Etiqueta: Recensão

  • Outro livro que vai irritar libertários e conservadores

    Outro livro que vai irritar libertários e conservadores

    Título

    São favas contadas

    Autor

    GUIDA CÂNDIDO

    Editora

    Dom Quixote (Outubro de 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Nada como um par de brócolos para tirar conservadores do sério. Como bónus, também funciona para deixar libertários à beira de um ataque de nervos. É verdade: as dietas e opções nutricionais transformaram-se numa das armas a usar nos vastos campos de batalha em que se tornou o espaço público mediático e digital. Como quando éramos crianças, hoje, não há meio termo: ou se é do Benfica ou do Sporting. Nada de ser do Belenenses ou do Académica. A rivalidade é a valer. Assim, é também esse o cenário que encontramos no mundo de uma vasta camada de adultos ocidentais. Se não és do meu ‘clube’, és do ‘clube’ rival. Não há cá meio termo.

    Estará o leitor a questionar se me enganei no texto e a indagar o que é que isto tem a ver com o livro analisado nesta recensão. Tem tudo a ver. As dietas sempre foram sintomas de credos e religiões e dão pistas para a origem familiar de cada um. O indiscutível bacalhau e o embaixador pastel de nata que o digam. Mas a dieta é também um sintoma ideológico. Ninguém que se diga conservador se assume como vegetariano numa qualquer rede social. Ficava mal. O mesmo vale para um libertário. É tudo gente que come carne ao pequeno-almoço, ao almoço e ao jantar. Se, por acaso, algum for apanhado a comer uma saladinha vegetariana ao almoço, está frito. Irão surgir suspeitas de tiques de wokismo com uma pitada de extrema-esquerda, caviaríssima, naturalmente. 

    Por isso, este livro é tão bom… Permite, de uma só cajadada, ‘matar dois coelhos’, irritando conservadores e libertários. Traduzido para a realidade ‘tuga’ corresponde, mal comparado, à malta que usa polo ou roupa boa de marca, bem como todos os amantes de tourada, caça e monarquia, com socialistas e social-democratas à mistura. Mas, na realidade, este livro permite ‘matar três coelhos’ com uma só cajadada. É que vai também irritar a malta woke, da extrema-esquerda e ‘liberal’. Em linguagem lusa, apanha parte dos que votam no PAN, dois ou três do Bloco e toda a seita da Climáximo. Isto, porque o vegetarianismo está ali no limbo, ideologicamente falando. Num mundo ocidental polarizado ideologicamente, ser vegetariano é não ser nem carne nem peixe. Literalmente. Ou se é vegan ou totalmente carnívoro. No fundo, qualquer vegetariano vai ser odiado pelos wokistas de cabelo rosa e, em simultâneo, pela malta da ‘direita’, em geral. 

    Claro que há excepções. Aliás, acabei de me lembrar de uma amiga ultra-conservadora que não come carne. Mas é um caso e vamos ver quanto tempo resiste à pressão dos pares ‘liber-cons’.

    Em resumo: com tantos bónus, acresce que se trata de uma obra que dá gosto ler, ver e sentir. O papel é daqueles que já pouco se vê. Tem fotografias catitas e ‘cheira a livro’. Está recheado de receitas e, como acompanhamento, apresenta uma componente histórica sobre a arte da cozinha, dos saberes antigos, daqueles que misturam nutrição com mezinhas milagrosas.

    Apesar de ser um livro sobre vegetarianismo, pesa que nem um naco de carne para assar. Com osso. Por isso, não é aconselhável para se levar de trotinete até à Baixa ou de bicicleta até aos Anjos, a não ser que se tenha aquele acessório tipo cesto, próprio para mostrar na vizinhança os legumes biológicos comprados a cada Sábado, depois do brunch e antes do almoço-piquenique com manta adequada. É que isto de ser de esquerda, hoje, em dia, é muito trabalhoso. Além de caro.

  • O (bom) regresso do escriba-mor

    O (bom) regresso do escriba-mor

    Título

    À descoberta das Ilhas Selvagens

    Autor

    JOSÉ PEDRO CASTANHEIRA

    Editora

    Tinta da China (Junho de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    A crónica (e a literatura) de viagem constitui um género literário que explora a narrativa de experiências reais, frequentemente sob uma perspectiva pessoal e intimista, em diálogo permanente com o (futuro) leitor. Entre as diversas formas de literatura de viagem, o diário de bordo, ou ‘logbook’, destaca-se por ser um registo minucioso de uma lenta jornada marítima, mas onde se tenta sobretudo captar, na aparente monotonia da viagem, os detalhes mais ‘épicos’.

