Etiqueta: Recensão

  • De Cuba para o mundo, sem filtros

    De Cuba para o mundo, sem filtros

    Título

    Como poeira ao vento

    Autor

    LEONARDO PADURA (tradução: Helena Pitta)

    Editora (Edição)

    Porto Editora (Abril de 2022)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Cubano de Havana, nascido em 1955, Leonardo Padura, além de escritor, tem trabalhado como guionista e jornalista. O detective Mário Conde é uma personagem sobejamente conhecida dos seus romances policiais, que, além de estarem traduzidos para muitas línguas, são vencedores de importantes prémios literários, como o Prémio Café Gijón 1995, o Prémio Hammett em 1997, 1998 e 2005, o Prémio do Livro Insular 2000, em França, ou o Brigada 21 para o melhor romance do ano.  

    Em 1993, Leonardo Padura recebeu o Prémio Nacional de Romance em Cuba, e em 2012 arrecadou o Prémio Nacional de Literatura pelo conjunto da sua obra. Em 2015 foi ainda galardoado com o Prémio Princesa das Astúrias das Letras.

    Em Portugal, podemos encontrar vários livros deste autor, entre os quais O Homem que gostava de cães, Hereges, A transparência do tempo, Quarteto de Havana I e Quarteto de Havana II, editados pela Porto Editora, que agora nos traz este Como poeira ao vento.

    Este é um daqueles livros que nos causa várias emoções e sensações. Desde logo, uma certa hesitação em avançar rapidamente na leitura. É que, com efeito, a urgência em prosseguir para conhecer e apreender mais acerca das personagens, e das ligações que as envolvem, não é compatível com a densidade e profundidade do enredo.

    Ler devagar é quase uma imposição para, desse modo, atentarmos e guardarmos cada pormenor dos contextos, das épocas, das personagens, das diferentes vias que se cruzam e teias que se entrelaçam.

    O equilíbrio é o que nos ajuda a avançar, com moderação, e assim desfrutar das mais de 600 páginas com que Padura nos presenteia, neste romance épico – creio que este adjetivo tão na moda se adequa a este romance cuidadosamente escrito.

    Sim, cuidado é um termo que se aplica na perfeição: somos encaminhados ao longo de várias décadas da História de Cuba por meio de personagens construídas de forma detalhada e escrupulosa, baseadas em pessoas, locais e situações reais – também, por isso, tão intenso.

    Contrariamente ao título, esta obra permanecerá e reverberará em cada leitor que seja apaixonado por Cuba, pela sua História, pelas suas geografias (afinal os cubanos alargaram as suas fronteiras) e, sobretudo, pelas suas gentes, ora mais conformadas, ora mais inconformadas, ora mais inquietas, ora mais revoltadas com tudo o que aconteceu desde o embargo dos Estados Unidos, em particular, durante o ‘Período Especial em Tempos de Paz’, ocorrido entre 1989 e metade da década de 1990.

    Uma época de restrições, de todo o tipo de restrições, em que até o livro ‘1984’, de George Orwell, é invocado. Não sem uma certa ambivalência, uma vez que para que para a maioria dos cubanos, de entre os quais, algumas das personagens, era inconcebível que o Estado fosse tão longe no seu regime totalitário e controlador.

    É, então, a história de um grupo de jovens – o Clã – que cresce em conjunto, desde a juventude até ao derradeiro desaparecimento de vários elementos. Jovens apaixonados pela vida, cuja evolução e prática profissional se torna cada vez mais difícil em face de tantos obstáculos e de tantas limitações. A busca pelo exílio, seja de forma legal, seja como fuga à incerteza, seja ainda pela infeliz constatação de que a liberdade para se ser é só uma palavra.

    O livro descreve de dentro, mas com um olhar limpo, sem ressentimento e quase factual, o sofrimento vívido de quem perde, um a um, os seus referentes mais íntimos.

    Em 2014, dois jovens de origem cubana apaixonam-se. Adela e Marcos conhecem-se em Miami sem saberem que as suas origens são as mesmas e que as suas mães haviam sido amigas íntimas, Elisa e Clara, respetivamente – as mulheres do Clã.

    Clara, a matriarca que segura e mantém o grupo, uma das personagens que nos comove pela resistência, pela força e pela coragem – aquela que não se rende; a última a deixar Cuba.

    Elisa, a british, filha de um diplomata que viveu em Inglaterra até ao fim da adolescência. Diferente, portanto, vivida, com uma visão mais ampla do mundo, além de Cuba. Algo que fascinava os amigos e a tornava quase idolatrada, não fora as suas atitudes a roçar a manipulação e “quase” mentiras.

    Darío, o primeiro a partir, deixa para trás a mulher (Clara) e dois filhos, com o intuito de prosseguir a sua carreira de médico e académico em Espanha, sem a limitação de um salário de três dólares. 

    Irving, o homossexual que vive no medo e que com medo não vive. Depois de torturado pela polícia durante vários dias, foge para Espanha, onde mais tarde se juntará o seu companheiro, Joel.

    Estas e outras personagens com vidas únicas e interligadas são ingredientes que nos mantêm e nos retêm em cada página folheada, numa escrita encantatória, que nos recorda Gabriel Garcia Márquez e que faz antever a atribuição do Prémio Nobel da Literatura.

    Destaco, por fim, um excerto (página 103): “A clausura física e mental de que sofriam, sem terem consciência até que ponto sofriam (exceto Elisa, a british), fazia-os ver o mundo exterior como um mapa de duas cores antagónicas: países socialistas (bons) e países capitalistas (maus). Nos países socialistas (para onde se podia viajar) construía-se arduamente o futuro perfeito (…) de igualde e justa democracia da ditadura proletária, atribuída à vanguarda política do Partido na fase de construção do comunismo, com cuja chegada se atingiria o apogeu da História, o mundo feliz”.

