Etiqueta: Recensão

  • As formas que tecem os nossos mares

    As formas que tecem os nossos mares

    Título

    Arquitectura do bacalhau e outras espécies

    Autores

    ANDRÉ TAVARES e DIEGO INGLEZ DE SOUZA

    Editora (Edição)

    Dafne Editora (Novembro de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    De quando em vez, eis que surge um livro com uma abordagem diferente e inovadora a determinado tópico, numa ligação não só curiosa como disruptiva.

    Foi o que fizeram dois arquitectos, André Tavares (n. 1976) e Diego Inglez de Souza (n. 1978) – em colaboração com Marta Labastida, Daniel Duarte Pereira, Aitor Ochoa Argany e José Pedro Fernandes –, ao estabelecerem um paralelo entre a arquitectura e a biologia marinha, no impacto que a pesca de certas espécies provocou sobre a paisagem e o território nacional: “A fisiologia e as dinâmicas da ecologia marinha subjacentes a cada espécie geram processos predatórios que, a partir de certa escala, constroem arquitectura e paisagem.”

    Espécies essas que vão desde o bacalhau, a sardinha, o atum até à pescada, ao trio polvo ou o peixe-galo e o tamboril, fundamentais para a alimentação dos portugueses,  e também muito presentes na nossa cultura e antropologia marítima.

    Esta análise desenvolve-se em dois eixos. Primeiro, “ao olharmos para os peixes, para o seu comportamento no quadro da biologia marinha, e, em contraponto, ao compreendermos as transformações em terra que ocorrem em função dessas dinâmicas”. Depois, tendo como ponto de partida uma interpretação dos ecossistemas marinhos em função dos processos construtivos terrestres, constatando-se “que a arquitectura tem uma história cruzada com o mundo dos animais, as dinâmicas dos oceanos e a biologia.”

    No âmbito do bacalhau, entende-se, como arquitectura, “as secas construídas em vários pontos da costa portuguesa, mas também os armazéns frigoríficos que lhes serviram de apoio, os cais de acostagem que acolhiam os navios da pesca e comércio, as lojas e entrepostos que garantiam a sua distribuição.”

    Para a arquitectura da sardinha, destaque naturalmente para as “fábricas de conserva, as construções precárias que acompanham a sazonalidade da circulação das espécies ao longo da costa e os palheiros de apoio à arte xávega”.

    De acordo com os autores, também as armações de pesca “são obras de arquitectura do mar”, assim como as redes, as bóias de marcação, “que territorializam a paisagem marinha, dão nome a lugares que, de outro modo, seriam imperceptíveis na linha do horizonte”.

    Mas para tudo isto, para este novo olhar, concorre também uma interpretação das políticas pesqueiras promovidas e desenvolvidas pelos vários governos, com destaque naturalmente para o Estado Novo, quando implementou uma mitologia associada ao bacalhau, construindo um paralelo com a epopeia dos Descobrimentos. Por isso mesmo, é importante ler e compreender este livro, pois “ler a história do bacalhau pela arquitectura das suas construções oferece uma imagem alternativa à história oficial do «bacalhau nacional», tornando evidentes as contradições do Estado Novo”.

    Outra tónica que percorre todo o livro e um dos seus principais trunfos, é a constante preocupação com os ecossistemas marinhos devido à pressão exercida pelas empresas na forma predatória como exploram os recursos: “o que a história da arquitectura mostra é a necessidade de estudar e considerar os ecossistemas com que as políticas terrestres se relacionam para evitar destruir os ecossistemas que asseguram a sobrevivência das populações”.

    Esta recensão será sempre parca para as muitas informações que os autores disponibilizam. São múltiplas as chaves de leitura que o livro oferece para análise e interpretação dos dados apresentados, que vão desde a biologia dos animais às tecnologias da pesca e processamento do pescado, da política às práticas de consumo, entre muitos outros.

    O livro, enquanto objecto estético, apresenta um design gráfico cuidado, elegante e moderno, com ilustrações minimalistas de excelente recorte. Destaque também para as muitas fotografias, mapas e desenhos arquitectónicos que ilustram as páginas do livro, engrandecendo vividamente esta edição.

    Nas últimas páginas, André Tavares deixa no ar a necessidade de continuação deste género de estudos para o futuro: “este livro é uma primeira aproximação a um problema complexo, e esperamos que possa contribuir para uma história ecológica da arquitectura que está a ser construída”. O primeiro passo está (bem) dado.

  • Isto não são histórias de embalar

    Isto não são histórias de embalar

    Título

    Contos arrepiantes da História de Portugal

    Autores

    RUI CORREIA e ANTÓNIO F. NABAIS (texto) e HÉLIO FALCÃO (ilustração)

    Editora (Edição)

    Nuvem de Tinta (1º vol., Junho de 2020; 2º vol., Outubro de 2020; 3º vol., Agosto de 2021; 4º vol., Setembro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Por mais que a ficção, por vezes de forma anacrónica, pinte um quadro romântico da História dos nossos antepassados, sabe-se que a violência, a crua violência, era uma realidade constante do quotidiano, e, por mais voltas que se possam dar, os eventos e feitos mais marcantes, que ainda hoje repercutem, estão marcados a sangue, traições e outras infâmias. Fadas e princesas são, assim, meras fantasias para embalar crianças.

