Etiqueta: Recensão

  • Tudo se extingue, menos a estupidez

    Tudo se extingue, menos a estupidez

    Título

    Feras e homens: a fauna no Portugal Medieval

    Autores

    MIGUEL BRANDÃO PIMENTA e PAULO CAETANO

    Editora

    Bizâncio

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Cinco anos depois de Urso-pardo em Portugal Crónica de uma Extinção (2017), livro que narrava a história de como o urso-pardo viveu, sobreviveu e se extinguiu em território português, os mesmos autores, Miguel Brandão Pimenta (1950) e Paulo Caetano (1966), regressam aos seres vivos que existiram no Portugal Medieval, “desde os grandes quadrúpedes, como o zebro, aos mamíferos marinhos como o golfinho, passando pela cabra-montês, o açor, o caimão ou o sável”.

    Ao longo de 320 páginas, e através de oito capítulos, desde A Caça na Idade Média até A Falcoaria ao Serviço da Nobreza, de A Fauna na Alimentação Medieval a uma Viagem pelas Fontes Históricas, os autores traçam um retrato notável da fauna existente no Portugal da Baixa Idade Média, num período compreendido entre o ano 1000 e 1500. Destaque também para os Anexos, com curiosidades como A fauna na heráldica autárquica, o Índice de animais e plantas ou um Glossário que muito elucidam o leitor.

    Para consubstanciarem melhor esta descrição, os autores percorreram “alguns dos arquivos e bibliotecas públicas de Portugal”, folhearam “milhares de páginas de velhos livros e de documentos manuscritos”, consultaram “forais, cartas de couto, inquirições, livros de viagens e crónicas medievais”, assim como documentos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, entre muitas outras fontes, além de visitas a diferentes museus e mosteiros de Portugal.

    Contudo, não se pense que esta é uma obra científica, assente numa linguagem académica, antes se apresenta como um livro de divulgação, acessível a todas as pessoas e que se lê com muito prazer, numa escrita fluida, com diversas histórias e apontamentos curiosos, “enriquecido com diversos mapas de distribuição, fotografias e ilustrações”.

    O livro conta-nos as histórias relacionadas com a caça ao urso-pardo, ao javali ou ao veado, bem como as perseguições realizadas por todas as terras de Portugal aos lobos, incentivando-se fortemente a sua captura: “Desde tempos medievais até ao primeiro quartel do século XX, eram conhecidas as figuras dos lobeiros e bicheiros – caçadores que se dedicavam à perseguição ao lobo, colocando armadilhas e venenos ou saqueando os covis”.

    De acordo com os autores, terá sido apenas em 1978 que se realizou oficialmente a última batida ao lobo em Portugal, na serra do Soajo: ”Sob pressão da população, as autoridades do Parque Nacional da Peneda Gerês vacilaram. Depois, contrariadas, cederam sob o pretexto de corresponder aos anseios de uma população que teimava em manter viva a tradição popular: mesmo que fosse à custa da sobrevivência da espécie.”

    Outro tipo de caça era aquela realizada com a ajuda de falcões ou gaviões, a cetraria, também conhecida como volateria, altanaria ou caça de alto voo. Caçavam-se assim diversas aves silvestres, como a abetarda, a garça-real, a perdiz, o galeirão ou o maçarico.

    Devido ao crescimento demográfico exponencial verificado na Baixa Idade Média, a partir do século XII, o consumo de peixe em Portugal atingiu níveis elevados: “Até ao século XII, a sociedade medieval consumia sobretudo o peixe de água doce que migrava ao longo dos rios, como o salmão, a enguia ou o esturjão”. Do mar, entre outras espécies, consumiam-se sobretudo a sardinha, o cherne, a solha ou as azevias.

    Um dos capítulos mais pertinentes é o dedicado à “Fauna na alimentação medieval”, que nos dá uma visão bastante alargada sobre os hábitos alimentares em Portugal na Idade Média, onde pontificavam algumas excentricidades, como as mãos de urso (foi a 2 de Dezembro de 1843 que se abateu o último urso em Portugal, “durante uma batida realizada junto do ribeiro do rio Mau, em Montalegre”). Não só existem referências históricas acerca do consumo de carne de urso como a sua carne se encontrava tabelada em vários mercados, como por exemplo, “no açougue real da freguesia de Terena, no actual concelho do Alandroal”.

    Este é um livro com muitas histórias, curiosidades e pistas de leitura interessantes para o leitor explorar, numa abordagem multidisciplinar e transversal da História de Portugal, mas também da sua gastronomia, e, principalmente, das suas tradições, felizmente, em boa hora, caídas em desuso ou proibidas.

    Após a sua leitura, é assustador pensar em toda a biodiversidade que existiu neste humilde rectângulo e que, pela estupidez dos homens, várias espécies foram levadas à extinção. Possa este livro servir não só para conhecermos o passado mas também nos ajudar a reflectir acerca da construção de um futuro melhor.

  • Uma viagem por um mundo tenebroso

    Uma viagem por um mundo tenebroso

    Título

    Fascismos: para além de Hitler e Mussolini

    Autor

    CARLOS MARTINS

    Editora (Edição)

    Desassossego (Outubro de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    “Fascismo! São poucas as palavras tão abundantemente utilizadas e que, ao mesmo tempo, abarcam uma tão ampla quantidade de possíveis significados.”