  • O magnífico voo do colibri

    O magnífico voo do colibri

    Título

    O colibri

    Autor

    SANDRO VERONESI (tradução: Cristina Rodrigues e Artur Guerra)

    Editora (Edição)

    Quetzal (Março de 2022)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Sandro Veronesi é considerado um dos mais importantes romancistas italianos dos últimos trinta anos e é um (o outro é Paolo Volponi) dos dois únicos que ganharam duas vezes o Prémio Strega, o mais prestigiado prémio literário entre os que reconhecem obras em italiano. 

    Nasceu em Florença, em 1959, e licenciou-se em arquitetura. Entre os seus livros destacam-se: Caos calmo, adaptado ao cinema e interpretado por Nanni Moretti, nomeado como actor para o Urso de Ouro do Festival de Berlim, em 2008.

    Este, O colibri, publicado em Portugal pela Quetzal, terá também, em breve, uma adaptação ao cinema. O livro é um excelente romance que impõe uma releitura, porque é riquíssimo em referências e pormenores que nos prendem desde o início, e sendo tantos e tão ricos não os apreendemos a todos na primeira leitura.

    O título remete para a alcunha que o protagonista, Marco Carrera, médico oftalmologista, tinha em criança, dada pela sua mãe, por causa da sua pequena estatura, abaixo do percentil considerado normal. O problema físico resolveu-se, na adolescência, com um tratamento à base de hormonas de crescimento, mas Marco permanece toda a vida um colibri por causa da sua capacidade de permanecer no ar, apesar das adversidades.

    Numa carta que lhe é enviada por outra personagem, Luísa, é-lhe dito: “Consegues ficar parado no mundo e no tempo, consegues parar o mundo e o tempo à tua volta, às vezes consegues até remontar e recuperar o tempo perdido, tal como o Colibri és capaz de voar para trás. Por isso, é tão agradável estar ao teu lado.”

    O livro é uma saga familiar, marcada por uma sucessão de perdas e de impossibilidades que marcam profundamente Marco que, apesar de tudo, se reergue, se reorganiza voltando a cair e a organizar-se, numa vertigem de perdas irreparáveis (a morte de uma irmã, o afastamento do irmão, a doença do pai e depois da mãe de quem tem que cuidar até à morte) e a vivência de relações fortes tecidas com uma ternura que nos comove (a filha, com problemas psiquiátricos, de quem fica responsável quando se separa da mulher,  a neta linda, Miraijin, de uma beleza exótica, que vem encher de alegria e esperança a parte final da vida do protagonista).

    O mais surpreendente, contudo, é a voz do narrador polifónico: a correspondência entre Marco e Luísa, que vivem um amor sempre no limbo, sempre a pairar e só no final do livro percebemos na sua totalidade, os telefonemas, com outros personagens que aparecem transcritos assim como as SMS e os e-mails, versos citados, frases de outros romances inseridas no discurso, alusões frequentes a outras formas de arte, músicas e letras de canções, obras de arte e de design, mistura de ficção e realidade, títulos de livros e, um dos capítulos, é até a adaptação (ou transcrição?)  de um conto de Beppe Fenoglio, Il gorgo. O autor explica-nos todas essas referências no final do livro.

    A narrativa não está organizada linearmente, oscila no tempo, há penumbras que antevemos e só mais tarde se iluminarão, ora pelas analepses proporcionadas por jogos de memórias, ora pelas prolepses que antecipam momentos decisivos para as personagens. Mas o ritmo é encantatório com uma beleza de linguagem sem notas dissonantes que não conseguimos deixar de seguir numa leitura que não conseguimos largar.

  • Uma colecção de cromos para recordar e vangloriar-se

    Uma colecção de cromos para recordar e vangloriar-se

    Título

    Eu estive lá

    Autor

    HENRIQUE AMARO (coordenador)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Junho de 2022)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Eu estive lá é um livro despretensioso – e essa característica poderá ser uma virtude, do ponto de vista comercial, mas também um defeito, como documento histórico, que bem poderia ser, porquanto fica muito aquém desse propósito.

    Retratando sobretudo os concertos musicais realizados em Portugal nas últimas quatro décadas do século XX – os primeiros 20 anos do século XXI estão escassamente retratados –, esta é uma espécie de “colecção de cromos”, de provas de orgulho pela presença em espectáculos sobretudo em épocas em que a vinda de artistas e grupos internacionais a Portugal era um acontecimento único porque raro. Até aos anos 90, a periferia do país na Europa, o seu atraso económico e a complexidade logística para a realização de grandes concertos, deixava os portugueses a carpir por concertos de grupos mainstream.

    Provar que “eu estive lá” – e sobretudo provar que se esteve lá – apenas através dos bilhetes (muitos com esmero gráfico), estropiados pelos porteiros, faz todo o sentido, uma vez que, além da memória, mais nada servia então. Antes dos anos 90 nem sequer existiam telemóveis nem se imaginariam câmaras fotográficas e de vídeo em smartphones. Aliás, convém referir que, por norma, pelo menos até aos anos 90, eram expressamente proibidas as fotografias em espectáculos musicais.

    Embora com textos de apresentação, em cada década, de Luís Pinheiro de Almeida, Ana Cristina Ferrão, Pedro Fradique e Isilda Sanches, esta obra quase se esgota na simples exposição dos bilhetes dos concertos dos diversos espectáculos, identificando a data e artista(s), alguns dos quais históricos e marcantes numa determinada época. Nesse aspecto, é uma pena.

