do relato verídico contado na primeira pessoa, tecem-se considerações detalhadas (e polémicas) sobre o papel da religião católica na América Latina. Também as correntes políticas — comunismo, socialismo, liberalismo e conservadorismo — têm um destaque primordial, bem como os conceitos de «esquerda» e de «direita», essenciais para a compreensão de todos os factos descritos por Héctor.

    É uma história densa e comovente, desprovida de lugares-comuns. É a história de uma dor que cicatrizou, mas que prevalece. De uma memória que permanece pela força das palavras e que quer evitar o esquecimento de um humanista que viveu em prol dos outros, e para uma sociedade mais livre e justa. E ainda o principal responsável pelo filho que educou e que sempre incentivou:

    Creio que o único motivo por que fui capaz de continuar a escrever todos estes anos e de entregar os meus escritos à imprensa foi saber que o meu pai teria desfrutado mais do que ninguém com a leitura destas páginas minhas que nunca pôde ler. Que não lerá nunca. É um dos paradoxos mais tristes da minha vida: quase tudo o que escrevi foi escrito para alguém que não me pode ler.

    É um belíssimo livro que não se esquecerá facilmente. 

  • Fragmentos que estilhaçam uma obra

    Fragmentos que estilhaçam uma obra

    Título

    As botas de Mussolini

    Autora

    GONÇALO M. TAVARES

    Editora (Edição)

    Relógio d’Água (Novembro de 2023)

    Cotação

    13/20

    Recensão

    Gonçalo M. Tavares é, talvez a grande distância, o mais talentoso escritor da sua geração, o que me coloca aqui numa posição delicada, por sermos praticamente da mesma idade e eu possuir uma modestíssima bibliografia (quatro romances e uns pares de ensaios) em comparação com a sua profusa obra, vastamente premiada e traduzida, transversal a todos os estilos.

    Mas para este caso, pouco importa. Uma obra vale por si, e não pelo passado do seu autor. E, nessa medida, pode afirmar-se que, sendo evidente, em muitas das suas obras, tanto em romances como em ensaios e contos, Gonçalo M. Tavares se apresenta ser sublime, sucede em outros casos (demasiados, e mesmo que poucos fossem, para que um escritor seja genial, como ele poderá ser) que a leitura dos seus textos se mostra desconcertante. E diz-se desconcertante, porque o non sense impera e supera o experimentalismo e mesmo a reconstrução de estilos.   

    Se na última obra que lera de Gonçalo M. Tavares, O diabo, romance sobre o qual se fez uma recensão, já sobressaíam alguns desequilíbrios que manchavam o seu conjunto, neste As botas de Mussolini há talvez um ‘hiper-aproveitamento’ da sua produção. Aparentemente, Gonçalo M. Tavares acha que deve publicar tudo o que produz, e decide fazê-lo; neste caso, parece-me que abusou.

    O ponto de partida desta obra – que aparentemente inicia um conjunto de livros que integrará uma colecção denominada História Fragmentada do Mundo – é interessante: pegar em factos e personagens históricos, que percorrem os séculos, e resumi-los em curtos pensamentos, flashes, fragmentos. Começa aqui o primeiro problema: em muitos casos, só os entendidos (ou que pesquisem à posteriori) entendem aquilo que o autor quer alcançar, como aliás sucede no último texto (talvez o melhor) que dá o título a esta obra.

    Porém, em poucos ou nenhuns destes fragmentos, Gonçalo M. Tavares consegue convencer-nos de que aquilo que escreve tem beleza intrínseca, um estilo que vá para além de matraquear palavras (metálicas, apenas aqui e ali vibrantes), num determinado contexto histórico, mas que acrescentam pouco. Gonçalo M. Tavares ainda tenta, de forma artificiosa, convencer-nos a entrar no seu mundo, na sua cabeça – e sugere-se na contra-capa que esta “prosa sonoramente pensada e partida [é] para ser lida em voz semi-alta”. Mas em muitas partes, tudo saiu forçado.

    Por mais que tenha tentado – e procurado mesmo compreender a própria estrutura dos textos, elencados numa incompreensível versificação –, e até apreciado um ou outro aspecto biográfico focado em certos fragmentos –, esta obra não acrescenta absolutamente nada àquilo que Gonçalo M. Tavares já nos deu. Ao contrário, só desacrescenta. A avaliação surge assim como uma compensação à conta da sua (excelente) bibliografia.

