Etiqueta: Recensão

  • Explicar um drama sem fim

    Explicar um drama sem fim

    Título

    Holocaustos

    Autor

    GILLES KEPEL (tradução: Luís Filipe Pontes)

    Editora

    Dom Quixote (Julho de 2024)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    A análise de um tema complexo do quotidiano – excluindo assim visão distante do historiador – varia significativamente conforme o meio utilizado, cada um oferecendo diferentes níveis de profundidade e tempos de abordagem. As notícias diárias de um jornal, por exemplo, oferecem-nos informações ‘frescas’ e imediatas sobre eventos atuais, mas com uma profundidade superficial, focando os factos essenciais devido à necessidade de atualidade. Por outro lado, uma reportagem longa numa revista mensal proporciona um espaço maior para investigação, permitindo uma visão mais detalhada e contextualizada, embora ainda limitada pela extensão e pelo público-alvo.

    Os documentários, por sua vez, podem exigir semanas ou meses de produção, concedem uma análise ‘conduzida’ por imagens, entrevistas e uma narrativa envolventes.

    Em contraste, um livro, dependendo do autor e do tema, oferece, geralmente, uma exploração abrangente e crítica, permitindo captar a complexidade de um determinado assunto com uma profundidade que os outros ‘géneros’ não alcançam. Mas um livro, tal como também um documentário, corre um elevado risco de desactualização em assuntos de grande ‘dinamismo’ ainda não concluído.

    É esse o caso de ‘Holocaustos’, uma interessantíssima obra de Gilles Kepel, um reconhecido cientista político e arabista francês, especializado no Médio Oriente contemporâneo e antigo director do Programa Oriente Médio e Mediterrâneo da Université Paris Sciences et Lettres. Publicado em finais de Março deste ano em França, e logo traduzido em Julho para português, pela Dom Quixote, este livro debruça-se sobretudo sobre os acontecimentos posteriores ao ataque do Hamas a Israel em 7 de Outubro do ano passado, contextualizando-se, de forma excelente (com mapas bastante elucidativos, nas suas diversas ramificações, incluindo fora da região de Israel e Palestina, nomeadamente nos países muçulmanos adjacentes, e não apenas no Líbano ou Irão, e também na Turquia, no eixo China-Moscovo e, claro, nos Estados Unidos.

    E, por esse motivo, a análise de Gilles Kepel, embora não falhe absolutamente nada naquilo que este conflito se está a tornar – uma guerra (quase) global, não apenas bélica mas de valores –, começa a torna-se desactualizada por, entretanto, terem saído de cena, inopinadamente ou não, alguns dos ‘protagonistas’, como são o caso de Joe Biden, que já não será o candidato democrata às eleições presidenciais norte-americanas, e de Hassab Nasrallah, o líder do Hezbollah, morto no passado dia 27 de Setembro em Beirute num ataque israelita.

    Independentemente destes ‘percalços’ dos acontecimentos, esta obra de Gilles Kepel ajuda bastante a compreender o que está, e estará, em jogo, incluindo o misticismo religioso, e sobretudo abre portas sobre o papel dos Estados Unidos na maior radicalização da posição israelita em torno de uma narrativa nacional fundamentalista e belicista. Mesmo com Kamala Harris agora em jogo, o cientista político francês não tem dúvidas em concluir que Benjamin Netanyahu estará a torcer por uma vitória de Donald Trump, o que revela que ‘isto’ vai, infelizmente, continuar nos próximos meses, não sendo de admirar porque não pára há mais de sete décadas.

  • Um lento quebrar de barreiras

    Um lento quebrar de barreiras

    Título

    Portugal: uma História no feminino

    Autora

    ANA RODRIGUES OLIVEIRA

    Editora

    Casa das Letras (Maio de 2024)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Até ao século XX, o papel das mulheres em Portugal foi amplamente condicionado por factores sociais, culturais e religiosos, que as relegaram para uma posição mais do que secundária. A Igreja Católica, com a sua profunda influência na vida social e moral do país, desempenhou um papel crucial na perpetuação da ideia de que a mulher deveria ocupar um lugar de submissão e discrição, sobretudo no contexto da família e do lar. O ideal feminino era o de uma figura devota, casta e, enfim, ignorante e pouco ou nada interventiva, cuja principal função era ser esposa e mãe, enquanto as esferas públicas e de poder eram exclusivamente dominadas pelos homens.