    Daí que, excepto se envolver uma pescaria (onde a ficção sobre o número e o tamanho dos peixes capturados é permitida), quem se abalança para a escrita de um diário de bordo tem de ser um observador minucioso, atento às nuances do mar, do céu, dos sons e das emoções, o que desafia o autor a buscar detalhes estimulantes tanto na oceanografia física como na meteorologia, nas variações acidentais dos humores e amores da tripulação, e tudo isto temperado, com bastante sal, em reflexões interiores, criando-se assim uma narrativa que quebre uma aparente inacção, sobretudo se em causa não estiver uma guerra, claro.

    Não sendo já possível, em pleno século XXI, ‘desbravar’ agora os mistérios dos mares – como fizeram Cristóvão Colombo, James Cook ou mesmo Richard Henry Dana –, não deixa, contudo, de haver espaço para os ‘logbooks’ mais descontraídos, que já não relatam o desconhecido e o perigoso, mas sim as peripécias divertidas de quem olha para uma viagem marítima com deleite. E é também por deleite, mais que por conhecimento, os leitores devem saber ao que vão…

    Sendo, assim, um relato (também) documental em ‘conversa’ com o leitor, o diário de bordo, pela sua estrutura, permite que se acompanhe, ‘em tempo real’, as sensações e as reflexões do viajante, daí que convenha muito que o cronista seja ‘dextro’ para que o relato não seja um ‘sinistro’.

    Ora, um diário de bordo escrito por José Pedro Castanheira, um dos mais cotados jornalistas da sua geração, agora já ‘reform(ul)ado – mas ainda com carteira profissional devidamente actualizada (CP 204) –, será, desde logo, uma garantia de qualidade literária, tanto mais que não estamos perante um ‘novato’ neste registo: em Agosto de 2022 já ele publicara ‘Volta aos Açores em quinze dias’, sobre o qual se escreveu aqui, com os mesmo companheiros de (der)rota. Este livro recebeu, aliás, o Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga, atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores no ano passado.

    Recebeu-o, é certo, e atrevo-me a dizer que imerecidamente, por uma simples razão: este ‘À descoberta das Ilhas Selvagens’ é francamente superior – e, assim sendo, ficará prejudicada a probabilidade de concederem a José Pedro Castanheira um novo prémio quase em ano consecutivo.

    Seja como for, deve dizer-se que neste seu segundo diário de bordo, o escriba-mor (como é apresentado) José Pedro Castanheiro está muito melhor, mais solto, mais irónico, mais contemplativo e reflexivo, mais informativo, mais compreensivo com os azares e sortes nos fluídos terrenos dos mares, que descreve com minúcia e perícia.

    Melhor, muito melhor do que o ‘Volta aos Açores em quinze dias’, onde as maravilhas da travessia pelo arquipélago perdido no meio do Atlântico acabaram substituídas pelo omnipresente temor à pandemia, de sorte que se tornou mais um ‘diário de bordo covídico’, passado, acho, mais em terra do que no mar, porquanto uma parte subastancial desse desse livro acabou escrito em confinamento no quarto de um hotel.

    Passada essa tormenta e alcançada Trapobana, temos, portanto, um excelente regresso de José Pedro Castanheiro ao seu melhor, ao melhor do jornalismo ao serviço da arte da literatura de viagem. 

  • Conexão divina (e felina)

    Conexão divina (e felina)

    Título

    Tarot dos gatos

    Autora

    BETTI GRECO (tradução: Alexandra Cardoso)

    Editora

    Marcador (Outubro de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Chegado o Outono e a chuva, o chamamento para ir para ‘dentro’ começa a dar os seus sinais. É uma época que confere a oportunidade para se mergulhar em si próprio e reconectar-se com o seu interior. Esta obra, composta por livro e conjunto de 78 cartas de tarot, pode ser um dos instrumentos úteis para esse ‘mergulho’ interior. 

