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  • Um livro que se lê enquanto se reza para que se salve

    Um livro que se lê enquanto se reza para que se salve

    Título

    Um detalhe menor 

    Autor

    ADANIA SHIBLI (tradução: Hugo Maia)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Março de 2022)

    Cotação

    13/20 

    Recensão

    Há livros que fazem os leitores, página após página, pedir que se salvem. O romance da palestiniana Adania Shibli é um desses casos, pelo tema e pela recomendação.

    Escrito originalmente em árabe, apesar da autora ser poliglota e viver entre Berlim e Jerusalém, Um detalhe menor é, na verdade, uma novela, pelo seu tamanho (140 páginas de letra grande e maior espaçamento do que o habitual) – ou até, mais apropriadamente um díptico constituído por dois contos interligados, que invocam o passado e o presente da vida (e da morte) dos palestinianos expulsos das suas terras e segregados por Israel.

    A primeira parte retrata o evento trágico e horrível de uma jovem árabe às mãos de militares israelitas em 1949, no deserto de Negueve, um ano após a criação do Estado de Israel e do chamado Nakba (catástrofe) que levou ao êxodo de 700 mil palestinianos.

    Na segunda, interligado a este acontecimento, conta a viagem quase suicidária de uma palestiniana, com o medo sempre em si entranhado, que entra por terras dos colonatos em busca de informações sobre aquele evento passado, apenas por via um detalhe menor: ocorreu 25 anos antes do seu nascimento.

    Aquilo que, porém, é uma ideia literariamente poderosa: os dramas do povo palestiniano, o seu presente assombrado pelo seu passado, esvai-se numa narrativa repetitiva, por vezes cansativa e exasperante.

    Mesmo aceitando que, na primeira parte da novela, estamos perante um deserto avassalador, com os seus peçonhentos insectos e um calor sufocante, chega a ser exasperante que Shibli exponha continuamente os hábitos de higiene do comandante da companhia israelita, bem como a evolução do seu estado de saúde resultante da mordida de um insecto (num romance longo seria aceitável; num romance curto ou novela surge como factor de desequilíbrio).

    Até à página 17, o dito comandante lava as axilas por quatro vezes. Até à página 72, quando termina a primeira parte do romance, e passa para a actualidade, são seis lavagens de axilas.

    Quase nada há do pensamento do comandante (que concentra a primeira parte do romance), nem dos seus subordinados dos da árabe sequestrada. Se a intenção de Adania Shibli era transmitir, ausência de sentimentos ou de humanismo, falha, na minha opinião: tais ausências não significam ausência de pensamento. 

    A excepção surge num longo discurso (não há diálogo) do comandante ao seus soldados que, em duas páginas, expõe de forma algo artificial (até nas palavras escolhidas) as intenções dos judeus nas terras apossadas aos árabes. 

    Um exemplo, neste trecho: “(…) E é aqui exatamente que iremos testar a nossa força criativa e pioneira, quando conseguirmos transformar o Negueve numa região próspera e civilizada, num centro para o ensino, o desenvolvimento e a cultura, à semelhança do que já fizemos nas regiões norte e centro. Apesar de agora parecerem totalmente infecundas, estas extensões de deserto irão recuar gradualmente com a plantação de árvores e a construção de projetos agrícolas e industriais, para que o nosso povo nelas possa viver. Mas, para que tudo isto se concretize, primeiro é necessário vencer aqueles que nutrem a mais feroz e roaz inimizade contra esta terra, e protegê-la o melhor que pudermos. A nossa presença aqui é ponto de partida para realizar esta visão (…)”   

    De similar problema sofre a segunda parte do romance (ou segundo conto), protagonizado por uma jovem palestiniana em viagem também introspectiva. A presença dos latidos de cães, que percorre também o relato, embora evoque o passado (também um cão acompanhou o sofrimento da jovem árabe às mãos dos israelitas), soa sempre a forçado.