    Embora não seja propriamente para embalar crianças, os quatro volumes de Contos arrepiantes da História de Portugal têm como destinatário preferencial um público juvenil, não apenas por recorrer à ilustração, para acompanhar cada uma das narrativas, mas sobretudo pelo tom humorístico e, talvez demasiado descontraído, como se relatam os mais escabrosos episódios históricos de Portugal.

    Iniciada em 2020, com o volume dedicado à Idade Média, a que se seguiu o volume sobre os descobrimentos, Contos arrepiantes da História de Portugal continuou com um volume publicado no ano passado, tendo em Setembro sido editado o mais recente volume dedicado às revoluções.

    O trabalho de “simplificação” e síntese dos eventos históricos de Rui Correia e António F. Nabais é extremamente meritório, não apenas pela extensão dos eventos que retratam nos quatro volumes – 35 em cada um –, mas muito também pelo rigor que mostram nos diversos eventos, mesmo se, aqui e ali, exageram na forma delicodoce como transmitem estes verdadeiros “contos arrepiantes”, que chegam a ser demasiado infantilizados. Em todo o caso, convenhamos que não deve ser fácil acertar no tom apropriado em função da idade do público, e, nessa medida, dá-se o benefício da dúvida aos autores, que saberão, por certo, e melhor do que o crítico, quem são os seus públicos.

    Aliás, convém salientar que um dos autores, Rui Correia, além de leccionar História numa escola secundária das Caldas da Rainha, foi galardoado em 2019 com o Global Teacher Prize Portugal.

    As ilustrações, com um humor muito peculiar – e que merecem ser vistas também nos detalhes –, da autoria de Hélio Falcão, têm apenas um “pequeno óbice”: duas irrequietas personagens (Teresa e Manuel), que vão comentando os eventos, que acabam por criar um desnecessário, e por vezes irritante, ruído nas narrativas. E os seus comentários estão pejados de estereótipos. Na verdade, estão ali a mais. Não valem a “pena”, porque nada acrescentam às excelentes ilustrações, que viveriam até melhor sem estes dois “jovens”; e nada acrescentam aos textos.

    Para a época natalícia, esta colecção da Nuvem de Tinta, uma chancela da Penguin Random House, parece-nos uma muito boa opção de oferta para um público juvenil que necessita, por um lado, de uma introdução à nossa complexa História e, por outro, de não perder o contacto com os livros físicos, esses intemporais objectos de conhecimento.

  • A História como thriller

    A História como thriller

    Título

    O esplendor e a infâmia

    Autor

    ERIK LARSON (tradução: Miguel Diogo)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Setembro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Erik Larson é autor de oito livros, seis dos quais são best-sellers do New York Times. As suas duas mais recentes obras, A última viagem do Lusitânia e, este, O esplendor e a infâmia atingiram o primeiro lugar nessa lista, pouco depois do seu lançamento.

    Na capa do livro editado em Portugal, pela Publicações Dom Quixote, pode ainda ler-se que é o livro do ano para Bill Gates e Barack Obama – o que, desde logo, cria muitas expectativas. E, com efeito, a primeira coisa que se pode dizer é que o livro nos oferece um relato cativante e envolvente, que nos impele a ler esta lição de História como se de um thriller de ficção histórica se tratasse.

    Esta é uma das suas virtudes, a de contar a História, formando um mosaico de pequenas e grandes histórias de várias figuras proeminentes, como por exemplo, as de Winston Churchill, naturalmente, Frederick Lindemann (amigo e conselheiro científico de Churchill), General Pug Ismay (amigo íntimo e confidente), Lord Max Beaverbrook (chefe do Ministério da Produção Aeronáutica); mas também de figuras secundárias, como a sua filha, Mary Churchill, e John Colville (secretário particular de Churchill). Os diários destes últimos são dois dos muitos registos diarísticos a que o autor recorre.

    Este é outro dos aspectos que vale a pena destacar. Mostra-se notável o tipo e a quantidade de fontes que o autor consultou para nos narrar um dos períodos mais sangrentos para a Grã-Bretanha, durante a II Guerra Mundial, que inclui a campanha Blitz: desde o dia 10 de Maio de 1940 – dia em que Churchill é nomeado primeiro-ministro – até 10 de Maio de 1941. Foi um período marcado pelo crescente protagonismo de Churchill, até pela série de discursos que proferiu com o objetivo de dar esperança e galvanizar Inglaterra. Como é sabido, a sua oratória era magnífica.