    Carlos Martins é um académico, com percurso iniciado em 2005 pela licenciatura em Línguas Modernas pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, passando depois por um mestrado em Estudos Anglo-Americanos em 2009, e culminando em dois doutoramentos: em Estudos Americanos ainda na mesma universidade em 2012 e um ano mais tarde em Política Comparada no Instituto de Ciências Sociais de Lisboa.

    É com base nesta segunda tese, intitulada Fascist ideology and the conceptual approach: the conceptual configuration of fascist leaders, que a Desassossego, uma chancela da Saída de Emergência, publica esta interessante obra que escalpeliza o surgimento do Fascismo, ou, em bom rigor, dos fascismos ao longo do século XX, e que tantas marcas deixou nas sociedades e na História.

    Sendo evidente que o Fascismo na Europa está hoje muito colado aos regimes de Mussolini e de Hitler, aquilo que este livro mostra é que não foram movimentos únicos, antes sim aqueles que fazem parte da memória colectiva, por terem tido um impacte mais desastroso.

    E é precisamente isso que este livro – sugestivamente intitulado Fascismos: para além de Hitler e Mussolini – desoculta. Com efeito, Carlos Martins não apenas se dedica ao estudo dos casos mais famosos, mas também revela sobretudo os menos conhecidos, incluindo os regimes protofascistas que surgiram no princípio do século passado em vários países europeus, como a França e a Roménia e ainda no Brasil.

    Como se sabe, nem todos os movimentos fascistas tiveram “sucesso”, de que o do Reino Unido constitui um bom exemplo. Mas, neste caso, merece uma análise especial, nem que seja pela curiosidade de o partido em causa, o British Fascists (1923-1934), ter sido liderado por uma mulher, Rotha Linton Orman. Isto sabendo-se que, nesta época, a política (e particularmente o fascismo) era um lugar sobretudo de e para homens, nem que seja pela violência associada.

    O fascismo romeno é, aliás, um desses casos paradoxais entre a falta de fama histórica e a extrema violência utilizada na tentativa de impor o regime neste país.  A história da Guarda de Ferro e do seu líder, Corneliu Codreanu, merece uma leitura atenta.

    No caso português, é comum associar, desde logo, a figura e regime de Salazar ao fascismo. Mas um dos aspectos interessantes deste livro é a visão que Carlos Martins nos mostra de que o fascismo em Portugal se inicia antes do aparecimento do Estado Novo, através de Rolão Preto, um homem que, curiosamente, acaba opositor de Salazar.

    Carlos Martins apresenta ainda um glossário onde se encontram as principais organizações fascistas e antidemocráticas que existiram em países como a Argélia, Islândia e até na Austrália, demonstrando assim a amplitude mundial de regimes autoritários.

    As últimas páginas deste livro são dedicadas às várias definições que o Fascismo teve ao longo dos tempos, nomeadamente na era mais moderna, a partir da década de 90 – como a do político britânico David Renton que defende que o Fascismo é um regime de massas que acaba a favorecer a burguesia.

    Ao longo de 300 páginas, esta obra oferece uma visão sólida e contundente onde se percepciona que o Fascismo tem, talvez, menos de ideológico e mais de oportunista, uma vez que para lá fluem personagens de todos os campos políticos e ideológicos, e que muitas vezes mudaram de ideias de modo a atrair votos.

    Para os amantes de História e de Política, este livro é assim, sem dúvida, uma excelente leitura, também pela profusão de pormenores e personagens menos conhecidas, mas que ainda assim tiveram o seu papel na ascensão e queda deste tipo de regime.

  • Do neo-realismo pacifista

    Do neo-realismo pacifista

    Título

    Romain Rolland: uma consciência livre

    Autor

    JORGE REIS

    Editora (Edição)

    Parsifal (Agosto de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Jorge Reis é o pseudónimo de Atilano de Reis Ambrósio, nascido em 1926, em Vila Franca de Xira, e falecido em 2005, em Paris. Alves Redol foi seu professor de Português, tendo sido, certamente, uma das pessoas a influenciar o seu percurso literário. Consta que dactilografou o romance póstumo de Redol, Os Reinegros, publicado três anos após a morte daquele escritor neo-realista.

    Outras influências terá tido, como as de Aquilino Ribeiro, de quem saiu em defesa aquando da edição do romance “Quando os lobos uivam” – obra censurada pelo Estado Novo. Aliás, uma das obras premiadas de Jorge Reis – Prémio de Ensaio da Associação Portuguesa de Autores – é o seu Aquilino em Paris, publicado em 1987.

    Terá sido em Paris que se conheceram, cidade onde Jorge Reis se exilou, por ter sido obrigado à clandestinidade durante a ditadura. Em Paris, trabalhou no Centre Catholique Intellectuels Français e na RTF, onde era responsável e locutor de um programa para os emigrantes portugueses.

    Além de escritor, ensaísta e ativista, Jorge Reis traduziu obras de Balzac, Rabelais, Maupassant e discursos do General De Gaulle. Não é de estranhar, portanto, que se tenha encantado com a exuberância, diríamos, de Romain Rolland, Prémio Nobel da Literatura em 1915. Com efeito, a leitura do monumental Jean-Christophe, romance em 10 volumes, foi uma referência para muitos jovens da sua época.