    Em primeiro lugar, destaca-se o facto de se tratar de um objecto esteticamente aprazível. As cartas de tarot com ilustrações de gatos são deliciosas, sobretudo para quem aprecia os felinos e também este tipo de ‘packs’ de tarot, de cartas de anjos, deuses ou similares. De resto, as maravilhosas ilustrações são também da autora do texto. Betti Greco é uma ilustradora e designer gráfica italiana. Cada carta do tarot é única e mesmo as cartas ‘Louco’, ‘O Enforcado’ e Morte’ são perfeitas, a meu ver. Ter ilustrações de gatos em cartas de tarot, realmente tem um impacto positivo, traz leveza e descontracção, à forma como lidamos com uma sessão de leitura ou meditação.

    Depois, é muito simples de utilizar e pode ser usado para ajudar numa meditação sobre alguma temática sobre a qual se pretenda reflectir ou encontrar uma resposta para um desafio. Pode sempre ser também usado como ferramenta de aconselhamento para ajudar a tomar decisões e guiar o rumo para o futuro.

    Experimentei meditar e tirar uma carta para testar o conceito. Fiquei satisfeito com a resposta que surgiu a uma questão que coloquei. Mas, no final do pequeno livro, a autora deixa instruções sobre formas de usar o tarot de diversas formas e para diversos fins. 

    De resto, a Betti Greco deixa também uma nota no pequeno livro que integra o conjunto: entrou no mundo do tarot pela mão de uma amiga, Elena, e é a ela que dedica este baralho. Não sei se será por isso, mas sente-se, de facto, ao pegar no livro e no baralho, que este conjunto foi sonhado, desenhado e produzido com muito carinho. E só isso altera a forma de se estar, antes de meditar ou fazer uma leitura. Outro aspecto interessante é que a autora sugere que se prepare a leitura na presença de um gato, se tivermos um na ‘família’. O objectivo, diz Greco, é criar um ambiente descontraído para a meditação e a leitura das cartas. Se não se tiver um gato, parece que outro animal de estimação serve. 

    Concluindo, este ‘pack’ foi uma agradável surpresa, tanto em termos estéticos, como ao nível de experiência pessoal. E, ao contrário da sugestão da autora, nem sequer tinha um gato por perto. 

  • Maniqueísmos, ou o Médio Oriente sob viés

    Maniqueísmos, ou o Médio Oriente sob viés

    Título

    O dia que mudou Israel

    Autora

    HELENA FERRO DE GOUVEIA

    Editora

    Oficina do Livro (Setembro de 2024)

    Cotação

    6/20

    Recensão

    Este livro deve começar a ser lido a partir das duas últimas páginas de texto, excluindo as derradeiras, onde consta uma bibliografia de ‘trazer por casa’, sob a forma de fontes (listagem de órgãos de comunicação social) e de ‘Estudos’, com uma dezena de referências bibliográficas de obras, todas, sem excepção, publicadas entre 2020 e 2023.

    Bom, em abono da verdade, perante essa imagem de pedantismo – elencar fontes que, pela exiguidade, mostram afinal uma parca investigação por parte do(a) autor(a) –, talvez bastassem essas duas páginas de bibliografia para nos decidirmos a ler (ou não) este ‘O dia que mudou Israel’, de Helena Ferro de Gouveia.

    Mas peguemos no texto das tais últimas duas páginas desta obra, que tem a grande vantagem de ser curta. Helena Ferro de Gouveia termina escrevendo: “Israel não é culpado de tentar obstinadamente sobreviver”. E isto depois de, em parágrafos anteriores, já ter manifestado que “a indignidade humana alcançou os israelitas ali, na sua fronteira, sem fuga possível” e que o conflito do Médio Oriente “também é a dor dos palestinianos”, mas para logo a seguir, de uma forma simplista, e ao melhor estilo do ‘Omo lava mais branco’, acrescentar, em português algo macarrónico: “As crianças inocentes de Gaza, também elas vítimas do Hamas.”

    Livros como este, o de Helena Ferro de Gouveia, ‘nascem’ não para informar ou esclarecer, ou ainda para reflectir, mas sim para emocionar, expondo o sofrimento de uma das partes no conflito do Médio Oriente, e assim justificar acções ou reacções. É a tradicional obra de propaganda de um dos lados com uma visão maniqueísta, algo problemático para quem se orgulha dos anos de jornalista e de uma suposta mundividência por já se ter trabalhado “em mais de cinquenta países em quatro continentes”. Esta visão, em que se retrata um lado como vítima absoluta e o outro como opressor incontornável, é pouco compatível com a complexidade histórica e política do conflito israelita-palestiniano, um dos mais longos e intrincados do Mundo contemporâneo, mas sobre o qual a autora passa intencionalmente ao lado.

