Etiqueta: Recensão

  • A maldição da casa assombrada

    A maldição da casa assombrada

    Título

    Caruncho

    Autora

    LAYLA MARTÍNEZ (tradução: Guilherme Pires)

    Editora (Edição)

    Antígona (Março de 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Carancho é, sobretudo, uma história de fantasmas enterrada num armário familiar carregado de esqueletos e pecados. As narradoras são uma avó e uma neta que se vão revezando capítulo, após capítulo. Mas há outras duas mulheres presentes na história, as mães de ambas que várias vezes são recordadas também por ambas.  Mas a personagem principal é a casa. Uma casa assombrada. Uma casa que respira. Uma casa que contém corpos e segredos. Uma casa que é visitada por fantasmas, por anjos que revestem o telhado como insetos e por santos que queimam os lençóis com as suas auréolas. As quatro gerações de mulheres estão presas à casa, cercadas de fantasmas e de anjos insectóides.

    A casa fica perto de uma aldeia presa pela pobreza, na aldeia muitas mulheres presas no purgatório da falta de poder e da violência contra os seus corpos e uma armadilha mortal: a raiva que se vai instalando nos seus corações, por vezes incontrolável, e que penetra nas entranhas e não deixa dormir nem as personagens, nem a nós, leitores que, de algum modo, nos sentimos presos na casa. Quando se começa a ler o livro também bate a porta atrás de nós prendendo-nos na narrativa claustrofóbica e perturbadora. “Quando passei a soleira da porta, a casa precipitou-se sobre mim. Este monte de tijolos e sujidade faz sempre a mesma coisa, lança-se sobre qualquer pessoa que atravesse a porta retorce-lhe as entranhas até a deixar som fôlego. A minha mãe dizia que esta casa nos faz cair os dentes e nos seca as vísceras. “

    Como diz Rachael Conrad, “este livro tem TUDO: traumas geracionais, maldições, assassinatos, bruxas, santos, anjos que parecem louva-a-deus, fantasmas, imagens profundamente perturbadoras que ficarão comigo por muito tempo e é, possivelmente, uma das casas mal-assombradas mais vingativas e furiosas, na literatura. Caruncho é profunda e maravilhosamente perturbador.”

    A avó e a neta são movidas a ódio. Na aldeia chamam-lhes bruxas. A forma como se tratam uma à outra é de uma violência incomodativa. “A avó não estava lá. Também não estava debaixo da mesa da cozinha nem dentro da despensa. (…) Velha de merda. Arrastei dali a velha, sentei-a na cama e sacudi-a pelos ombros. Algumas vezes funciona, outras não, desta vez não funcionou. Arrastei-a para o corredor, abri a porta do quarto, empurrei-a lá para dentro e tranquei-a. Nesta casa todas as portas podem ser trancadas pelo lado de fora.”

    É, pois neste tom que ambas as personagens nos vão fazendo uma novela de dimensão sobrenatural mas também nos fazem um retrato da guerra civil espanhola, e da posterior razia franquista “quando tudo se transformou em fome e poeira” e das recordações de ambas as protagonistas que são “coisas piores do que os mortos que surgem do nada”. Homens que vão para a guerra e não regressam, homens que não querem ir para a guerra e se escondem, uma família rica da aldeia, os Jarabos, que sofre com as maldições que a avó e os seus santos lançam sobre ela, e que espera, ainda que inconscientemente, a punição das mulheres da casa. O casamento da avó com o capataz dos Jarabos, Pedro, que termina com a sua misteriosa morte, e o emprego da neta como criada que tem um desfecho trágico com o desaparecimento de uma criança que apenas aprofunda a ruptura familiar, a má fama das mulheres e o drama de todos os que de algum modo são envolvidos na história e na maldição. Nós, leitores, somos alguns deles porque o livro cola-se-nos à pele e não o esquecemos facilmente.

  • Da monotonia à liberdade

    Da monotonia à liberdade

    Título

    Caminhar, uma filosofia

    Autor

    FRÉDÉRIC GROS (tradução: Inês Fraga)

    Editora (Edição)

    Antígona (Janeiro de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Nascido em 1965, Frédéric Gros é professor de Filosofia na Universidade de Paris-XII e no Instituto de Estudos Políticos (Sciences-Po) de Paris, sendo também conhecido por ser editor das últimas palestras que Foucault proferiu no Collège de France. Trabalhou extensivamente sobre a História da Psiquiatria (Création et folie, PUF, 1998), a filosofia da punição (Et ce sera justice, Odile Jacob, 2001), o pensamento ocidental sobre a guerra (États de violence. Essai sur la fin de la guerre, Gallimard, 2006) e a noção de segurança (Le principe sécurité, Gallimard, 2012).

    Caminhar, uma filosofia é um seu original de 2009, tendo sido recentemente traduzido para português e publicado pela Antígona. Frédéric Gros começa logo com uma provocação ao afirmar que “Caminhar não é um desporto (…) não há resultados, não há números”, por mais que se queira associar o acto de caminhar ao consumo, caminhar é, tão-somente, “pôr um pé diante do outro”, “uma brincadeira de crianças”, “um só desempenho conta: a intensidade do céu, a magnificência das paisagens” (pp. 7-8).

    Portanto, o leitor fica, de imediato, esclarecido quanto ao que o livro não é. Não é um manual de caminhada, não é um livro de auto-ajuda sobre os benefícios da caminhada, não é um roteiro com os melhores locais para empreender caminhadas, ainda que seja instrutivo em relação à origem do sucesso dos Caminhos de Santiago, num dos cerca de 30 capítulos, “Peregrinação”.

    É, sim, um convite à contemplação e à lentidão, numa espécie de transgressão aos ditames do quotidiano citadino. Por um lado, por se realizar “lá fora, ao ‘ar livre’”; por outro, somente “a aproximação lenta das paisagens” as torna familiares. “Quando caminhamos, a presença instala-se (…), o mundo persiste no corpo” (pp. 9-15).

    Nesta presença, que quase implica uma ausência de nós, há espaço para reflectir, para escutar, para escrever, para ser, para a liberdade, para fugir, para viver e morrer, também. Ou, tão-só, para nos cansarmos – para sentir o cansaço que liberta, tanto mais que a caminhada é, provavelmente, a mais monótona das actividades humanas.

    Em oposição à apologia da velocidade e da pressa contemporâneas, só a repetição monótona, numa cadência constante de uma longa caminhada, permite que experienciemos de forma vívida e intensa cada passo, cada instante, cada metro do caminho.

    Entre este convite à lentidão e à procura do cansaço são muitas as histórias de escritores, filósofos, artistas e outras personalidades com que Frédéric Gros nos deleita.

    Começa com “A paixão pela fuga” de Arthur Rimbaud, “um viandante, nada mais” que também caminhava para “fugir da ignóbil estupidez dos sentados”.

    Vamos, a capa, o chapéu, as mãos nos bolsos, e partamos!

    Para a frente é o caminho.

    Vamos!” (p. 25).