    Além dos referidos diários, o autor teve acesso a documentos oficiais, recentemente desclassificados, a escritos íntimos e oficiosos, como cartas da mulher de Churchill, Clementine, e eminentes figuras políticas de então, bem como a diários incluídos no Mass Observation Project – um projecto iniciado em 1937, na Grã-Bretanha, e que incluía os registos diarísticos de um conjunto de escritores voluntários. O objectivo era criar uma “antropologia de nós próprios”, a fim de conhecer a vida quotidiana das pessoas comuns da Grã-Bretanha.

    O recurso a este tipo de fonte permite-nos chegar à intimidade de Churchill e da sua família, uma vez que o autor nos revela traços de personalidade e idiossincrasias de muitos dos actores e jogadores da II Guerra Mundial, nomeadamente do próprio primeiro-ministro. No final do livro, fica-se com a sensação de que se conhece o “Velho Leão” intimamente, como se se tivesse privado com Churchill, tal é o grau de detalhe do livro.

    A descrição dos muito agitados, e sempre com muitos convidados, fins-de-semana em Chequers, a casa de campo do primeiro-ministro inglês, é disso exemplo. Eram dias de trabalho e de muitas decisões, mas com jantares de gala, no fim dos quais Churchill poderia dançar nu e de charuto na boca.

    A História oficial é, assim, intercalada com a vida privada e até pensamentos e reflexões íntimas dos diversos intervenientes da II Guerra Mundial. A negociação entre Churchill e Roosevelt é bem explorada, sendo possível compreender como decorreu todo esse processo, quer oficial, quer oficiosamente.

    Note-se, porém, que os pormenores podem ser excessivos, dado que em alguns momentos sobressai uma espécie de caricatura de Churchill. Esta é uma das fraquezas do livro – o excesso de detalhe pode, inclusivamente, fazer com que o leitor se perca na História.

  • 50 sombras em tom Disney

    50 sombras em tom Disney

    Título

    Letra miudinha

    Autora

    LAUREN ASHER (tradução: Ana Cunha Ribeiro)

    Editora (Edição)

    Marcador (Outubro de 2022)

    Cotação

    6/20

    Recensão

    Tudo neste livro é miudinho, até o enredo: quando o avô morre, deixa a cada um dos netos uma participação numa empresa que vale milhares de milhões de dólares.

    No entanto, para poderem tomar posse da herança, cada um tem de cumprir algumas condições. Rowan, um dos herdeiros terá de reformular e apresentar um plano de recuperação para o parque de diversões estilo Disneyland, chamado Dreamland. Zahra é funcionária desse parque, e sempre sonhou fazer parte da equipa dos Criadores – as pessoas que imaginam novas atrações para o parque e as põem depois em prática.

    Num golpe de sorte, que na altura pareceu azar, Zahra, num momento de embriaguez, submete uma crítica a uma das atrações mais populares de Dreamland. Essa crítica chega às mãos de Rowan, que vê em Zahra imenso potencial como Criadora, promovendo-a. A partir daí, tudo muda.

    É também miudinho o estilo da autora, cheio de lugares-comuns e vulgaridades: “não digo nada e seguro-me ao apoio de braços. É-me oferecida uma visão muito próxima do seu traseiro, mal contido pela sua indumentária não regulamentar de calças de ganga e t-shirt. (…) ela roça contra as minhas pernas compridas com a graciosidade de uma girafa recém-nascida.” “Ela encolhe-se ao mesmo tempo que pega finalmente no seu caderno e se atira para trás para ficar sentada. O seu skate Penny escorrega-lhe do colo e aterra em cima dos meus sapatos de dois mil dólares.”

    Os vários capítulos vão alternando de narrador: ou Rowan ou Zahra. Ambos relatam os mesmos acontecimentos e vão avançando, na narrativa, com essas contribuições nem sempre coincidentes. A autora tenta dar um tom de romance erótico que, na maior parte das vezes, resvala completamente e faz-nos perder o interesse no livro.

    Pelo que sei, estamos perante um best-seller. É um sucesso no Tik Tok. Percebe-se. Trata-se, de facto, de um romance para leitores muito pouco exigentes, e é um daqueles livros descartáveis que não deixam saudade, e que não chegam sequer a entreter. A saga, pelos vistos, vai continuar, e este é apenas o primeiro volume que conta a história de um dos herdeiros: Dreamland Billionaires, Book 1. Seguir-se-ão outros. A ignorar. 

  • Em terra de cegos, quem tem um olho é príncipe

    Em terra de cegos, quem tem um olho é príncipe

    Título

    O príncipe

    Autor

    NICOLAU MAQUIAVEL

    Editora (Edição)

    Ideias de Ler (Outubro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Será mau o lobo, e bom o cordeiro? A moral judaico-cristã dir-nos-ia que sim, mas Nicolau Maquiavel certamente discordaria. Há mais de cinco séculos, o filósofo, diplomata e político nascido em Florença escreveu O príncipe, agora um clássico que dispensa apresentações, agora reeditado pela Ideias de Ler. Considerada uma das mais importantes e pioneiras obras da filosofia moderna e da ciência política, O príncipe é, em suma, um manual de instruções para líderes políticos sobre como atingir e manter o poder.