    A sociedade portuguesa, profundamente enraizada em valores patriarcais, reforçou durante séculos esses papéis tradicionais. A Educação, quando acessível às mulheres, era limitada a áreas consideradas apropriadas para o género feminino, como bordado, música ou religião, não incentivando uma formação intelectual mais robusta ou a participação activa na vida pública.

    Não surpreende assim que sobre um país que nasceu no século XII, o livro ‘Portugal: uma História no Feminino’, de Ana Rodrigues Oliveira, professora e investigadora da Universidade Nova de Lisboa, destaque, nas suas primeiras 533 páginas (num total de 626, incluindo bibliografia e um precioso índice onomástico) apenas figuras femininas ligadas à nobreza, como rainhas, regentes ou esposas de monarcas. Em muitos casos, mesmo de mulheres preponderantes na História de Portugal, não se duvide que a sua ascensão dependeu apenas e só ao berço e não tanto aos méritos que foram desenvolvendo.

    Somente a partir do início do século XX, as mulheres portuguesas começaram a conquistar maior visibilidade e a reclamar um papel mais activo na sociedade, mas o advento da República, em 1910 e, mais tarde, o Estado Novo trouxeram mudanças ambíguas para a condição feminina: por um lado, havia uma ênfase renovada nos papéis tradicionais de género, mas, por outro, também se abriam novas oportunidades, nomeadamente no campo da educação e do trabalho.

    Essa é a parte do livro, porventura, mais interessante, onde se releva o pioneirismo e ‘lutas’ de diversas mulhers que ‘ousaram’ desafiar as normas, desde Carolina Beatriz Ângelo, que reinvindicou o direito de voto das mulheres, até Maria de Lourdes Pintasilgo, a primeira (e única, até agora) primeira-ministra de Portugal. No meio, estão ainda mais sete mulheres com mais do que suficientes méritos para aqui constarem.  

    No entanto, lendo a obra de Ana Paula Rodrigues – numa escrita fluída, aqui ou ali demasiado fria e ‘professoral’, por vezes abusando de um estilo enciclopédico, sobretudo quando, no início dos capítulos, apresenta as biografadas -, mostra-se  constrangedor que um livro publicado em 2024 termine com Maria de Lourdes Pintasilgo, que chegou ao topo em 1979, embora sem ganhar eleições.

    Quais serão as razões para, em meio século de democracia, e com a universalização do ensino, que faz com que hoje as mulheres tenham mais formação do que os homens, Ana Rodrigues Oliveira não consiga incluir uma mulher nascida em data posterior a 1930, o ano de nascimento de Maria de Lourdes Pintasilgo? Pode ter sido apenas por ‘pudor de historiadora’, em não abordar tempos hodiernos, mas se pensarmos bem, talvez não seja apenas essa a causa. Faltam ‘candidatas’ para entrar num livro deste género. Na verdade, talvez as mulheres ainda não tenham conseguido, e infelizmente, romper o último bastião do poder masculino. Se é isso, agora a ‘culpa’ não pode ser assacada somente aos homens, até porque há mais eleitoras do que eleitores. E isso é como o ‘código postal’: meio caminho andado.

  • Batalhas de livreiros

    Batalhas de livreiros

    Título

    O destino da livraria de Kichijoji

    Autora

    KEI AONO (tradução: André Pinto Teixeira)

    Editora

    Singular (Junho de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Kei Aono é uma autora japonesa, nascida em 1959 na cidade de Nagoya. Em 2006, estreou-se como autora com o livro, The Reason Why I Won’t Quit (Yamenai Riyu) e, em 2014, ganhou notoriedade pela série de romances sobre a livraria de Kichijōji, com a qual venceu o primeiro prémio dos Shizuoka Bookstore Awards, na categoria “Livro que gostaria de ver adaptado ao cinema”.