    A publicação desta obra de Jorge Reis, sobre a vida de Romain Rolland, sucede por vontade da Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo, conforme afirma o seu director, António Mota Redol (filho de Alves Redol), no prefácio:

    “Este é um livro que Jorge Reis – o único dos escritores vila-franquenses que ganhou o Prémio Camilo Castelo Branco da extinta, por Salazar, Sociedade Portuguesa de Escritores – deixou inédito, apesar das suas tentativas para o publicar”.

    Uma consciência livre e inconveniente, para muitos da época, por isso dizíamos exuberante. Tanto mais que a liberdade, o princípio por que Romain Rolland pautou a sua vida, não era, não é, e provavelmente nunca será, o princípio de vida mais apreciado pelas classes políticas e económicas dominantes.

    É sobre essa vida independente que o livro de Jorge Reis trata, uma obra deveras relevante para os leitores interessados pelos valores humanistas e pacifistas. Com efeito, Romain Rolland admirava profundamente Leon Tolstói e Mahatma Ghandi, grandes defensores da não-violência e dos valores pacifistas.

    Muito escreveu sobre as razões e consequências da Primeira Grande Guerra e do quão desumanizadora é toda a acção bélica. O parágrafo que se segue data de 1914, mas poderia ter sido escrito hoje mesmo, o que mais uma vez nos mostra que os europeus e a Humanidade, em geral, não terão aprendido nada com a História:

    Sei que tais ideias têm hoje poucas probabilidades de serem ouvidas. A jovem Europa, que arde na febre do combate, sorrirá de desdém, mostrando os dentes de lobacho. Mas quando descer o acesso de febre, ver-se-á mortificada e, talvez, menos orgulhosa do seu heroísmo carnífice”.

    A leitura do livro deste livro de Jorge Reis pode ser compreendida como um convite à reflexão e, sobretudo, a visitar ou revisitar a obra de Romain Rolland – na segunda parte do livro, encontramos excertos de alguns dos seus escritos –, para quem todos os seres vivos mereciam viver em liberdade e de forma digna e respeitada.

    Romain Rolland, um dos maiores representantes do neo-realismo, foi um humanista que agora valerá a pena conhecer (ou recordar, ou invocar), numa época em que a liberdade, a dignidade e o respeito pela pessoa humana parecem estar em risco crescente.

  • Uma orfandade emocional

    Uma orfandade emocional

    Título

    Os abismos

    Autora

    PILAR QUINTANA (tradução: Pedro Rapoula)

    Editora

    Dom Quixote (Setembro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Depois do sucesso retumbante de A Cadela, que foi finalista do National Book Award em 2020 nos Estados Unidos, chegou agora a Portugal o novo romance da escritora colombiana Pilar Quintana, Os Abismos, que venceu em 2021 o prestigiado Prémio Alfaguara em 2021 de romance. Uma vez mais, é a Dom Quixote a editar a obra daquela que é uma das romancistas com maior projecção na América Latina.

    Os Abismos retrata os dramas de uma família colombiana atormentada, nos anos 1980, e a história é-nos contada pela filha (única), Cláudia, uma menina de apenas nove anos.  A mãe, também Cláudia, não o queria ter sido, e só o foi por força das convenções sociais que não a deixaram prosseguir uma carreira nem escolher outro destino que não fosse o casamento e a maternidade. Assim, pode dizer-se que a distância emocional que define a relação entre ambas é “abismal” – sempre fria, distante, negligente –, à imagem do que tinha sido, também, entre a avó e mãe de Cláudia.

    Embora Cláudia “adulta” repita constantemente, quase a tentar convencer-se a si mesma, que não é como a sua mãe, a verdade é que não consegue deixar de reproduzir com a sua filha os mesmos padrões emocionais que herdou e assimilhou na sua infância.

    O pai, Jorge, 21 anos mais velho do que Cláudia-mãe, passa a maior parte do tempo a trabalhar no supermercado que gere com a sua irmã, Amélia. E, quando, enfim, está em casa, a sua presença é quase meramente física, já não são muitas as palavras que troca com a filha – não obstante, o pouco que diz deixa transparecer algum afecto.

    O seguinte trecho em que Cláudia descreve a celebração do seu nono aniversário é revelador do trato entre o casal e a filha:

    A minha mãe, como todos os anos, recordou a sua gravidez. A grande barriga, os pés inchados, que a cada cinco minutos tinha vontade de ir à casa de banho, que não conseguia dormir e o que lhe custava levantar-se da cama. As dores começaram ao almoço. Eram a coisa mais horrível que já tinha sentido. O meu pai levou-a para a clínica e ali sofreu toda a tarde, toda a noite, toda a manhã do dia seguinte, toda uma nova tarde, a sentir que ia morrer, e outra noite completa, até de madrugada.

    – Saiu roxa. Horrorosa. Puseram-ma ao peito e eu, a tremer e a chorar, pensei: esforcei-me tanto para isto?

    A minha mãe deu uma gargalhada tão grande que se lhe viu o céu da boca, profundo e sulcado como o tronco de uma pessoa subnutrida.

    – A bebé mais feia da clínica – disse o meu pai.

    Deste modo, Cláudia-filha cresce com os pais, mas sempre numa espécie de orfandade emocional, privada do afecto que, na idade em que está, tem necessidade de receber e que nunca se cansa de tentar obter. A situação familiar, que já é complexa e delicada, leva um novo “tombo” quando a Cláudia-mãe começa a ter um caso com o marido da cunhada.

