Etiqueta: Recensão

  • As civilizações empilhadas num mar

    As civilizações empilhadas num mar

    Título

    Atlas histórico do Mediterrâneo

    Autor

    FLORIAN LOUIS (tradução: Luís Filipe Pontes)

    Editora

    Guerra & Paz (Janeiro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Em cada novo número, a Guerra & Paz merece todos os elogios pela colecção que começa a compor, por contribuir, digamos assim, para se recuperar o amor perdido ao livro físico perante a avalanche tecnológica assente no digital.

    aqui tivemos a oportunidade de abordar, no caso sobre a água, esta coleccção Atlas, que já conta agora com 12 temas, criteriosamente escolhidos e sabiamente escritos, abordando quer períodos históricos (Primeira Guerra Mundial, Holocausto e Guerra Fria, por agora, presume-se), quer países ou impérios (Antigo Egipto, Império Romano, Estados Unidos), quer regiões (África, Médio Oriente), quer temáticas “globalistas” (Água, Escrita e Fronteiras).

    Claramente, o objectivo destas obras não é apresentar um tratado sobre estes assuntos, até pela sua vastidão, e porque, por regra, não passam das 200 páginas. O interesse desta colecção é, exactamente, o oposto: depurar a vastidão para apresentar o essencial, aguçando o apetite para se poder buscar mais. E aí, no final, é apresentada uma extensa lista de referências bibliográficas, sobretudo de índole académica.

    Porém, aquilo que mais se destaca nos livros desta colecção, e este Atlas histórico do Mediterrâneo não constitui excepção, é o detalhe da cartografia que acompanha os curtos mas informativos textos que se vão sucedendo ao longo das páginas. 

    Mas independentemente desta parte mais “lúdica” do livro, este Atlas histórico do Mediterrâneo tem também o condão de relembrar o magistral trabalho histórico de Fernando Braudel, que durante décadas estudou o Mediterrâneo, não como um simples mar banhando o sul da Europa, o Norte de África e uma pequena parte ocidental da Ásia, mas sim um mar “no meio de terras” (mediterraneus, com “várias civilizações empilhadas umas em cima das outras”.

    E são essa “pilhas” de História que nos são presenteadas, desde o berço da Civilização na Mesopotâmia (embora Eufrates e Tigre desaguem no Golfo Pérsico), passando pelo Egipto e pelos Fenícios, até aos nossos dias.

    Distribuído por cinco grandes capítulos temáticos ou por períodos históricos (até à queda do Império Romano; desde a expansão islâmica na Europa até à dominância dos territórios marítimos pelos povos europeus; desde a expansão otomana às guerras e pilhagens de corso dos séculos XVI, XVII e ainda XVIII; os processos independentistas e de unificação de importantes países como a Grécia e a Itália; e, por fim, os tempos mais recentes da História, isto é, o século XX), este livro confirma-nos como o Mediterrâneo assistiu, quer pelas armas quer pelo comércio, às glórias e às derrotas de muitos povos, à ascensão e queda de outros tantos, dando naquilo que hoje conhecemos na complexidade do Sul da Europa, Norte de África e mesmo Médio Oriente.

    E permite-nos concluir que, enfim, e na verdade, estamos, aqui, em Portugal, com mais raízes mediterrânicas do que propriamente europeias, mesmo se nos localizamos um pouco na extremidade desta vasta região, e, por ser tão ambicionada, tivemos, para crescer, de olhar ainda mais além, para o grandioso Atlântico, cujo Atlas esperamos que também venha um dia a ser publicado pela Guerra & Paz.

  • O meu nome é Mulher, ontem e hoje

    O meu nome é Mulher, ontem e hoje

    Título

    Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro

    Autora

    SUSANA MOREIRA MARQUES

    Editora (Edição)

    Companhia das Letras (Abril de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Susana Moreira Marques já me tinha, agradavelmente, surpreendido com o seu livro: Agora e na hora da nossa morte.

    Aqui o relato é outro, mas igualmente envolvente e emocional. 

    De Maio de 1948 a Maio de 1950, foi publicado em fascículos, para fugir à censura, o livro As mulheres do meu país, de Maria Lamas. É uma obra considerada um marco monumental do jornalismo que levou a autora a percorrer o país e a contactar mulheres de todos os extratos sociais dando a conhecer aos seus leitores a vida das portuguesas, sobretudo as das zonas rurais, nos anos 40.