    A sua experiência numa revista de banda desenhada foi certamente inspiradora para o enredo entretecido neste O Destino da Livraria d Kichijōji (agora publicado, em Portugal, pela Singular). Pode dizer-se que a banda desenhada (BD) é uma espécie de personagem, pelo espaço que ocupa na trama – é na secção de BD da livraria que Aki, uma das duas protagonistas, trabalha.

    É com o casamento de Aki Kitamura, com um editor em ascensão, Obata Nobumitsu, que esta novela começa. A evolução da relação conjugal é uma das histórias secundárias. Ainda que de forma superficial (e, eventualmente, incompleta) é um elemento que enquadra os modos de vida de uma cultura tão distante da nossa. Esta é uma das qualidades do livro, ao transportar o leitor para uma cidade que, porventura, gera curiosidade pela distância, não apenas espacial, mas sem dúvida, sob o ponto de vista sócio-cultural.

    Riko, a chefe de Aki, é a outra protagonista, cuja descrição revela alguns traços e estereótipos da cultura japonesa (mas não só): “Tinha 40 anos, mas ainda era solteira” (p. 6). A sua condição de solteirona é, depreende-se, uma razão para sua postura rígida e disciplinada na Livraria. Por outro lado, a sua condição de mulher é factor inibitório para progredir na carreira. Num diálogo entre Riko e um cliente difícil, a autora aproveita para demonstrar essa clivagem bem presente na cultura oriental (mais uma vez, mas não só).

    “– Sou a gerente desta livraria. Chamo-me Nishioka.

    – O quê? Uma mulher? Não gozem comigo. Chamem alguém como deve ser!” (p. 203)

    A cena prossegue neste tom, culminando com Riko Nishioka a ajoelhar-se para pedir desculpa em nome de todos os funcionários.

    As relações profissionais e laborais, neste caso, entre livreiros, editores e autores são, de igual modo descritas, sendo mesmo o elemento mais escrutinado e descrito, quase de forma explicativa – sugerindo alguma imaturidade/insegurança.

    É, ao mesmo tempo, o motivo pelo qual na capa do livro se pode ler: “Um romance obrigatório para os apaixonados pelo mundo dos livros”. Efectivamente, depois do casamento de Aki e de algumas peripécias sobre o quotidiano desta livraria de um bairro histórico de Tóquio, entramos finalmente na história principal: como ultrapassar a ameaça do encerramento iminente da Livraria Pégaso?

    As campanhas de vendas da livraria, as ligações com a empresa-mãe, assim como as ligações entre editores e autores e livreiros são, como referido, um atractivo para os curiosos sobre o mundo dos livros e de como são seleccionados e postos à venda nos escaparates das livrarias.

    A escrita simples pode ser uma percebida como outro ponto a qualificar, não obstante, para o leitor mais maduro e exigente, o enredo pode não ser suficiente para o cativar.

    Como num conto, fica a moral da história, a união (pode) faz(er) a força.

  • Espíritos inconformistas

    Espíritos inconformistas

    Título

    Velar por ela

    Autor

    JEAN-BAPTISTE ANDREA (tradução: Isabel Ferreira da Silva)

    Editora

    Porto Editora (Maio de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Jean Baptiste Andrea, um guionista que se sentia limitado pelo cinema, liberta a imaginação e emoção neste romance. O seu percurso inicial como escritor foi difícil até encontrar a editora L’Iconoclaste que lhe garantiu que o livro seria ‘um fogo de artificio’. E assim venceu o Premio Goncourt no ano passado, que agora chegou a Portugal numa oportuna edição da Porto Editora.

    Em ‘Velar por ela’, Pietra de Alba é uma pequena vila onde brotam fontes miraculosas e a luz de aurora banha o planalto de rosa matizado, sendo o cenário das aventuras de Michelangelo Vitaliani (Mimo) e Viola Orsini.

