Etiqueta: Recensão

  • A arte como instrumento de superação

    A arte como instrumento de superação

    Título

    Como construir um barco

    Autora

    ELAINE FEENEY 

    Editora

    D. Quixote (Julho de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Peguei no livro e saí a correr. Só mais tarde, quando me sentei para o ler, me dei conta do equívoco. Pensava que era um livro sobre como construir um barco. Literalmente. Daqueles livros práticos sobre ‘como fazer sozinho’. Não era. Não sei porque me equivoquei. Afinal, bastava olhar para a capa com reduzida atenção para perceber que se trata de uma obra de ficção. A etiqueta que diz que a obra foi nomeada para o The Booker Prize de 2023 era outra pista esclarecedora. Não estou a ver um livro que ensine a construir um barco a ser nomeado para um prémio do género (por muito que adore livros práticos sobre como fazer coisas). Adiante, ultrapassado o meu espanto (parvo) causado pela desatenção, aceito a situação: tinha um romance pela frente para ler.

    A capa era auspiciosa. Além da etiqueta de nomeação para o tal prémio, tinha uma recomendação de um vencedor do The Booker Prize, Douglas Stuart. Diz que se trata de “um romance cheio de esperança e de humanidade”. Na contracapa, prossegue: diz que é uma “daqueles raros livros que nos fazem sentir menos sós” e que se trata de “uma história inspiradora sobre uma comunidade e as pequenas coisas que podem mudar uma vida.”

    Não consegui ler o livro sentada, sossegada. Mexi-me muitas vezes no meu lugar no sofá. Para alguns, será talvez menos fácil de ler. (Percebi, depois, que a autora publicou também obras de poesia e teatro, o que explica alguns dos caminhos que percorreu para contar esta história.) Alguns parágrafos ganham vida e as palavras escorregam para as linhas seguintes, em sequência, exigindo atenção e abertura mental. Reli algumas partes para ver se tinha compreendido bem (mas admito que possa ser, também, feitio meu e da minha ocasional parca concentração). Acredito que cada um, seja neurodivergente ou neurotípico, ‘ouve’ as palavras que lê de forma única e compreende (ou não) e vivencia de modo próprio cada história, cada linha. 

    Posto isto, acabei a marcar várias páginas para as mencionar ao leitor desta recensão. Só tinha o marcador que vem com o livro e uma caneta. Acabei por marcar as restantes páginas com as caixinhas compridas de incenso que tinha comprado e que ainda aguardavam na almofada do sofá para ir para o armário. O resultado foi um livro gordo (mas sem páginas dobradas) e com as páginas devidamente seleccionadas.

    A obra tem como personagem central um rapaz, Jamie O’Neill, com 13 anos, que tem dois desejos ou sonhos. Mas seria muito redutor dizer que é disto que o livro trata. Entre histórias de personagens paralelas e o percurso do rapaz, há muitas enseadas, ondas, mergulhos, marés baixas e altas e redemoinhos.  O leitor é confrontado consigo próprio e com a sua vida (eu, pelo menos, fui). Simples frases levam-nos em viagens por novos mares, que não os do enredo do livro. Como no parágrafo que fala que a construção de um barco não é um processo aleatório, “tem muitas fases, vamos eliminar todas as irregularidades” e, “se alguma coisa estiver mal feita, a camada seguinte vai revelá-lo”. Como a vida? Ou o parágrafo que diz que “tudo o que é bom começa com um bom impulso”. Ou aquele que garante que “para criar é preciso sentir-se e estar desconfortável, e por vezes sentir-te-ás desacompanhado”. (Fico por aqui e, afinal, não precisava usar todas as caixinhas de incenso como marcador.) 

    Concluindo, tirando-se os inúmeros “foda-se” e “merda”, que detesto (distraem-me na leitura como uma mosca a ziguezaguear junto aos olhos), é um livro a ler. Com calma e paciência, devagar. O ‘slow reading‘, que é avesso ao consumo de papa-livros de Verão para mostrar, depois, nas redes sociais, a foto da pilha de obras lidas). Mas também esses leitores o lerão bem. Com asneiras e tudo (ou, sobretudo, porque as asneiras talvez ainda estejam na moda, não só na capa de livros, como no seu interior).   