    Confrontada com a indiferença do Governo em relação à condição feminina em Portugal, Maria Lamas respondeu que “iria observar como vivem as mulheres portuguesas e confirmar se os seus problemas estão realmente resolvidos” e “imagina que pode ganhar algum dinheiro, imagina que pode provar que as mulheres não estão protegidas pelo país fora como o Governo dizia que estavam, talvez imagine mesmo que pode ajudar à mudança, ainda que não seja claro que aspeto terá essa mudança para as mulheres.”

    Foi assim que decidiu empreender a grande viagem por um Portugal ditatorial, subdesenvolvido e analfabeto. Encontrou miséria, ignorância, superstição, obscurantismo, falta de condições básicas de higiene e de salubridade e falta quase total de cuidados médicos.

    Viajou de autocarro, de carro, de carroça, a pé, de burro, subiu e desceu montes e vales, falou com centenas de pessoas, tirou centenas de fotografias, opinou, interpelou, confrontou, foi mais fundo e muitas vezes comoveu-se e entristeceu-se e quase sempre se revoltou.

    Relatou com realismo a vida das operárias, das intelectuais e das artistas. Fez um retrato pungente que ainda hoje nos impressiona pela magnitude e pela minúcia.

    Em 2022, setenta anos depois, Marta Pessoa, realizadora de cinema, aborda o processo de escrita deste livro, recorrendo aos diários e ao espólio de Maria Lamas, e faz o documentário “Um nome para o que sou”.

    Pede a Susana Moreira Marques, jornalista e escritora, que se junte a ela na reflexão sobre a própria matéria e forma do livro e as leituras e significados que pode trazer, na atualidade.

    Diante da câmara, Susana Moreira Marques procura colocar-se no lugar de Maria Lamas e olhar para o lugar que as mulheres ocupavam antes e ocupam hoje num diálogo e num jogo de olhares. Há o olhar de Maria Lamas sobre as mulheres, o olhar da escritora sobre Maria Lamas e o livro, e ainda o olhar da realizadora (do filme) que se envolve e simultaneamente observa todo este processo.

    Há as imagens e as palavras, de antes e de hoje. “Quando cheguei ao fim da viagem, o que aconteceu foi que, depois de ter gravado a voz off do filme [que estreou em 2022], percebi que o texto tinha uma vida própria e havia muito material ainda, que tinha escrito ou pensado e não tinha entrado, e decidi que precisava de continuar a escrever”, revela a escritora e jornalista.

    E é esta Susana que parte, país fora e nos conta: “Em 1949, eu não existia. Em 1949, poucas pessoas sonhavam que eu viesse a existir. Eu: uma mulher que escreve, que ganha. Em 1949, poucas pessoas sonhavam que eu viesse a existir. Eu: uma mulher que escreve, que ganha o seu dinheiro, que não é casada, mas partilha a vida com alguém, que tem filhas pequenas e, em vez de ficar em casa a cuidar delas, viaja.” E diz-nos:

    “Fazes também, mentalmente, uma lista do que não levas:

    Não levas um marido.

    Não levas o pai.

    Não levas a autorização de um homem para viajar.

    Instruções e ordens alheias.

    Uma série de regras não escritas, mas bem estudadas.

    Não levas percursos interditos assinalados no mapa.

    Nem, no itinerário, paragens proibidas por questões de moral.

    Em 1949, a minha mãe está na barriga da minha avó.

    Em 1949, a minha avó tem 23 anos. Está casada. Tem um filho de um ano. Anda com cargas à cabeça sem se desequilibrar do rio para as fábricas.

    Sei que a minha avó não está entre essas mulheres com quem Maria Lamas acaba de ir falar, mas eu procuro-a.

    Susana Moreira, seguindo, pois, os passos de Maria Lamas também enche cadernos com notas sobre os lugares por onde passa, mas em vez de grandes descrições escreve pequenos apontamentos, frases curtas que nos deixam suspensos e que são pequenos versos de poesia.  

    Na maior parte dos lugares por onde passa repara que mudou quase tudo, “menos a luz”. Já não encontra crianças descalças, nem mulheres a empurrar carroças sempre a meio de um trabalho qualquer, carregando cestos, grandes fardos e cântaros à cabeça.