    Vamos, mas devagar, um pé depois do outro. Página a página para, lentamente, absorver o mundo que se impregna no caminhante, sozinho, de preferência. Como Nietzsche, Thoureau e Rousseau.

    “Walden, ou a vida nos bosques” de Henry David Thoreau é uma das grandes referências deste Caminhar, cuja época é fortemente marcada pelo nascimento do capitalismo. O autor norte-americano pressentia que o, então, emergente capitalismo seria um perigo para a Natureza. Propunha, por isso, uma economia que se baseasse em dar um preço a uma coisa em função do tempo de vida pura implicado. A apologia de uma vida simples, tão simples quanto caminhar.

    Para Nietzsche, caminhando oito horas por dia pelas montanhas, esta foi a condição da sua obra, defendendo que o pensamento “nasce de um movimento, de um impulso” (p. 105).

    Com Gandhi, a caminhada fez-se luta política em desobediência à ocupação britânica. A “Marcha do sal” foi concebida como uma epopeia coletiva, contando com a disciplina e sacrifício de todos quantos a integraram. “Algo de orgulhoso permanece na caminhada: estamos de pé. A humildade manifesta a nossa dignidade” (p. 158). 

    As caminhadas urbanas também são invocadas, por intermédio de Walter Benjamin que, socorrendo-se de Baudelaire, deslizou, qual fláneur, por entre a multidão, mostrando como a cidade se fez paisagem. Também Kant tinha a sua caminhada diária, numa disciplina que o libertava, numa repetição obstinada que lhe dava a oportunidade de estabelecer mais um raciocínio estético para a sua ética.

    A caminhada pode, então, ser entendida como uma atitude filosófica, desde os peripatéticos na Antiguidade até à atualidade, como é o caso do autor, Frédéric Gros, que caminha para se encontrar, para se perder e para se cansar.

  • Emoções e afectos de um pintor

    Emoções e afectos de um pintor

    Título

    Uma Florença Para Caravaggio

    Autor

    DIOMIRA MARIA

    Editora

    Libertinagem – Brasil (Agosto de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Uma Florença Para Caravaggio é o primeiro romance de Diomira Maria. Doutora em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é Mestre em Turismo pela Universidad de Alicante, e Professora associada do Departamento de Geografia da UFMG, no Curso de Turismo, onde exerceu o cargo de Diretora Científico-Cultural do Espaço do Conhecimento UFMG, entre 2018 e 2022.

    Apaixonada pela criação inovadora e pela estética renascentista, principalmente no que à pintura concerne, Diomira Maria brinda-nos com um romance que se desenrola no século XVI, tendo como epicentro Florença. São protagonistas da trama narrativa o pintor Michelangelo de Caravaggio – denominado Miguel – e Maria de Médici, e o narrador vai exibindo cenários que reenviam para a arte, em geral, e a pintura, em particular, numa Itália pregnante de talentosos artistas que representaram e exaltaram de forma única a conceção do Homem, da vida e da natureza. A excitação da cultura, da genialidade, do amor ao belo – ou Kalos preceito herdado dos gregos antigos –, e o cultivo dos studia humanitatis constituem algumas das temáticas ou dos estereótipos correspondentes à época evocada, como fazem notar Enrique Montero Cartelle e Maria Cruz Ingelmo, numa obra dedicada ao romance histórico contemporâneo intitulada De Virgilio a Umberto Eco (1994). O movimento renascentista ganha, assim, uma profunda expressão com as personagens que Diomira Maria põe em cena e que sustentam uma dimensão cultural e artística impressionantes, quer através dos diálogos, quer pela descrição da arte produzida.

    Contrariamente ao propugnado pelos teóricos literários e os romancistas do século XIX, que se evadem para tempos remotos, o romance histórico coevo privilegia a dimensão espacial. De entre as teorias advogadas, destacamos as defendidas por uma das mais conceituadas estudiosas do romance contemporâneo, Linda Hutcheon (1989). Os preceitos por si defendidos acautelam o leitor da pretensa legitimidade da História, sublinhando que o romance histórico atual, que designa metaficção historiográfica, não aspira a contar a verdade, nem a estabelecer um caminho para aí chegar. Porque a verdade se mostra plurívoca e, não raro, heterodoxa.

    Linda Hutcheon expõe estratégias narrativas que, pela ficção, desconstroem ou subvertem a verdade, pelos mecanismos da ironia e da paródia. Ao refletir sobre o conhecimento histórico, questiona-se sobre a forma e a possibilidade de conhecimento efetivo do passado, que sempre nos chega textualizado, sob um determinado prisma ou uma específica visão. Na senda da crítica referida, Diane Elam (1992) equaciona a receção epistemológica, problematizando a forma como o leitor coevo apreende o conhecimento histórico, tendo como base o romance hodierno.

    Estão realizados os prolegómenos à narrativa ficcional de cunho histórico. Vamos, então, debruçar-nos sobre o romance de Diomira Maria. Surpreendentemente, a obra suscita uma dupla abordagem ao leitor mais atento: por um lado, a conexão que mescla Literatura e História, ou os factos vulgarmente tidos e encarados como históricos; por outro, a relação paradigmática atualmente evidenciada pela ligação Turismo e Literatura. Especialistas nesta área, Sílvia Quinteiro e Rita Baleiro (2014) aludem ao facto de, durante o Renascimento, muitos aristocratas europeus visitarem países culturalmente reconhecidos, como a Itália, para conhecer in loco os espaços íntimos ou sociais outrora frequentados pelos seus autores de eleição: lugares de nascimento, habitações ou sepulturas que os albergam. A curiosidade humana revela-se uma particularidade intemporal. Não será, por conseguinte, estranho que os leitores hodiernos realizem os mesmos percursos. Disso são exemplo as Rotas Literárias, verdadeiras romarias aos espaços frequentados pelos autores ou, inclusive, pelas personagens. Aludimos, obviamente, à rota quixotesca, o espantoso itinerário edificado tendo como base os espaços percorridos pelo Cavaleiro Andante e por seu fiel escudeiro, Sancho Pança.

    A abertura do texto em análise reenvia para o ano de 1600, em Lyon, evidenciando o momento que precede a união concertada entre os Médici e o Rei Henrique de França. –A narração expõe, minuciosamente, os mais ínfimos detalhes de preparação da nubente – como a escolha das jóias – o que se afigura como reflexo de uma qualquer noiva, sendo futura rainha ou não. Mas a jovem Maria é uma noiva invulgar. Renascentista. E, mais espantosamente, enamorada.

    Depois, numa analepse que remonta ao ano de 1597, evocando memórias, o narrador exibe o envolvimento amoroso de Maria de Médici e o pintor milanês Michelangelo Caravaggio. O romance em foco evidencia o espaço frequentado e experienciado por estas personagens – porque as emoções se associam aos lugares – e debruça-se, de forma particular, sobre a figuração artística, numa relação inter-artes. Este impressionante diálogo é apreendido e (a)percebido, quer pelas personagens, quer pelo leitor e acrescenta valor turístico aos lugares mencionados, podendo originar uma qualquer prática turística. Nessa perspetiva, não será despiciendo referir que as artes representadas na ficção em estudo – pintura, arquitetura, doçaria ou literatura – surgem como elemento provedor e gerador de conexões diversas com diferentes códigos semióticos e elementos da narrativa (Ibáñez de Ehrlich, 1998).