  • Amar sem amarras

    Amar sem amarras

    Título

    Reflexões sobre a liberdade, identidades e famílias

    Autor

    VÁRIOS

    Editora

    Oficina do Livro (Agosto de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Não foi de propósito. Calhou assim, na mesma edição fazer recensão de um segundo livro que serve como ‘repelente’ de libertários e conservadores. A capa do livro é enganadora. Lendo o título, pensamos estar perante um daqueles livros das associações de famílias numerosas ou cristãs, das que defendem as chamadas famílias tradicionais, que, em Portugal, assumem tantas formas quanto o número de géneros inventados que já existem na comunidade LGBTxpto. Existe a ‘família tradicional’ sem amante, com amante. Com ‘afilhados’ e ‘afilhadas’. Com divorciados recasados. Com uniões de facto. Com casais que já não se amam há demasiado tempo. Etc. Etc. 

    Mas não é um livro desses, em defesa dos ‘valores’ das ‘famílias tradicionais’, dos ‘bons costumes’, nem do respeito pelos ensinamentos bíblicos. Só percebemos isso quando colocamos os óculos e lemos, à cabeça, o nome de Joana Mortágua na lista de coordenadoras da obra. Mais abaixo, saltam nomes como o de Fernanda Câncio, Catarina Furtado, Daniel Oliveira, Maria Leonor Beleza, Pedro Strecht, … É um daqueles livros que transpira a enganadora palavra ‘progressista’ quer queira, quer não. 

    Esteticamente, considero o livro feio e não me é fácil usar este adjectivo aplicado a um livro. Mas é. Por isso, achei que seria um desses livros ‘sóbrios’ para famílias cristãs, com fundo bege e letras garrafais em grená escuro e a palavra ‘famílias’ ali a rondar. Depois, está escrito com letras cinzentas. Sim, leu bem. Quando abri o livro até pensei estar com os óculos sujos e a ver desfocado, mas não. Era mesmo do livro e nem com anos de ioga ocular conseguiria ler melhor esta obra com letras desta cor. É como tentar compreender algumas etiquetas de roupa desbotadas, sendo que, inevitavelmente, após uns segundos de esforço, se decide colocar tudo junto a lavar na máquina, no programa para ‘algodão’, e rezar. 

    Debruçando-me sobre o conteúdo, os textos parecem mesmo ter sido escritos pelos autores mencionados, admitindo, aqui e ali, alguma ‘ajuda’ de escritores-fantasma ou de um jornalista ‘amigo’, que nem todos nasceram com o dom da prosa e alguns, tendo-a, têm mais o que fazer com o tempo (que é dinheiro). Quanto aos temas que aborda, considero-os pertinentes e relevantes. Vários textos abordam o tema da interrupção voluntária da gravidez, que, sendo-se a favor ou contra, é uma realidade na sociedade, que afecta muitas mulheres. Não falta a questão da inclusão e da comunidade LGBT+nãoseiquê. (O ser humano gosta de complicar o que é, por natureza, simples). 

    Nos dias que correm, a tolerância voltou a ser um tema no mundo ocidental, tal como a inclusão, nomeadamente direccionada para a comunidade transgénero. Mas, de fora, está, por exemplo, a defesa e protecção de meninas, raparigas e mulheres, que perdem privacidade e espaços seguros, perdem lugares em pódios e na meta, em nome de uma ideologia que mete impressão, sobretudo, às amigas lésbicas e amigos gay. Por outro lado, alguns destes nomes que escrevem palavras como ‘inclusão’ e ‘diversidade’, defenderam a segregação insana, anti-científica e criminosa durante a pandemia. Ou seja, defendem que a mulher é dona do seu corpo e cada um escolhe o género que quiser, desde que aceite ser forçado a tomar fármacos e a usar máscara facial, mesmo que a Ciência tenha uma palavra diferente a dizer. O consentimento, afinal, é só para a ‘cama’? Onde estão os direitos humanos quando há coacção e invasão do corpo? Ou quando se invade a privacidade e o ‘mundo interior’ de crianças e jovens com perguntas pornográficas nas escolas, sem conhecimento das famílias?

    Com este aparte, recomendo a leitura deste livro, sobretudo se se discordar do direito à interrupção voluntária da gravidez ou do direito a assumir o género que se quiser. Ouvir versões da realidade diferentes das nossas e outras visões do mundo é uma forma de nos mantermos despertos e atentos, conscientes, e activar o botão do diálogo e a ponte para a empatia. Do mesmo modo, quem se preocupa com questões como inclusão e tolerância, vale a pena ler alguns dos textos que integram esta obra.  As letras do livro até podem ser cinzentas e estar desbotadas, mas o mundo também não é a preto e branco. (Nem feito de unicórnios e arco-íris de manhã à noite).