    Mas encontra outras mulheres (às vezes as mesmas, muitos anos depois) e vai fazendo a ponte entre uma mulher que não aparece no relato de Maria Lamas, a sua própria avó, e a sua própria filha que, ainda criança, a acompanha na contemplação desses imagens antigas. Susana Moreira Marques define-se como uma “mulher à janela” e “alguém que escuta”. É uma mulher que se surpreende e é nesse deixar-se surpreender que começa a sua viagem:

    “Unes pontos no mapa. Observas o desenho. Perguntas se é isso o país. Levas cadernos, canetas, câmaras, instrumentos digitais ou analógicos, mas sempre com a mesma função de registar o que se vive. Levas também um livro. Levas o livro como se fosse um guia de viagem, mas um guia que poderia servir para muitas outras viagens para o resto da vida, oferecendo várias possibilidades e não um só percurso. Leva-lo como se leva uma bíblia, para ter perto da cama quando se descansa, à mão em momentos de grandes dúvidas e receios. Leva-lo como um manual que torna mais fácil a compreensão da vida prática que tem sempre que ser desvendada. Ou como se fosse um volume esotérico, um instrumento mágico, que dará acesso ao que há muito está desaparecido. “

    E é uma viagem enternecedora e que nos ajuda a percebermos melhor o país que fomos e que, em muitos casos, continuamos a ser.

  • Da obediência à (pretensa) liberdade

    Da obediência à (pretensa) liberdade

    Título

    Não obedeças mais

    Autor

    GUSTAVO SANTOS

    Editora (Edição)

    Alma dos Livros (Outubro de 2022)

    Cotação

    9/20

    Recensão

    Nascido em Lisboa, em 1977, Gustavo Santos é o autor de vários livros de desenvolvimento pessoal, nomeadamente, Agarra o agora (2013, Esfera dos Livros), A força das palavras (2015, Esfera dos Livros) e O caminho (2015, Pergaminho), entre outros.

    Antes de se dedicar à escrita e ao coaching, esteve ligado ao entretenimento: foi bailarino e pertenceu a uma boys band, a Hexa Plus, participou no reality show, “Big Brother Famosos” (2002) e apresentou o programa “Querido, mudei a casa!” (entre 2010 e 2020, primeiro na SIC, depois na TVI). Como actor, entrou em várias telenovelas e outros programas de entretenimento, como por exemplo, “Floribella” e “Espírito Indomável”.

    “O livro-sensação do ano” – lê-se na capa –, Não obedeças mais, e que tem como mote “a tua verdade é a tua liberdade”, publicado pela Alma do Livros, resulta de um conjunto de 100 textos, que, nas palavras do autor, são “sem censura”, “sobre liberdade” e “pela liberdade”.

    À semelhança de outros livros de desenvolvimento pessoal, a escrita desenvolve-se num tom intimista, tratando o leitor por tu, como alguém próximo, como quem desenvolve uma conversa frente a frente. O discurso também pode ser entendido como aquele preparado para uma plateia a participar num curso de desenvolvimento pessoal ou de coaching, tão em voga, nos últimos tempos.

    É disso que se trata, de uma palestra escrita, um monólogo, em que o autor discorre sobre o que entende ser a liberdade. Para si, algo que resulta da capacidade de pensar, dizer e fazer o que bem entende, sem que os outros tenham alguma coisa que ver com o assunto.

    Os outros que, como dizia Jean Paul-Sartre, são o inferno, mas que em Gustavo são o S.I.S.T.E.M.A. – “grupo restrito de gente autora de uma Agenda perigosa que visa o fim da Liberdade do povo em prol de mais poder, mais controlo e maiores receitas” (p. 11), mais concretamente, “Soberania Idiota, Sinistra e Tirana de Egos Mercenários e Assombrados” (título do capítulo dois, p. 18).

    Para o autor, este S.I.S.T.E.M.A. é aquele a quem devemos desobedecer se queremos lutar pela liberdade. Para tal, em cada capítulo, Gustavo Santos apresenta um conjunto de ideias com o objetivo de motivar as pessoas a despertarem e a não se deixarem manipular, dado que esse é o propósito do método “C.H.O.N.É. (conversão em série de humanos em ovelhas de nádegas escancaradas)” – título do capítulo quinze (p. 56).