    Talvez tivesse sido interessante um enquadramento de alguns desses espectáculos; ou uma explicação iconográfica; por exemplo, sobre alguns dos conteúdos de verso de alguns bilhetes dos anos 80, por exemplo, com piadas a gozar alentejanos ou com referências pouco politicamente correctas sobre homossexualidade.

    Também porventura pedagógica teria sido uma explicação em redor da variação dos preços dos bilhetes, cujo aumento mais se sentiu na primeira metade dos anos 80 – por causa da inflação que então chegou a ultrapassar os 30% num só ano – e agora mais recentemente.

    Em todo o caso, a inflação não explica tudo. Por exemplo, o célebre concerto de Genesis, com Peter Gabriel, em 6 e 7 de Março de 1975, custou 80 e 120 escudos, consoante o local, mas, mesmo aos dias de hoje corresponderia a 11,59 e 23,19 euros, respectivamente – uma pechincha.

    Bom, mas, na verdade, estes são detalhes, que devem ser irrelevantes para a maioria dos leitores, até porque esta é uma obra não propriamente para ser lida mas para ser (re)visitada por pais e avós juntamente com filhos e netos para, a partir daí, sim, serem contadas memórias sobre, lá está, o que significou o “eu estive lá”. O livro é, assim, um pretexto para conversas intermináveis. E aí serve um bom propósito.

    Pode o livro também ter outra utilidade, sobretudo para quem tem mais de 40 anos: rever o exacto momento, na década respectiva, em que se chegou à maioridade ou a uma situação económica mais folgada, e em que começam a aparecer no livro, de forma mais frequentes, os bilhetes dos concertos onde “eu estive lá”. No limite pode guardar os “seus” bilhetes entre as páginas deste livro,

    Essa alegria e as memórias, que surgem quando deparamos com concertos onde “eu estive lá”, não eliminam, porém, a “raiva” por não se ter estado numa mão-cheia de outros fantásticos concertos, em grande parte porque a idade, então, não o permitiu. Fica a consolação, para esses casos, de não se estar tão velho agora.

  • Uma família infeliz, à sua maneira

    Uma família infeliz, à sua maneira

    Título

    A cláusula familiar

    Autor

    JONAS HASSEN KHEMIRI (tradução: Joana Neves)

    Editora (Edição)

    Elsinore (Fevereiro de 2022)

    Cotação

    08/20

    Recensão

    Um livro que parte de uma premissa banal (uma família, como todas as outras) e que termina num romance banal, que não deixa marcas de espécie nenhuma, excepto um enorme bocejo.

    Começa: “Um avô que é pai volta ao país que nunca deixou.  Está na fila para o controle de passaportes. Se o agente por trás do vidro fizer perguntas desconfiadas, o pai que é avô vai manter a calma”.

    O mote está dado. As personagens não têm nome. Temos o avô que é pai, temos o filho que é pai, temos a filha que ainda não é mãe. Temos a irmã que é filha, mas que já não é mãe, e temos o filho que é pai, mas que não quer voltar a ser, e todo um conjunto de relações familiares e de lugares comuns e acontecimentos sem interesse que nos entedia ao fim de poucas páginas.

    O avô, que é pai, é um velho que, duas vezes por ano, visita os filhos, na Suécia. É uma pessoa difícil, frequentemente preconceituosa, constantemente crítica, e a sua visita parece ser mais motivada por questões práticas do que por afecto: um acordo tácito, a tal claúsula familiar, vincula o filho a ocupar-se dele nesses regressos bianuais e a manter um apartamento em seu nome, para assim ele poder escapar-se aos impostos no seu país de origem.

    Nesta visita, que acompanhamos desde a sua chegada ao país,  o avô, que é pai, estará dez dias. O livro começa numa quarta-feira e cada capítulo tem o nome do dia da semana a que diz respeito.

    Como diria Tolstoi: todas as famílias felizes se parecem, as infelizes são, cada uma, infeliz à sua maneira.

    Esta é uma família infeliz, e o autor faz-nos a descrição detalhada da limpeza que fez ao apartamento preparando-o para a chegado do pai, que é avô, mas que, rapidamente, regressa a casa porque tem os filhos para cuidar, uma vez que optou por gozar a licença de paternidade, na íntegra, o que faz com que fique sozinho com os filhos, todo o dia,  enquanto a mãe vai trabalhar criando, ao fim de pouco tempo, tensão entre o casal e os pais e os filhos, que são netos, o que acaba por se estender ao avô que veio de visita mas não se sente bem-vindo.

    Os encontros familiares são, também eles, sempre tensos porque o avô, que é pai, nunca está satisfeito com nada: a refeição que o filho preparou, o atraso da nora para o jantar, o facto de não o terem ido buscar ao aeroporto, e sido obrigado assim a fazer uma viagem de autocarro numa noite fria e chuvosa, o encontro com a filha que já mãe e está novamente grávida e a contas com a vida e com um casamento insatisfatório.

    Só o avô, um patriarca orgulhoso, é perfeito – de acordo com ele próprio, pelo menos e, nas suas palavras (há vários diálogos que ele tem com estranhos como taxistas, por exemplo), quando faz elogios aos filhos, na sua ausência. Em presença deles, é insuportável, e todos desejam que os dez dias acabem depressa para que ele regresse ao seu país, até à próxima visita.

    O livro pretende ser um tributo às famílias, às suas dinâmicas, aos seus limites e aos seus silêncios, mas, na minha opinião fica muito aquém.