  • Um desassossegado mundo de escuridão e de amor

    Um desassossegado mundo de escuridão e de amor

    Título

    O último minuto na vida de Saramago

    Autor

    MIGUEL REAL

    Editora (Edição)

    Companhia das Letras (Junho de 2023)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    Quem somos? O que somos? Que sorte nos reserva o Destino? Para onde vamos, no fim, quando a noite cai sobre nós, e as folhas, amarelas e esmaecidas, se desprendem das árvores e atapetam o chão, anunciando-nos um percurso desconhecido?

    A epígrafe com que abre o romance – “O último instante da vida é o que revela o sentido e a razão de toda a existência.” (1993: 34) –, retirada da obra In Nomine Dei, remete, explicitamente, para o tema da morte. A morte que a todos ceifa, independentemente da vontade, das riquezas que havemos, ou da influência social que possuímos. 

    Muitas culturas veiculam a importância da passagem da alma para o outro lado. Segundo a tradição clássica pagã grega, as almas eram transportadas num barco que atravessava os rios Estige e Aqueronte, no reino de Hades, deus dos Infernos. Irmão do Sono (Hipnos) e da Morte (Thanatos), o velho timoneiro tinha por nome Caronte. Entre nós, enquanto tradição judaico-cristã, Gil Vicente mescla as crenças suprarreferidas, expondo, alegoricamente, o momento em que as personagens em cena acabam de expirar. No cais, as barcas do Anjo e do Diabo aguardam as almas recentemente falecidas para as conduzirem ao Além, de acordo com o seu comportamento e as atitudes reveladas enquanto seres viventes. Inúmeras outras crenças aludem a um julgamento pós-morte, em que as almas são obrigadas a confrontar-se com os seus erros ou com as suas boas ações. Entre os egípcios, Anúbis e Hórus tinham por incumbência levá-las para a Sala da Dupla Justiça, onde o supremo Osíris, Máat (deusa da verdade e da justiça) e quarenta e dois juízes julgavam as ações dos recém-falecidos (LAMAS 1972-73). 

    Paul Ricœur (t.II, 1984 : 145) chama a atenção para o romance hodierno, cuja voz narrativa tende a converter-se numa pluralidade de centros de consciência irredutíveis a um denominador comum. Numa oscilação contínua entre o delírio e a realidade, o romance de Miguel Real subverte, parodicamente, a circunstância de revisão íntima da existência. A personagem José Saramago visualiza, num fio de consciência ininterrupto, o ecrã que projeta a sua vida, o seu passado, mas numa idealização ante-mortem, i.e., revê a sua existência como se de uma projeção se tratasse, num dialogismo com a vida – a real (ainda que ficcionada) e a ficcionada (agora tornada real). 

    Na esteira da narração de um ser que, ante a iminência do fim, para apaziguar a alma das dores corpóreas da enfermidade que o mina, redige as lembranças que abarcam a sua duração existencial, como sucede em Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar, o narrador deste romance memorialístico apresenta, in ultimas res, uma ótica especial – a sua. O discurso enunciativo – autodiegético – vai, assim, expondo e revelando ao leitor uma análise dicotómica das experiências vivenciadas: as que habitam o seu universo interior e as que têm ancoragem real e pulula(ra)m o (seu) universo exterior.

    O livro em foco expõe, como dissemos, o momento que antecede a morte. Uma morte concreta e particular. Não nos deparamos, todavia, com uma perspetiva irónica e humorística, como a veiculada em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Nem com visões místicas, excecionais, sem suporte real, como as recriadas nas telas de Hieronymus Bosch, Marc Chagall ou Paul Gauguin. Ao invés. Deparamos com (um)a recriação de um universo íntimo, que nos faz seguir o caminho dos sonhos – por mais empedernidos se mostrem –, aquele que nos acompanha do nascimento à morte, e revisita oitenta e sete anos de uma vida comprometida com a escrita literária e a denúncia da injustiça social.

    Logo na segunda página do livro, os pensamentos do protagonista demonstram a negrura que tinge os apressados segundos que antecedem a sua partida do mundo terreno. Na esteira de antigos filósofos, como Lucrécio, para um ser ateísta e descrente, o fim surge envolto num niilismo irredutível. Mais trágico que o apresentado na Bíblia, o livro dos livros, que anuncia a morte, a moldura do nada – o pó a que retornamos. Porque os humanos são seres-para-a-morte, como sublinha o filósofo Martin Heiddeger : “a morte é isto, um túnel de forro preto que envolve o meu corpo, acolchoando-o” (2023: 14), lemos no enunciado que descortina o pensamento de Saramago.