    Do ponto de vista literário, existe alguma esperança de redenção no romance aquando dos preparativos da viagem da jovem em busca de saber algo mais sobre o passado da árabe de 1949, e na forma como percebemos o quotidiano dos palestinianos em Ramallah, e o apartheid a que estão sujeitos para saírem do seu reduto e poderem percorrerem as “terras ocupadas”, outrora dos seus antepassados, e as antigas vilas destruídas,  e o omnipresente medo.

    Esperamos, depois da entrada no “território ocupado”, que surja então uma ligação para além da geografia que una o passado e o presente, que se desvende algo que ajude na reflexão sobre esta quasi-impossibilidade de co-habitação entre judeus e árabes, sobre a Humanidade, sobre o bem o mal, sobre a opressão e a maldade; um qualquer rasgo que nos salve a leitura, que vá para além da simpatia pelo contexto e pela autora.

    Contudo, tudo se esvai numa escrita que aparenta, em muitas páginas, ser uma mera redacção, sem rasgos literários (excepto, porventura, na estranha descrição em torno da poeira de uma explosão), por vezes um mero Guia Michelin, com cruzamento de mapas, acompanhando um carro a rodar de um lado para o outro, ora para a esquerda e depois para a direita, com pastilhas elásticas à mistura, a seguir pela estrada Y ou Z, sem densidade nem sequer beleza estilística. Dir-se-ia mesmo que o livro foi escrito durante uma viagem, num par de dias, tão simplesmente descritivo que se mostra.

    No fim, a viagem da jovem palestiniana chega a ser um tormento sem nexo, e acaba em tragédia, sem grande surpresa, aliás. O romance fica próximo. Uma pena. O livro foi finalista do National Book Award e do International Booker Prize – sinceramente, não se entende como.

  • Crónicas de um pioneiro (esquecido) da condição negra

    Crónicas de um pioneiro (esquecido) da condição negra

    Título

    A afirmação negra e a questão colonial

    Autor

    MÁRIO DOMINGUES (ensaio e selecção de José Luís Garcia)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Janeiro de 2022)

    Cotação

    17/20 

    Recensão

    Quem percorrer qualquer alfarrabista ou feira de livros velhos, o nome de Mário Domingues (1899-1977) é incontornável. As biografias da série Lusíada – retratando, entre outras, as vidas do Padre António Vieira, do Marquês de Pombal, de reis como D. Afonso Henriques, D. Manuel I ou D. Inês de Castro, do Infante D. Henrique, e até de Moisés – tiveram, durante quase duas décadas, um retumbante sucesso editorial, daí aparecerem agora amiúde.

    Mas Mário Domingues fez muito mais do que isso, mesmo no mundo literário português. Além de jornalista, sobretudo antes da instituição do Estado Novo, foi crítico de pintura – grande defensor dos modernistas, como Almada Negreiros, numa altura em que estes não eram ainda apreciados – e sobretudo prolixo escritor. Não necessariamente de elevadíssima qualidade, mas certamente em quantidade foi quase inexcedível: sobretudo nos anos 50 terá escrito cerca de 150 livros de aventuras, policiais e até de literatura cor-de-rosa, cumprindo assim o seu sonho de viver em exclusivo da escrita.

    Porém, também tinha fito para o marketing. Para evitar a saturação do seu nome, e para dar “credibilidade” aos livros de aventuras, que se passam nos mais recônditos ambientes, este Emílio Salgari português usou e abusou de dezenas de pseudónimos estrangeiros, por vezes em dupla – como Henry Dalton e Philip Gray, “autores” de mais de uma dezena de livros –, por vezes femininos. Em diversas situações, ostentou o seu nome como suposto tradutor de uma obra alegadamente escrita por um estrangeiro, mas em muitos casos optou até por usar pseudónimo como tradutor.

    Também publicou diversos romances em nome próprio, entre 1923 e 1960, além de traduzir obras de escritores consagrados (estes sim, verdadeiros) como Walter Scott, Charles Dickens, George Elliot e Stefan Zweig.