  • Da ganância e da gula: uma guerra vencida pela indústria alimentar

    Da ganância e da gula: uma guerra vencida pela indústria alimentar

    Título

    Pessoas ultra processadas

    Autor

    CHRIS VAN TULLEKEN (Tradução: Raquel Dutra Lopes)

    Editora

    Lua de Papel (Outubro de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    “A culpa não é dos consumidores. A epidemia de obesidade é fruto da inércia governamental e do trabalho implacável de algumas corporações internacionais que começaram a substituir alimentos naturais (como o açúcar, ou leite ou a manteiga) por alternativas sintéticas (gomas e emulsionantes). Os novos aditivos são propositadamente concebidos para nos viciar.” Este trecho que pode ser lido na contracapa da edição portuguesa de ‘Pessoas Ultra Processadas’ resume o tema da obra de Chris Van Tulleken, pai, cientista, doutorado e professor no University College de Londres. 

    A observação de um simples gelado que a filha, Lyra, lhe passou para as mãos certo dia, espoletou um caminho que levou Tulleken a investigar a história e os eventos que levaram a que diversos bens alimentares fossem transformados em ‘comida de plástico’, ou pior. Neste livro percebe-se a dimensão desta catástrofe sanitária e ambiental que tem dados lucros pornográficos a muitas multinacionais da indústria alimentar. Como tem sucedido com outras indústrias, como é o caso da farmacêutica, as empresas que produzem bens alimentares perderam a perspectiva e o foco (se é que algumas vez tiveram) na saúde e bem-estar humano e ambiental e concentraram-se num único ponto: viciar os consumidores para gerar lucros infinitos. 

    A receita é simples: criaram-se aditivos novos, feitos para viciar; juntou-se quilos de marketing irresistível; mais umas boas colheradas de cientistas vendidos, cujas ‘pesquisas’ são financiadas pela indústria alimentar. Adicionam-se umas pitadas de aprovações regulatórias e apoios de políticos e entidades de saúde e nutrição et voilá: saiu do forno a era das ‘Pessoas Ultra Processadas’. 

    Como acontece com a indústria farmacêutica, e outros sectores, a indústria alimentar, com os seus milhões, compram muita gente e até a ‘Ciência’ para servir um prato frio e estragado que envenena gerações e gerações de humanos. Pais, filhos e netos consomem comida que não é comida com efeitos devastadores, excepto para as as indústrias que beneficiam de consumidores viciados e doentes. 

    Com base na literatura científica, o autor apresenta as provas em como as acções da gananciosa indústria alimentar criaram um epidemia de obesidade, pessoas doentes, mortes prematuras e destruição ambiental. 

    Dividido em cinco partes, este livro conta os horrores de boa parte dos alimentos, designadamente bebidas, que são vendidos em todos os supermercados, sendo que o último capítulo sugere pistas sobre o que se pode fazer para tentar que a Humanidade consiga vencer a guerra que, para já, está a ser ganha, com larga vantagem, pelos magnatas industriais alimentares. E também aponta o que podemos fazer junto dos governos e, principalmente, o que podemos fazer para pararmos de consumir comida que mata, ainda que lentamente, com o tempo. Como o pior dos vícios.

  • Afinal, o que nos define?

    Afinal, o que nos define?

    Título

    Reflexões sobre a liberdade, identidades e famílias

    Autor

    VÁRIOS

    Editora

    Oficina do Livro (Agosto de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Não foi de propósito. Calhou assim, na mesma edição fazer recensão de um segundo livro que serve como ‘repelente’ de libertários e conservadores. A capa do livro é enganadora. Lendo o título, pensamos estar perante um daqueles livros das associações de famílias numerosas ou cristãs, das que defendem as chamadas famílias tradicionais, que, em Portugal, assumem tantas formas quanto o número de géneros inventados que já existem na comunidade LGBTxpto. Existe a ‘família tradicional’ sem amante, com amante. Com ‘afilhados’ e ‘afilhadas’. Com divorciados recasados. Com uniões de facto. Com casais que já não se amam há demasiado tempo. Etc. Etc. 