    A traição fá-la afundar-se ainda mais e cair numa depressão que a deixa praticamente de cama, a whisky e comprimidos. A partir de aí, a sua personagem fica num limbo constante, parecendo estar sempre a um pequeno passo de “resvalar” para a autodestruição, o que confere um certo clima de mistério que se vai adensando ao longo do romance. Com Cláudia-filha, fala sobre Grace Kelly e Natalie Wood, dizendo-lhe que as trágicas mortes das actrizes só podem mesmo ter sido por suicídio.  

    Tendo a selva colombiana sempre como “pano de fundo”, o título Os Abismos remete tanto para os precipícios psicológicos em que as personagens se encontram, mergulhadas em sentimentos depressivos, como para os precipícios físicos que vão surgindo ao longo de toda a história.

    Pilar Quintana consegue conferir ao romance uma forte carga emocional, e a sua intensidade é o que nos deixa agarrados ao livro, mas é também, em contrapartida, o único motivo que torna difícil ler as 200 páginas de uma só vez.  

    De facto, a melancolia pode ser esmagadora, e é impossível ficar indiferente à infância infeliz da pequena Cláudia que, na sua inocência – sempre evidenciada na forma como descreve e interpreta os acontecimentos –, procura amor nos adultos que a rodeiam, mas raras vezes com sucesso.

    Parece ser consensual entre os críticos que Os Abismos não conseguiu chegar ao mesmo patamar literário que A Cadela. Em todo o caso, vale, e muito, a pena ler este novo romance de Pilar Quintana, não só pela qualidade da escrita, como pelo enredo dramático e inebriante, que aborda dinâmicas e mecanismos psicológicos que, mais ou menos familiares, não soarão estranhos a ninguém.

  • Os surreais dramas de Ismael

    Os surreais dramas de Ismael

    Título

    Consumidos pelo fogo

    Autor

    JAUME CABRÉ (tradução: Maria João Teixeira Moreno)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Setembro de 2022)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Autor do romance Eu confesso (2015), do livro de contos Quando a penumbra vem (2019) – também publicados pela Tinta-da-China – e de outros romances e guiões, Jaume Cabré é um dos escritores catalães mais conceituados e consagrados da atualidade. Terá sido com As vozes do rio Pamano (2004) que o autor terá ganhado maior visibilidade em Espanha e a nível internacional – já traduzido em 12 línguas.

    Neste Consumidos pelo fogo, Jaume Caubré conta-nos a história de Ismael, um professor de literatura e línguas, cuja existência rotineira e monótona é resultado de uma escolha. O enredo surrealista, e até metafísico, começa quando Ismael é despedido pela directora da escola, tão-só por ter tomado a liberdade de dar um poema catalão aos seus alunos, em vez de se limitar a abordar a literatura espanhola.

    O professor não se transforma na barata de Kafka, mas a sua condição é a de uma falena, borboleta nocturna, que paira numa existência absurda. A rotina, depois de quebrada, transforma-se numa viagem ziguezagueante entre o futuro ausente, um presente inverosímil e uma infância infeliz – o pai chegou a lançar-lhe gasolina.

    O retorno à infância acontece por intermédio de um encontro com uma antiga vizinha, Leo. Foi numa retrosaria, onde entrou para comprar um botão de camisa. Voltou à loja dois dias depois e, no seguinte, Leo já estava em sua casa. A felicidade parecia quase alcançada.

    Mas Ismael é como que sequestrado por um antigo aluno que lhe pede ajuda para uma tradução.

    O professor de literatura nem tempo teve para sentir o que lhe parecia uma nova existência. Acorda num hospital sem memória, após um acidente de carro, no qual é dado como morto. “Chamem-me Ismael”, assim responde a uma das muitas questões nesse estranho hospital.

    A história das peripécias de Ismael acontece, em paralelo, com as de uma família de javalis. A cria mais nova perde-se, como se perde Ismael, nos meandros dos sonhos e das memórias de infância. Caos, confusão, absurdo, são algumas das palavras-chave do enredo complexo que Jaume Cabré constrói, provocando o leitor, como que o “obrigando” ao exercício da reconstrução de uma narrativa fantástica, caracterizada pela velocidade dos acontecimentos.

    Ao resgatar alguns clássicos, uns mais explícitos, outros de forma mais subtil, o autor consegue algo original e, ao mesmo tempo, desconcertante.

  • Um cartão de visita à leitura

    Um cartão de visita à leitura

    Título

    Guia para 5o personagens da ficção portuguesa

    Autor

    BRUNO VIEIRA AMARAL

    Editora (Edição) 

    Guerra & Paz (Setembro de 2022) 

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Entre 2013, ano da edição original deste Guia para as 50 personagens da ficção portuguesa, e o presente ano, o da sua reedição, Bruno Vieira Amaral transformou-se num dos mais respeitados escritores portugueses, com uma estreia auspiciosa que não tem esmorecido.

    O seu romance de estreia, As pequenas coisas, publicado então nesse ano de 2013, lançou-o logo para o estatuto de escritor “amadurecido”, arrebatando logo o Prémio Fernando Namora e o Prémio PEN Clube Narrativa, e dois anos mais tarde, o Prémio José Saramago, então para autores com menos de 35 anos – Bruno Vieira Amaral nasceu em 1978.