  • A perfumada odisseia da laranja

    A perfumada odisseia da laranja

    Título

    Laranjas de Portugal: séculos de cultivo e consumo

    Autora

    ANABELA RAMOS

    Editora (Edição)

    Ficta Editora (Junho de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Em Portugal são escassos os livros dedicados à história de certos ingredientes que fazem parte da nossa culinária. Não me refiro obviamente aos grandes protagonistas como o vinho, o azeite, o bacalhau ou o queijo, com farta bibliografia disponível.

    Refiro-me a outros, menos destacados e discretos, aos que, talvez pela sua abundância, não suscitem tanto interesse junto dos investigadores.

    Contudo, nestes últimos anos, apenas uma mão cheia de autores se tem esforçado para trazer a lume curiosidades e informações preciosas acerca desses produtos, um tanto ou quanto menos nobres. Basta consultar, por exemplo, alguns dos títulos publicados por Ana Marques Pereira, Virgílio Nogueiro Gomes, Fortunato da Câmara ou Paulo Mendes Pinto, com o seu extraordinário De Adão a Eva – Uma História das Maçãs (Esfera do Caos, 2009) para se ter essa percepção.

    Felizmente, eis que surge Anabela Ramos com este livro, não só brilhante, mas também perfumado e cheio de sumo. Nunca mais iremos olhar para as laranjas da mesma maneira, sejam elas doces ou azedas. Graças ao seu trabalho, agora conhecemos com mais detalhe a incrível odisseia desse preciso fruto até chegar às nossas mesas, aos nossos copos, às nossas mãos.

    “A presença da laranjeira e de outros citrinos, é tema que não tem interessado muito aos historiadores”, assume a autora na Introdução. “Com este estudo, pretendemos ir um pouco mais longe. Cruzando livros de cozinha, livros médicos, farmacopeias, relatos corográficos, tratados agrícolas e outra documentação avulsa, em especial ligada ao mundo agrícola dos mosteiros, podemos aventurar-nos no estudo sobre a presença da laranjeira na Península Ibérica, e em particular em Portugal, desde a Idade Média até ao século XX.”

    O livro encontra-se dividido em quatro partes: Laranjas do mundo em Portugal, onde somos informados sobre a existência de laranjas azedas, primeiro, no território português e toda a sua influência, bem como a chegada posterior das laranjas doces, tanto da Índia como da China, em tempos mais recuados, ou as da Bahia e da Califórnia, em datas mais próximas.

    É curioso verificar como, pelas mãos dos navegadores portugueses e das rotas comerciais estabelecidas, a laranja se disseminou pelo Mundo, ficando para sempre o nome do fruto associado a Portugal.

    Segue-se depois uma parte dedicada aos Laranjais: produção para usos diversos, sejam os medicinais ou os culinários; uma outra parte que versa sobre os Laranjais: uma geografia histórica, que define os territórios onde as laranjeiras foram ganhando predominância e impacto na sociedade e economia desses lugares, ao longo da História, desde certas regiões no Minho até aos Açores.

    Por fim, uma parte muito saborosa, dedicada às Receitas culinárias, que vão desde o século XVI ao século XXI, com as mais antigas a serem apresentadas com um texto actualizado e que torna mais fácil a sua confecção. Um verdadeiro desafio para todos os amantes deste citrino.

    Remata-se o livro com as Fontes e Bibliografia, preciosa matéria para quem desejar saber mais.

    Todo o livro é um manancial de curiosidades e pequenas histórias. A flor de laranjeira, por exemplo, “servia para aromatizar e consertar o vinho, tornando-o cheiroso e macio”. Na doçaria portuguesa, a essência de flor de laranjeira era utilizada em quase todas as confecções: “não se comia arroz-doce sem o respectivo aroma da flor de laranjeira”. Da laranja “se retirava em primeiro lugar a flor, utilizada na doçaria e na medicina, e, depois, o fruto, que se comercializava e exportava para a Europa e que poderá ter dado origem a algum entusiasmo europeu relativo às laranja de Portugal.”

    Por todas as cortes europeias a laranja era rainha na mesa e o seu consumo de tal importância que, “na vizinha Espanha, também Santa Teresa d’Ávila, antes da sua morte, em 1582, sentiu-se fraca e pediu para comer laranjas doces.”

    Possa este livro deleitar os espíritos de todos aqueles que gostam de conhecer e saber um pouco mais acerca das histórias do que andamos a comer. Dessa maneira, melhor saberemos honrar e preservar o que é bom.

  • As estradas que Bandini tece

    As estradas que Bandini tece

    Título

    Estrada para Los Angeles

    Autor

    JOHN FANTE (tradução: Vasco Gato)

    Editora (Edição)

    Alfaguara (Março de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Estrada para Los Angeles foi escrito em 1933, e é o primeiro de quatro volumes hoje conhecidos como The Bandini Quartet. Os outros são: A Primavera há-de chegar, Pergunta ao Pó, do qual já fizemos recensão, e Os sonhos de Bunker Hill.

    Arturo Bandini tem, neste romance, 18 anos, perdeu o pai e, vivendo com a mãe e a irmã adolescente, Mona, não tem outro remédio senão começar a trabalhar em empregos duros e mal pagos, que ele vai abandonando por vontade própria, ou porque o despedem, uma vez que o seu sonho é ser escritor.

    Entretanto, vai lendo livros da Biblioteca, de autores que não compreende – como Nietzsche e Schopenhauer –, mas que cita a torto e a direito para grande espanto, quer da família, quer dos colegas de trabalho, na sua maioria latinos e asiáticos, que mal sabem falar inglês. Em casa tem uma relação conflituosa com as mulheres da família que não o entendem:

    “ – Onde está a Mona? – perguntei.