    Mas não é um livro desses, em defesa dos ‘valores’ das ‘famílias tradicionais’, dos ‘bons costumes’, nem do respeito pelos ensinamentos bíblicos. Só percebemos isso quando colocamos os óculos e lemos, à cabeça, o nome de Joana Mortágua na lista de coordenadoras da obra. Mais abaixo, saltam nomes como o de Fernanda Câncio, Catarina Furtado, Daniel Oliveira, Maria Leonor Beleza, Pedro Strecht, … É um daqueles livros que transpira a enganadora palavra ‘progressista’ quer queira, quer não. 

    Esteticamente, considero o livro feio e não me é fácil usar este adjectivo aplicado a um livro. Mas é. Por isso, achei que seria um desses livros ‘sóbrios’ para famílias cristãs, com fundo bege e letras garrafais em grená escuro e a palavra ‘famílias’ ali a rondar. Depois, está escrito com letras cinzentas. Sim, leu bem. Quando abri o livro até pensei estar com os óculos sujos e a ver desfocado, mas não. Era mesmo do livro e nem com anos de ioga ocular conseguiria ler melhor esta obra com letras desta cor. É como tentar compreender algumas etiquetas de roupa desbotadas, sendo que, inevitavelmente, após uns segundos de esforço, se decide colocar tudo junto a lavar na máquina, no programa para ‘algodão’, e rezar. 

    Debruçando-me sobre o conteúdo, os textos parecem mesmo ter sido escritos pelos autores mencionados, admitindo, aqui e ali, alguma ‘ajuda’ de escritores-fantasma ou de um jornalista ‘amigo’, que nem todos nasceram com o dom da prosa e alguns, tendo-a, têm mais o que fazer com o tempo (que é dinheiro). Quanto aos temas que aborda, considero-os pertinentes e relevantes. Vários textos abordam o tema da interrupção voluntária da gravidez, que, sendo-se a favor ou contra, é uma realidade na sociedade, que afecta muitas mulheres. Não falta a questão da inclusão e da comunidade LGBT+nãoseiquê. (O ser humano gosta de complicar o que é, por natureza, simples). 

    Nos dias que correm, a tolerância voltou a ser um tema no mundo ocidental, tal como a inclusão, nomeadamente direccionada para a comunidade transgénero. Mas, de fora, está, por exemplo, a defesa e protecção de meninas, raparigas e mulheres, que perdem privacidade e espaços seguros, perdem lugares em pódios e na meta, em nome de uma ideologia que mete impressão, sobretudo, às amigas lésbicas e amigos gay. Por outro lado, alguns destes nomes que escrevem palavras como ‘inclusão’ e ‘diversidade’, defenderam a segregação insana, anti-científica e criminosa durante a pandemia. Ou seja, defendem que a mulher é dona do seu corpo e cada um escolhe o género que quiser, desde que aceite ser forçado a tomar fármacos e a usar máscara facial, mesmo que a Ciência tenha uma palavra diferente a dizer. O consentimento, afinal, é só para a ‘cama’? Onde estão os direitos humanos quando há coacção e invasão do corpo? Ou quando se invade a privacidade e o ‘mundo interior’ de crianças e jovens com perguntas pornográficas nas escolas, sem conhecimento das famílias?

    Com este aparte, recomendo a leitura deste livro, sobretudo se se discordar do direito à interrupção voluntária da gravidez ou do direito a assumir o género que se quiser. Ouvir versões da realidade diferentes das nossas e outras visões do mundo é uma forma de nos mantermos despertos e atentos, conscientes, e activar o botão do diálogo e a ponte para a empatia. Do mesmo modo, quem se preocupa com questões como inclusão e tolerância, vale a pena ler alguns dos textos que integram esta obra.  As letras do livro até podem ser cinzentas e estar desbotadas, mas o mundo também não é a preto e branco. (Nem feito de unicórnios e arco-íris de manhã à noite).