    Quatro anos mais tarde, o seu segundo romance Hoje estarás comigo no paraíso, recolheu o segundo lugar no Prémio Oceanos (Brasil) e foi finalista do Prémio Correntes d’Escritas, seguindo-se dois livros de contos e a biografia do escritor José Cardoso Pires (1926-1998), Integrado marginal, publicado no ano passado.

    Mas Bruno Vieira Amaral não nasceu literariamente em 2013. Nesse ano, trabalhava como assessor de comunicação da editora Quetzal e como crítico literário, sobretudo da revista Ler. E leria, leria muito, por certo.

    Na verdade, só quem for um leitor compulsivo se mostra capaz da ousadia de seleccionar meia centena de personagem de romances (e um conto, Léah, de José Rodrigues Miguéis), percorrendo todo o espectro literário português desde o século XIX até à actualidade, incluindo todos os movimentos artísticos, géneros e sensibilidades.

    Seguindo, como modelo assumido, o Livro dos seres imaginários, de Jorge Luis Borges e Margarida Guerrero, e o Dicionário dos lugares imaginários, de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi, esta obra de Bruno Vieira Amaral é despretensiosa.

    E é despretensiosa no sentido de não ambicionar ser um ensaio nem sequer uma crítica literária, antes sim é uma “mostra”, um convite, através de personagens, à leituras de obras de ficção que, se não já lidas pelos leitores de maior “consumo literário”, pelo menos estarão com quase todos eles familiarizados, pelos títulos e autores.

    Assim, não surpreende que Bruno Vieira Amaral não apresente grandes surpresas na escolha de personagens (e romances e autores), sobretudo quando abrange o século XIX e a primeira metade do século XX. Revela apenas os “clássicos”, que constituem o cânone, e nada mais.

    O século XIX surge representado por nove obras / personagens, mas apenas de cinco escritores: Eça de Queirós (O primo Basílio; O crime do Padre Amaro; Os Maias; A relíquia), Camilo Castelo Branco (Amor de perdição; A queda dum anjo), Júlio Dinis (A morgadinha dos canaviais; Uma família inglesa); Alexandre Herculano (Eurico, o presbítero) e Almeida Garrett (Viagens na minha terra).

    A primeira metade do século XX – que, apesar da crescente alfabetização da população, e concomitantemente da oferta de livros, foi de certa pobreza literária – encontra-se ainda menos representada. No primeiro quartel, Bruno Vieira Amaral escolheu somente Lúcio Vaz, de As confissões de Lúcio, de Mário Sá Carneiro, publicado em 1914, e António Malhadinhas, de O Malhadinhas, de Aquilino Ribeiro, de 1922. Depois, só duas obras do neorrealismo, quase óbvias: Gaibéus (1939), de Alves Redol; e Esteiros (1941), de Soeiro Pereira Gomes.

    Mau tempo no canal (1949), de Vitorino Nemésio, é a antecâmara de um período literário que aparentemente agradou bastante a Bruno Vieira do Amaral, porquanto na década de 50 encontramos as personagens principais de Uma abelha na chuva (1953), de Carlos Oliveira; A sibila (1954), de Agustina Bessa Luís; de Seara de vento (1958), de Manuel da Fonseca; de Léah, (1958), de José Rodrigues Miguéis; de Bastardos do sol (1959), de Urbano Tavares Rodrigues, e de Aparição (1959), de Virgílio Ferreira.

    Mais romances, portanto, do que aqueles que surgem desde a década de 60 até ao fim do Estado Novo. Neste período, Bruno Vieira Amaral apenas nos mostra quatro personagens de obras de Marcello Mathias, Fernando Namora, Natália Correia e José Cardoso Pires.

    No período democrático, e pela proximidade geracional, não faltam, até ao final do século XX, personagens de obras dos escritores mais emblemáticos deste período, como José Saramago (com Baltasar e Blimunda, em Memorial do convento; e um dos heterónimos de Fernando Pessoa, em O ano da morte de Ricardo Reis), Jorge de Sena, Fernando Assis Pacheco, Dinis Machado, David Mourão Ferreira, Fernando Dacosta, António Alçada Baptista, José Cardoso Pires (que repete a sua presença, desta vez com Alexandra Alpha, de 1987), João Aguiar, Baptista Bastos, Lídia Jorge, João de Melo, Mário Zambujal e Clara Pinto Correia, apenas surgindo aqui dois (então) jovens escritores: José Riço Direitinho (com Breviário das más inclinações, publicado em 1994, aos 29 anos) e Manuel Jorge Marmelo (com Portugués, guapo y matador, em 1997, ao 26 anos).

    Embora a obra de Bruno Vieira Amaral distribua os personagens e as obras que eles enchem de forma aparentemente ao correr da pena – ou seja, sem ter uma linha cronológica nem alfabética –, as obras de autores do presente século são justificadamente escassas. Estão aqui assim personagens de romances de Miguel Sousa Tavares (Equador), Mário de Carvalho (A sala magenta), Hélia Correia (Lillias Fraser), J. Rentes de Carvalho (A amante holandesa), Miguel Real (A ministra) e Francisco José Viegas (Um crime capital).