    A minha mãe disse-me que ela estava na Igreja e eu disse: – A minha própria irmã reduzida à superstição da prece! Sangue do meu sangue. Uma freira, uma adoradora de Deus! Que barbaridade!

    – Não te ponhas outra vez com essa conversa – disse ela. – Tu não passas de um miúdo que lê demasiados livros.

    – Isso é o que tu pensas – disse eu. – É muito evidente que tens uma obsessão.

    A cara dela empalideceu

    – Uma quê?

    – Esquece – disse eu. – Não vale a pena falar com brancos, saloios, broncos e imbecis. O homem inteligente emprega certas reservas na escolha dos seus ouvintes.”

    E refugia-se no quarto, onde tem uma coleção de revistas pornográficas “Artistas e Modelos”, com fotos de mulheres nuas a quem trata pelo nome e com quem tem grandes conversas: “Passei uma hora a falar com elas, subi às montanhas com a Elaine e fui aos mares do Sul com a Rosa e, por fim, reunido com todas elas espalhadas à minha volta, disse-lhes que não tinha favoritas e que cada uma delas teria a sua oportunidade à vez.”

    E, logo de seguida desilusões: “Porém, daí por um bocado, fiquei extremamente cansado, sentindo-me cada vez mais idiota, até que comecei a odiar a noção de que elas não passavam de fotografias, planas, só com um lado e tão semelhantes na cor e no cheiro. E todas elas cheiravam a puta. (…) Mas que belo super-homem me saíste! E se o Nietzsche te pudesse ver agora? E o Schopenhauer? O que pensaria ele? E o Spengler? Ah! Como o Spengler havia de berrar contigo!”

    É, em suma, um revoltado, auto-proclamado génio literário, ateu, diz-se simpatizante do comunismo russo, tortura caranguejos na praia com uma arma de pressão de ar, e moscas na casa de banho, arrancando-lhes as asas.

    Tem um discurso que, por vezes, raia a loucura ou, pelo menos uma perturbação bipolar e, como escreve na primeira pessoa, temos acesso a essa loucura dentro da cabeça da personagem, enquanto desenvolve discursos megalómanos ou revoltas existenciais. E humor. Muito humor.

    No final do livro, Bandini foge de casa e vai procurar a glória em outras paragens. Deixa-nos os títulos dos livros que sabe que irá escrever, e que lhe vão dar a glória. Faz-nos acreditar nisso. Fante, o autor, deu-lhe razão.

  • Navegando pelas irregularidades

    Navegando pelas irregularidades

    Título

    Divisão da alegria

    Autora

    RAQUEL NOBRE GUERRA

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Março de 2022)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Quando comecei a navegar nas águas frias e tempestuosas do norte de França e do Canal da Mancha costumávamos justificar tão masoquista exercício dizendo “um bom dia de mar vale nove maus”. (Hoje sei que não é inteiramente verdade. Não vale nove maus, vale muitos mais. Vale uma vida. Mas isso são outras águas.)

    Pensava nisto enquanto lia Divisão da alegria, o último livro de Raquel Nobre Guerra e – diz-nos Pedro Mexia, na pequena nota introdutória – o mais “extenso e expansivo” da autora. Não sei como eram os outros, mas este é extremamente irregular.

    Tem poemas de uma beleza siderante; muitos outros ficam aquém. Naturalmente, resisti à tentação de estabelecer um ratio: talvez a matemática seja poesia, mas a poesia não é de certeza matemática. Temos portanto – na minha opinião, claro – de nos ficar por esta espécie de baloiço que ora nos faz deparar com versos como:

    Decompor trecho a trecho a regra do dia
    os mesmos gestos, os mesmos objectos
    roupa larga, o rocegar do verso longo
    eu e tu, palavras soltas por aí

    as papoilas vão tornando raras quase supérfluas
    como se estivessem prontas para o estio

    (in Palavras Soltas, Pág. 15)

    [Os livros já não têm errata. Penso, mas não tenho a certeza, que falta um pronome a seguir a “vão”: As papoilas vão-se tornando raras, etc.]

    Umas páginas mais à frente (A tua segunda consciência, pág 22):

     …
    que o espaço aberto que percorres com os dedos
    é o meu corpo tocado pela tua segunda consciência

    Versos como estes descrevem, vestem e transformam simultaneamente a realidade e o olhar da autora. Comparem-se com:

    Todo o pensamento é uma Vénus de Milo quando
    três pernas do cavalo azul
    de porcelana chinesas se desfizeram em pó
    espalhando o rasto frágil que a beleza traz

    (In Paris num caderno, pág. 56)

    Esta última estrofe resume aquele que é para mim o pecado mortal da maioria da poesia portuguesa actual: imagens opacas, “intraduzíveis”, digitais no sentido em que ou aderimos a elas ou não aderimos. O surrealismo deixou uma pesada herança ou, se preferirem um termo náutico, uma longa esteira na poesia portuguesa. Esteira essa que só agora, hesitantemente, começa a apagar-se. Já era tempo.

    Isto dito, penso que o livro deve ser comprado e lido. Os bons poemas desequilibram claramente a balança para o lado “bom”. Há realmente momentos de prazer extático, há uma relação amorosa com as palavras,

    Desculpa se sou bruta com as palavras
    porque as amo violentamente
    e tendo a despi-las e carregá-las de frutos
    de verniz conforme a estação

    (in Frutos de verniz, pág. 42)

    A poesia de Raquel Nobre Guerra excele no último capítulo do livro, Oito poemas para o pai: as imagens tornam-se menos herméticas, o amor que as inspirou transparece e transforma-se numa poesia sensível, capaz de fazer o leitor identificar-se com essa ternura e – talvez seja esta a função da poesia – torná-la sua.