    Perante o relativismo aristotélico que albergava a noção de verosímil como categoria estética e convencional, o lugar da literatura revela-se, na contemporaneidade, como um hipotético discurso de “verdade” ou de “realidade autenticamente real” (YVANCOS 1993: 65) . Obra caleidoscópica, o romance em foco apresenta em revista a vida de Saramago, em que, sob a pena de Miguel Real, o escritor galardoado com o Prémio Nobel da Literatura reflete (sobre) o seu último minuto de vida – a vida (re)criada que se contempla ao espelho da vida real. O autor deste romance-memória obriga-nos a saltitar pelas recordações e a invadir o(s) pensamento(s) da personagem: José Saramago criança – serralheiro – empregado de escritório – editor – tradutor – jornalista – militante do PCP – escritor. E homem apaixonado.

    Está dado o mote para a construção de uma diegese que denota uma investigação aturada, minuciosa, repleta de elementos que mesclam vida e arte – a vida de José Saramago e a arte de Miguel Real refletindo e igualando a de Saramago. De facto, o autor deste romance entretece com palavras a riqueza das pequenas memórias – afinal, tão incomensuráveis – albergadas no coração de Saramago. Numa focalização interna, o discurso evidencia o pensamento, os sonhos e o engenho do escritor agonizante. A trama narrativa, entrelaçada num dialogismo inextrincável, sustenta a relação diádica José Saramago-Miguel Real, num jogo de escrita que patenteia a arte literária do autor em destaque e a de Miguel Real, que imita – numa extraordinária perfeição – a poética saramaguiana. Não obstante a mestria literária evidenciada na e pela criatividade da pena de Miguel Real, e em termos estilístico-formais, o livro impressiona, ainda, pela diversidade de temáticas: as memórias infantis de uma vida pobre e esforçada em Azinhaga, no Ribatejo. As questões ideológicas e políticas vivenciadas por Saramago. As ideias por que lutava. As recordações felizes associadas a Lanzarote. 

    Um dos elementos fulcrais na construção da narrativa diegética remete para o vínculo que une José Saramago e Pilar del Río, a esposa dedicada do autor moribundo, cujo nome próprio evoca o seu grande pilar, num percurso afetivo calcorreado por ambos: “os lábios da Pilar tocam os meus, a minha consciência reorganiza-se, ordena-se e emerge a ideia, aquela ideia nova sustentáculo dos meus romances” (2023: 155). É, indiscutivelmente, um percurso de sólido companheirismo. Um percurso alicerçado no e pelo amor. Ciente dessa proximidade, e sensível a essa teia de amor edificada ao longo dos anos, o autor do romance amalgama criador e criatura(s), num claro jogo intertextual: a afeição de Blimunda Sete-Luas e Baltasar Sete-Sóis traduz(-se), afinal, (n)a inabalável relação amorosa de José Saramago e Pilar del Río. A simbiose que o romancista Miguel Real edifica e constrói entre Blimunda e Pilar encontra-se magistralmente concebida. Trata-se, pois, de um encontro mais-que-feliz: “sinto a fragrância do perfume da Pilar” (2023: 14); “esboço o último sorriso da minha vida, desejo tranquilizá-la, à Pilar, ela percebe, afaga-me o rosto com mão de Blimunda-Madalena-Mulher do Médico” (2023: 154). 

    Tudo isto surge configurado no livro de Miguel Real que agora vem a lume. Porque o último minuto de vida de cada ser, o seu estado de alma, influencia a passagem para o Além, Pilar deseja que o esposo-romancista-lutador morra como viveu: desassossegado, protestando contra “um mundo de escuridão” (2023: 157). O tempo que, impiedosamente, urge na vida de Saramago – o último minuto –, afagado pelo amor de Pilar del Río, determina a sua partida, e parece-nos ecoar, numa convocação tímida e em surdina, as longínquas palavras de sua avó. Não obstante as agruras dos dias e do trabalho árduo – o mundo de escuridão que a memória do neto evoca –, a velhinha ribatejana enaltecia a existência com a ingenuidade dos simples que veem aproximar-se a hora da caminhada em direção ao éter florido: “O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer” (in Pequenas Memórias, 2006: 120). 

    Talvez por influência sua, ou devido à arte demiúrgica de Miguel Real, no preciso momento em que a alma – ou a vontade –, se desprendeu do corpo de Saramago-Sete-Sóis, não se evolou para o céu, nem subiu para as estrelas, porque à terra pertencia, e a Pilar-Sete-Luas

  • Há alguém que sobreviva à guerra?

    Há alguém que sobreviva à guerra?