    Haverá, por certo quem possa identificar falhas ou injustiças, ou aqui e ali julgar ser exagerado a inclusão de uma ou outra personagem nesta colectânea ou antologia, mas, como se disse, esta obra de Bruno Vieira Amaral é despretensiosa – e, acrescentar-se-ia, de grande honestidade e até generosidade, constituindo-se sobretudo como um cartão de visita à leitura.

  • Vidas e dramas dos génios

    Vidas e dramas dos génios

    Título

    As guerras de Albert Einstein (1/2)

    Autores

    FRANÇOIS DE CLOSETS, CORBEYRAN e ÉRIC CHABBERT (tradução: Ana Maria Pereirinha)

    Editora (Edição)

    Gradiva (Setembro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Conhecida sobretudo por ser uma editora de obras científicas, apesar dos retumbantes sucessos comerciais dos romances de José Rodrigues dos Santos, a Gradiva tem vindo a apostar cada vez mais na banda desenhada, ajudando a conhecer algumas figuras ímpares.

    Destaque-se, por exemplo, a colecção Descobridores, sobre as vidas de Fernão de Magalhães, Charles Darwin, Tenzing Norgay e Marco Polo; a colecção Grandes Figuras da História, sobre as vidas de Lenime, Chirchill, Estaline e Mai Tse-Tung.

    Não estando em nenhuma destas colecções, As Guerras de Albert Einstein, em dois volumes, contribui para trazer (mais) luz sobre um dos mais brilhantes génios do século XX, através da pena e do traço de um trio francês de luxo: Françoise de Closets – jornalista e ensaísta de 88 anos, e autor de uma biografia deste físico –, Corbeyran – que aos 57 anos é um dos mais destacados escritores de banda desenhada do Mundo – e ainda Éric Chabbert, autor dos desenhos.

    Mais do que retratar Einstein como cientista, cada um dos volumes – embora apenas se tenha ainda contemplado o primeiro – destaca dois períodos-chave da sua vida e do Mundo no século XX: a I Guerra e a II Guerra Mundial.

    No primeiro período, vemos o pacifista Einstein num episódio marcante do primeiro grande conflito mundial que envolve a participação do seu amigo Fritz Haber – um brilhante químico inventor do fabrico do amoníaco para fomento agrícola e que seria galardoado com o Prémio Nobel em 1918 – no esforço de guerra alemão, através do iníquo desenvolvimento de armas químicas à base de cloro, usadas primeiramente na batalha de Ypres em 1915. Este evento teria uma trágica consequência: o suicídio da mulher de Fritz Haber.

    Numa obra desta natureza, mostra-se difícil dar densidade psicológica aos personagens – ainda por cima bem reais –, mas a estratégia dos autores e os próprios desenhos ajudam a dramatizar cada um dos episódios. Não apenas os dilemas dos dois cientistas (Einstein, um pacifista, e Haber, um pragmático), mas também os dramas das suas relações com as respectivas mulheres (Mileva e Clara), ambas de grande inteligência, mas “condenadas” por viverem com dois génios num período histórico que não lhes dava liberdade plena para ombrearem com eles.

    Na verdade, para quem se debruça neste breve primeiro volume de banda desenhada, por certo quererá buscar mais sobre a vida não apenas de Albert Einstein (alguns anos antes de ser galardoado com o Prémio Nobel da Física, em 1921), mas em especial de Fritz Haber, de Mileva Marić e, ainda mais, sobre Clara Immerwahr.

  • Uma utopia será sempre boa?

    Uma utopia será sempre boa?

    Título

    A nova ordem mundial

    Autor

    H. G. WELLS

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Julho de 2022)

    Cotação

    13/20

    Recensão

    Conseguirá o Mundo, alguma vez, alcançar uma paz perdurável? E se sim, o que terá a Humanidade de fazer de modo a tornar essa possibilidade real? Com a eclosão da Segunda Grande Guerra, é a estas perguntas que o prolífico escritor, jornalista e romancista britânico H. G. Wells (1866-1946) tentou responder em A Nova Ordem Mundial, que teve a sua primeira edição em 1940, e foi agora republicado pela Dom Quixote.

    H. G. Wells foi um dos escritores mais notáveis do início do século XX. O Homem Invisível, A Máquina do Tempo e A Guerra dos Mundos estão entre as suas obras mais conhecidas. Considerado um visionário e um dos principais percursores da ficção científica, vaticinou, por exemplo, o advento da rádio e da televisão, a vigilância em massa, a world wide web, e a bomba atómica.

    A expressão “Nova Ordem Mundial” tem hoje servido de material para teorias da conspiração. Curiosamente, algumas delas poderiam mesmo fundamentar-se neste livro. É que o autor apresenta a tese de um governo internacional como a solução para os conflitos que na altura assolavam o Ocidente. Um socialista confesso – foi um dos membros mais proeminentes da Sociedade Fabiana – H. G. Wells mostra-se crítico do marxismo e da revolução russa, mas defende abnegadamente a colectivização do poder e reitera que está em curso o fim de uma era e a queda de uma antiga ordem.

    Wells clarifica a sua ideia de colectivização no seguinte trecho: “[É] a gestão dos assuntos comuns da humanidade por um controlo comum responsável por toda a comunidade. Significa a abolição da discricionariedade nas questões sociais e económicas, assim como nas questões internacionais. Significa a abolição drástica da procura do lucro e de todas as artimanhas que os seres humanos engendram para parasitarem os seus congéneres. É a concretização prática da irmandade humana por intermédio de um controlo comum.”