    (Nota: na página 107, in Envelope a dizer: lambi para fechar – “Espero que os dias longos sejam ideiais para ti também / apesar da clara vitória dos maus”. Impossível não pensar noutros ratios.)

  • Um maestro guiado por um sol maior

    Um maestro guiado por um sol maior

    Título

    Música, só música

    Autor

    HARUKI MURAKAMI e SEIJI OZAWA (tradução: Maria João Lourenço)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Abril de 2022)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Nascido em 1949, na cidade de Quioto, Haruki Murakami já esteve várias vezes na lista de putativos vencedores do Prémio Nobel da Literatura. Mas, como alguns ironicamente referem, o japonês tem sido estranhamente esquecido. Talvez por isso, escreva cada vez mais sobre o que bem entender e sobre o que mais gosta: música… só música.

    Durante o curso em estudos teatrais, em Tóquio, Haruki Murakami abriu um bar de música jazz, The Cat, que manteve durante cerca de sete anos. A música jazz é, aliás, um cenário musical recorrente na sua obra, sendo, inclusivamente, uma forma de dar ritmo aos seus romances – uma das características mais prementes da sua obra, ainda que nem sempre visível na tradução portuguesa – provavelmente por ser efectuada indirectamente, a partir do inglês.

    A música clássica, tema da obra agora em análise, também já se sentira de forma implícita em diversos romances, nomeadamente nos dois volumes de A morte do comendador.

    Das viagens surrealistas, através das quais nos deixamos enlevar em quase todos os seus romances, Haruki Murakami viajou, desta vez, pelo mundo da música clássica e acompanhado pelo famoso maestro Seiji Ozawa, nascido em 1935.

    A paragem compulsiva do maestro, provocada pela descoberta e recuperação de um cancro, em 2009, permitiu uma série de encontros entre estes dois homens excepcionais, dos quais resultaria um conjunto de seis conversas, agora editada, em Portugal, pela Casa das Letras.

    Para os leitores aficcionados por Haruki Murakami, este livro não será propriamente uma surpresa, uma vez que já estamos habituados a ter a música como personagem-sombra ou como elemento primordial da cena – de tal modo, que somos convidados a escutar a música referenciada. Como afirmou algures o autor, ao escutar uma determinada música, o leitor é impelido a ler com determinado ritmo.

    Este Música, só música não é, assim, apenas para os amantes do género ficcional surrealista, mas sobretudo para os melómanos, em particular para os amantes da música clássica que sintam curiosidade pelos meandros das orquestras e respectivos maestros.

    Director musical da Orquestra Sinfónica de Boston durante quase 30 anos, Seiji Ozawa assumiu o mesmo cargo nas Orquestras de Chicago e de Toronto e na Ópera Estatal de Viena – a qual dirigiu até 2010. Um maestro genial, cuja origem nipónica terá desconcertado muitos públicos, entre os quais os de Itália, onde terá sido apupado, aquando da direcção da ópera Tosca, de Puccini.

    Este é um de muitos episódios descritos e partilhados pelo maestro, que, certamente, encantará os curiosos e apaixonados pela música clássica. Tanto mais que a mencionada intertextualidade musical que perpassa toda a obra de Murakami se torna, aqui, ainda mais óbvia.

    Ao convidar o maestro a escutar os concertos para piano de Beethoven, a Sinfonia Fantástica de Berlioz, entre várias outras sinfonias, momentos e interlúdios, para iniciar e guiar as conversas, Haruki Murakami também está a incitar o leitor a entrar na conversa de forma activa.

    A história das interpretações de Gustav Mahler é um dos exemplos e se, em simultâneo, escutarmos os 3º e 4º movimentos da 1ª sinfonia de Mahler – a grande paixão do maestro –, teremos a sensação de estarmos na mesma sala que os interlocutores.

    Além de Seiji Ozawa, ficamos a conhecer outros maestros, em particular Leonard Bernstein, de quem Ozawa foi assistente durante duas temporadas, ou o seu mentor, Saitō Kinen, em homenagem a quem criou uma Fundação e respectiva orquestra, organizando um festival anual em Matsumoto, em honra do mesmo maestro japonês.

    Num dos encontros, Seiji Ozawa admite que as conversas (guiadas – uma espécie de entrevista aberta) o terão ajudado a organizar as suas memórias, e a perceber o quão terá mudado e mesmo evoluído ao longo do tempo.

    Este é, na realidade, um dos grandes feitos das entrevistas para a construção de “histórias de vida”, a partir das quais não só os leitores ganham, e muito, mas também os próprios entrevistados, que têm oportunidade de se sentar numa plateia fictícia e olhar para o palco que foi a sua vida. Neste caso, isto não é sequer uma metáfora. Efectivamente, foi o que sucedeu, graças à preparação magistral de Murakami e à sua erudição musical.

    Uma curiosidade: os parágrafos estão alinhados à esquerda, para gerar uma leitura mais agradável. Se é verdade que essa estratégia ajuda, também o é o teor do livro, cujo prefácio de Martim Sousa Tavares nos acirra ainda mais a vontade de ler, conhecer, aprender e escutar música – a personagem principal.

    Por isso, sim: Música, só música para nos encantar.

  • Um improvável e absurdo herói

    Um improvável e absurdo herói

    Título

    Volodymyr Zelensky: biografia

    Autor

    SERGII RUDENKO (tradução: Elena Luchyna)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Maio de 2022)

    Cotação 

    13/20

    Recensão

    Num ápice, poucas semanas após a invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin, uma figura internacional eclodiu não apenas pelas televisões, rádios, jornais e revistas – e, claro, pelas redes sociais e Internet em geral –, mas também nos escaparates das livrarias: Volodymyr Zelensky.