    Título

    Libertação

    Autor

    SÁNDOR MÁRAI (tradução: Piroska Felkai)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Outubro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Sándor Márai nasceu em 1900, em Kassa, então parte do Reino da Hungria (actualmente Košice, na Eslováquia), sendo considerado um dos grandes escritores húngaros do século XX. Desde cedo terá demonstrado o seu talento para a escrita, tendo publicado, ainda na adolescência, os seus primeiros poemas e contos em revistas locais. Em 1920, mudou-se para a capital da Hungria, Budapeste, onde trabalhou como jornalista e crítico literário.

    A sua obra, diversa e vasta, é constituída por romances, contos, peças de teatro e ensaios, sendo reconhecida pela profundidade psicológica – ainda que ignorada e mesmo banida na Hungria, dada a sua crítica ao regime comunista de então. O descontentamento de Sándor Márai com o regime político levou-o a sair do país. 

    Viveu algum tempo em Palermo, Itália, onde terá escrito algumas das suas obras mais conhecidas, como por exemplo, As velas ardem até ao fim, publicado pela Dom Quixote, tal como este Libertação. Posteriormente, mudou-se para os Estados Unidos, onde se suicidou, em 1989. Só então, Márai voltou a ser aclamado como um dos maiores escritores húngaros de todos os tempos. Em 1990, foi-lhe concedido, postumamente, o Prémio Kossuth.

    Em Libertação, Sándor Márai conta a história de Erzsébet, uma jovem estudante húngara, que luta pela sobrevivência durante o cerco de Budapeste, no fim da Segunda Guerra Mundial. A sua experiência é um testemunho fascinante, porque intenso, e arrepiante, porque verdadeiro, sobre o período que marca o fim da ocupação de Budapeste pelos nazis e a chegada das tropas soviéticas – a salvação?

    Sem muitas informações sobre a personagem principal e o seu pai, um cientista perseguido, e o seu namorado foragido, o cenário é lúgubre – como teria de ser uma cave fétida onde estão escondidas, talvez, centenas de outras pessoas perseguidas.

    “Talvez”, pela ambivalência referida. Como é a vida dos que fugiram com uma mala e perderam quase tudo e todos, inclusivamente a sua dignidade, para se protegerem das explosões, da destruição provocada pelos combates, do genocídio dos judeus? É uma espera, inflamada pela leve esperança de sobreviver, numa co-“habitação” frágil e que fragiliza, num espaço subterrâneo sem mais nada que tantos outros também à espera da libertação – serão, os soviéticos, os salvadores?

    A sua chegada é aguardada sem saber-se quem são afinal, se amigos ou inimigos. A incerteza que corrói e pode apagar o que resta de humanidade de quem perdeu tudo e todos.

    A entrada do primeiro soldado russo na cave é intensa; como todo o romance, aliás. O realismo verosímil torna o leitor activo na leitura. É obrigado a refletir sobre os dilemas morais com os quais a humanidade continua a deparar-se: o que é a guerra? O que acontece depois da guerra? 

    Dizemos que outras guerras, numa forma contínua de destruição da humanidade, do planeta – enfim, uma autofagia que, para o comum dos mortais, continua, também, incompreensível. Até deixar de o ser, porque certamente deixaremos de existir.

  • Um quarteto (e uma voz) a zurzir no país

    Um quarteto (e uma voz) a zurzir no país

    Título

    Assim se faz em Portugal

    Autores

    LUÍSA COSTA GOMES, FILIPE HOMEM FONSECA, AFONSO CRUZ E MANUEL MONTEIRO

    Editora (Edição)

    Minotauro (Outubro de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Assim se faz Portugal, editado pela Minotauro (chancela da Almedina), nasce de um Podcast da TSF com o mesmo nome. Na verdade, este livro é a versão ‘encadernada’ dos episódios que foram para o ar, diariamente, entre Março e Julho deste ano. Em cada um deles, Maria Rueff disserta sobre o país, fazendo uso da sátira e a caricatura – algo que faz como ninguém –, à crítica social mordaz. Contudo, as palavras da humorista não são da sua autoria, mas sim dos quatro escritores que agora assinam este livro. 

    E se no programa de rádio, Maria Rueff empresta a sua voz aos textos deste ‘quarteto fantástico’, na versão literária ficou apenas encarregue do prefácio. Ou será que não ficou? Como o leitor rapidamente descobrirá, a prosa não é o seu dom, e é, assim, logo no prefácio que se introduz a tónica humorística, desenganando-se quem espera ler um texto escrito pela mão de Rueff.

    Digamos que se Maria Rueff foi quem deu a voz na TSF, as ‘suas’ palavras não saíram de desconhecidos nem de ghost writers, mas vieram sim de um quarteto bem estabelecido no mundo nas Letras.