    Mostra-se inegável que o ataque do Hamas em 7 de Outubro do ano passado foi de uma brutalidade atroz, e os relatos de Helena Ferro de Gouveia captam essa crueldade através de uma linguagem carregada de adjetivos fortes, descrevendo a dor dos sobreviventes e a desolação dos familiares das vítimas. Esses detalhes crus e directos até poderiam ser relevantes como testemunho, mas não aparenta ser essa a intenção. Helena Ferro de Gouveia usa as páginas do livro para, expondo a dor, justificar uma retaliação insana. O princípio judaico de “olho por olho”, que muitos já consideram desumano, tem estado rapidamente a ser ultrapassado por uma espiral de vingança, onde a resposta israelita se traduziu numa carnificina contínua, atingindo alvos civis, e ampliando ainda mais o ciclo de violência.

    Não se pode ignorar o sofrimento do povo israelita, especialmente daqueles que foram alvo de ataques terroristas, assim como é impossível olhar para a realidade dos palestinianos sem reconhecer as suas décadas de marginalização, perda de território e direitos básicos. Quando se descreve apenas uma parte da equação, seja ela qual for, perde-se a capacidade de promover uma verdadeira reflexão sobre a coabitação desejável entre povos, culturas e religiões em tempos que não se querem obscuros. E é exactamente aqui que o discurso de Helena Ferro de Gouveia se torna limitado. A sua liberdade para expor a dor israelita, com uma clareza indiscutível, mostra-se necessária, mas, sem a contrapartida de uma análise profunda das razões que alimentam o ódio do outro lado, o resultado acaba por ser um texto enviesado.

    No seu prisma sectário, ‘O dia que mudou Israle’ apenas cumpre, lamentavelmente, uma única função: alimenta as narrativas de uma das facções, ‘massajando’ os seus argumentos e fornecendo combustível para se ver como vítima absoluta ou herói inquestionável. E isso nunca foi bom para a paz. Nem este livro é bom sequer para ser lido, excepto para quem apreciar a visão de Helena Ferro de Gouveia. Para esses sim, recomenda-se a leitura, assumindo-se que, para esses, à classificação atribuída nesta recensão até se deverá acrescentar um 1 na posição das dezenas.  

  • O fim da submissão

    O fim da submissão

    Título

    Pare de (tentar) agradar aos outros

    Autor

    HAILEY MAGEE (tradução: Elisabete Nunes)

    Editora

    Albatroz (Outubro de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    O título original deste livro, na sua versão em inglês, é Pare de agradar aos outros − Encontre o seu poder. Na adaptação à versão portuguesa, perdeu-se algo pelo caminho, mas também se ganhou algo. No fundo, perdeu-se a parte de ‘encontrar o nosso poder’ e ganhou-se na ideia de que, efectivamente, por muito que se tente, nunca conseguimos saber se agradamos aos outros ou não. Isto porque os outros podem estar, também, a tentar agradar-nos a nós! Uma espécie de círculo vicioso no qual uns tentam agradar aos outros e vice-versa, criando uma bola de neve infindável que desliza e acelera montanha abaixo, imparável. Algum dia, a bola terá de chegar ao vale e, aí, ou encontra um campo aberto para abrandar e estabilizar (derretendo, depois, lentamente até desaparecer por completo) ou rebenta com estrondo contra algum obstáculo que encontre na descida. Seja como for, o final dessa montanha, pode ser já na nossa morte. Por isso, seria melhor que deixássemos de alimentar a bola enquanto é tempo. No fundo, é o que nos propõe a autora deste livro: deixar de alimentar a bola de neve do ‘agradar aos outros’. 

    Agradar (ou tentar agradar) é algo que se faz como mecanismo de defesa e protecção. Pensa-se que, assim, seremos apreciados, pertenceremos a um ‘grupo’ e, numa eventual crise, não morremos à fome. Pensa-se que, assim, agradando, não se é atacado. Seremos (bem) vistos. Pensa-se, assim, que está garantida a ‘sobrevivência’. Contudo, é um mecanismo que arrisca conduzir ao burnout, ao desequilíbrio financeiro, emocional e mental. Não é possível agradar a todos, a toda a hora, e ‘sobreviver’ intacto. Há perdas a registar. 