    Segundo Wells, é imperativo que ocorra esta transformação na sociedade, sob risco de o mundo redundar em miséria e destruição.

    Wells adverte, porém, que este sistema socialista à escala global, que vê como inevitável, só poderá ser bem-sucedido se forem feitas diligências no sentido de proteger os cidadãos contra eventuais abusos de poder.

    Para esse fim, torna-se essencial a formulação de uma Declaração de Direitos Humanos, que o autor apresenta em esboço nesta obra, e que viria a desenvolver em Os Direitos do Homem, publicado no mesmo ano.

    Na verdade, o canadiano John Peter Humphrey, responsável pelo rascunho que serviu de base à Declaração Universal dos Direitos Humanos, chegou a admitir que a matéria de H. G. Wells sobre os direitos humanos influenciou a elaboração do documento adoptado pelas Nações Unidas.

    Embora conceba reflexões pertinentes, com as quais se pode até estabelecer paralelos com os tempos actuais, a realidade que H. G. Wells desenha como sendo desejável e necessária é manifestamente utópica. As últimas décadas provaram-no: o reconhecimento dos direitos humanos não tem impedido a sua violação, a paz não foi alcançada – adivinha-se, inclusivamente, novos cenários de guerra – e não parecem haver métodos infalíveis de evitar a tirania.

    Não obstante, e quer se concorde ou não com a sua visão, a crítica sagaz e arguta de H. G. Wells à sociedade do seu tempo fazem com que esta leitura valha a pena e atestam à sua genialidade.

  • Diário de bordo em tempos covídicos

    Diário de bordo em tempos covídicos

    Título

    Volta aos Açores em quinze dias

    Autor

    JOSÉ PEDRO CASTANHEIRA

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Agosto de 2022)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    José Pedro Castanheira foi – é, porque nunca se deixa de ser – um dos mais respeitados jornalistas portugueses, daqueles sérios e a sério, com vasta experiência na investigação jornalística ao longo de quase cinco décadas de actividade, de entre os quais 30 anos no Expresso.

    Além do seu trabalho na imprensa, José Pedro Castanheira é autor de diversas obras de índole biográfica e política, destacando-se a biografia de Jorge Sampaio e o relato da atribulada vida de Annie Silva Pais (filha de um façanhudo director da PIDE), em co-autoria com Valdemar Cruz, que acaba de ser transposto para o pequeno ecrã (Cuba Libre), na RTP.

    Chegado à reforma, Castanheira decidiu em 2020, aos 68 anos, concretizar um seu antigo sonho, de 40 anos: ligar por mar as ilhas açorianas. E mais: ser o “cronista”. Foi processo atribulado, o que até é bom para um relato.

    De facto, em literatura de viagem, por princípio, jamais interesse algum haverá para o leitor se nada de estranho ou mirabolante se passar, sobretudo se o cenário for o mar e um pequeno veleiro o meio de locomoção. E também se o “cronista” não for bom.

    Ora, no caso de Volta aos Açores em quinze dias: diário de bordo de uma viagem para (não) esquecer, garantido estava que o “cronista” seria bom, e isso se confirma ao longo das suas páginas. João Pedro Castanheira, sempre na terceira pessoa (mesmo quando se refere a si), mostra a mestria de um bom contador de história, aqui e ali pontuado com pequenas doses de humor. Em todo o caso, falta ali umas pitadas de sal para que o estilo à laia de cronista dos tempos dos Descobridores ficasse mais refinado, o que se pode justificar pelo pouco tempo de preparação da obra: a viagem decorreu em Maio deste ano, e o livro saiu do prelo no início de Agosto.

    Bom, na verdade, neste caso, a analogia com o sal não é bem conseguida, pois a refinação lhe retira qualidade, ao invés de o aprimorar. Fiquemo-nos então por dizer que a escrita neste curto livro, em formato de bolso, não é “flor de sal” da literatura de viagens marítimas, mas não envergonha, muito pelo contrário. Porém, confessa-se que se pode ficar com uma sensação de algum “inconseguimento”.

    De facto, lido este “diário de bordo”, conclui-se que o mar compartilha, nesta travessia pelo arquipélago dos Açores, o protagonismo tanto com a equipagem do veleiro Avanti (e suas aventuras e desventuras) como com o SARS-CoV-2.

    A pandemia está omnipresente no livro. Não apenas porque a viagem, inicialmente prevista para 2020, se inicia com dois anos de atraso, devido aos lockdowns da pandemia, mas sobretudo por um terço do livro ser quase inteiramente dedicado às contingências do confinamento obrigatório de José Pedro Castanheira no Horta Garden por força de um teste positivo à covid-19 ao 12º dia de viagem.

    E assim, as últimas 60 páginas ingloriamente transformam-se, segundo o próprio autor, em relato do “simplório quotidiano de um jornalista reformado que se arvorou em marinheiro e que, não se tendo precavido suficientemente (apesar de três vezes vacinado), foi obrigado pela ministra Marta Temido e pelo seu diligente SNS24 a um período de isolamento profilático” de cinco dias no dito Horta Garden.