    Sendo largamente inspirado no implacável duque César Bórgia, filho ilegítimo do Papa Alexandre VI, este tratado político proscreveu todas as normas morais vigentes na época, o que originou o sobejamente conhecido, e pejorativo, termo “maquiavélico” – que se tornou um sinónimo de matreiro, diabólico, velhaco.

    No entanto, citando um provérbio português, quem diz a verdade não merece castigo; e há uma certa injustiça em acusar Maquiavel de “maquiavelismo”. Aquilo que o filósofo italiano fez não foi mais do que uma descrição nua e crua das dinâmicas de poder que a sua posição lhe permitiu observar de perto. Assim, a moral só ficou de fora de O príncipe, porque também fica, amiúde, nas relações humanas e sobretudo naquelas que envolvem poder e domínio. Além disso, convenhamos, a obra não pretende ser romântica, mas realista. Por isso, é uma análise despudorada da condição humana que choca as mentes puritanas, por desafiar a moral católica como pretenso barómetro dos hábitos e bons costumes.

    Também é importante entender-se o contexto histórico da época em que Maquiavel escreveu a obra, designadamente a instabilidade e a fragmentação política e governativa que assolava a península italiana renascentista, e que a tornava palco de constantes e disruptivas lutas pelo poder.

    Um estratega perspicaz, Maquiavel explica como deve o príncipe incumbente administrar os vários tipos de principados. Argumenta que o reinante deve fugir tanto do desprezo como do ódio, bem como dos bajuladores. Explica ainda como deve o líder tratar os seus aliados e súbditos, e preconiza que mais vale ser temido do que amado – mas nunca odiado. Defende que deve estar-se sempre preparado para usar a força e para fazer a guerra, aproveitando os tempos de paz, não para baixar a guarda, mas para exercitar-se ainda mais.

    A obra terá sido uma referência para vários líderes e governantes nestes últimos séculos, incluindo Napoleão Bonaparte, Henrique VIII, Luís XIV, Estaline e Hitler – o que abona a favor da eficiência dos pressupostos defendidos. Hoje, também continua a constar da bibliografia de políticos e dos seus conselheiros.

    De facto, mesmo após mais de cinco séculos da sua publicação, O príncipe continua relevante e os seus argumentos actuais, o que mostra que a natureza do Homem e do poder tem um carácter fortemente imutável; mesmo que as técnicas utilizadas se sofistiquem. Afinal, quem não identifica, por exemplo, esta exortação no cenário político contemporâneo?:

    “Deve, além disso, nas convenientes alturas do ano, ter os povos ocupados com festas e espetáculos; e, porque toda a cidade está dividida em corporações ou em classes, deve ter em conta estes coletivos, reunir-se com eles algumas vezes, dar de si exemplos de humanidade e munificência, detendo, no entanto, sempre firme a majestade da sua dignidade, pois isso jamais deve faltar em alguma coisa.”

    Moralmente reprovável ou não, a leitura deste clássico é imprescindível para todos. Quem quer aprender a ser maquiavélico, deve ler O príncipe. Quem não se quer deixar levar por um, também.

  • Um guia sobre quem nos olha de cima para baixo

    Um guia sobre quem nos olha de cima para baixo

    Título

    Aves de Portugal Continental

    Autores

    GONÇALO ELIAS e JOSÉ FRADE

    Editora (Edição)

    Arena – Penguin Random House (Maio de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Um qualquer citadino, talvez fique surpreendido pela grossura do livro Aves de Portugal Continental – que se subintitula Guia Fotográfico, embora seja mais um guia de campo, e tenha mais, muito mais do que fotografias.

    De facto, aos tais citadinos – e há cada vez mais, infelizmente, habituados a ver, nos jardins urbanos, quando muito, uns pardais, uns melros e, no seu tempo, umas andorinhas – pode causar pasmo vislumbrar a necessidade de se usarem 448 páginas para catalogar todas as aves portuguesas, e ainda por cima excluindo as dos Açores e da Madeira.

    Na verdade, até serão poucas. Até se poderiam dispensar mais, porquanto temos contabilizadas, entre nós, 466 espécies de aves selvagens, havendo 172 cuja observação é rara (ou acidental) e outras 294 bem mais frequentes. É sobretudo sobre este segundo grupo que os autores, Gonçalo Elias e José Frade se debruçam. Ou melhor dizendo, são 294 as aves retratadas através da câmara fotográfica de José Frade, e sob a “pena” de Gonçalo Elias, dois dos mais conhecidos ornitólogos do país.