    A autora, uma life coach, propõe ao leitor um plano dividido em quatro partes para se sair do círculo vicioso e tóxico de ‘ter’ de agradar aos outros. Na primeira parte, o leitor é desafiado a ‘descobrir-se’. Na segunda, a ‘defender-se’. Na terceira, a ‘cuidar-se’. Na quarta, e última, a ‘enriquecer-se’. 

    Pelo meio, há que largar a ‘culpa’ por não se ‘agradar’ aos outros e por dizer ‘não’. E também deixar ir a ‘vergonha’ e ‘raiva’ e convidar a ‘empatia’ por nós a entrar na nossa vida. 

    Este livro fornece, nas suas 355 páginas, muitos recursos para se atingir o objectivo pretendido e deixar de querer ‘agradar’. O que fazer com os recursos e com o livro, isso cabe apenas ao leitor decidir. Tem-se toda uma vida para o fazer, até se chegar ao vale, no fundo da montanha. 

  • O ABC das hipersensibilidades

    O ABC das hipersensibilidades

    Título

    Alérgico

    Autora

    THERESA MACPHAIL (Tradução: Dinis Pires)

    Editora

    Casa das Letras (Junho de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Não estou a mentir quando escrevo que, assim que abri este livro, comecei a sentir pó nas narinas e uma ligeira comichão nos braços, mãos e olhos. Se há algo que aprendi ao longo da vida, é que a sugestão funciona. O nosso corpo reage à sugestão. Portanto, assim que li a palavra ‘alérgico’ no título da obra, o meu corpo começou a ‘inventar’ sintomas. Dirão que, se calhar me acontece sempre o mesmo quando pego num livro e que eu é não reparei. Mas, como estava com este livro nas mãos, fiquei mais atenta. Admito essa possibilidade, embora, conhecendo o meu corpo como conheço, ele é mesmo ‘sugestionável’. Ou ‘sensível’ a sugestões. Não me pergunta nada. Entra de imediato em modo de reacção. Até que lhe digo ‘calma, não se passa nada’ e ele lá se acalma e regressa ao seu ‘normal’. 

    De resto, este é um dos temas mencionados na obra: a definição de alergia e como saber se se é alérgico ou não. É algo mais complexo do que pensava. O certo é que, até 2030, metade da população humana sofrerá de algum tipo de condição alérgica, segundo estimativas citadas pela autora. Actualmente, a percentagem está na casa dos 40%.

    A autora não poupou em investigação e terá, acredito, de ter ‘lambido’ e estudado muitas páginas de livros empoeirados e cheios de ácaros para escrever esta obra. Apresenta-se como antropóloga, médica, ex-jornalista e professora associada de estudos científicos e tecnológicos que investiga e escreve sobre saúde pública global, biomedicina e alergias. Como se não bastasse, fez doutoramentos na Universidade da Califórnia, em Berkeley e em São Francisco (ou seja, esteve bastante exposta ao vírus do ‘wokismo’, o que nada tem a ver com esta recensão).

    Esta antropóloga experienciou, na sua vida pessoal, o pior que pode acontecer no que toca ao tema das alergias. Quando tinha 24 anos, o seu pai, James MacPhail, morreu devido a uma grave reacção alérgica que sofreu depois de ser picado no pescoço por uma abelha. Tinha apenas 47 anos. 

    Anos depois, chega-nos esta obra, na qual Theresa MacPhail descreve muitos casos e exemplos de situações de pacientes que ajudam a ilustrar as diversas facetas da realidade de quem vive com algum tipo de alergia. Mais do que os casos, a autora debruça-se sobre a história, os mecanismos e o que a Ciência diz sobre essa condição que atinge grande parte da população.

    No caso do pai da autora, por exemplo, nem sequer sabia que era alérgico à picada de abelha. Quantos de nós seremos alérgicos a algo e nem sabemos? Desconhecer que se padece de uma alergia pode ser positivo, pois viveremos sem preocupação, mas também podemos morrer mais cedo, de algo que podíamos ter prevenido. Ou não, se olharmos a vida sob o conceito de destino e da crença de que tudo acontece por um motivo, mesmo a morte física. Nem que o motivo seja inspirar o nascimento de um livro que irá ajudar outros. 