    Mimo é um anão de personalidade magnética e talento artístico excepcional, que desvela pacientemente estátuas com movimento de enormes blocos de mármore, enquanto Viola se apresenta como uma aristocrata romântica que transcende normas e comportamentos sociais: filha do planalto, guia-se pelas florestas com a sua bússola interna, convive com ursos e escuta os sons do submundo em incursões nocturnas ao cemitério.

    Os dois adolescentes de meios sociais opostos – numa era sem nuances, em que se é ou rico ou pobre, ou letrado ou analfabeto – constroem um amizade forjada na necessidade de extravasarem fronteiras: físicas, no caso de Mimo; e sociais, no caso de Viola. Ela voa; Mimo esculpe. As experiências aeronáuticas, a construção em segredo dum parapente em que Viola se lança do telhado da casa para escapar a um casamento de conveniência, acabam em queda livre protegida por uma árvore, com ossos e sonhos fragmentados. As cicatrizes internas e externas moldam o futuro da jovem mulher: “Je suis une femme debout au beau millieu des guerres que vos avez déclenchée/ Je suis celle que vous appelez quando tout se effondre autor de vous/ Mais que vous brulerez encore des que tout ira bien, ou cas ou je verrais que tout ne vas pas bien/ Vous me consumerez, vous me reduirez en cendres, vous me disperserez, ou vous croirez le faire car votre feu est sans chaleur et ne brule rien/Je suis une femme debout, j’ en vaut mille comme vous“. 

    Mimo, famoso escultor protegido pelo Vaticano, cria a sua obra-prima, a Pietá Vitaliani, causando estranhas reacções psicossomáticas aos apreciadores de arte. A Pietá é a homenagem pétrea e intemporal de Mimo à sua eterna amiga Viola. Quando o Vaticano, perturbado pelos relatos de crises sobrenaturais à visão da obra, decide escondê-la nas catacumbas de um convento, Mimo segue então as pisadas da sua expressão artística e amorosa, retirando-se para as montanhas, para ‘Velar por ela’: por Viola e por Pietá. 

    E é no seu leito de morte, nos anos 80, que Mimo evoca os anos turbulentos entre 1918 e 1946, tendo também como pano de fundo a ascensão da ditadura fascista de Mussolini e a sua dança com a Santa Sé, num clima social opressivo de poder bélico e patriarcal, mas onde não há lugar para mulheres brilhantes, como Viola, que recitam livremente todas as variantes do vento : tramontana, siroco, libecio, ponant, mistral…

  • Banho de persuasão

    Banho de persuasão

    Título

    Como escrever

    Autor

    MIGUEL ESTEVES CARDOSO

    Editora

    Bertrand (Julho de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Miguel Esteves Cardoso (MEC) é um autor que quase todos os portugueses conhecem, quando mais não seja da televisão e das crónicas quase diárias do jornal Público. Por isso, começo já a falar sobre este Como Escrever, o livro que se debruça sobre essa prática exclusiva humana e que, provavelmente, nos permitiu ser humanos.

    A primeira vez que vi o livro, fiquei na livraria a lê-lo em pé, durante o tempo que esperava pela pessoa que acompanhava, torcendo para que se demorasse o mais possível. Queria prosseguir na leitura. O livro correspondia ao título de um outro, As primeiras cinco páginas, de Noah Lukeman. Estava agarrada, mas hesitava. Ainda há pouco lera On writing, de Stephen King e Romancista como vocação, de Haruki Murakami, cuja recensão pode ser lida aqui). Ambos confirmaram o que é sobejamente conhecido: para escrever é preciso escrever, escrever, escrever e escrever.

    São muitos os livros com técnicas de escrita criativa e afins nas prateleiras cá de casa, um dos motivos por que não comprei o livro que me estava a impelir a continuar a ler sobre como escrever. Claro que para um escritor em progresso, ou para quem tem pretensões a escrever, não basta ler e saber como escrever. É preciso escrever. Nada de novo. Não comprei.