    Florença surge, também, como personagem deste romance e reenvia o leitor para o seu próprio destino: o seu passado e a sua identidade. O que outrora existiu e o que pode ser visitado, não apenas pela leitura, num sucinto mapeamento da sua escrita ficcional, mas, também, em percursos turísticos, que intersecionam a ficção e vida de Michelangelo Caravaggio. Florença, a cidade dos Médici, corresponde a um determinado espaço, requintado e singular, onde desfilam as mais altas esferas culturais e os artistas da renascença italiana. Fazendo jus ao mecenato, prática muito frequente à época, a obra retrata o período em que o pintor Caravaggio, exilado por um breve período, é protegido do Cardeal del Monte, colecionador de arte, e recebido pela família Médici, no Palazzo Pitti.

    No universo (re)criado por Diomira Maria, as artes desnudam-se numa dupla instância: por um lado, deparamos com a bordagem das artes realizada no interior da própria arte literária (sistema semiótico literário), no diálogo efetuado pelas personagens; por outro, nas artes que aos olhos do leitor se apresentam, no resultado materialmente/ objetivamente concretizado pelos artistas, passível de ser visitado ou observado, nos dias que correm. Num périplo realizado por Maria de Médici e Caravaggio – o par enamorado que ocupa grande parte da tessitura narrativa –, o espaço vai-se mostrando paulatinamente ao leitor, revelando uma dupla paisagem: a humana e a natural. E é, sobretudo, apresentado sob a égide da visão, ainda que todas as outras referências sensoriais sobressaiam, não raro mescladas, em sinestesias.

    Na esteira do idealismo conceptual renascentista (italiano) propugnado por Jacob Burckhardt na obra Die Kultur der Renaissance in Italien (1941 [1860]), é possível realizar um trajeto dos espaços focalizados na obra, que podem traduzir uma literatura de turismo: a famosa e singular ponte di Vechio; o campanário de Giotto; a imponente e belíssima catedral de Florença; o baptistério; as ruas; os palácios mais imponentes da cidade; os conventos; as igrejas; as galerias onde a arte se refugia: “Do outro lado do rio, uma torre solitária, alta e esbelta como corpo de mulher, chama a sua atenção. À sua frente, reconhece a cúpula, símbolo da cidade, acompanhada do campanário.” (2013: 20).

    Ainda que aborde um universo onde os homens se destacam, esta obra ilumina a cultura do ser feminino. Não será anódino referir que, entre outras abordagens reflexivas, como a grande erudição de Maria, o romance em foco se debruça, ainda, sobre a problemática da arte no feminino – ou a relevância da educação no feminino – e faz embrenhar o leitor numa arte duplamente arquitetada: a tecida por palavras e a (re)criada nos quadros dos artistas. Giovanna, a bela artista – e freira – de olhos verdes, enfeitiçou António de Médici, irmão de Maria. Irmã Nelli, filha de comerciantes de Florença, foi deixada pela família aos cuidados das freiras num convento, 14 anos. Desde cedo demonstrara habilidade para a pintura: “Era observadora, gostava de pintar imagens, fazia réplicas, cópias de pinturas de outros artistas. “ (2023: 82). As palavras proferidas pelo narrador esclarecem-nos sobre a vida particular das artistas: “[A]s mulheres das famílias importantes de Florença pintavam como parte de sua educação, mas, se quisessem ser comissionadas pelas obras, a alternativa era ir para um convento.” (87).

    Muito haveria para falar sobre o romance. Mas a História e as histórias apenas ganham sentido e relevância quando lidas. Quando apreendidas pelo leitor. O que mais poderemos dizer? Uma Florença para Caravaggio é um livro que gira em torno da arte. Melhor: apropriando-me das palavras de Annabela Rita, na obra Do Que Não Existe (2018), o romance de Diomira Maria é um livro que insiste numa relação inter-artes, colocando-as em fervoroso diálogo: a literatura, a arquitetura e a pintura: Maria “[S]ente novamente o aroma dos pigmentos, das telas recém-pintadas, do ateliê improvisado em um dos quartos de sua casa.” (2023: 14).

    Não obstante tudo o que foi dito, este romance é – sobretudo – um livro sobre emoções. Sobre afetos. Aqueles recônditos afetos que nos obrigam a (re)pensar a vida. E também sobre os caminhos que alteram significativamente o nosso percurso. Mas que nem sempre logramos escolher. Porque o Destino, esse caprichoso Senhor, há muito inscreveu nos cartapácios da existência humana a sua própria vontade.

  • O gracioso inventário da cornadagem

    O gracioso inventário da cornadagem

    Título

    Rol de cornudos

    Autor

    CAMILO JOSÉ CELA (tradução de Afonso Praça)

    Editora

    Quetzal (Março de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Há livros que, pela sua importância, curiosidade ou sátira, não devem nunca deixar de ter pouso garantido nos livrescos escaparates. Este é um deles. Publicado em Espanha no ano de 1976, dois anos depois, pela mão do tradutor José Martins Garcia, conheceu tradução em Portugal, numa edição de Fernando Ribeiro de Mello/Edições Afrodite, agitando as águas de um país que ainda se espraiava na apreciação dos novos aromas da liberdade, deixando para trás os olores bafientos da outra senhora, terrunho vincadamente católico e de arreigados costumes quanto à natureza e limpeza das frontes masculinas. Vinte e três anos corridos, e antes do novo milénio, eis que nova edição arriba às livrarias portuguesas, com diferente tradução, desta feita sob a responsabilidade de Afonso Praça (1939-2001) e edição da Editorial Notícias. Edição essa que agora a Quetzal, recupera, em boa hora, com ligeiras correcções ou pequenas alterações.

    O certo é que, tanto em Portugal como em Espanha, existe uma forte tradição de cornudagem, daí que o nobelizado Camilo José Cela (1916-2002) tenha deitado o olho aos diversos espécimes a fim de recensear o fenómeno. Além disso, recordemos que na Espanha de 76 o divórcio ainda não era consentido, pelo que o número de cornudos deveria ser imenso.

    Diz-se que o cornudo é o último a saber. Agora já não há razões para isso. Basta consultar este rol e enfiar a carapuça para não se denunciar diante dos outros. São 363 verbetes, de A a Z, incluindo o K e o W, para que nenhum espécime se sinta excluído ou marginalizado. Há cornudos que chegam para todos: “Não se trata de um livro, mas apenas de um conjunto de verbetes eruditos colecionados com o único propósito de facilitar uma ferramenta ao sábio que a queira utilizar”, esclarece o autor. O inventário abre com o “Cornudo à aerossol” e encerra com o “Cornudo Ziehen-Oppenheim”.