    De página em página, Gustavo Santos mostra-se corajoso e um homem forte, recorrendo a Jesus, Gandhi, Mandela ou Luther King, para mostrar que, como eles, ele também faz. Ele, Gustavo, também tem impacto e, provavelmente, ficará na História. Com efeito, as palavras escritas de Gustavo podem ter algum impacto, mas como ele próprio reclama, também ele se quer impor sem mostrar factos:

    Não me peçam factos, por favor.

    Não sou uma mosca para estar em reuniões secretas nem agente infiltrado de coisa nenhuma. Sou homem de coração agitado, livre por natureza, e isso basta” (p. 105).

    Só que não. Se Gustavo Santos reclama pela verdade e luta pela liberdade e quer combater a seita, então talvez seja melhor ir além do que sente e pressente e procurar, e pelo menos tentar, apresentar factos que demonstrem a sua verdade.

    Os jogos de palavras são uma constante. Além dos já mencionados, destaquem-se os títulos “Comuni«coação» social” e  “Edu«coação» escolar”, que sendo profícuos, são, em nosso entender, mal aproveitados. Tão-só pela vacuidade. Os temas da propaganda ou da liberdade poderiam ser aprofundados, mas ficam limitados à conversa de café. Pouco mais que uma série de lugares-comuns, pese embora o autor se outorgue como o salvador da pátria.

    Deixamos alguns finais de capítulo como exemplos de um discurso, na nossa opinião, estéril:

    “Não obedecer é ser diferente” (p. 55).

    “Não obedecer é marimbares-te para o que te dão à condição e trocar tudo isso, que é quase nada, por algo conquistado por ti” (p. 81).

    “Não obedecer é acreditar no bem, e contra isso não há quem” (p. 156).

    “Não obedecer é deixar de ser um brinquedo” (p. 173).

    “Não obedecer é cagar no filtro e dar o litro” (p. 198).

  • A arte de crescer e contrariar as probabilidades

    A arte de crescer e contrariar as probabilidades

    Título

    A arte de driblar destinos

    Autor

    CELSO COSTA

    Editora (Edição)

    LeYa (Maio de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    O título deste romance de estreia de Celso Costa, aos 74 anos, reconhecido matemático brasileiro e agora também escritor, encaixaria perfeitamente numa auto-biografia. E, na verdade, não sendo um livro de memórias, esta é uma obra de autoficção, precisamente inspirada na suas história de vida.

    Com o seu A arte de driblar destinos, Celso Costa recebeu o Prémio LeYa de 2022, para originais anónimos, e foi assim uma verdadeira entrada “em grande” no universo das letras, ainda mais impressionante para quem dedicou a sua (longa) carreira profissional às ciências exactas.

    Com efeito, Celso Costa começou por estudar Engenharia e Medicina antes de eleger definitivamente a Matemática, em especial a Geometria Diferencial, sobre a qual compôs a sua tese de doutoramento. E aí o autor, pode dizer-se, não é um estranho a honras e distinções: teve uma “superfície mínima” baptizada mundialmente em sua homenagem, a “Superfície Costa”, depois de ter descoberto a solução de um problema matemático com 206 anos. Em 1998 foi condecorado com a ordem nacional do mérito científico na classe de Comendador, pelo Ministério da Ciência e Tecnologia do Brasil. Recentemente, retirado do papel de professor universitário, que assumia desde 1981, Celso Costa estabelece-se assim, e agora, como uma revelação na Literatura.

    É difícil destrinçar o “criador” do romance do menino no qual a narrativa se centra, já que os seus percursos são idênticos. O narrador e protagonista de A arte de driblar destinos passou os seus primeiros anos de vida numa propriedade localizada no interior do estado do Paraná, chamada “Ribeirão do Engano”. À medida que cresce, descobre a sua paixão e vocação para os números, e quando atinge a maioridade acaba por trocar o meio rural, onde sempre viveu, pelo ambiente cosmopolita da cidade de Curitiba, para prosseguir os estudos na universidade.

    Num contexto familiar e social de agudas limitações financeiras e escassos recursos e oportunidades, no Brasil profundo dos anos 1950 e 60, a história narrada evidencia a importância da educação como agente propulsor da liberdade, para se ir além do que alguma vez se imaginava ser possível, e de voar por alturas mais elevadas.