    Luísa Costa Gomes é uma conhecidíssima escritora que dá cartas em estilos tão variados como os romances, crónicas e contos, tendo recebido alguns prémios, onde se destaca o Prémio de Ficção do PEN Clube.

    Filipe Homem Fonseca, ao título de escritor soma ainda os de argumentista, dramaturgo, humorista, músico e realizador. Também já escreveu para diversos géneros de produções audiovisuais, desde séries de televisão a documentários, e é autor de dois livros de poesia.  

    Manuel Monteiro, que é um dos novos colunistas do PÁGINA UM [e, portanto, aqui se faz um disclaimer], é escritor e um destacado revisor linguístico, tendo criado a Escola da Língua. Um dos últimos livros que publicou debruça-se sobre um tema já por diversas vezes falado neste jornal, e chama-se Sobre o politicamente correcto. Para nosso deleite, recupera este assunto também neste Assim se faz Portugal.

    Já a arte de Afonso Cruz é sobretudo a escrita de romances, alguns premiados, e dos quais se destacam as obras Para onde vão os guarda-chuvas e Jesus Cristo bebia cerveja.

    Por tudo isto, e por este leque, Assim se faz Portugal é, sobretudo, tal como o programa da TSF que lhe corresponde, um livro de entretenimento caricaturando a sociedade portuguesa. Constitui um exercício de nos olharmos ao espelho e rirmo-nos; e que os autores fazem belissimamente, com inteligência, perspicácia, sagacidade. Como não poderia deixar de ser, sempre num português majestoso.

    Com um sentido de humor afiado, estas reflexões incidem sobre as mais variadas questões sociais e culturais, ou até políticas; por vezes, todas estas dimensões, inevitavelmente, se misturam.

    Garantindo que não existe da nossa parte qualquer favoritismo em relação a Manuel Monteiro por ser nosso colaborador, temos de lhe fazer justiça: as suas crónicas sobressaem pela pertinência, e, qual lufada de ar fresco, destoam da linha mais ‘politicamente correcta’ que perpassa por alguns dos outros textos. Eis o que ele escreve sobre a figura muito representativa de “O moderninho digital”:

    O moderninho digital não procura informação para formar ideias. Ele forma ideias para procurar informação.
    O moderninho digital é um ser espantoso: ele reproduz acriticamente o que ouve da sua tribo e simultaneamente jura que tem pensamento próprio
    ”. (pág. 106).

    Manuel Monteiro também se lança à “higienização em curso” que levou à recente censura, por exemplo, dos livros de Roald Dahl, e à qual não escaparam as palavras “mãe” e “pai”.

    Quase nada ficou por passar a pente fino por este divertidíssimo quarteto. Desde a linguagem (e o linguajar), à inteligência artificial (e a estupidez natural), e da espuma dos dias às bizarrices dos seres humanos (e em particular dos portugueses, ou de algumas camadas da juventude).

    Apenas se lamenta algumas ocasiões em que a crítica vai no sentido mais “fácil”, isto é, na linha do que convenciona a moral vigente. Um exemplo disso é esta passagem, pela mão de Afonso Cruz:

    Continuamos a assistir a inúmeras desigualdades cuja existência é vergonhosa. Nalguns casos, como a fome, a guerra e a miséria (…)”. (pág. 100).

    Não é de chocar que o tema das desigualdades venha à baila quando se faz crítica social, mas não deixa de ser uma matéria tão ‘mastigada’, que se torna enjoativa; porquanto, este tipo de homílias sobre as injustiças e agruras da vida, já nós ouvimos todos os dias: na comunicação social, na política, e por essas redes sociais fora. Repisar estes assuntos quando se faz sátira é uma opção válida, mas não é irreverente; lembra os humoristas de hoje a condicionarem-se pelo discurso polido que alguns querem impor.

    Em conclusão: foi uma ideia iluminada, a de ‘transformar’ a rubrica radiofónica numa versão a ser lida. Para quem ainda possa ter prendas de Natal em atraso, esta é uma sugestão sólida.

  • Conta-me como foi, diz-me como é

    Conta-me como foi, diz-me como é

    Título

    Sobre a ganância, o amor e outros materiais de construção

    Autor

    FRANCISCO KEIL DOAMARAL 

    Editora (Edição)

    Estúdio Lisboa (Novembro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Mais pertinente e oportuno este livro não poderia ser.

    Se a decisões singelas de design limpo com uma comunicação impactante faço a devida reverência, não é menos verdade que, pelo simples facto de recuperar as palavras do arquitecto Francisco Keil do Amaral (1910-1975), a editora e a sua equipa editorial está de parabéns pelas subtilezas e pelo respeito que presta nesta homenagem ao autor em voz própria.