    Mas, duas semanas depois recebi o telefonema de uma amiga, chamemos-lhe cúmplice da leitura, para usar a expressão de MEC, e companheira de viagem pela escrita, a AI: “Já leste o livro do MEC?” É delicioso, prosseguiu mais ou menos neste registo. Nessa tarde ia à Feira do Livro. “Convenceste-me!” Como todas as pessoas que se intitulam ávidas leitoras (ou outros predicados semelhantes), só há uma desculpa para não comprar mais livros, não gastar mais dinheiro em livros.

    Comprei. Num outro stand da Feira do Livro, o alfarrabista de serviço viu-me com o livro e desdenhou. Que não havia nada de especial, que o título do livro deveria ser diferente, como por exemplo, Como eu escrevo, uma vez que era muito pessoal. Nem sequer era sobre o processo de escrita propriamente dito, como é o caso do de Stephen King, ou com técnicas de escrita, como este (para mim, claro) extraordinário Criative-se – Curso Completo de Escrita Criativa, de Pedro Sena-Lino. Não, o senhor alfarrabista, que muito apreciava escutar MEC, ficara desiludo com o tom pessoal deste Como escrever, publicado recentemente pela Bertrand Editora.

    Bom, para quem estivera hesitante, perceber que afinal acabara de fazer uma compra medíocre, não fora propriamente a conversa mais encantadora. Guardei, mas não me deixei impressionar. Todavia, a AI é uma leitora em quem confio, uma cúmplice, vá.

    Comecei a ler nessa mesma noite. E não consegui parar. Sublinhei, copiei excertos e escrevi nas margens. MEC selecionou uma qualidade de papel, cuja gramagem permite escrevinhar e sublinhar a bel-prazer. Mais do que isso, tem super-margens para que os leitores que gostam de marcar os livros o façam de consciência tranquila. Além disso, com um conselho muito útil de MEC: façam-no com letra legível. O mesmo se aplica à escrita. Escrever com letra que possamos entender quando tivermos mais dez anos. Parece óbvio, mas quem, como eu, escreve à mão, sabe muito bem que é bom ter esse lembrete.

    Sim, é pessoal, mas mais do que um manual – que não o é –, Como escrever é um apelo de MEC a que todos nós nos sentemos a escrever sobre nós próprios, não apenas porque é sobre nós que mais sabemos, sobretudo, por ser a escrever que nos ficamos a conhecer melhor.

    Com efeito, para mim, este é o maior motivo para se ler este livro. Se estou aqui, neste momento é por ter imensa vontade de escrever sobre a minha leitura. E aqui ficaria por muitas mais linhas, mas creio que por ora o importante é, realmente, enaltecer MEC pela forma como me impeliu a escrever mais, e sem freios, e sem pudor sobre o que me apetece.

    Depois logo se vê o que fazer com o que resultar dessa escrita desenfreada. O que importa é escrever, o como e para quem é secundário. Porque escrever é libertador. É a possibilidade, muito esquecida, de falar sem ser interrompido e de dizer ao outro tudo o que não temos coragem de lhe dizer na cara. Melhor ainda, podemos editar o que dizemos e, depois, enviar uma carta sem erros de interpretação, tão-só dissemos exactamente o que queríamos ter dito.

    Só por isso, vale a pena ler, rabiscar e comentar este Como escrever de MEC, a quem aproveito a oportunidade para agradecer a generosidade de partilhar o que lhe apeteceu escrever sobre como escrever.

  • O inconformado

    O inconformado

    Título

    Carlos Antunes Memórias de um Revolucionário

    Autor

    ISABEL LINDIM

    Editora

    Oficina do Livro (Abril de 2024)

    Cotação

    13/20

    Recensão

    Um homem pode ser um herói ou um vilão, dependendo de quem relata a sua história. Neste livro de memórias relatadas na primeira pessoa e recolhidas pela sua enteada (Isabel Lindim), Carlos Antunes sai, sobretudo, com a imagem de alguém que nunca se conformou com as coisas.

    Sem dúvida, que Carlos Antunes, que liderou com outra dissidente do PCP, Isabel do Carmo, a criação das Brigadas Revolucionárias (BR), será um vilão para muitos, ou mesmo um terrorista. A organização esteve por detrás de vários atentados e assaltos. Também para a PIDE, a polícia política do Estado Novo, era visto como um delinquente perigoso. 