    A arte de driblar destinos lê-se, na verdade, quase sem darmos por isso. É um romance descontraído, bem-humorado, descomprometido. Através de um retrato vivo e vívido, a narrativa transporta-nos para um Brasil profundo, apaixonante e em bruto, que é sempre o cenário no desenrolar da história. Desperta, aliás, em nós, uma intensa vontade de adquirir um bilhete de avião só de ida (e talvz uma máquina do tempo, também) e conhecer aquela realidade com os nossos próprios olhos.

    À falta de bilhetes, fica-nos a leitura. A escrita de Celso Costa consegue essa proeza de nos fazer viajar, pela forma como descreve os vários episódios, a cada página, imbuídos de uma autenticidade e simplicidade que nos desarma. Sempre presentes estão os elos e os dramas familiares, as amarguras da vida, e os seus momentos mais inebriantes, aqueles que quase pedem que nos belisquemos para ter a certeza de que estamos acordados.

    Com 277 páginas, o romance divide-se em 44 capítulos, que nos contam as histórias e peripécias que o narrador vivencia durante o seu crescimento, entre os seus três anos até aos 19 anos. Com esta idade, começa um novo “capítulo” longe de casa, contrariando todas as probabilidades, ao agarrar a oportunidade de estudar, que lhe permite traçar um outro destino para si.

    A linguagem informal e coloquial torna o romance leve e genuíno, e as castiças e singulares figuras que surgem no decorrer da narrativa, como o coveiro Cipriano Sombra, o ‘Faquir sertanejo’ ou o “prefeito” Malaquias Buarque, parecem ter sido retiradas de um engenhoso e criativo enredo cinematográfico. Há, também, o pai do menino, Zé Branco, que, de génio impetuoso, não mede as consequências dos seus actos, e a mãe, Nena, protectora mas de pulso firme. O jovem casal encanta e intriga o leitor com a suas personalidades fortes. 

    O 44.º capítulo, intitulado “Desembarque do caipira”, é onde o percurso do leitor chega ao fim, mas onde se inicia a derradeira aventura do jovem “herói” da história, que finalmente conhece a capital do Paraná, nas circunstâncias em que estas linhas exprimem:

    “Vindo de longe, tropeando seus sonhos desde o Ribeirão do Engano, ali está, sondando rumos, o caipira que nunca viu um semáforo, nem um prédio com mais de dois andares, e desconhece o mar.

    O moço de tocos de barba despontando tem fome. Com a mochila aos ombros, arrastando a mala grande, anda alguns metros sem deixar a calçada de desembarque e entra no bar. O aroma é apetitoso, cheiro bom de café acabado de passar pelo coador de pano. Com olhos ávidos examina a pequena vitrine em cima do balcão e indaga ao atendente, num sotaque do interior:

    – O que é que o senhor tem aí, de sal, pra comer? 

    O rapaz atrás do balcão, entre estupefato e divertido, estreita os olhos, enquadra a cara do caipira e dispara:

    – Temos sal!

    É o primeiro tranco do novato na cidade grande. Sem alternativa e com medo de ser zoado de novo, opta pelo simples:

    – Quero um copo de café com leite, meio a meio, e um pão com manteiga na chapa.

    Ao pedido, o atendente coloca a cabeça no guichê e grita para a cozinha:

    – Saindo uma canoa na chapa e uma média!

    Uma média, uma canoa! Assim o novato conquista as primeiras palavras de um novo vocabulário.”

  • Do ócio existencial

    Do ócio existencial

    Título

    Tudo o que não precisa de saber sobre a vida

    Autor

    JEROME K. JEROME (tradução: Francisco Silva Pereira)

    Editora

    Alma dos Livros (Janeiro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Tudo o que não precisa de saber sobre a vida, tendo como subtítulo “reflexões divertidas para uma vida sem preocupações é um livro de Jerome K. Jerome (1859-1927) dedicado ao amigo e companheiro das horas de ócio: o seu cachimbo! Esta dedicatória anuncia o tom humorístico, satírico e, inevitavelmente, divertido do conjunto de ensaios que compõem esta obra original de 1886, agora publicada pela Alma dos Livros.

    Com uma nota prévia no prefácio, Jerome Klapka Jerome alerta os leitores que esperam que um livro lhes eleve o espírito, que “este livro não elevaria sequer o espírito de uma vaca”. Como tal não o recomendaria (ao contrário de nós), dado não lhe reconhecer qualquer utilidade, a não ser a de passar algum tempo nesta leitura, depois de se ter cansado de ler “os cem melhores livros de sempre” (p. 7).