    Mais do que um simples guia de campo – embora numa dimensão necessariamente compacta,  em papel resistente de excelente qualidade, como convém a um exemplar que se quer mais a deambular no campo do que parado na estante –, esta é uma obra de divulgação científica e didáctica, que mereceria, talvez, uma outra versão alternativa, mais alargada, dir-se-ia em tamanho “monumental”, para folhear no sofá. Não apenas para se destacarem melhor as excelentes fotografias de José Frade, mas também para dar mais “espaço” e detalhe às notas pedagógicas e esclarecidas de Gonçalo Elias.

    Em todo o caso, neste formato compacto, o leitor não fica mesmo nada mal servido com tudo aquilo que este livro – lançado em Maio deste ano e já com segunda edição – lhe oferece. Agrupadas por ordens taxonómicas, as espécies são identificadas pelo nome comum e científico; além de fotografias (uma das quais em tamanho maior), são apresentadas algumas das suas características (dimensão, envergadura, frequência e abundância), bem como informações complementares e breves referências ao habitat e distribuição. De grande utilidade é o mapa de Portugal, dividido por regiões, indicando onde se pode encontrar cada espécie, em função do respectivo estatuto (residente, invernante, estival ou migradora de passagem).

    Para passear pelo campo, munido dos sempre necessários binóculos, ou para folhear em casa, este é, sem dúvida, um livro de consulta e leitura obrigatórias – e servirá também  para não esquecermos que não andamos aqui sozinhos, e que, pelos céus, há quem nos olhe de cima para baixo. Mesmo quando nós não os respeitamos, e nem sequer conhecemos a sua grande utilidade.

  • Há algo de podre no Reino da Dinamarca

    Há algo de podre no Reino da Dinamarca

    Título

    A trilogia de Copenhaga

    Autora

    TOVE DITLEVSEN (tradução: João Reis)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Setembro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Neste livro, Tove Ditlevsen faz-nos uma descrição pungente da sua vida (o livro é autobiográfico), não hesitando em entrar em caminhos confessionais, explorando temas como a infância, a maternidade e as dificuldades da mulher em se assumir como artista, sem pudor e sem subterfúgios. O livro está dividido em três partes: Infância, Juventude e Relações Tóxicas; e foi publicado, pela primeira vez, nos anos 60 do século XXI, na Dinamarca.

    Infância fala-nos sobretudo da sua meninice, num bairro pobre de Copenhaga, e na sua relação complicada com a família. A sua relação mais próxima é com o pai “no fundo da minha infância está o meu pai a rir-se e é negro e velho como a nossa salamandra mas não tem nada de assustador (…). Nunca me interpela por sua própria iniciativa porque não sabe o que dizer a meninas pequenas. De vez em quando, dá-me umas palmadas na cabeça e ri-se: ah, ah, ah. Nessas alturas a minha mãe torce a boca num esgar de desagrado e ele depressa retrai a mão.”

    Com a mãe é diferente: “Já tenho quase seis anos e em breve serei matriculada na escola, porque já sei ler e escrever. A minha mãe conta-o, cheia de orgulho a quem a quiser ouvir. Diz assim: os filhos dos pobres também têm cabeça”. O irmão goza constantemente com ela e, sendo o preferido da mãe, provoca-lhe ciúmes constantes e dolorosos. Um dia descobre o seu caderno de poesia e isso é mais um motivo para o gozo e o escárnio permanentes. Tove é uma criança infeliz, quase sem amigos, e que se deixa manipular facilmente por qualquer um que lhe mostre um pouco de interesse e atenção. Vai ser assim a vida toda.

    A segunda parte continua com a mesma toada: uma juventude cheia de problemas económicos, os poemas que continua a escrever às escondidas e as relações pessoais tumultuosas e muito pouco satisfatórias: amigos que se transformam em namorados (e em maridos) mas com quem ela, verdadeiramente, nunca cria laços. Para além disso, não consegue manter um emprego porque facilmente se desinteressa das suas obrigações e por um motivo mais ou menos trivial vai-se despedindo ou sendo despedida. Foi despedida como empregada doméstica, por ter esfregado um piano com água; foi ama seca de um menino que anunciou: “Tens que fazer tudo o que eu digo ou dou-te um tiro”. Sai de casa dos pais quando faz dezoito anos e vai morar para uma pensão que tinha o retrato de Hitler na parede; embarcou no primeiro dos seus quatro casamentos e teve um amante que lhe enviou cartas iguais às que escrevia a todas as suas amantes, como descobriu depois do fim do romance.

    Por volta dos 20 anos publicou o seu primeiro livro de poesia, e tornou-se famosa. Mas, nem por isso mais feliz.