    Transformado em “três pazadas” num Winston Churchill do século XXI, o antigo comediante ucraniano mereceu, em apenas dois meses, o interesse dos dois principais grupos editoriais portugueses: a Leya (através da Casa das Letras), que publicou Volodymyr Zelensky: biografia, do ucraniano Sergii Rudenko, e a Porto Editora (através da Ideias de Ler), que publicou Zelensky: o herói improvável, dos jornalistas australianos (originários do Leste Europeu) Andrew L. Urban e Chris Mcleod. Está anunciada ainda a edição pela Esfera dos Livros, para este mês, de Volodymyr Zelensky: na cabeça de um herói, dos jornalistas franceses Régis Genté e Stéphane Siohan.

    No estrangeiro ainda há mais. Muitos mais. Para aí uma dezena de obras com o presidente ucraniano como foco central. Existe mesmo uma colecção – já vai em três volumes – intitulada War speeches, de Volodymyr Zelensky: dois com os discursos de Fevereiro e Março deste ano, e outro com os de Abril. Presume-se que esteja a caminho o de Maio, e a ser escrito o de Junho…

    Na Amazon já está em pré-lançamento, para O ainda longínquo Outubro, o livro Volodymyr Zelensky in his own words, de Lisa Rogak e Daisy Gibbons. 

    A apresentação é muito sui generis, caracterizando o momento mediático que se vive: “Zelensky é o herói que não sabíamos que precisávamos – ou talvez precisássemos. Neste momento, o mundo quer saber mais sobre o heróico e inspirador presidente da Ucrânia, e a melhor maneira de fazer isso será com Volodymyr Zelensky in His Own Words, um extenso livro de citações que abrange as palavras e opiniões de Zelensky sobre um amplo espectro de questões – de guerra e paz a mudanças climáticas e direitos LGBTQ. Os leitores poderão abrir o livro em qualquer página e ver onde Zelensky está. Dada a sua vida anterior como comediante e actor mais famoso da Ucrânia, há muitas citações que fornecem uma imagem mais subtil desse homem que encantou e inspirou pessoas ao redor do Mundo.” Zelensky é o novo Messias.

    Que não haja dúvida sobre a barbárie que se vive na Ucrânia com a invasão  da Rússia de Putin, nem sobre a corajosa postura de Volodymyr Zelensky, aos 44 anos de idade, e depois de um passado profissional ligado ao entretenimento. No entanto, algo não bate certo quando o marketing subverte completamente a realidade – ou, neste caso, o conteúdo de uma pretensa biografia, que, por vezes, nem é.

    Com efeito, no caso de Volodymir Zelensky: biografia, que se decidiu ler, estamos perante uma honesta, embora não extraordinária, análise política do sexto presidente da Ucrânia – que, até certo ponto, é independente, embora o  jornalista ucraniano Sergii Rudenko, compreensivelmente, se deixe arrastar pela emoção quando aborda a invasão perpetrada Rússia –, mas que não encaixa em quase nada daquilo que a editora releva na badana: 

    “Este livro apresenta Zelensky começando como um presidente pela paz e tornando-se um presidente de guerra. Em episódios que destacam a subida ao poder de Zelensky da forma mais honesta e aberta quanto possível, e sem retoques, lemos sobre o triunfo de Zelensky em 2019, mas também sobre as suas diversas derrotas no Olimpo político. A história do homem que, sem qualquer experiência política ou conhecimento relevante, prometeu aos ucranianos mudar o seu estado. Um homem com a confiança de 13,5 milhões de eleitores. Uma pessoa que compreendeu que confiança implica responsabilidade. O homem que aceitou o desafio que é Vladimir Putin, tornando-se chefe do Estado ucraniano neste período difícil. Por último, o livro fala sobre a mudança de opinião pública – mas não apenas pública – de Zelensky, passando de um presidente com poucos sucessos e um mau ranking para um presidente a protetor do seu povo, defendendo não só a Ucrânia, mas igualmente a liberdade da Europa.”

    Porém, ao discorrer pelo livro de Sergii Rudenko – claramente escrito, em grande medida, antes da invasão russa –, somos confrontados com um político saído literalmente de filme – o Servo do Povo – e que nada mudou na política ucraniana desde a sua independência da União Soviética: corrupção, nepotismo, criação de oligarquias e uma exploração do povo sem contemplações. 

    Os primeiros capítulos desta obra de Rudenko mostram, de uma forma bem expressiva, a improvável ascensão de Zelensky assente no seu mediatismo, mas também numa máquina de propaganda sustentada por oligarcas e por amigos de índole questionável. A sua impreparação para o cargo trespassa em todas as páginas. O nepotismo, idem. Os contorcionismos e golpes palacianos, também.

    Na verdade, ao longo da leitura deste livro – que chega a ser penosa, não pela qualidade da escrita mas pelos episódios relatados que nos incomoda por vergonha alheia –, mais do que suscitar simpatia por Zelensky ou empatia pelo povo ucraniano, surge um estado de incredulidade. 

    Sem esquecer os horrores cometidos pela Rússia contra o povo da Ucrânia – e sabendo-se que com Putin e o seu regime, este é, porventura, o país menos recomendável para se viver em liberdade na Europa –, Zelensky não pode ser apresentado como um modelo para a Democracia. Chega a ser ofensivo querer casar Zelensky com um democrata. Este livro de Rudenko prova-o.