    Que se saiba, e disso Camilo José Cela nos dá conta no texto de abertura Prooemium galeatum, já antes, ao longo dos séculos, outros autores haviam aflorado o tema da cornudagem, buscando as origens deste terrível achaque social, assim como a sua melhor compreensão, lançando cada um o seu alvitre, sempre de acordo com o ar do seu tempo, que esta coisa de cornos nunca foi sopa que se tragasse sem sobressaltos ou amofinações.

    Todavia, apesar dos muitos chistes, pilhérias ou facécias que se alinhavaram, o primeiro a dedicar-lhe verdadeira atenção e análise científica foi o filósofo francês, Charles Fourier (1772-1837), ao que se sabe, o primeiro a sistematizar, à moda de Linneu, a ordem natural dos cornudos no mundo, com o seu trabalho intitulado Les Cocus ou Hiérarchie du Cocuage (1808), coligindo desta maneira uma vasta informação existente acerca dos diversos espécimes que andavam dispersos na natureza. Nem de propósito, neste Rol de Cornudos, Cela presta-lhe humilde homenagem In Memoriam, em página destacada.

    De referir, aliás, para que não se perca o fio à meada, que esta eminente obra de Charles Fourier teve duas edições em Portugal: a primeira, Quadro analítico da corneação, tradução de Aníbal Fernandes, edição &Tc. (1980); e a segunda, Dos cornudos: suas espécies e tipos, tradução de Helder Guégués, edição Cavalo de Ferro (2004).

    De entre os vários livros que Dom Camilo escreveu, este é sem dúvida o mais marginal, ousado e jocoso, demonstrando toda a verve, irónica e satírica, que o caracterizavam, não só como pessoa mas também como escritor.

    Para que o leitor não fique ougado perante o desfilar destes acepipes, aqui seguem alguns exemplares, em jeito de amuse-bouche, uma vez que o banquete literário se anuncia assaz lauto e farta-brutos. Deliciem-se!

    Cornudo caracol. O cornudo adepto da helioterapia, isto é, aquele que, pondo os corpinhos ao sol, fica todo satisfeito. É espécie dada à contemplação e que, além dos cornos, não tem mais nada na cabeça.

    Cornudo cinegético. Aquele que enfeita os cornos compensa de perdiz. É espécie que, à sua escala, pertence à alta sociedade, mas faltam-lhe normas morais.

    Cornudo clister. Aquele que supõe que os cornos admitem o enema de água de rosas. É espécie que confunde a sua situação com os signos do zodíaco mal delineados.

    Cornudo pasmado. Cornudo que, ao abrir os olhos, fica mais espantado do que o necessário. É espécie flatulenta em séries ímpares.

    Cornudo xenófobo. Cornófobo que revela ódio ou hostilidade ao cornófilo estrangeiro. Costuma ser espécie forreta (francesa ou de qualquer modo vinculada à sua cultura) que poupa apenas por poupar. Os seus confrades são, muitas vezes, os mortos mais ricos do cemitério.

  • A picar também se castigam os costumes

    A picar também se castigam os costumes

    Título

    O piolho viajante

    Autor

    ANTÓNIO MANUEL POLICARPO DA SILVA

    Editora (Edição)

    Palimpsesto (Novembro de 2023)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    Quem diria que as picadas de um piolho do século XIX ainda hoje provocassem comichão na literatura portuguesa. E é isso mesmo o que tem vindo a fazer O piolho viajante nas suas sucessivas edições, desde que saiu do prelo em Lisboa na forma de folheto no ano de 1802.

    A autoria desta “obra maior da literatura portuguesa menor”, como a classificou João Palma-Ferreira (1931-1989), investigador e professor de Literatura Portuguesa, andou durante séculos envolta em mistério, uma vez que os folhetos haviam sido publicados de forma anónima. Contudo, após inúmeros debates, estabeleceu-se que o seu autor foi António Manuel Policarpo da Silva (ca 1790-ca 1819), “livreiro-editor, estabelecido em Lisboa durante muitos anos com loja na Praça do Comércio, debaixo da arcada do antigo Senado, ou Câmara Municipal”, excelente pouso e atalaia “para captar todo o pitoresco da cidade e para conhecer as tricas da cabala literária”, nas palavras de João Palma-Ferreira, que dedicou cerca de cinco anos, “entre 1962 e 1972”, a coligir em alfarrabistas todas as aventuras e carapuças deste piolho errante, que posteriormente foram sacadas à luz, após mais de 120 anos de esquecimento, na editora Estúdios Cor em Novembro de 1973, meses antes do 25 de Abril de 74.

    Esta nova edição de O piolho viajante, da responsabilidade da Palimpsesto, regressa às livrarias pela mão de João Filipe Palma-Ferreira, filho do investigador e professor de Literatura Portuguesa, precisamente no momento em que se assinalam cinquenta anos daquela primorosa edição realizada por seu pai.

    Composto por 72 carapuças, O piolho viajante é uma das obras literárias portuguesas mais interessantes e divertidas, que conheceu “uma extraordinária divulgação em Portugal” e no Brasil, entre 1802 e 1854, com os seus folhetos “impressos em papel vulgar, escritos ao estilo picaresco, mas com uma qualidade assombrosa”, que não só mantinham uma periodicidade incerta como circulavam de mão em mão. Apesar da sua popularidade, a obra “não obteve o favor de nenhuma crítica nem os elogios dos patriarcas letrados do tempo”, acabando por “lentamente se eclipsar e sofrer o destino de outras notáveis obras populares que preencheram os ócios da burguesia, satirizaram os costumes e registaram um sem-número de particularismos da vida do País nos finais do século XVIII e primeiras e agitadas décadas do seguinte.”

    Através das andanças e desandanças deste pícaro piolho, por cujas cabeças passa e repassa, vislumbramos “a miséria, a falta de higiene (…), a estupidez, a maldade, o vício, a brutalidade (…), a cupidez, a baixeza, o ciúme, a desonestidade, a esperteza, a tolice e a imbecilidade” daqueles que então cirandavam pelas ruas de Lisboa, num “retábulo terrível de verdades”, que, na opinião de João Palma-Ferreira, “a história oficiosa escondeu, ou que a literatura culta nunca se atreveu a divulgar com o mesmo desplante com que o fez Policarpo da Silva”, expondo nestas picarescas aventuras “os processos de sobrevivência, os hábitos alimentares, as toscas diversões, a poesia miserável, o vestuário sórdido, a medicina corrupta, a farmacopeia mixordeira” existente na capital de um país que “levava sessenta anos de atraso em relação à Europa”.