    Para muitos da extrema-esquerda, Carlos Antunes, será um herói, bem como todos os que participaram nas acções da BR.  As actividades da BR mantiveram-se mesmo após o 25 de Abril e acabaram por ser seguidas e ainda mais radicalizadas pelas FP-25. 

    Carlos Antunes não queria ir para a tropa. A clandestidade salvou-o do serviço militar. O seu caminho ficou traçado. Acreditava ser um pacifista (“e ainda hoje tenho essa mania“, afirmou, citado na obra). 

    Para mim, nascida em Abril de 1974, é surreal (e aterrador) ler os relatos de  quem fez testes a bombas na serra da Arrábida, em preparação para assaltos e atentados. Mas ler este livro é isso: ver, por dentro, como foi que actuaram alguns destes militantes de extrema-esquerda na luta contra a ditadura e mesmo depois da chegada da democracia. O que sentiam, como viviam, com quem falavam e se relacionavam.

    Ler esta obra pode causar indigestão a alguns. Pode deixar outros inspirados. Será útil para investigadores e historiadores. Permite ter um vislumbre, a partir de dentro, de um movimento que se radicalizou na busca de uma sociedade que queria que fosse mais justa e solidária, nomeadamente com os povos das antigas colónias ultramarinas. 

    Numa altura em que políticas e ideologias de raiz totalitária renascem nos governos no poder de países do Ocidente, nomeadamente na Europa, esta pode ser uma obra para se reflectir. Vivemos, actualmente, numa era em que regressam a censura, a eliminação da liberdade de expressão, a perseguição a “dissidentes”. Hoje, os meios de censura e perseguição são as leis e o silenciamento das opiniões no espaço digital. A cultura de cancelamento e ostracização laboral, económica e social. A propaganda nos media está em níveis máximos. Vivemos in loco a obra distópica ‘1984’, de George Orwell. Por isso, o conhecimento da História é cada vez mais relevante. Para que não se caia nos mesmos erros. Nem no lado dos governantes e ditadores, nem do lado de quem combate as ditaduras. Para que o futuro possa ser moldado, não por ditadores nem por extremistas e radicais, mas por inconformados moderados. 

  • Jogos de luz e sombra

    Jogos de luz e sombra

    Título

    Uma brancura luminosa

    Autor

    JON FOSSE (tradução: Liliete Martins)

    Editora

    Cavalo de Ferro (Fevereiro de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Embora já (bem) reconhecido em Portugal antes de ser laureado com o Prémio Nobel da Literatura, um leitor desatento (ou com pouco tempo) tem nesta novela de Jon Fosse uma oportunidade de ouro para se introduzir na obra (e mente) deste ‘estranho’ escritor que usa  Nynorsk, o padrão menos usado do norueguês.

    Conhecido pela sua prosa minimalista e pelas suas obras de dramaturgia repletos de pausas, silêncios e repetições, Jon Fosse construiu em ‘Uma brancura luminosa’ – a opção da editora na ‘Kviitleik, que significa ‘Jogo de Luz’ – uma atmosfera abstracta mas meditativa a partir de um absurdo: um homem, que conduz sem destino, fica atolado e busca ajuda pela escuridão até encontrar uma ‘luz’.

    Numa prosa onde leitor entra também num espaço onde a luz e a sombra – tanto literal quanto metaforicamente – se entrelaçam, o resultado é uma escrita que, em simultâneo, revela e oculta, com frases ecoando de forma circular, voltando a emergir com ligeiras variações, como ondas, transmitindo, por vezes, um efeito quase hipnótico, meditativo, tornando-se assim numa experiência sensorial e emocional.

    Ao contrário das suas obras anteriores, os personagens tornam-se quase inexistentes, no sentido da sua relevância narrativa, funcionando mais como vozes, fragmentos de pensamento e de emoção, aparentando uma intenção de se captar somente a essência daquilo que significa estar vivo, num mundo onde o tempo e a memória se desvanecem de forma imperceptível.