  • Dois olhares sobre uma cidade

    Dois olhares sobre uma cidade

    Título

    Lisboa

    Autor

    JOÃO MELO

    Editora

    Centro Atlântico (Maio de 2024)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Lisboa faz parte da colecção Portugal, publicada pela editora Centro Atlântico. Nesta colecção, os autores convidados, entre os quais João de Melo, fazem um percurso literário pelo património de um concelho, em companhia do fotógrafo Libório Manuel Silva. Um mergulho na geografia portuguesa com recurso à palavra escrita e à fotografia (com edição em capa dura e bilíngue).

    João de Melo é natural de São Miguel (Açores), onde nasceu em 1949, mas reside em Lisboa desde 1967, onde se licenciou em Filologia Românica, na Faculdade de Letras. Foi professor do ensino secundário e, mais tarde, do ensino superior. Desempenhou o cargo de conselheiro cultural na embaixada portuguesa em Espanha, entre 2001 e 2010, e é um autor consagrado bastante diversificado nas áreas da ficção, ensaio, antologias, poesia, crónica e viagens. De entre os diversos prémios literários destaca-se o “Prémio Vergílio Ferreira (2016) pelo conjunto da sua obra” (conforme se pode ler no sítio da Centro Atlântico e onde se poderá encontrar o conjunto dos livros incluídos nesta colecção única). O seu romance mais conhecido continua a ser ‘Gente feliz com lágrimas‘, publicado originalmente em 1988, com o qual recebeu o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores e ainda, mais tarde, o Prémio Fernando Namora, Prémio Cidade de Lisboa/ Eça de Queiroz, Prémio Cristóbal Colón das Cidades Capitais Ibero-americanas e Prémio Livro do Ano da Antena 1.

    Quanto a Libório Manuel Silva, é um conhecido fotógrafo de Artes e Património Cultural e editor fundador da Centro Atlântico, tendo publicado inúmeros livros sobre Artes & Fotografia, Viagens, Fernando Pessoa, entre outros temas (informação disponível na sua página do LinKedIn).

    Em Lisboa, a prosa poética de João de Melo, complementada pelas imagens de Libório Manuel Silva, surge como um convite a olhar para locais conhecidos através de uma lente escrita, cuja perspectiva espoleta, no mínimo, uma enorme vontade de revisitar os lugares seleccionados pelo autor e pelo fotógrafo.

    A chegada via marítima de um menino a Lisboa é o mote para esta expedição, que começa com a intermediação do Rio Tejo. A vista desde o Rio para a Baixa Pombalina, o Miradouro Sophia de Mello Breyner Andresen, a Ponte 25 de Abril, a Rua de Alfama e a Antiquária de Campo de Ourique são outras fotografias que ilustram a viagem pela memória do autor, cujas páginas de ‘Gente Feliz com Lágrimas ainda reverberam noutras muitas memórias dos seus leitores.

    Entre a realidade e a ficção, numa espécie de autobiografia ficcionada, a história da personagem entremeia-se com a História da cidade e do País, num vaivém entre um passado de guerra colonial e a luz ofuscante que caracteriza a capital, tornando-a inesquecível e, claro está, um paraíso para os fotógrafos mais ou menos profissionais, certamente que todos amadores dessa cidade luminosa.

    Sendo uma versão bilíngue pode ser um presente ideal para cativar o estrangeiro a calcorrear as ruas de Lisboa, levando consigo um guia de luxo, João de Melo, ele próprio. Fica a sugestão, com dois excertos:

    A visão distende-se em arco sobre o corpo da cidade. Contempla, primeiro, uma por uma, as suas sete colinas, depois toda ela, paisagem urbana em abstracto, e finalmente a energia da vida que sobre ela passa” (p. 21).

    O trabalho do escritor difere da arte do fotógrafo, no ponto em que a escrita precisa de a si mesma se inventar para depois transcrever a linguagem do olhar – ao passo que a foto usa de uma subtileza criativa declarada na hora, sobre o imediato” (p. 33).