    Em boa hora João Palma-Ferreira exumou esta obra “para a colocar no escano que lhe pertence, que realmente lhe pertence na história da literatura de crítica social e de sátira de costumes em língua portuguesa e para aceitar defender-lhe a excelência de alguns capítulos como dos melhores que, neste aspecto, e no domínio popular, até agora se escreveram em Portugal”, obra essa que, de acordo com João Palma-Ferreira, reconduz o leitor “para o convívio de um dos mais ricos e desprezados sectores da literatura portuguesa, desde Gil Vicente a D. Francisco Manuel de Melo, desde os panfletários do século XVII aos esquecidos ironistas do século XIX, desde a Arte de Furtar às sátiras de Tolentino”, destacando-se as qualidades do autor, tais como “a agudeza (…), a vivacidade dos grandes frescos que nos deixou, a loquacidade das aventuras mas, sobretudo, o seu espírito crítico, entre desiludido, cruel, hipócrita e inteligentíssimo”.

    Nos tempos sérios em que vivemos, é de saudar a reedição desta obra satírica, pujante de mordacidade, e que ela possa trazer-nos, com o seu refinado humor, algum conforto de espírito e estímulo intelectual para enfrentar as lutas que se avizinham. A picar também se castigam os costumes.

  • A encarnação do inferno

    A encarnação do inferno

    Título

    A malnascida

    Autora

    BEATRICE SALVIONI (tradução: Ana Cláudia Santos)

    Editora (Edição)

    Alfaguara (Outubro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    O livro começa no fim e narra, logo ali, um acontecimento traumático: “É difícil tirar de cima o corpo de um morto. Descobri-o aos doze anos, com o sangue a escorrer-me do nariz e da boca e as cuecas enroladas à volta de um tornozelo. Os seixos da margem do Lambro, duros como garras, pressionavam-me a nuca e o rabo nu, as costas afundadas na lama. O corpo dele pesava-me na barriga, anguloso e ainda quente.

    Tinha os olhos brilhantes e vazios, saliva branca sobre o queixo, e a boca aberta exalava um cheiro mau. Antes de cair, olhara para mim com o medo a contorcer-lhe o rosto, uma mão metida nas cuecas e as pupilas dilatadas e negras, que pareciam dissolver-se até escorrerem pelas faces.

    Tombara para a frente, os seus joelhos comprimiam-me ainda as coxas, que ele conseguira manter abertas. Já não se mexia.” 

    O morto é Tiziano Colombo, um jovem fascista, machista, filho de uma das mais influentes famílias de Monza, cidade italiana onde se passa a ação, nos anos 30; e a vítima Francesca, uma adolescente de 12 anos que é uma das protagonistas e a narradora, na primeira pessoa, desta história fascinante.

    Mussolini estava no poder, viva-se num clima opressivo de um país fascista onde ter a ousadia de pôr em causa o status quo requeria uma coragem enorme. Foi isso que fizeram Francesca e Maddalena, a partir do momento em que ficaram amigas. Contrariando a vontade da mãe, obcecada pelas convenções sociais burguesas, Francesca junta-se a um bando de amigos problemáticos, de que é líder Maddalena, a “malnascida”, ávida por descobrir um modo de vida em absoluta liberdade. 

    Como se lê no La Repubblica:

    «A “malnascida” que conhecemos ao longo desta história é uma pequena encarnação do inferno. Uma daquelas figuras incómodas que, na Idade Média, seriam atiradas à fogueira. […] Maddalena é uma personagem sólida e cálida, que se solta das páginas deste romance com um sopro quase percetível.» 

    A malnascida é, pois, um romance sobre duas amigas a viver aquele período difícil da vida, que muitas vezes se desvaloriza – a adolescência –, e retrata a amargura que é crescer, ver a vida a desenvolver-se, num pano de fundo cheio de matizes: a relação adúltera da mãe de Francesca com o pai de Tiziano, o relacionamento afetuoso com o seu pai, a gravidez escondida de todos e que levou à tentativa de suicídio de Donatella, irmã de Maddalena, a invasão da Abissínia por Benito Mussolini e a mobilização dos rapazes da cidade para a guerra, onde perde a vida um dos irmãos de Maddalena, a amizade com Noé, o filho do merceeiro que as ajuda em vários momentos apesar de agredido violentamente pelo próprio pai.

    Como pano de fundo, a amizade das duas raparigas que, cúmplices até ao fim, acabam por se ver envolvidas na morte descrita logo no prólogo. A narrativa é ágil e a leitura não se consegue largar. Um livro muito interessante.

  • E agora construímos

    E agora construímos

    Título

    Paisagens construídas – O passado e o presente da arquitetura portuguesa em 16+1 obras

    Autor

    VALDEMAR CRUZ

    Editor (Edição)

    Valdemar Cruz (Fevereiro de 2024)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    A nobreza não deveria ser luxo. E não o é nesta edição de homenagem à arquitectura portuguesa.

    Em cada vinco das páginas encontramos a dignidade de quem quer que as letras ecoem traços de desenho pelo nosso país, com a leveza e harmonia de notas bem construídas, improvisos inesperados, pontes, refrões, música enfim.

    Ou como diria Frank Lloyd Wright, perante boa arquitectura, o nosso ouvido interno capta música (ou foi Goethe que disse que arquitectura era música petrificada?)…

    Não importa quem diz o quê se ao passarmos dedos, olhos e corpo em partituras melodiosas como este livro podemos relembrar o porquê da nação de poetas saber cantar poesia com muros. Sem dúvida um livro que recomendo, que encarna o esforço que ultrapassa barreiras, quer pelo seu sucesso na edição, quer pelo seu conteúdo.

    É-me impossível fazer uma recensão sem sentir a minha experiência pessoal: a primeira que este livro evoca é o confronto que tive, desde cedo, com o facto de edições desta natureza parecerem inacessíveis, marcos históricos superiores, testemunhos debruados a ouro do tempo das iluminuras, em que laboriosos escribas penavam segundo a segundo, milímetro a milímetro para encapsular na posteridade um arrojo humano, uma visão, um milagre.

    Valdemar Cruz e Inês d’Orey parecem-me aqui esses escribas, dedicados com a alma a erguer uma publicação capaz de competir com a Birkhäuser Verlag, mas melhor, porque além da estrutura decassilábica temos cores, texturas e sons; uma prova de que em Portugal cá estamos, de montante a jusante do rio criativo que flui por estas terras, cá ficaram, cá navegam, cá entram e saem pessoas de tanto valor, numa abnegada produção de conhecimento que país e mundo ignoram.

    Não o proclamo em vitimização, não! Que se lixe! Assim mesmo o digo, que se lixe! O valor intrínseco não se tolhe pela poluição dos atmosféricos, não se paralisa pelo atavismo dos míopes. Faz. E acontece.

    Curioso que, ainda no prólogo, o autor e coordenador nos admita ter chegado à arquitectura não pelos alicerces, mas sim pelo telhado. Ora, curioso, porque nutro eu sentimento igual, que não sacudo por nada, e já nem tento, bem vos digo. Facto é que a cada degrau subido só sinto estar mais longe das fundações e periclitante nos ombros dos gigantes que povoam esta arte, e de cada vez que sinto que esse afastamento se generaliza e atemoriza a sociedade sobre o mundo da arquitectura, eis que livros como este surgem para estender a escada.