    E, depois, nada nos prepara para a terceira parte: Relações Tóxicas. Ditlevsen, divorciada de um editor literário com quem casou só porque ele tinha aquela profissão, escapou das pressões desta segunda união condenada e nova maternidade, seguida de um aborto clandestino – que nos deixa um travo amargo pela forma como ela lidou com a situação e pelo facto de constatarmos acontecer, na Dinamarca, o mesmo que acontecia, em Portugal, no que diz respeito à educação sexual e à saúde da mulher –, e tropeçou nos braços do seu próximo marido, um médico silenciosamente perturbado, que preenche as suas necessidades como nenhum homem tinha feito antes, porque, para além de uma relação desigual, conflituosa e ciumenta a viciou em petidina.

    Diz ela que o medicamento tem um nome que “soa como o canto dos pássaros”. Quando o marido lho dá, imediatamente, a felicidade mental e física que ela oferece é infinitamente mais intensa do que tudo o que sentiu até então. “Eu sorri-lhe agradecida”, escreve, “e o fluido entrou no meu sangue, elevando-me ao único nível onde eu queria existir. Depois ele foi para a cama comigo, como sempre fazia, quando o efeito estava no auge. O seu abraço era estranhamente breve e violento.”

    À medida que a sua dependência se aprofunda, a narrativa torna-se total e agonizantemente compulsiva. Chega a um clímax doloroso, ainda mais comovente pelo facto de, após cinco anos de cativeiro no reino do vício, Tove consegue libertar-se quer do vício, quer do marido, mas nunca mais foi uma mulher inteira, apesar do amor com que foi rodeada pelo quarto marido e por Jabbe, a fiel criada que lhe tomava conta dos filhos nas suas ausências.

    Acabou por falecer aos 58 anos, por overdose.

    Um livro que é mais do que uma vida. É um testemunho histórico e um documento que nos ajuda a compreender, inclusive, a história daquele país.

  • Um murro na mesa! E que não nos falhe a memória

    Um murro na mesa! E que não nos falhe a memória

    Título

    Cidade participada: Arquitectura e Democracia – Algarve

    Autores

    MIGUEL REIMÃO COSTA e ANA ALVES COSTA (coordenação)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Agosto de 2022)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Para o povo, sobre uma bem sucedida acção democrática, e decididamente a dedicatória merecida aos Índios da Meia Praia e a todos os algarvios, o quarto livro da colecção da editora Tinta da China sobre o Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL) em Portugal dedica-se ao caso de estudo das operações na região do Algarve.

    Imortalizada com amor na música de Zeca Afonso, para que sintamos o carinho que movia a revolução:

    Eram mulheres e crianças, cada um com seu tijolo, isto aqui era uma orquestra, quem diz o contrário é tolo!

    Este livro, como a sua colecção, deixa um valioso testemunho e levantamento, nesta edição compilando as intervenções para quatro bairros: o Bairro do 25 de Abril na Meia Praia, em Lagos, de José Veloso; o Bairro da Associação Progresso, em Silves (estes dois apresentados por Vítor Ribeiro); o Bairro 11 de Março, em Olhão, de José Maria Lopes da Costa (apresentado por Ana Alves Costa); e o Bairro 1.° de Maio, em Tavira, de João Moitinho (apresentado por Miguel Reimão Costa).

    Está apresentado de uma forma bela e leve, para leitores fora das disciplinas da Arquitectura e Urbanismo, com as notas de rodapé relegadas para o final do livro, para facilitar a leitura e depoimentos essenciais de José Baptista Alves (capitão da Força Aérea e director nacional do SAAL de 1975 a 1976), José Veloso (arquitecto e coordenador de 16 bairros), José Maria Lopes da Costa (arquitecto do Bairro 11 de Março), João Luís Correia (operário, sócio e director de obra da associação desse mesmo bairro), Manuel Dias (coordenador da equipa em Albufeira, Loulé e Olhão), António da Cunha Telles (realizador), e as palavras de José Afonso (quem mais poderia ser?) sobre a sua prestação lírica para o filme “Continuar a viver ou os Índios da Meia Praia” e com “(…) uma denúncia ao actual processo capitalista que se está a viver e ao crime que foi a extinção do SAAL (…)”.

    Paulo Varela Gomes apresenta-nos esta “Revolução com um grão de SAAL”, texto original do livro História da Arte Portuguesa (terceiro volume) com “Arquitectura nos últimos vinte e cinco anos” de Paulo Pereira, onde nos é dado logo de início um contexto essencial a esta curadoria centrada regionalmente mas com seu escopo nas intervenções doutras regiões de Portugal, sendo o caso algarvio o de maior sucesso.

    Com registo fotográfico e documental dos cartazes e ilustrações da época, artigos de jornal e boletins das associações de moradores, até às fichas de inscrição e inquérito às condições de alojamento dos mesmos e livros de registo de serviços prestados e, claro, o espólio documental de desenhos, maquetes, plantas, cortes e alçados dos diferentes bairros.

    Tudo a acompanhar reflexões importantes a que não falta a participação também de Alexandre Alves Costa.