  • Uma história banal

    Uma história banal

    Título

    Perla, a cadelinha poderosa

    Autora

    ISABEL ALLENDE & SANDY RODRÍGUEZ (ilustração)

    Editora

    Porto Editora (Maio de 2024)

    Cotação

    10/20

    Recensão

    Isabel Allende, um dos nomes mais consagrados da literatura latino-americana, e ainda hoje recordada como autora de uma das obras mais marcantes do realismo mágico, o soberbo ‘A casa dos espíritos’ (1982), teve, na verdade, a sua estreia literária com um livro infantil, em 1974, intitulado ‘La abuela Panchita’, que teve continuidade nesse mesmo ano com ‘Lauchas y lauchones, ratas y ratones’. Julgo nunca terem sido publicados em Portugal.

    Ao longo dos anos, Isabel Allende, de nacionalidade chilena, apesar de acumular com a cidadania norte-americana, esteve sempre um pé no público mais jovem, escrevendo diversas novelas juvenis, entre as quais a trilogia ‘As memórias da Águia e do Jaguar’, publicadas em Portugal na primeira década do presente século na extinta Difel.

    Em 2024, aos 82 anos, e meio século depois dessa sua estreia, Isabel Allende regressa ao livro infantil com ‘Perla, a cadelinha poderosa’, que pode deslumbrar o público-alvo, mas levanta questões sobre os desafios que os escritores reconhecidos pelo público adulto enfrentam se se aventuraram na literatura para crianças.

    E há uma certa frustração quando se folheia, e se ‘lê’ esta ‘Perla, a cadelinha poderosa’, que conta a história de uma cachorrinha pequena e corajosa que, mesmo com seu tamanho diminuto, se mostra heróica em diferentes situações, assim ‘ensinando’ a Nico como se deve comportar durante o ‘bullying’ escolar. Embora a premissa da superação por meio da coragem seja uma ideia interessante, especialmente quando destinada ao público infantil, o enredo não se destaca pela originalidade. A superação de desafios aparentemente impossíveis face ao ‘tamanho’ é uma metáfora clássica e amplamente utilizada na literatura para crianças, mas talvez se pudesse aguardar que, com Isabel Allende, essa abordagem trouxesse qualquer elemento inovador ou surpresa narrativa. Nada: é uma banal história, embora simpática.

    A ausência de qualquer realismo mágico – a assinatura de Allende em obras como ‘Eva Luna’ ou ‘A Casa dos Espíritos’ –, que, por certo, seria bem acolhido pela ‘criançada’, é talvez o que mais marca este livro, com ilustrações da norte-americana Sandy Rodríguez que ‘não aquecem nem arrefecem’. A história é linear e mais do que previsível.

    Resta assim saber se os pais – ou até avós – que cresceram a ler os romances de Isabel Allende –, vão comprar este livro só por causa do nome da autora, e, com isso, a autora ganha um cobres. Pode até suceder, mas, confessa-se, que este pequeno livro, num género que não deve ser considerado menor, nada acrescenta de positivo, pelo contrário, para a bibliografia da escritora chilena.

  • Os segredos da fundadora da medicina holística

    Os segredos da fundadora da medicina holística

    Título

    A vida bem vivida

    Autor

    GLADYS McGAREY (Tradução: Maria Augusta Júdice)

    Editora

    Lua de Papel (Outubro de 2023)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Completaria 104 anos no dia 30 de Novembro. A autora deste livro, a médica Gladys McGarey, faleceu no passado dia 28 de Setembro, aos 103 anos. Neste livro, deixou os seus ‘segredos’ para uma “vida bem vivida”, como refere no título da obra.

    São “seis segredos para a saúde e felicidade” que a médica anciã deixou em 287 páginas, na edição portuguesa. Logo na contracapa surge um aviso: “os médicos não curam os pacientes; os pacientes é que se curam a si próprios”. Percebemos então que nos espera, talvez, um livro diferente do que imaginaríamos, sendo escrito por uma médica. Afinal, McGarey lançou, junto com o marido, as bases da medicina holística nos Estados Unidos. Na prática, trata-se de uma medicina que assume que não se pode separar o corpo da mente, pelo que é fundamental ouvir a história de cada paciente para chegar às causas das suas doenças. (Muito diferente do simples passar de uma receita para tratar os sintomas que é praticado pela generalidade dos médicos na medicina convencional).

    O primeiro segredo de McGarey pode surpreender: “estamos aqui por um motivo”. Logo no primeiro capítulo, a médica desafia o leitor a “encontrar o seu sumo”, na vida. 