    Não é, contudo, sobre estas questões – embora referenciadas num interessante ensaio introdutório do sociólogo José Luís Garcia, investigador do Instituto de Ciências Sociais – o tema central de A afirmação negra e a questão colonial, uma criteriosa selecção de textos publicados pelo jovem Mário Domingues, no jornal A Batalha, um diário anarcossindicalista, entre 1919 e 1928.

    Nascido numa roça de São Tomé e Príncipe de uma mãe negra que nunca conheceu – o país trouxe-o para Portugal aos 14 meses –, Mário Domingues foi dos primeiros a defender abertamente, em Lisboa, a independência das colónias africanas de Portugal, adoptando nos seus escritos n’A Batalha a causa libertária, manifestando-se contra a exploração dos trabalhadores, a dominação colonial, o racismo, a opressão sobre as mulheres e a tirania política do colonialismo moderno, em defesa da dignidade, da cultura e das organizações da população negra e africana.

    A forma desassombrada como o jovem Mário Domingues, então com 20 anos acabados de fazer, escreve o seu primeiro texto sobre esta temática, acaba por ser surpreendente quando se lêem os seus textos, sobretudo tendo em conta a época e o contexto em que ele se inseria.

    Retratando incidentes raciais nos Estados Unidos em 1919, conhecidos por Red Summer, logo no seu primeiro texto, Mário Domingues não se poupou em críticas: “(…) A imprensa burguesa da Europa não se referiu com mais largueza de vistas a esta questão, dando-lhe o aspecto de simples incidente, porque falar-se de pretos e de brancos implica falar-se de colonização, e colonização, até hoje, ainda não se pode traduzir senão por uma palavra – crime (…)”.

    Embora a chegada do Estado Novo e a sua opção pela profissão de escritor – que ele ambicionava, como confessou em conversa na RTP em 1970, nas vésperas de ser condecorado –, o tenha esmorecido nestas lutas pela condição negra, a leitura de alguns destes seus textos de juventude – que se aconselha vivamente – mostram uma faceta pioneira de um homem de valor inexcedível, infelizmente pouco evocada.

    Num dos seus 62 textos, seleccionados por José Luís Garcia, e agrupados em quatro grupos temáticos, encontramos mesmo um Mário Domingues percursor de Martin Luther King e do seus famoso discurso proferido em 1963. Mais de quatro décadas antes, em 11 de Julho de 1922, nas páginas d’A Batalha, Domingues chega também a relatar o seu “sonho encantador”, mas lamentando ser então o que ainda era: um mero sonho, que se esboroava na realidade.

    Vale a pena, e muito, expor breves passagens:

    Tive um sonho belo, um sonho delicioso, cor-de-rosa, como costumam ter as crianças ternas. Vivia feliz, uma felicidade de oiro, uma felicidade jamais gozada, toda feita de serenidade de espírito, daquela serenidade que nasce da consciência sossegada, sobre a qual não pesa a menor sombra de crime, nem nosso nem alheio (…).

     Recordo-me também de ter percorrido esse país imenso, numa velocidade fantástica, numa velocidade de sonho, e de que essa velocidade não me impediu de o ver todo, desde os desertos infinitos, amarelos, monotonamente amarelos, até os recônditos das cidades; desde as multidões aglomeradas nos campos, fechando a abundância e o bem-estar, até aos homens solitários que, escondidos nos seus lares recatados, meditam e são filósofos, estudam e são inventores (…).

     Não vi nos portais, à chuva e ao vento, velhos e doentes, leprosos como Lázaros, estendendo a mão descarnada a caridade de quem passava; não ouvi tão-pouco os gemidos dos encarcerados – que não havia –, nem dos oprimidos chicoteados; os homens não se tratavam de chicote em punho, nem se insultavam violentamente. Havia bondade e tolerância, afabilidade e simpatia nas suas relações (…).

    Onde julgava ir encontrar cadeias sombrias, deparavam-se-me escolas encantadoras, construções higiénicas, e as crianças, longe de apresentar um aspecto miserável, eram sorridentes, cativantes na sua ingenuidade; o seu olhar, em vez de possuir a expressão medrosa dos pequenos torturados, dos precocemente infelizes, tinha franqueza e audácia (…).