    Apesar da característica técnica da repetição, uma das marcas de Fosse, nada se mostra redundante; cada iteração carrega uma nuance emocional ou simbólica diferente. Em alguns momentos, a repetição gera uma sensação de claustrofobia, como se as palavras e as ideias estivessem presas num ciclo eterno, numa cadência musical, que quase convida a meditações zen, não fosse a claustrofobia do escuro.

    Assim, num mundo literário cada vez mais focado em histórias rápidas e acessíveis, Fosse oferece uma alternativa rara e preciosa em apenas 54 páginas: a literatura como experiência espiritual, como reflexão existencial, como arte. 

  • O primeiro milionário da História

    O primeiro milionário da História

    Título

    O homem mais rico de sempre

    Autor

    GREG STEINMETZ (tradução: Isabel Pedrome)

    Editora

    Casa das Letras (Julho de 2024)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    É considerado o homem mais rico de sempre mas morreu apenas acompanhado das pessoas a quem pagava para o servirem. Quando estava no leito de morte, a sua mulher estava com o amante. Esta é a história de vida de Jakob Fugger, camponês tornado banqueiro e ultra-milionário, contada pelo norte-americano Greg Steinmetz, que foi jornalista e analista de bolsa. 

    A obra está recheada de factos e eventos que nos remetem para a época do Renascimento e para um mundo de Papas, Reis e Imperadores. Os detalhes ajudam o leitor a espreitar aquilo que terá sido a vida extraordinária do banqueiro alemão que se tornou milionário e esteve, segundo o autor, nas origens da Reforma de Martinho Lutero. Também terá patrocinado a viagem de circum-navegação de Fernão Magalhães. 

    Jakob Fugger era um plebeu, neto de camponeses, que se tornou comerciante e banqueiro. Nasceu e viveu na Alemanha nos séculos XV e XVI e, aquando da sua morte, acumulava uma fortuna que ascendia a cerca de 2%  da riqueza produzida na Europa. Conjugava talento, frieza, determinação e ousadia.

    Fugger conseguiu impor-se numa era de monarcas e em que a Igreja era poderosa.  As suas façanhas e o seu engenho para os negócios moldaram o mundo financeiro até aos nossos dias. Tinha influência na política, numa época em que dinheiro e guerras andavam de mãos dadas (e não andam hoje?). 

    Mas também “explorou trabalhadores, aterrorizou a família, combateu Lutero e financiou guerras contra o seu próprio povo em nome da ordem social”. Steinmetz cita, na obra, uma descrição de Fugger feita pelo fundador do partido socialista da Alemanha, Ferdinand Lassalle:

    “Agora todos estão nas mãos dos banqueiros

    São eles os verdadeiros reis do nosso tempo!

    É como se uma ventosa gigantesca em Augsburg

    Tivesse rodeado com todos os seus tentáculos

    Todo o país, e com isso sorvesse todo o ouro

    À tona de água para o seu interior.”

    Do Renascimento aos dias de hoje, há coisas que mudaram e outras não. 

  • O segredo por detrás de uma vida equilibrada

    O segredo por detrás de uma vida equilibrada

    Título

    Como ter tempo para tudo

    Autora

    SOFIA PEREIRA 

    Editora

    Manuscrito (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Ajudar o leitor a equilibrar a vida pessoal, familiar e profissional é o que propõe este livro de Sofia Pereira, especialista em gestão consciente do tempo.

    Curiosamente, uma das propostas é que, se ainda não o faz, deve começar a tirar tempo para si, todos os dias!

    O livro conta com perguntas, em cada capítulo, que ajudam o leitor a observar o seu dia-a-dia e a verificar para onde ‘voa’ o seu tempo, diariamente. Um exemplo de questão no domínio do propósito de vida é: “o que o motiva a levantar-se todos os dias da cama e viver mais um dia?”