    Compilando diversos textos do pai do Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal – O Problema da Habitação, Sobre a ganância, o amor e outros materiais de construção, O problema da habitação em Portugal: generalidades e, finalmente, a entrevista publicada no jornal Diário de Lisboa, Ano 28.º, n.º 9389, 18-1-1949 – com o prefácio de Ana Tostões a garantir o enquadramento necessário e com as qualidades académicas que já lhe reconhecemos, este livro vem preservar comunicações essenciais de um homem e de uma geração de ouro, que fez da arquitectura portuguesa a poesia materializada que devemos honrar.

    As estampas originais, que acompanhavam alguns dos textos reunidos, são omitidas por uma razão singela – embora me surja a dúvida se deveria ter sido feito: mostrar a contemporaneidade das reflexões do autor. Facto que apreciarei a cada instante dos diferentes textos apresentados.

    O livro, como aliás a comunicação do Keil do Amaral o garante, é de leitura escorreita, pejado de ironias elegantes e humor sagaz. Apresentado de forma cronológica com a excepção da entrevista final, deve ser lido com noção de contexto, ponderada quer a lucidez do autor, quer o optimismo romântico que não tinha como antever o século que hoje vivemos; quer a frustração do mesmo ter de resistir ao atavismo de um regime que engoliu toda a sua vida adulta e profissional. Keil ficou como um dos grandes nomes da arquitectura portuguesa, tendo podido viajar e impressionar-se com o mundo – por fora – e a portugalidade – vista de fora –, era incisivo e mordaz em procurar sacudir os seus colegas ou as figuras institucionais, porque “a relação de empatia se sobrepõe à abstração” (p. 12).

    No primeiro texto – “O problema da habitação” – escrito em 1945, temos a primeira omissão das estampas que, em nota introdutória, menciona remeterem-se às “cidades satélites” de Manchester e Paris, às “habitações para solteiras e para pessoas idosas” em Wythenshawe (Manchester) e às “cidades-cooperativas” na proximidade de Berlim e Copenhaga. Foram então excluídas da edição para permitir uma leitura mais directa do conteúdo textual, prendendo à imaginação do referencial imagético dos tempos de aqui, agora, e não do passado.

    Nesta situação, sugeriria que se ilustrasse os mesmos locais à data de hoje em paralelo com então, para verificarmos o que nos evoca. Para sabermos se sobreviveram ao teste do tempo ou às provações da especulação desenfreada.

    É-me inevitável querer vocalizar as palavras do próprio autor, seja pela minha indispensável humildade e concordância, seja pela noção de que, mesmo no que questione, não tenho porque argumentar com ecos desta magnitude. Servem os ecos para nossa reflexão actual, para levantar do chão o testemunho deixado e, espero eu, abrir o apetite à aquisição do livro.

    E, por isso, atentem então na contemporaneidade referida:

    Jovens, em véspera de constituir família, queixavam-se amargamente da falta de pequenas habitações feitas à medida das suas necessidades e das suas posses. Eram dos mais impacientes e tinham razão. Casas não as havia realmente, e a impaciência justificava-se porque o amor confere todos os direitos, mormente o de não saber esperar…

    Casais a quem a família aumentara e para quem a residência se tornara insuficiente, lamentavam-se do preço proibitivo das casas maiores e deixavam-se ficar, apertados, com os filhos sujeitos a uma promiscuidade nada recomendável…

    Pequenos funcionários e empregados de escritório clamavam contra a desproporção inconcebível entre os seus vencimentos e as rendas que se exigiam. (p. 17)

    Talvez seja o meu temperamento nostálgico, mas se não é isto motivo suficiente para ir “ouvir” este grande senhor, em comparação com toda a verborreia que entope os canais de opinião sobre aeroportos actualmente…:

    Os noivos asseguravam que o assunto ficaria arrumado logo que se fizessem uns tantos prédios de «appartements» ou de pequenas habitações; outros consideravam suficiente uma legislação que fixasse limites máximos para as rendas; outros, ainda, atribuíam à Municipalidade uma desenfreada especulação sobre os terrenos, e afiançavam que tudo se consertaria desde que cessasse tal prática – origem primária de todos os males; ainda outros… mas basta de exemplos que nos levariam longe sem vantagem. Ingenuamente, reduzindo os problemas à bitola do «seu problema», confundindo causas com efeitos, mas cheio de boa fé e de boas intenções, o portuguezinho valente não se cansava de procurar remir esta penitência a que se via condenado.