    Única nota, neste caso também ao prólogo, que lamento, é o infestar de parêntesis de “correcção” do artigo masculino para feminino. Certamente, vários colegas meus discordam de mim nesse aspecto, certamente que sou eu que estou desfasada do Zeitgeist do que considero ser uma artificial paridade da língua e do mundo, mas não poderia deixar de o anotar.

    Mas, de novo, que se lixe, não importa – nem sequer vou aprofundar sobre tal, seria mesquinho da minha parte perante a grandeza deste empreendimento e a beleza do resultado final.

    Este livro é tão bom, que espero que as edições seguintes se multipliquem. Tão bom, que espero que caiba mais um, e mais outro, para mapear a arquitectura portuguesa que se omite por agora e espera a sua vez. Porque a arquitectura portuguesa espera, pacientemente, diligentemente, sem parar de trabalhar.

    Obrigada ao autor, obrigada a todos os seus participantes, na prova de que o esforço conjunto materializa grandes obras. É uma honra poder saltar de telhado em telhado nos projectos que por aí nascem.

  • Amor proibido em tempos de guerra

    Amor proibido em tempos de guerra

    Título

    In memoriam

    Autora

    ALICE WINN (tradução: Sebastião B. Cerqueira)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Janeiro de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    In memoriam, escrito por Alice Winn e publicado pela Casa da Letras, é um romance emocionante que nos transporta para os horrores e complexidades da Primeira Guerra Mundial, enquanto entrelaça uma história de amor ilícito entre os protagonistas, Gaunt e Ellwood.

    A narrativa desenrola-se entre os acontecimentos da guerra, começando em 1914, num colégio interno na Inglaterra rural. Gaunt e Ellwood são dois jovens estudantes que lidam com as suas próprias lutas internas num espaço de masculinidade latente, sendo ambos confrontados, por razões distintas, com as realidades cruéis do conflito iminente. 

    A autora retrata habilmente o contexto histórico, mergulhando-nos em paisagens vívidas e caóticas que nos transportam para o mundo sombrio da guerra, ao mesmo tempo que explora temas como o patriotismo, o sacrifício e o trauma da guerra. 

    Alice Winn consegue como que apaziguar-nos, ao alternar todos aqueles horrores com a beleza poética e algum humor. A inclusão de excertos de poemas da obra de Lord Tennyson, e de outros poetas, contribui para serenar o leitor. Como se houvesse camadas sobrepostas entre a humanidade que é e a humanidade possível.

    A autora também recorre às pausas na narrativa para integrar a página do jornal de Prehshutian, adicionando uma camada de realismo à história e destacando a tragédia dos jovens soldados que perderam a vida na guerra.

    A inclusão do Preshutian baseia-se no jornal do colégio onde a autora estudou, Marlborough College de 1913-1919, e no qual se pode verificar a idade dos jovens mortos em guerra e que ficaram nos memoriais e nos quadros de honra. O que quer que isso signifique… importa, sim, relevar que se torna, mais uma vez e infelizmente, premente refletir sobre o passado. Tanto mais que vivemos num tempo em que acontecem várias guerras em simultâneo – lembrando que, afinal, continuamos a cometer os mesmos erros.

    Somos levados a virar a página atrás de página, pela narrativa envolvente que se enquadra na ficção histórica e cuja pesquisa se reflete na verosimilhança dos confrontos. O romance dá-nos, então, uma visão detalhada e realista da época da Primeira Guerra Mundial, destacando a brutalidade das trincheiras e os efeitos devastadores das batalhas na vida das pessoas. 

    É, sem dúvida, de elogiar a escrita de Alice Winn, particularmente se se tiver em consideração que é o seu romance de estreia.

    Não obstante, em alguns momentos parece um pouco previsível no que à ideologia de género concerne, podendo mesmo ser criticada por aqueles que se revejam num retrato mais ou menos violento dos relacionamentos homossexuais. O sentimentalismo pode ser, igualmente, considerado um pouco excessivo, sobretudo pelo uso de alguns clichés. Reforça-se, porém, que isso não retira qualidade a este romance histórico que expõe as atrocidades cometidas então e que, mais uma vez, se repetem.

    Numa entrevista ao The Guardian, a autora, de 30 anos, revela que era disléxica e que só aprendeu a ler aos nove anos, tendo sido fortemente influenciada pelas leituras que a sua mãe lhe fazia. Alice Winn estudou literatura inglesa em Oxford, depois de viver em Paris e ter estudado no Colégio interno de Marlborough, também no Reino Unido.

  • Uma bela aliança entre a escrita e a Natureza

    Uma bela aliança entre a escrita e a Natureza

    Título

    Beira(s): Imagens do ambiente natural e humano na literatura de ficção

    Autoras

    ANA CRISTINA CARVALHO & CRISTINA DA COSTA VIEIRA (eds.)

    Editora (Edição)

    Edições Colibri (Dezembro de 2023)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    Beira(s) – Imagens do ambiente natural e humano na literatura de ficção é o segundo volume de uma coleção publicada em papel e online dirigida por Ana Cristina Carvalho, investigadora do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa. Dedicada à Literatura Portuguesa e à representação literária da paisagem e do Ambiente, esta obra é antecedida de Alentejo(s) – Imagens do ambiente natural e humano na literatura de ficção (2021), a que se seguirá brevemente o n.º 3, que terá como base de estudo a região do Minho, Douro e Trás-os- Montes.

    O livro em foco resulta de uma parceria entre a CICS.NOVA-FCSH e a UBI (Departamento de Letras), tendo sido organizado e editado por Ana Cristina Carvalho e Cristina Costa Vieira. As editoras reuniram 18 investigadores de 13 universidades e institutos politécnicos e vários centros de investigação e cultura, numa cooperação autoral e institucional consagrada às Beiras. No seu conjunto, os investigadores analisaram cerca de quatro dezenas de obras de ficção de 15 escritores da Literatura Portuguesa. E, muito embora estejamos perante um livro de abordagem académica (com um painel de revisão científica de uma dezena de investigadores nacionais e estrangeiros), demonstra aptidão para cativar um público amplo, interessado nas questões ambientais e literárias: apresenta uma imagem de capa magnífica da autoria de Nuno Santos e cada capítulo é anunciado por fotografias a preto e branco alusivas à geografia a que se refere.

    Antes de prosseguirmos com a análise da obra que nos propusemos, convém (re)lembrar ao leitor que a descrição de uma paisagem literária não traduz uma paisagem objetiva, captada pela retina ou pela lente de uma câmara fotográfica. Ainda que esta noção desconstrua ou abale a idealização do leitor, a verdade é que o autor de uma obra literária realiza uma construção verosímil do universo que (re)cria – um texto/produto que edifica um espaço geográfico empírico, e suscita aos leitores a ilusão de referencialidade. Não obstante, o mundo prefigurado num texto literário é sempre um constructo – mediatizado por palavras e apela (de forma direta ou indireta) à imaginação do leitor. Tomemos como base a problematização axial equacionada entre a noção de verba e res, divulgada por inúmeros teóricos, de que sobressaem Erich Auerbach (1972) ou Northrop Frye (1990). Se tivermos em conta a perspetiva semiótico-comunicacional, a realidade e a linguagem precedem o texto literário (sistema semiótico secundário) e os seus códigos, porque os universos literários são construídos e fundados na e pela linguagem. 