    Por fim, um problema estrutural desta obra – em certa medida, compreensível –, é a ausência de informação que permita um melhor enquadramento dos leitores no contexto político da Ucrânia. Assim, aspectos da política interna e dos políticos ucranianos referenciados por Sergii Rudenko dificilmente são compreendidos pelo leitor português. Acresce que os (estranhos) nomes dos intervenientes na cena política não ajudam.

    Mas isso, como se defende, constitui um problema compreensível: afinal, não fosse a guerra e ninguém em Portugal estaria interessado em publicar um ensaio jornalístico sobre um presidente da Ucrânia. Nem um, quanto mais três livros.

    Por outro lado, com uma estrutura em 38 capítulos, não cronológicos, mas incidindo sobretudo no período a partir de 2019, Rudenko não consegue sair de um registo demasiado jornalístico, e demasiado especulativo. Alguns capítulos são simples crónicas. Pouco ou nada é dito sobre os contornos políticos que acabariam por desencadear a invasão da Ucrânia. Em muitas partes falta-se substância, ou pelo menos substância para que um não-ucraniano entenda tudo na perfeição.

  • África é outro planeta

    África é outro planeta

    Título

    Paraíso

    Autor

    ABDULRAZAK GURNAH (tradução: Eugénia Antunes)

    Editora (Edição)

    Cavalo de Ferro (Maio de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Abdulrazak Gurnah, o surpreendente prémio Nobel da Literatura de 2021 (ninguém estava à espera), nasceu em 1948, em Zanzibar, Tanzânia, mas vive, desde a década de 1960, no Reino Unido, para onde fugiu, devido às convulsões políticas, no seu país, que levaram à perseguição, de cidadãos de origem árabe, como é o seu caso.

    Começou a escrever aos 21 anos e a temática da sua obra passa pelos estudos pós-colonialistas, a vivência dos refugiados entre culturas e continentes, procurando sempre uma verdade que foge à explicação simplista e que é de alguém que sofreu na pele essa situação.  Para além disso, como profundo conhecedor do seu continente, Gurnah apresenta-nos uma África plural, multicultural, e não o retrato de um continente uniforme.

    África é, de facto, um caldeirão de culturas que o autor nos descreve, com mestria, trazendo-nos a sua sensualidade, cheiros e cores e beleza selvagem omnipresentes em toda a obra.

    A ação deste Paraíso, originalmente publicado em 1994, passa-se no tempo imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial, ou seja, no preciso momento em que o complexo e tenso sistema social pré-colonial, da atual Tanzânia, se desmorona na presença dos primeiros europeus no território, os alemães.

    São eles uma presença mítica, neste romance, e de quem se diz que “comem ferro” e são “cintilantes homens encarnados com pêlos nas orelhas” e que, para além disso, “apoderaram-se das melhores terras sem pagar uma única missanga, forçam as pessoas a trabalhar para eles e, qual praga de gafanhotos, a sua voracidade não conhece limites ou pudor”.

    O romance conta-nos a história de Yusuf, que, aos doze anos, é entregue, pelo próprio pai, a um rico comerciante a quem se habituara a chamar tio. Parte um dia, com ele, numa viagem de comboio e “nunca ocorreu a Yusuf, nem por um instante, que iria ficar afastado dos pais por muito tempo ou que talvez não os tornaria a ver”. Foi isso mesmo que aconteceu.

    Na sua nova vida, como escravo, Yusuf soube, por Kahlil, companheiro de infortúnio de quem se tornará amigo, e lhe diz logo no primeiro encontro: ”Quanto ao teu tio Aziz, para começo ele não é teu tio (…) está aqui porque o teu Ba deve dinheiro ao seyyid. Eu estou aqui porque o meu Ba lhe deve dinheiro…só que já morreu. Deus tenha piedade da sua alma”.

    E é neste mundo que a criança vai crescer e tomar consciência de que aquele a quem chamava tio não é, realmente, seu tio e sim seu senhor, “um comerciante implacável de subtis odores e modos”, hábil nos negócios e admirado (e invejado) por muitos.

    Grande parte do livro narra, precisamente, a expedição de Aziz e Yusuf e uma caravana enorme de transportadores e servos, capatazes e guias através da África profunda, numa viagem de milhares de quilómetros comercializando vários produtos e matérias primas que trocam, compram, vendem e dão de tributo a tribos por onde vão passando, sofrendo as mais variadas violências e ataques quer de animais, quer de homens.

    Há referências a uma montanha nevada, um lago que conseguem atravessar num único dia e algumas quedas de água majestosas, mas não há nomes, nem mapas. “Escrevi presumindo que quem lesse conheceria o terreno e reconheceria o Kilimanjaro e o lago Tanganica.” disse o autor, numa entrevista ao El Pais. E de facto é possível ver o caminho que eles seguem, mas, ao não nomeá-lo, abre-se de alguma forma a possibilidade de que seja mais mítico, e de que o que é narrado possa acontecer noutro lugar qualquer. “O leitor pode imaginar sem ter que se vincular a um lugar específico”, acrescentou Gurnah, na mesma entrevista.

    Nessa viagem Yusuf deixa de ser criança, mas continua a importar-lhe mais a beleza das paisagens por onde passam, no coração do país, e a do jardim da casa do seu senhor e as histórias que ouve aos seus companheiros de viagem e aos habitantes dos lugares por onde vão passando, do que a sua própria liberdade. Yusuf é um escravo, mas não se sente como tal, e só mesmo no final do livro veremos um gesto de resistência e de libertação, surpreendente pela decisão inesperada que toma.

    Um livro de uma agradável leitura misto de romance, novela, literatura de viagens e História.