    Entretanto, os gaviões do negócio, tocados por esse coro de lamentos, decidiram lançar uma boia de salvação à classe média desamparada, propondo-se construir e fornecer-lhe casas em certa abundância. E com aquele desinteresse que os caracteriza, fazendo ressaltar até que a obra tinha uma feição francamente humanitária, começaram por pedir facilidades e mais facilidades – isenção de contribuições, terrenos baratos, entorses às boas regras da higiene e da intimidade, etc., etc. – para que os capitais a investir na empresa (por pura e desinteressada filantropia, nunca é demais recordá-lo) tivessem um beneficiozinho de 20 ou 30 por centro. Faltam as casas mas não as boas almas, neste nosso ameno e florido rincão! (p. 18)

    A análise – e como já comentei, a deliciosa ironia – é brilhante, límpida e – de novo insisto – profundamente contemporânea. Adiantando ainda que já então existia um completo divórcio entre a população e aquilo a que se chama o país. O País enriquecera, sofrera uma dominação estrangeira, recobrara a independência, tornara a dispor de fabulosas riquezas, e a grande maioria dos habitantes continuava inalteravelmente a sua pobre rotina. Dir-se-ia que Portugal e os portugueses eram duas coisas distintas e independentes. (p. 32)

    Dir-se-ia que – se oportunidade tivesse eu de viajar no tempo para gracejar com o autor – se calhar, só por aqui, assim de forma pequenina e simples, concluir que o direito à habitação clamado – ainda hoje – mais não é que o direito ao país; mais não é que o direito à suposta nação prometida na sua fundação, restauração e depois ainda em 1910, e novamente em 1933 e depois de novo em 1974… Será logro? Estamos todos à espera.

    No segundo texto que dá título ao livro – e que boa escolha foi – de 1969, de novo as estampas com referência às barracas e seus habitantes em 1962, lotes de urbanização em arredores de Lisboa e demolição de edifícios em bom estado para dar lugar a prédios com maior capacidade de ocupação, foram omitidas, para que não se julgue que o fenómeno está datado.

    Mas, e por isso não dou nota máxima a este livro, porque não ir mais longe e, mais que omitir as estampas – arriscando assim a não conferir adequado contexto às palavras do Keil, assim como fulcral testemunho histórico – apresentá-las sempre e procurando equivalente contraponto contemporâneo?

    Assim mesmo, de chofre, lado a lado a foto do passado e do presente; admitindo o papel crítico desta edição e da arquitectura como crítica, pois que também o deve ser, mesmo que com recurso a palavra e não a alvenaria, pois que a palavra é muitas vezes pedra emparelhada do pensamento, e quem melhor que o arquitecto – e este arquitecto – para edificar um raciocínio que observa o mundo e seus contornos? (Ai o ego e a barriga de um arquitecto, perdoem o ventre inchado de optimismos utópicos, mas se derem uma volta pela Charneca da Caparica julgam que não mais vêem barracas? Julgam que passear por Portugal é pêra doce?)

    Mesmo que não falemos de barracas, falemos de dormitórios, colmeias humanas onde agora se penduram apêndices vários da suposta casa máquina das varandas e janelas, marquises, lavandarias e fogareiros (as pessoas vivem como podem):

    Amadora, Queluz, Moscavide, Almada, Odivelas!… E a Pontinha, e a Damaia, sem falar na Quinta da Brandoa e noutros núcleos do género!

    Já passaram por lá ultimamente?

    Que desolação! Que secura! Que desamor!…

    Desamor é o termo justo, adequado. (…)

    Não são bairros onde decorre aprazivelmente a vida de agrupamentos humanos; não são conjuntos de habitações, a que alguém se possa afeiçoar. São negócios em cimento, tijolo, rebocos e tintas Robbialac de cores sortidas (para tornar Portugal mais alegre!). São armazéns de gente, gavetões-ossários de famílias vivas… (p. 52)

    No último texto, antecedendo a entrevista de 1949 que remata o livro, reencontramos “O problema da habitação em Portugal: generalidades” mas já em 1973. Já um certo cansaço, mas o engenho de arquitecto a reformular a equação e as variáveis do problema com a mesma clareza.

    Quando salientei a convicção de que não poderiam ter resolvido o problema de uma forma cabal e completa, queria referir-me concretamente à circunstância dele não ter uma base estática, isto é: cujas premissas, uma vez definidas, se mantinham inalteráveis. Mas elas evoluem, permanentemente. Aos «deficits» de casas em 1930 vieram somar-se os «deficits» decorrentes do aumento geral da população e da criação de novas famílias; e a esses os das casas que foram demolidas para permitir negócios; e a esses os resultantes das necessidades da descentralização urbana e da revitalização do território; e a esses os que advieram da elevação do nível cultural, de ambições e de hábitos… (p. 68)

    E a estes, o da gentrificação, o da saúde mental, o dos confinamentos forçados por um Estado que engorda de autoritarismo com açúcar e canela frito em óleo a ferver ou da ironia do confinamento laboral numa era de trabalho a partir de casa, ligado às máquinas em calculadoras de ecrã azul e fibras ópticas, enquanto faz login a horas certas e logout a horas impróprias. Trabalho remoto, comando remoto, comandado remotamente.