    – Diz-me, jovem, que mundo é este, tão atraente como os teus olhos negros, tão belo como o teu rosto fascinante, tão perfeito como o teu corpo de deusa?

    Sorriram nos seus lábios sensuais os seus dentes alvíssimos e a sua voz – cântico harmonioso e embalador – murmurou:

    – É África, continente emancipado.

    Pleno de uma emoção inexplicável, a respiração opressa, o coração perturbado pela novidade feliz, interroguei ainda:

    – E os brancos, os déspotas, onde estão eles?

    Cintilou de novo um sorriso sedutor nos seus dentes alvos:

     – Déspotas, já não há, meu amigo; vai longe o seu tempo. Os bancos compreenderam que não deviam manter o seu predomínio iníquo e os negros conquistaram com a sua fé numa humanidade melhor a sua Independência. Agora, brancos e negros vivem em paz, trabalham juntos e tanto uns como outros têm o mesmo direito à abundância e à alegria que são comuns.

    O sonho terminou aqui. E a visão rápida que de corpos segmentados que baqueiam, de mulheres prostituídas, de povoações incendiadas, de velhos queimados pelas chamas destruidoras, de amantes ultrajados, avolumou-se de súbito, tomou proporções gigantescas, empanou o brilho rutilante do sol e estendeu sobre este mundo ideal a sua asa negra, abafadiça, eliminando da minha alma a impressão radiosa da paz e da bondade – deixando nela gravada apenas a dor de viver numa cidade injusta!”

    Se outro mérito não tivesse esta obra produzida por José Luís Garcia – e tem, e muitos –, já valeria pelo resgatar do esquecimento da figura de Mário Domingues, pouco conhecida e muito menos ainda reconhecida. Leitura recomendava, sobretudo para quem julgar que o sonho da completa emancipação negra e a desejada harmonia racial é “coisa” recente.

    Nota: Até dia 28 de Março encontra-se patente na Biblioteca Nacional uma mostra sobre Mário Domingues na Sala de Referência, sendo a entrada livre. 

  • Um bailado de escrita ao som de piano

    Um bailado de escrita ao som de piano

    Título

    A mãe de Frankenstein

    Autor

    ALMUDENA GRANDES

    Editora (Edição)

    Porto Editora (Fevereiro de 2022)

    Cotação

    16/20 

    Recensão

    Considerada uma das autoras da literatura espanhola com maior êxito e com maior projeção internacional, Almudena Grandes, falecida em Novembro passado, confessou que sempre quis ser escritora, incentivada pela mãe e pela avó. E foi em toda a sua plenitude desde o início.

     O seu primeiro livro, Las Edades de Lulú (1989), aclamado e premiado pela crítica, foi também adaptado ao cinema, com grande êxito. Posteriormente publicou, entre outros, romances como Te Llamaré Viernes (1991), Los Aires Difíciles (2002), Castillos de Cartón (2004) – estes dois publicados em Portugal em 2008 e 2007, pela Dom Quixote) e Besos en el Pan (2015).

     Em 2010 iniciou uma série intitulada Episodios de Una Guerra Interminable, um conjunto de seis romances sobre a resistência antifranquista no período compreendido entre 1939 e 1964, com Inés y la Alegría, tendo o quarto, Los Pacientes del Doctor García (2017), sido galardoado com o Prémio Nacional de Narrativa e o Prémio Liber. Este romance foi também publicado em Portugal em 2020 pela Porto Editora.

    Tal como a própria autora afirmou diversas vezes, com esta série de romances pretendeu seguir o modelo de Benito Pérez Galdós (1843-1920), na obra os Episodios Nacionales, onde aquele autor introduz ficção num quadro histórico perfeitamente definido. “Não sei quantos escritores há no Mundo que se podem gabar de ter inventado, no último terço do século XIX, um formato narrativo que pode ser utilizado no primeiro terço do século XXI”, disse a autora, referindo-se a Galdós, que escreveu seis séries de um conjunto de 46 romances sobre a História da Espanha.