    Para destaque, devo fazer menção a um subcapítulo final de Manuel Dias, intitulado “Quando a democracia representativa impôs o recolher obrigatório à democracia participativa”. É um murro na mesa, que nos relembra a todos o que foi aquela realidade, como ficou ela enterrada em papéis e política, como foi afogada e morreu na praia por ideologias.

    Pois nada apaga a nobreza dos índios da Meia-Praia.

  • O Inverno da vida sob a forma de prosa

    O Inverno da vida sob a forma de prosa

    Título

    Misericórdia

    Autora

    LÍDIA JORGE

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Outubro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Misericórdia é o novo romance de Lídia Jorge, e foi escrito a pedido da sua mãe, Maria dos Remédios, que residia na Santa Casa da Misericórdia de Boliqueime quando faleceu em abril de 2020, com 92 anos, logo no início da pandemia, vítima de covid19.

    Com uma vasta obra, Lídia Jorge é um dos nomes femininos mais consolidados da literatura portuguesa. Nascida em Boliqueime em 1946, é autora de inúmeros romances, contos, poesias, crónicas e ensaios: Entre as suas obras mais conhecidas estão Os Memoráveis (2014), Combateremos a Sombra (2007), O Dia dos Prodígios (1978) e A Costa dos Murmúrios (1988).

    Já recebeu vários prémios literários, nacionais e internacionais, entre os quais o Prémio Jean Monet de Literatura Europeia, Escritor Europeu do Ano (2000); o Prémio Luso-Espanhol de Arte e Cultura (2014) e, mais recentemente, o Prémio FIL de Literatura em Línguas Românicas (2020).

    Inspirado na história e nos registos pessoais da mãe da autora, Misericórdia é um retrato ficcionado, contado na primeira pessoa, dos últimos meses de vida de Maria Alberta Nunes Amado – tratada por Dona Alberti – uma idosa que vive no Hotel Paraíso, um lar de terceira idade. semelhante a um diário, a narrativa inicia-se a 19 de abril de 2019 e estende-se até à véspera da morte do personagem.

    Ao contrário do que se poderá pensar, Misericórdia não é triste nem tão-pouco deprimente. Também não é sentimentalista. É belo, comovente, autêntico. Mesmo quando desvela a maldade humana, o que sobressai é a vida que ainda pulsa dentro dos residentes do Hotel Palácio.

    Alude às dificuldades inerentes a quem está no Inverno da vida: a sensação de que o corpo nos trai e não acata as nossas ordens, os pensamentos são movediços e a autonomia, que outrora se tivera, se perdeu. Fica-se à mercê dos outros, e da sua misericórdia. Não obstante, consegue mostrar a beleza da velhice, até mesmo o seu encanto, e isto apesar das agruras que ela abarca. É a derradeira experiência de viver o presente, já não existe pressa para se chegar a lado nenhum e, como evidencia o diário de Dona Alberti, o regozijo mora nos momentos mais corriqueiros: na escuta de uma leitura melódica que um estranho faz de uma história, ou na breve visita do genro.

    Misericórdia tem humor, candura, leveza, mesmo nos pontuais incidentes ominosos que descreve. Esses episódios não deixam o leitor indiferente, mas também não pesam demasiado – são contrabalançados com o humor e com o entendimento de que nenhuma contrariedade é o destino final.

    Estamos sempre dentro da cabeça desta Dona Alberti, a quem a idade não levou a personalidade, que é forte e vincada. E estamos bem; as 457 páginas do romance não são demasiadas para conhecer esta castiça senhora. Eis um excerto que relata uma das suas últimas “batalhas” com a noite, isto é, as insónias:

    “A noite esperou que eu me movesse. Como eu não lhe fazia a vontade, a ardilosa disse – «E quero ainda o teu saco de pano que usas pendurado ao pescoço, com tudo o que tens lá dentro.» Era demais. Respondi-lhe – Isso querias tu. O meu saco com tudo o que tenho lá dentro? Parece impossível. Visitas-me há anos, e não me conheces? Esse, só se mo arrancares à força. Experimenta lá. (…) Se te aproximares mais um milímetro que seja, vais ter de experimentar a resistência dos meus pulsos. Deixa-me da mão, ó noite. Estou cheia de energia, quero voltar ao pátio da escola e saltar até me voar o chapéu.”

    A prosa é sublime, e Lídia Jorge faz um trabalho brilhante na criação da voz literária desta personagem, tornando o discurso e o tom sempre familiares e reminiscentes de uma qualquer avó – se não a nossa, alguma.

    A autora afirmou já que este não é um livro mórbido, mas sobre a vida. Tem razão. Não poderia ser mais verdadeiro. Misericórdia é a vida contada por quem mais a viveu, uma idosa. E isso é de valor, ainda mais quando contada com tanta vitalidade.