    Em conclusão, e para evitar copiar aqui mais do livro, sem dúvida uma edição feliz, que honra um legado, em tempos menos carinhosos, mais gananciosos, uma prova de amor.

  • A censura como gatilho da demência

    A censura como gatilho da demência

    Título

    Tivemos de remover este post

    Autora

    HANNA BERVOETS (tradução: Maria Leonor Raven)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Outubro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    A cotação para este romance não é mais alta por causa do seu final. Além de nos deixar a ‘salivar’, ficamos mesmo com a sensação de que falta alguma coisa – portanto, mais spoiler que isto não é possível. Com certeza que os leitores compreenderão o referido, sendo igualmente certo que, só por isso, a curiosidade já estará estimulada. 

    O título é, desde logo, atractivo para os leitores interessados pela censura que se realiza aos conteúdos das redes sociais. No caso deste curto, mas intenso, romance, a rede social é a Hexa – mas poderia muito bem ser o Facebook, se se tratasse da realidade. Na verdade, a autora baseou-se na sua investigação sobre as condições de trabalho de moderadores de conteúdos a nível mundial, recorrendo a estudos, documentários e outras fontes – muitas delas referidas no final do livro.

    Sendo uma obra de ficção, a semelhança com a realidade é de tal modo profunda que a verosimilhança nos deixa estupefactos. Desengane-se, porém, quem pense que encontrará relatos minuciosos de violência das fotografias ou dos vídeos mencionados ao longo da história. Ainda que a visualização de todas essas imagens seja uma das causas dos distúrbios dos trabalhadores, o seu eventual e consequente desequilíbrio mental está associado às condições em que têm de realizar as suas tarefas de moderação dos conteúdos – e este é o âmago da história.

    Este romance psicológico narra a história, na primeira pessoa, de Kayleigh, uma jovem que trabalhava como moderadora de conteúdos de uma rede social, Hexa. É, portanto, uma versão pessoal, em modo confessional – uma carta ao seu advogado, o senhor Stitic –, sobre uma série de acontecimentos vivenciados e interpretados pela personagem, cuja lucidez é questionável, dadas as circunstâncias e pressão laboral em que vive.

    O seu trabalho, a aprovação ou não de conteúdos, decorre da questão diária:

    “Isto pode ficar na plataforma? E de contrário: Porque não? Essa última pergunta era a mais difícil. Um texto do tipo «Todos os muçulmanos são terroristas» não está autorizado pela plataforma, porque os muçulmanos são uma CP, uma ‘categoria protegida’, tal como as mulheres, os homossexuais e, acredite ou não, senhor Stitic, os heterossexuais. Por outro lado, a frase «Todos os terroristas são muçulmanos» já está autorizada, porque os terroristas não são uma CP e, além disso, ‘muçulmano’ não é um termo insultuoso. (…) Se selecionássemos a categoria errada, a avaliação era considerada incorreta, mesmo que houvesse razões para esse post ser removido” (pp. 18-19).

    É a sua paixão e obsessão por uma colega que desencadeia o gatilho para o colapso, que não é exclusivo da jovem. Pelo contrário, a narrativa que nos envolve de início ao fim é só mais uma evidência da crise psicológica generalizada (também pelas muitas situações de exploração e stress laboral) que se vive actualmente.

    Lido de uma assentada, este romance é uma visão muito próxima da realidade – assustadora – que, além de nos assoberbar, nos distorce ao ponto de deixarmos de questionar quem somos, para começarmos a perguntar o que podemos e devemos esconder e censurar.

    Hanna Bervoets é uma escritora e jornalista neerlandesa. Nascida em 1984, em Amsterdão, estudou Jornalismo, tendo sido colunista do jornal De Volkskrant (2009-2014), onde escrevia sobre os perigos do digital.

    Em 2020, recebeu o prestigiado Prémio Frans Kellendonk pelo conjunto da sua obra, que inclui os títulos Of Hoe Waarom, Lieve Céline (adaptado ao cinema), Alles Wat Er Was (2013) e Ivanov (2016) – que terá recebido elogios pela exploração inovadora de temas como a inteligência artificial.