    A autora também propõe, por exemplo, uma análise às conquistas pessoais, aos talentos e aptidões (e como estão a ser ‘monetizadas’ em termos de valorização pessoal e profissional). Como não podia deixar de ser, uma das ferramentas propostas pela autora é dizer “não”, mas de forma “gentil e firme”. A especialista também apresenta múltiplas estratégias práticas e específicas, designadamente para “não deslizar em interrupções”, incluindo na gestão de correio electrónico, por exemplo.

    Na obra, há ainda espaço para saber como lidar com os “sabotadores internos” e os intrusivos “pensamentos excessivos”, além do grande papão que é a “procrastinação”. O leitor também encontra exercícios para se pôr à prova e integrar melhor as ferramentas propostas pela autora. Um dos capítulos, “o sexto passo” numa mudança na gestão de tempo, propõe um planeamento consciente, com a sugestão de “práticas conscientes a manter”.

    No fundo, um resumo da obra poderia ser o de sugerir a implementação de uma estratégia para desligar o ‘piloto automático’ que tem conduzido o leitor por uma vida em que o tempo é um bem escasso e não chega para tudo, uma vida assoberbada de tarefas e desgastante. Mas, para desligar esse ‘piloto automático, é preciso estar atento à condução e saber para onde vai. Este livro pode servir de guia para definir (e avançar por) esse novo rumo em direcção a um dia-a-dia mais organizado e a uma vida mais tranquila e feliz.  

  • Do belo e do prazer

    Do belo e do prazer

    Título

    Receitas & Estórias

    Autor

    OCTÁVIO VIANA 

    Editora

    Thorn Publishers (2023)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Começo esta recensão com uma declaração de interesses: conheço o autor e tenho acompanhado, ao largo, a sua caminhada no mundo da escrita e da publicação das suas obras e também as suas partilhas de experiências gastronómicas. Conhecemo-nos de uma ‘outra vida’ minha, quando escrevia a tempo inteiro sobre mercados financeiros e economia. De vez em quando, lá o questionava, fosse para tirar dúvidas ou para lhe pedir comentários sobre acontecimentos da actualidade.

    Feita a declaração, também sentia que tinha de fazer esta recensão. Este livro, por acaso, é do Octávio. Mas, a partir do momento que o abri e li, passou também a ser um bocadinho meu.

    Depois, reúne dois temas que muito aprecio: ‘comida’ e ‘estórias’. Sim, gosto de receitas. Mas gosto mais da ‘comida’. É que as receitas, dependendo de quem as executa, resultam em experiências sensoriais únicas. Cada pessoa tem a sua assinatura na cozinha (nem sempre para o saboroso). E, no meu caso, até posso (com muito esforço) seguir a receita a preceito. Mas, é certo e sabido, que da segunda vez já será feita ‘a olho’ e, com azar, levando uma pitada extra disto ou daquilo.

    Assim, depois de deixar o Octávio (e muitos leitores) aterrorizados com esta minha confissão, passo a partilhar um olhar mais detalhado sobre as ‘receitas’ e as complementares ‘estórias’.

    Para começar, as receitas já ganham um aroma específico só pelo facto de serem acompanhadas pelas mais diversas situações e personagens. Acredite: quando experimentar executar uma das receitas do livro na cozinha, se tiver lido a estória que a acompanha, vai lembrar-se dos personagens e imaginá-los ali, ao pé de si (e, até, a fazer comentários).

    Por mim, agradeço ao Octávio por ter escrito e publicado este livro (já andava para escrever sobre ele desde que foi publicado). Só pela página 35 já valeu a pena ler o livro.  Melhor: pelas páginas 33, 34 e 35. Trata-se de uma receita de torta di ricotta e pistacchio (descrita na página 35). A breve estória em torno desta receita inclui uma noite fria de Inverno, em plena pandemia de covid-19, que em Itália, como em Portugal, infelizmente, envolveu um radical e irracional fecho de actividades, que afectou também o sector da restauração.

    Também recomendo que espreite o capítulo 23 sobre “os gnocchi da Simona, Roma, Itália”.

    O livro de receitas (e as suas estórias) são de uma riqueza sensorial imensa e remetem para um mundo de prazer, beleza e paz. Um retiro. Gourmet e delicioso. Bellissimo.