  • Memórias de um quase grande pianista

    Memórias de um quase grande pianista

    Título

    Lições

    Autor

    IAN McEWAN (tradução: Maria do Carmo Figueira)

    Editora (Edição)

    Gradiva (Setembro de 2022)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    A obra de Ian McEwan é internacionalmente reconhecida e aclamada pela crítica mundial. Entre muitos outros, o autor ganhou o Prémio Somerset Maugham, em 1976, pela sua primeira colecção de contos, Primeiro amor, últimos ritos; o Prémio Whitbread Novel (1987) e o Prémio Fémina Etranger (1993), para A criança no tempo. Foi seleccionado para o Man Booker Prize for Fiction inúmeras vezes, tendo ganho esse prémio com Amesterdão, em 1998. Um dos romances mais conhecidos é Expiação, adaptado para o cinema, cujo filme ganhou o Globo de Ouro para Melhor Filme Dramático, e o Óscar para a Melhor Banda Sonora.

    De salientar que, em 2011, foi agraciado com o Prémio Jerusalém, uma honra outorgada a escritores cujos trabalhos se destaquem por lutar pela liberdade individual na sociedade.

    Lições é o mais recente romance do autor britânico. O seu lançamento em Portugal, pela Gradiva (como toda sua obra), aconteceu em simultâneo com a edição original inglesa, como, aliás, tem sido habitual.

    Inabitual é a sua extensão, 650 páginas. Uma dimensão que resulta, como é referido pelo Sunday Times, de “uma meditação poderosa sobre a história da humanidade através do espelho da vida de um homem”.

    De facto, é uma “grande narrativa”, que incorpora outras grandes e pequenas narrativas, a da História do século XX. A guerra é a constante histórica das “pequenas narrativas” das diversas personagens. Se os ascendentes da personagem principal, Roland Baines, vivenciaram a primeira e/ou a segunda Grande Guerra, com a busca do grupo Rosa Branca, por exemplo, o próprio vivenciou a Guerra Fria, bem como a iminência de uma terceira guerra mundial, aquando da Crise dos mísseis de Cuba, e a Guerra das Malvinas. A queda do muro de Berlim e, com ele, o fim da União Soviética, a destruição das Torres Gémeas e os ataques ao metro de Londres, em 2005, são alguns dos episódios a que o autor recorre para contar a vida de Roland Baines.

    É com o acidente nuclear de Chernobyl, em 1986, que a narrativa de Baines se inicia. Época em que se está a adaptar à vida de pai solteiro, depois de ter sido, inesperadamente, abandonado pela sua mulher, Alissa, que lhe deixa um bilhete e vai embora para se dedicar à escrita de romances. Sozinho, com um bebé de sete meses, Roland tem de aprender a fazer tudo, inclusivamente, a proteger o filho contra as radiações provenientes de Chernobyl.

    O medo do nevoeiro provocado pelos gases e poeiras, vindos da Ucrânia, quase confundem o leitor quanto ao contexto temporal da história. Também as analepses constantes são intrigantes, remetendo-nos quer para a sua infância passada em Trípoli – onde o pai, militar britânico, estava destacado –, quer para os seus primeiros anos de estudante num colégio interno.

    Os sonhos recorrentes e essas viagens no tempo proporcionadas pela memória são o gatilho para agarrar o leitor. Miss Miriam Cornell, a professora de piano, é a protagonista desses sonhos e das suas reflexões e decisões que terão condicionado a sua vida – uma das lições que terá aprendido.

    O livro é, ele mesmo, uma grande lição. Lições de piano, de música clássica e mesmo de Jazz – o autor dá-nos a conhecer uma série de partituras e modos de as tocar, por intermédio das viagens ao tempo de aluno de Miss Cornell.

    É com estes vaivéns de memória que o enredo do livro se desenrola – sendo esta outra lição, a da percepção do tempo no corpo e a sua degenerescência. Memória que se aviva com recurso à fotografia e, sobretudo, ao diário. Como se, efetivamente, fosse fundamental criar, guardar e, claro, rever as memórias para se saber quem é, quem fica e quem vai. Memórias para a posteridade, mas sabendo que “a memória é fumo e espelhos” (pág. 469).

    A generosidade de Ian McEwan é imensa, dando-nos a conhecer obras primordiais da Humanidade. Neste Lições encontramos a sua interpretação de várias obras, como por exemplo, Madame Bovary, de Gustave Flaubert e O golfinho, do poeta Robert Lowell, entre muitas outras.

    Sem dúvida que Ian McEwan é um autor/professor, daí que possamos afirmar que o título, Lições, está bem atribuído. Lições de história, de literatura, de música. Não menos importante, as lições de vida que Roland Baines foi aprendendo ao longo da sua longa vida.

    No final, num mundo carregado de incertezas, o seu maior medo é o nosso, pois “a liberdade de expressão, um privilégio cada vez menor, a desaparecer há mil anos” (p.640), poderá estar realmente em causa. A emergência deste PÁGINA UM é disso exemplo e consequência.