    Esta parte do “diário de um covídico”, nas humoradas mas conformadas palavras de José Pedro Castanheira, tem, pelo menos, uma utilidade histórica não despicienda: tal como olhamos hoje com admiração e espanto para antigas crónicas compiladas no século XVIII na História Trágico-Marítima de Bernardo Gomes de Brito – e sabendo as condições de navegação em épocas ancestrais –, no futuro, certamente, os nossos descendentes olhar-nos-ão com pasmo e espavento às experiências destes navegadores do século XXI. 

    Portanto, três vezes vacinado e depois ainda há um confinamento? Give me a break! Enfim, se os portugueses de antanho andasse com tais frescuras, nem ao forte de São Lourenço da Cabeça Seca, vulgo Bugio, chegariam com os madeiros ondulantes de então, quanto mais aos quatro cantos do Mundo.

    Nota final para o excelente prefácio de Onésimo Teotónio Pereira, distinto açoriano e professor catedrático no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University, no estado norte-americano de Rhode Island.

  • Alegria para o jantar

    Alegria para o jantar

    Título

    Luís de Sttau Monteiro gastrónomo

    Autora

    ANA MARQUES PEREIRA

    Editora (Edição)

    Edição de Autor: Ana Marques Pereira (Setembro de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Conhecido sobretudo pela sua dramaturgia, Luís de Sttau Monteiro (1926-1993) foi também um apaixonado pelas artes culinárias e pela gastronomia, tendo sido um dos pioneiros da crítica de restaurantes em Portugal.

    Por volta dos dez anos, na Covilhã, Ana Marques Pereira (n. 1949) tomou conhecimento com a obra literária de Sttau Monteiro. Na época os seus livros eram considerados como proibidos: “Era nesse contexto que se integravam os livros de Sttau Monteiro, que fui comprando à medida que iam sendo publicados. Lia-os avidamente e com prazer”.

    Agora, com o livro Luís de Sttau Monteiro gastrónomo (320 págs.), a investigadora decidiu abordar “o seu papel como gastrónomo e crítico de restaurantes, faceta que foi tão importante na sua vida e obra, mas que tem passado ao lado daqueles que o conhecem e o apreciam como um dos maiores escritores do século XX.”

    Foi em 1959, na revista Almanaque, coordenada por José Cardoso Pires, que Luís de Sttau Monteiro começou a escrever sobre gastronomia e culinária, passando depois pelo “suplemento do Diário de Lisboa, em A Mosca; no semanário O Jornal, com artigos sob títulos diversos como Gastronomia, Gastromania ou Restaurantes, e por fim com a rubrica O Petisco publicada no jornal Se7e”. Um percurso desde o final dos anos 50 até aos anos 90, quando “na época não era ainda habitual deparar com este tipo de matéria nos jornais ou revistas portuguesas.”

    Ao longo de todo este tempo, a maioria das suas críticas gastronómicas não eram assinadas, outras vezes utilizava pseudónimos — foi possível identificar 14 —, como por exemplo: Inspector Gourmet, Manuel Pedroso, Manuel Pedrosa, Fernando C. Malveia,  António Coutinho, Carlos R. Rodrigues ou Paulo Santana, sendo provável a existência de outros. Na opinião da investigadora, “não podemos excluir que esta diversidade de identificações tenha a ver com a sua má experiência anterior com a Censura e a perseguição pela PIDE.”

    De acordo com Ana Marques Pereira, “todo o percurso de escrita em Sttau Monteiro nos faz crer tratar-se de um interessado nas artes da cozinha”. Era uma pessoa que não só gostava de cozinhar como de partilhar as refeições com os amigos e familiares. E isso encontra-se bem patente nos seus escritos, onde demonstrava um “conhecimento alargado da cozinha internacional”, mas também se reconhecia “um interesse verdadeiro pela cozinha tradicional portuguesa”.

    Destaque para a sua passagem pela RTP, onde “Sttau Monteiro foi também autor de um programa de televisão destinado a dar a conhecer a culinária e doçaria tradicionais de Portugal, intitulado Caldo de Pedra”, embora na ficha técnica seja indicado como autor o nome de Manuel Pedrosa, um dos muitos pseudónimos que Sttau Monteiro utilizava nas crónicas.

    Um dos capítulos mais curiosos, e que muito valoriza este livro, é o dedicado aos cadernos dactilografados de Sttau Monteiro, que foram adquiridos por Ana Marques Pereira num alfarrabista. Um conjunto de apontamentos constituído por oito “arquivadores, com separadores, com letras ordenadas por ordem alfabética”, que foram escritos pelo colunista e “que lhe serviram de base para algumas das afirmações que fazia nas crónicas publicadas nos vários jornais”. Além disso, todos estes apontamentos serviam para “registar as bases para um Dicionário da História da Alimentação”, projecto que nunca concretizou.

    Por fim, uma nota para o capítulo com algumas das receitas escritas por Luís de Sttau Monteiro para o semanário Se7e. Das muitas receitas que fizeram parte da educação culinária de Ana Marques Pereira, a autora selecionou 23 receitas, tendo apenas por critério o seu gosto pessoal e “as dimensões das mesmas, aspecto que não podia ser descurado.”

    No actual panorama da investigação acerca da História da Alimentação em Portugal, este novo título de Ana Marques Pereira é uma verdadeira alegria. Não só resgata o trabalho de um escritor de qualidade, infelizmente muito esquecido, como compila alguns dos textos que dedicou à culinária e gastronomia e que revelam toda a sua verve. Chapeau!