    Ao atentarmos nos preceitos defendidos e propugnados pelos geógrafos, de entre os quais aludimos ao artigo “Thinking Space”, de Neal Alexander, percebemos que a Literatura pode educar-nos/ensinar-nos sobre a relação estabelecida entre os humanos e o ambiente circundante (2015: 3-6). Tomemos como paradigma o dealbar do mundo moderno: os seres humanos afastaram-se da terra, relegando-a, num evidente alheamento ecológico, e enaltecendo, pelas vozes de um Whalt Whitman ou de um Álvaro de Campos, a preponderância da tecnologia e das máquinas. Para trás deixam Gaia, a deusa-mãe, personificação da Terra. Contrariamente, outras vozes, de entre as quais se destaca Miguel Torga, enquadram a sua poesia ou as suas narrativas num ambiente telúrico, num canto laudatório da terra. Se tomarmos como paradigma este enquadramento, os artigos insertos no volume em estudo procuram, acima de tudo, compreender de que forma a natureza e a paisagem das Beiras surgem representadas na Literatura Portuguesa, pelo olhar dos escritores, nos enunciados instituídos. Sim: importa realçar que as narrativas são edificadas por palavras e as paisagens que nelas figuram traduzem o labor artístico dos autores que pintam, demiurgicamente, quadros com paisagens de uma Geografia Literária enraizada no território nacional.

    No livro Estruturas Antropológicas do Imaginário (1989), Gilbert Durand destaca a importância da terra, enquanto berço, morada e sepultura dos humanos. A natural serenidade com que nos acolhe em vida iguala a simplicidade com que nos alberga na morte. Estudiosa da tradição popular portuguesa, na obra Falas da Terra, Natureza e Ambiente na Tradição Popular Portuguesa (2004) Ana Paula Guimarães cita, frequentemente, uma quadra alusiva a esta condição:

    “Eu sou devedor à terra/ A terra me está devendo / A terra me paga em vida/ Eu pago à terra em morrendo”. 

    Na coleção em foco, cruzam-se diversas áreas do saber, que envolvem a Arte Literária, as Ciências Naturais, as Ciências Sociais e o Turismo Literário. A indissociabilidade entre o meio biofísico e o universo populacional emerge, pari passu, das ficções trazidas à colação pelos respetivos investigadores, que entretecem a sua análise com as perspetivas literária, ecológica e ambiental patentes nos autores cujos textos ostentam. E, pela voz dos escritores – cuja visão os investigadores procuram dissecar – subtilmente pesponta a celebração de um elo de relações simbióticas, que unem terra-povo-língua, emoldurando-os numa geografia vivencial e afetiva que pretende veicular um prisma inserível na Ecocrítica, como base de partida para um estudo que proporciona um terreno interdisciplinar de princípio ecológico. 

    O volume inicia-se com dois excertos de extraordinária vivacidade pictórica, retirados da obra A Beira (num relâmpago), de Teixeira de Pascoaes, prosseguindo com a apresentação de excertos do romance Finisterra, de Carlos de Oliveira (1921-1981), que escolheu como material da sua obra a imagética paisagística da região da Gândara. Guilherme d’Oliveira Martins inaugura a sequência de capítulos evocando António Alçada Batista. No primeiro capítulo, Jorge Costa Lopes alude à influência da filosofia heideggeriana no romance Alegria Breve, de Vergílio Ferreira, mostrando a importância da terra e o facto de os humanos não estarem preparados para a profunda transformação do mundo causada pelos meios tecnológicos. O ensaísta debruça o olhar sobre três romances inscritos numa geografia romanesca que tem por referência as várias Beiras e destaca o diálogo “obsessivo” que entre Homem e espaço (montanha e aldeia) se evidencia: “Porque o “homem pode subir alto, mas as raízes não sobem. Estão na terra, para sempre, junto da infância e dos mortos” (1965: 39-40).” 

    Partindo dos conceitos de “Ecologia da Paisagem e Metafísica da Paisagem”, António Queirós demonstra de que forma o património paisagístico das Beiras irrompe nos grandes nomes da Literatura Portuguesa. Serões da Província (1870) e Os Fidalgos da Casa Mourisca (1871), de Júlio Dinis, são objeto de estudo por parte de Fernanda Vicente, cuja análise textual enfatiza, sobretudo, a paisagem enquanto objeto de contemplação e criadora de estados de alma. Henrique Almeida elabora um percurso aquiliniano que engloba A Via Sinuosa (1918) e contos e novelas de geografia sentimental, evidenciando “o sentido épico da terra”. 

    No capítulo 5, Ana Cristina Carvalho reflete sobre A Lã e a Neve, de Ferreira de Castro, sublinhando que a obra “abre com um Pórtico – uma lídima lição de história natural e humana, num estilo claro e poético, sobre a serra da Estrela” – e que a estrutura “bifocal do romance ‒ nas tensões do universo rural e nas difíceis relações sociolaborais operárias ‒ pode aproximá-lo do neorrealismo no sentido em que a aspiração de fuga à miséria das condições de vida por parte do protagonista vem a unir-se a uma aspiração coletiva, após ele ganhar consciência da classe operária a que pertence.” (2023: 124). Para além da condição climocrítica, a autora do ensaio procura destacar as condições sub-humanas a que estavam sujeitos os pastores da Nave e os operários da Covilhã, num tempo de iliteracia e miséria que os hostiliza.

    Indo ao encontro da clássica e vetusta tradição que remonta a Esopo ou ao poeta latino Virgílio, Maria de Lurdes Barata realiza uma abordagem literária da obra de Miguel Torga bifurcada na representação contrastiva aldeia/campo e cidade. A alusão ao Mondego – rio de enfoque literário que evoca a pena camoniana – permeia o acervo de títulos da ficção literária portuguesa. Anabela Sardo e Ana Albuquerque expõem a relação literária de Manuel Alegre com “a paisagem da modernidade” e a paisagem humana do “lugar-origem”, ao debruçarem-se sobre o conceito de imagotipo de Águeda e o seu rio, fonte de sustento no Portugal salazarista dos anos 40 do século passado. A Coimbra do Bairro do Olival e dos “quintais floridos” e do Mondego agonizando sob “a blasfémia do calor de Agosto”, estão no centro da cartografia física e social desenhada por António Apolinário Lourenço, tendo como base Trabalhos e Paixões de Benito Prada (1993), romance de Fernando Assis Pacheco. Maria Mota Almeida e Teresa Branquinho focam a sua atenção nos escritores Tomás e Branquinho da Fonseca, remetendo para a paisagem do Caramulo, tendo como base analítica ficções que refletem o rigor do clima serrano. 