  • Um livro que vai irritar libertários e conservadores

    Um livro que vai irritar libertários e conservadores

    Título

    Reflexões sobre a liberdade, identidades e famílias

    Autor

    VÁRIOS

    Editora

    Oficina do Livro (Agosto de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Não foi de propósito. Calhou assim, na mesma edição fazer recensão de um segundo livro que serve como ‘repelente’ de libertários e conservadores. A capa do livro é enganadora. Lendo o título, pensamos estar perante um daqueles livros das associações de famílias numerosas ou cristãs, das que defendem as chamadas famílias tradicionais, que, em Portugal, assumem tantas formas quanto o número de géneros inventados que já existem na comunidade LGBTxpto. Existe a ‘família tradicional’ sem amante, com amante. Com ‘afilhados’ e ‘afilhadas’. Com divorciados recasados. Com uniões de facto. Com casais que já não se amam há demasiado tempo. Etc. Etc. 

    Mas não é um livro desses, em defesa dos ‘valores’ das ‘famílias tradicionais’, dos ‘bons costumes’, nem do respeito pelos ensinamentos bíblicos. Só percebemos isso quando colocamos os óculos e lemos, à cabeça, o nome de Joana Mortágua na lista de coordenadoras da obra. Mais abaixo, saltam nomes como o de Fernanda Câncio, Catarina Furtado, Daniel Oliveira, Maria Leonor Beleza, Pedro Strecht, … É um daqueles livros que transpira a enganadora palavra ‘progressista’ quer queira, quer não. 

    Esteticamente, considero o livro feio e não me é fácil usar este adjectivo aplicado a um livro. Mas é. Por isso, achei que seria um desses livros ‘sóbrios’ para famílias cristãs, com fundo bege e letras garrafais em grená escuro e a palavra ‘famílias’ ali a rondar. Depois, está escrito com letras cinzentas. Sim, leu bem. Quando abri o livro até pensei estar com os óculos sujos e a ver desfocado, mas não. Era mesmo do livro e nem com anos de ioga ocular conseguiria ler melhor esta obra com letras desta cor. É como tentar compreender algumas etiquetas de roupa desbotadas, sendo que, inevitavelmente, após uns segundos de esforço, se decide colocar tudo junto a lavar na máquina, no programa para ‘algodão’, e rezar. 

    Debruçando-me sobre o conteúdo, os textos parecem mesmo ter sido escritos pelos autores mencionados, admitindo, aqui e ali, alguma ‘ajuda’ de escritores-fantasma ou de um jornalista ‘amigo’, que nem todos nasceram com o dom da prosa e alguns, tendo-a, têm mais o que fazer com o tempo (que é dinheiro). Quanto aos temas que aborda, considero-os pertinentes e relevantes. Vários textos abordam o tema da interrupção voluntária da gravidez, que, sendo-se a favor ou contra, é uma realidade na sociedade, que afecta muitas mulheres. Não falta a questão da inclusão e da comunidade LGBT+nãoseiquê. (O ser humano gosta de complicar o que é, por natureza, simples). 

    Nos dias que correm, a tolerância voltou a ser um tema no mundo ocidental, tal como a inclusão, nomeadamente direccionada para a comunidade transgénero. Mas, de fora, está, por exemplo, a defesa e protecção de meninas, raparigas e mulheres, que perdem privacidade e espaços seguros, perdem lugares em pódios e na meta, em nome de uma ideologia que mete impressão, sobretudo, às amigas lésbicas e amigos gay. Por outro lado, alguns destes nomes que escrevem palavras como ‘inclusão’ e ‘diversidade’, defenderam a segregação insana, anti-científica e criminosa durante a pandemia. Ou seja, defendem que a mulher é dona do seu corpo e cada um escolhe o género que quiser, desde que aceite ser forçado a tomar fármacos e a usar máscara facial, mesmo que a Ciência tenha uma palavra diferente a dizer. O consentimento, afinal, é só para a ‘cama’? Onde estão os direitos humanos quando há coacção e invasão do corpo? Ou quando se invade a privacidade e o ‘mundo interior’ de crianças e jovens com perguntas pornográficas nas escolas, sem conhecimento das famílias?

    Com este aparte, recomendo a leitura deste livro, sobretudo se se discordar do direito à interrupção voluntária da gravidez ou do direito a assumir o género que se quiser. Ouvir versões da realidade diferentes das nossas e outras visões do mundo é uma forma de nos mantermos despertos e atentos, conscientes, e activar o botão do diálogo e a ponte para a empatia. Do mesmo modo, quem se preocupa com questões como inclusão e tolerância, vale a pena ler alguns dos textos que integram esta obra.  As letras do livro até podem ser cinzentas e estar desbotadas, mas o mundo também não é a preto e branco. (Nem feito de unicórnios e arco-íris de manhã à noite).