    Almudena Grandes confessou muitas vezes a sua admiração por Galdós, que, nas suas palavras, lhe «ensinou coisas que são fundamentais para a profissão: construir romances como casas [em que a estrutura é o elemento mais importante] e, em segundo lugar, contar a história desde baixo, na perspetiva das pessoas da base.» E é, inegavelmente isso que ela fez em A Mãe de Frankenstein.

    Com a mestria dos grandes, Grandes conta-nos, num romance canónico, uma boa história, num enredo sólido e personagens densas (as principais são pessoas reais), e muito bem construídas. O romance é contado na primeira pessoa, ou melhor dizendo, através de três primeiras pessoas, alternadamente: o médico, Gérman Velázquez; a doente, Aurora Carballeira, e uma das suas cuidadoras, Maria Castejón, que vão narrando com recurso a analepses e interpretações diferentes das mesmas situações. Ama história começa em 1954, mas leva-nos ainda ao início da guerra civil espanhola, e ainda mais atrás, ao dia em que Germán Velázquez, ainda uma criança, assistiu a um acontecimento que lhe marcaria a vida e o encaminharia para a profissão que também foi a do pai: médico psiquiatra.

     Nesse dia, uma mulher estranha, na sua explicação infantil, entrou-lhe pela casa dentro, acompanhada pelo seu advogado e com uma confissão arrepiante. Tinha acabado de matar a sua própria filha, com quatro tiros, enquanto ela dormia. Essa mulher era Aurora Rodríguez Carballeira e a filha, Hildegart Rodríguez Carballeira, foi concebida e criada, pela mãe, de forma a tornar-se a “mulher perfeita do futuro”. Para a mãe ela tinha sido um projeto científico e propôs-se criá-la como “uma mulher nova, redentora dos vícios e padecimentos da humanidade”. Não o tendo conseguido, matou-a.

     O médico vai encontrá-la, muito mais tarde, no manicómio onde foi internada e onde ficou até à sua morte, em 1956. Os acontecimentos são, então, contados pelos três narradores, intervaladamente, criando uma sucessão de avanços e recuos nas suas próprias histórias e nas suas vidas, em episódios que se cruzam, quer com a guerra civil do país, quer com o filicídio e todo o acontecimento mediático da época, quer com uma Espanha sufocada pelo franquismo e pela Igreja Católica, em que até a intimidade das pessoas era invadida, e que se reflecte no ambiente vivido no manicómio feminino de Ciempozuelos, onde decorre a ação. E esse mesmo local, numa pequena escala, representa o reflexo do ambiente social da época.

     No manicómio há quatro ambientes distintos: o das doentes pobres e os das primeira, segunda e terceira classes. Não partilhavam os mesmos espaços, não dormiam nos mesmos dormitórios e não comiam nos mesmos refeitórios, nem comiam a mesma comida. O mesmo se passava numa sociedade totalmente dividida em classes onde os vencedores consideravam razoável ter uma série de privilégios que eram negados a outros.

     Aurora Carballeira era uma dessas privilegiadas. Era uma assassina, mas tinha acesso a tudo o que o dinheiro podia dar naquelas condições: um tratamento privilegiado, um quarto privado e uma cuidadora esmerada, Maria, que lhe proporcionava leituras em voz alta, quando ela deixou de poder ler, devido à cegueira, e ainda o interesse profissional do Dr. Gérman. Para além disso, possuía um piano. E foi por causa dele que estas três personagens se encontram, e passam a interagir num bailado que Almudena Grandes consegue coreografar, nunca nos deixando perder o interesse e o fascínio, numa leitura apaixonante.

     Formalmente, a capa desmerece a obra: o olhar de espanto da mulher da foto mostra-nos o que Aurora nunca sentiu. Não reconheceu a sua culpa no homicídio da filha, e nunca se arrependeu. Não pude deixar de fazer o paralelismo com o quadro de Ilya Repine, Ivan o Terrível, onde sim o arrependimento e o pavor estavam explícitos e eram evidentes.

     A revisão de texto não é das melhores, e deixou escapar alguns erros que se lamentam.