    Margarida Alpalhão demonstra como o saudoso professor de Literatura Helder Godinho estava certo na sua abordagem analítica, ao descortinar na aldeia e na cidade elementos fulcrais da “constelação imagética” de Vergílio Ferreira. O olhar atento de Maria Ilhéu contempla o rio, a principal nervura e expressão primordial das “paisagens aquáticas” das narrativas castrianas. Glória Bastos incide a sua atenção sobre a figuração do espaço geográfico das Beiras em três títulos da série ficcional juvenil Uma Aventura, estabelecendo uma ponte entre as obras e o turismo literário, e concluindo existir na série “um propósito de divulgação das topografias” que servem de cenário a cada livro. O volume encerra pela mão do geógrafo Rui Jacinto, num itinerário que propõe uma rota dedicada à(s) Beira(s).

    Como pudemos constatar, a onomástica citada é impressionante. Na obra Univers de la Fiction 1988: 167), Thomas Pavel chama a atenção para o facto de a ficção remeter para a criação de mundos – imaginários – que têm por base o universo real, que tomam de empréstimo. O trabalho desenvolvido por estes críticos – filiados em áreas científicas que englobam a Geografia e as Ciências do Ambiente, as Humanidades e, em particular os Estudos Literários – coloca-nos ante uma visão paisagística e geográfica emoldurada a partir da escrita literária que vai da Mata da Margaraça aos esteiros da laguna de Aveiro, a feérica cidade portuguesa flutuável. 

    Estamos perante uma coleção inédita que enriquece o panorama editorial português nos campos da divulgação ambiental da interdisciplinaridade, e única a nível europeu, sendo que os seus estudos e reflexões valorizam as imagens literárias da paisagem humanizada e da interdependência histórica entre o ser humano e os recursos naturais, incluindo o Clima. E vão ao encontro dos estudos preconizados no âmbito do projeto Atlas da Paisagens Literárias de Portugal Continental, atualmente coordenado por Natália Constâncio (IELT-NOVA-FCSH) e Daniel Alves (IHC-NOVA-FCSH).

  • Manual para ser feliz

    Manual para ser feliz

    Título

    Construa a vida que quer

    Autores 

    ARTHUR C. BROOKS; OPRAH WINFREY (tradução: Sofia Ribeiro)

    Editora

    Casa das Letras (Dezembro de 2023)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    No sítio de Arthur C. Brooks encontramos alguma informação sobre o autor, que é professor de Prática de Liderança Pública na Harvard Kennedy School e de Prática de Gestão na Harvard Business School, onde leciona cursos sobre felicidade, liderança e empreendedorismo social.

    É o criador da popular coluna “How to Build a Life” na revista The Atlantic, e autor de 13 livros, incluindo o bestseller do New York Times de 2022, “From Strength to Strength e Love Your Enemies”. É um orador reconhecido pelas palestras sobre felicidade humana, trabalhando também para aumentar o bem-estar dentro de empresas privadas, universidades, agências públicas e organizações comunitárias.

    É provável que em Portugal (e noutros países) tenha ganhado, agora, visibilidade pela parceria estabelecida com Oprah Winfrey, uma das figuras públicas mais influentes e admiradas do mundo inteiro.

    Com 70 anos feitos recentemente, Oprah tem já um legado enorme em diversas áreas do show business, nomeadamente como apresentadora, jornalista, atriz, empresária, repórter, produtora, editora e escritora. Ganhou vários Emmy pelo programa “The Oprah Winfrey Show” – provavelmente o talk show mais conhecido e visto em todo o mundo. 

    É possível acompanhar uma série de outras atividades subscrevendo o seu sítio: OprahDaily.com.

    Como se pode ler na contracapa deste “Construa a Vida que Quer – A arte e a ciência de se tornar mais feliz”, publicado pela Casa das Letras, Arthur C. Brooks e Oprah Winfrey chegaram à conclusão, durante um jantar, que aquilo que as pessoas querem é ter mais alegria, mais amor nas suas vidas e um propósito. Não querem ter muitos seguidores nas redes sociais, nem muito dinheiro; querem ser felizes.

    Se o parágrafo anterior parece transpirar alguma ironia, é provável que, no mínimo, os potenciais leitores deste livro de autoajuda se sintam curiosos quanto à desvalorização eventualmente dada às questões materiais por parte de Oprah Winfrey.

    Ironias à parte, A arte e a ciência de se tornar mais feliz pode ser um manual muito útil para as pessoas que se sentem assoberbadas pela necessidade de corresponder e mostrar as evidências materiais de sucesso da contemporaneidade. Um tempo profundamente marcado pela partilha da vida privada nas redes sociais, nas quais se dá a impressão de que são todos imensamente felizes com as coisas que compram, sejam esses objetos mais ou menos imponentes, ou a acumulação de experiências extraordinárias, como viagens para ilhas de sonho.

    O que os autores vêm lembrar é que a felicidade está muito longe dessa materialização que, de tão ostensiva, se torna vazia – como pode ser a vida de muitos dos que transportaram as suas vidas para os écrans.

    Para este curso para se ser mais feliz, o livro está dividido três partes.

    Na primeira parte, os autores procuram demonstrar que a felicidade não é o objetivo, tanto mais que a felicidade não é a ausência de infelicidade. Além disso, a infelicidade não é o inimigo – é possível ser-se feliz, vivendo com circunstâncias que causam infelicidade. Um pouco na linha de que depende muito da perspetiva com que olhamos para o que a vida nos proporciona, sendo certo que aqueles que veem o copo meio cheio estão mais perto destes princípios.

    Na segunda parte, o leitor é convidado a usar o poder da metacognição para reconhecer que a linguagem do amor e da gratidão, sobretudo se registados num diário, são imprescindíveis para compreender e gerir as emoções, sem se deixar controlar por estas.

    Em primeiro e segundo lugar, há que observar e registar as emoções; de seguida, criar uma base de memórias positivas e, em quarto lugar, dar significado e aprender com as partes difíceis da vida. A redação reflexiva está, por isso, implícita – o que significa que deve haver um trabalho contínuo e mesmo árduo.

    Uma das ideias desenvolvidas nesta segunda parte refere-se à mudança de foco, de deixarmos de nos concentrar tanto nas nossas necessidades e passarmos a olhar mais para os outros e para o que podemos fazer pelo seu bem-estar: uma fonte de felicidade.

    Na terceira e última parte do livro, os autores procuram mostrar que são, fundamentalmente quatro os pilares que sustentam uma vida mais feliz: Amigos, Família, Trabalho e Fé. É no equilíbrio destas bases de satisfação que seremos capazes de perceber que a felicidade é algo intrínseco, que deve ser de dentro para fora – e que não está no contexto ou nos bens materiais exteriores à nossa existência.

    Por isso, mais do que uma receita, é um trabalho individual para aceitar com serenidade o que não se pode mudar e de encontrar amor e coragem para construir o equilíbrio necessário para manter aqueles quatro pilares.

    É uma leitura que se pode indicar ao leitor que está disponível para se dedicar ao autoconhecimento e sem a ambição de ser milionário, como a Oprah Winfrey.