    No segundo capítulo, a autora lança o repto ao leitor para se “soltar”, desvendando o segundo segredo: “toda a vida precisa de movimento”. Remover bloqueios, libertar o que não tem importância, fazem parte deste ‘movimento’ para sair da estagnação.

    Talvez o segredo mais importante será o terceiro: “o amor é a mais poderosa medicina”. Aqui, McGarey escreve sobre o papel do amor-próprio e de como deixar o amor entrar. No fundo, ensina como cada um se pode “curar amando-se a si próprio”.

    Enquanto revela os segredos para uma “vida bem vivida”, a médica relata detalhes de alguns dos muitos casos de pacientes que acompanhou durante a sua carreira que de mais de oito décadas na medicina. As muitas histórias ajudam à compreensão dos ‘segredos’ e lançam uma luz sobre a forma como McGarey cuidava dos pacientes e via a Medicina. 

    Esta médica, era já octogenária quando decidiu ir para o Afeganistão ensinar quais os cuidados a ter durante o parto, contribuindo para diminuir a mortalidade infantil naquele país.

    O amor de McGarey pela medicina (e por ajudar os seus pacientes) continuará vivo e permanecerá presente, através deste livro e das pessoas que tratou ao longo da sua carreira. “O amor tem uma rara capacidade de transformar aquilo em que toca”, escreveu a médica (página 120).  Amén.

  • As (últimas) lições de Calvino

    As (últimas) lições de Calvino

    Título

    Seis propostas para o próximo milénio

    Autor

    ITALO CALVINO (Tradução: José Colaço Barreiros)

    Editora

    Dom Quixote (Abril de 2024)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    São as últimas ‘lições’ de um grande escritor. Trata-se dos textos sobre literatura, os rascunhos, que Italo Calvino preparou em 1985, no âmbito de um ciclo de seis conferências que iria apresentar em Harvard, nos Estados Unidos. Antes de partir, teve de ser internado e já não voltou a sair do hospital. 

    Lendo o livro, senti que estava a assistir às conferências que Calvino planeava dar. Detive-me na página 79 e numa das suas ‘lições’: a ‘exactidão’ na literatura. Só a introdução que faz, antes de ‘atacar’ o tema, é de nos transportar para Harvard e, cerrando os olhos, conseguimos imaginar o orador a expor a sua posição. “Exatidão para mim quer dizer sobretudo três coisas”, escreveu Calvino. A saber: “um projeto da obra bem definido e bem calculado; a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis […]; uma linguagem o mais precisa possível como léxico e na sua capacidade de traduzir as nuances do pensamento e da imaginação”.  O parágrafo seguinte é revelador do pensamento do escritor e do seu modo de viver a literatura e a escrita, à luz das exigências da sua ‘exatidão’. “A literatura […] é a Terra Prometida em que a linguagem se torna o que realmente deveria ser.” (Mais adiante, contrapõe: “Giacomo Leopardi afirmava que a linguagem é tanto mais poética quanto mais vaga e imprecisa for”.)

    E o que dizer sobre a ‘lição’ acerca da ‘leveza’? E da homenagem a Cyrano de Bergerac? “É um escritor extraordinário, Cyrano, que mereceria ser mais recordado, e não só como o primeiro verdadeiro precursor da ficção científica, mas pelas suas qualidades intelectuais e poéticas.” E ainda: “Cyrano celebra a unidade de todas as coisas, inanimadas ou animadas, a combinação de figuras elementares que determina a variedade das formas vivas, e acima de tudo dá-nos o sentido da precariedade dos processos que as criaram […]”.

    Ainda sobre a ‘leveza’, recorda que Cyrano chegou a “proclamar a fraternidade dos homens com as couves”, imaginando o protesto de uma couve prestes a ser cortada. E cita Cyrano: “Homem, meu querido irmão, que te fiz que mereça a morte? […] Desabrocho, estendendo-te os braços, ofereço-te os meus filhos em semente e, como recompensa da minha delicadeza, cortas-me a cabeça!”

    Muito teria ainda por contar, aqui, sobre as ‘lições’ de Calvino, que abrangem ainda a ‘rapidez’, a ‘multiplicidade’, a ‘visibilidade’ e o ‘começar e acabar’. Mas termino aqui, recomendando a leitura deste livro, tenha ou não interesse em literatura, nem que seja pelo prazer de ler Calvino. E, só por isso, já vale a pena. (Os olhos e a carteira, neste caso.)