  • Outro livro que vai irritar libertários e conservadores

    Outro livro que vai irritar libertários e conservadores

    Título

    Como construir um barco

    Autora

    ELAINE FEENEY 

    Editora

    D. Quixote (Julho de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Peguei no livro e saí a correr. Só mais tarde, quando me sentei para o ler, me dei conta do equívoco. Pensava que era um livro sobre como construir um barco. Literalmente. Daqueles livros práticos sobre ‘como fazer sozinho’. Não era. Não sei porque me equivoquei. Afinal, bastava olhar para a capa com reduzida atenção para perceber que se trata de uma obra de ficção. A etiqueta que diz que a obra foi nomeada para o The Booker Prize de 2023 era outra pista esclarecedora. Não estou a ver um livro que ensine a construir um barco a ser nomeado para um prémio do género (por muito que adore livros práticos sobre como fazer coisas). Adiante, ultrapassado o meu espanto (parvo) causado pela desatenção, aceito a situação: tinha um romance pela frente para ler.

    A capa era auspiciosa. Além da etiqueta de nomeação para o tal prémio, tinha uma recomendação de um vencedor do The Booker Prize, Douglas Stuart. Diz que se trata de “um romance cheio de esperança e de humanidade”. Na contracapa, prossegue: diz que é uma “daqueles raros livros que nos fazem sentir menos sós” e que se trata de “uma história inspiradora sobre uma comunidade e as pequenas coisas que podem mudar uma vida.”

    Não consegui ler o livro sentada, sossegada. Mexi-me muitas vezes no meu lugar no sofá. Para alguns, será talvez menos fácil de ler. (Percebi, depois, que a autora publicou também obras de poesia e teatro, o que explica alguns dos caminhos que percorreu para contar esta história.) Alguns parágrafos ganham vida e as palavras escorregam para as linhas seguintes, em sequência, exigindo atenção e abertura mental. Reli algumas partes para ver se tinha compreendido bem (mas admito que possa ser, também, feitio meu e da minha ocasional parca concentração). Acredito que cada um, seja neurodivergente ou neurotípico, ‘ouve’ as palavras que lê de forma única e compreende (ou não) e vivencia de modo próprio cada história, cada linha. 

    Posto isto, acabei a marcar várias páginas para as mencionar ao leitor desta recensão. Só tinha o marcador que vem com o livro e uma caneta. Acabei por marcar as restantes páginas com as caixinhas compridas de incenso que tinha comprado e que ainda aguardavam na almofada do sofá para ir para o armário. O resultado foi um livro gordo (mas sem páginas dobradas) e com as páginas devidamente seleccionadas.

    A obra tem como personagem central um rapaz, Jamie O’Neill, com 13 anos, que tem dois desejos ou sonhos. Mas seria muito redutor dizer que é disto que o livro trata. Entre histórias de personagens paralelas e o percurso do rapaz, há muitas enseadas, ondas, mergulhos, marés baixas e altas e redemoinhos.  O leitor é confrontado consigo próprio e com a sua vida (eu, pelo menos, fui). Simples frases levam-nos em viagens por novos mares, que não os do enredo do livro. Como no parágrafo que fala que a construção de um barco não é um processo aleatório, “tem muitas fases, vamos eliminar todas as irregularidades” e, “se alguma coisa estiver mal feita, a camada seguinte vai revelá-lo”. Como a vida? Ou o parágrafo que diz que “tudo o que é bom começa com um bom impulso”. Ou aquele que garante que “para criar é preciso sentir-se e estar desconfortável, e por vezes sentir-te-ás desacompanhado”. (Fico por aqui e, afinal, não precisava usar todas as caixinhas de incenso como marcador.) 

    Concluindo, tirando-se os inúmeros “foda-se” e “merda”, que detesto (distraem-me na leitura como uma mosca a ziguezaguear junto aos olhos), é um livro a ler. Com calma e paciência, devagar. O ‘slow reading‘, que é avesso ao consumo de papa-livros de Verão para mostrar, depois, nas redes sociais, a foto da pilha de obras lidas). Mas também esses leitores o lerão bem. Com asneiras e tudo (ou, sobretudo, porque as asneiras talvez ainda estejam na moda, não só na capa de livros, como no seu interior).