    Em “Tudo o que não precisa de saber sobre a vida” o autor discorre acerca de situações da vida quotidiana de uma forma que tanto nos faz sorrir, como reflectir. Os assuntos são prosaicos, mas a vida é sublimada por isso mesmo.

    A partir de temas como o ócio, o amor, a vaidade (ou a sua pretensa ausência), a timidez, o vestir e o estar, o comer e o beber, os cães e os gatos, os bebés, os apartamentos mobilados, entre outros, Jerome K. Jerome apresenta-nos, com humor, uma reflexão acutilante sobre a burguesia inglesa de finais do século XIX.

    Uma das marcas da sua ironia é o, agora compreendido como, sexismo, mas que na época era generalizadamente prevalecente. Não será estranho, por isso, que algumas leitoras se possam sentir ofendidas em algumas passagens, como quando o autor se refere aos homens como os “representantes do sexo intelectual” (p. 82).

    Outro tema do autor é a penúria, mostrando com leveza o poder que esta circunstância pode ter como estímulo à criatividade, não apenas na escrita, mas no modo de se observar e compreender os episódios mais ou menos imprevistos do quotidiano. A diferença entre uma pessoa que tem um ou dois pences no bolso e aquela que não tem qualquer pensamento sobre as questões monetárias, é disso exemplo.

    Um guarda-chuva automático é, também ele, alvo de cogitações – o insólito é outra das características deste livro. Com o tema da memória, o autor transporta-nos para a infância, relatando as conversas que tem com o seu antecessor: o rapaz de 14 anos frívolo que foi.

    Foi com esta idade que Jerome K. Jerome abandonou a escola, altura em que começou a trabalhar nos caminhos-de-ferro. Posteriormente, trabalhou como professor, actor e jornalista.

    Antes deste conjunto de reflexões escreveu peças de teatro e outros livros, sendo que este agora editado em Portugal e “Três homens num barco” têm sido continuamente traduzidos e publicados. Entre 1892 e 1897, editou a revista satírica The Idler, da qual foi um dos fundadores, e que reunia escritores da sua época, como seja Mark Twain.

  • Manifesto pela loucura

    Manifesto pela loucura

    Título

    O perigo de estar no meu perfeito juízo

    Autora

    ROSA MONTERO (tradução: Helena Pitta)

    Editora (Edição)

    Porto Editora (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Com uma obra traduzida em mais de 20 línguas, Rosa Montero é uma reconhecida autora espanhola, natural de Madrid, onde nasceu em 1951. Aos 73 anos de idade, a autora, jornalista de formação e profissão, ainda trabalha com o El País; algo que faz desde 1976, onde foi chefe de redacção do suplemento de Domingo, entre 1980 e 1981.

    Em 1978 ganhou o primeiro prémio de jornalismo, o Prémio Mundo de Entrevistas – área em que se especializou. Outros tem ganhado como jornalista, mas também como escritora. Em 2017, por exemplo, foi galardoada com o Prémio Nacional das Letras, tendo sido em 1979 que começou a viver o seu sonho de escrever ficção – Cronica del desamor, é o seu primeiro romance.

    Em 2022, foi galardoada com a Medalha de Ouro de Mérito em Belas Artes e com o Prémio Especial dos Prémios “El Ojo Crítico” da XXXIII RNE. Em Espanha, O perigo de estar no meu perfeito juízo foi considerado o Melhor Livro de Não-Ficção pelo Sindicato dos Livreiros.

    Nesta obra, agora publicada, em Portugal, pela Porto Editora, a dimensão jornalística está muito presente, estando este ensaio muito próximo do livro de divulgação científica. Para os admiradores de Rosa Montero, que ainda não conhecem a sua vertente jornalística, pode ser uma agradável surpresa perceber como a sua escrita é tão cativante e envolvente como nos seus romances.

    A louca da casa, publicado há vinte anos, é facilmente reconhecível, estando, até, omnipresente ao longo deste livro autobiográfico. Além desse quase intertexto com A louca da casa, Rosa Montero demonstra a sua capacidade de pesquisa e de síntese no tema principal do livro: a presença de distúrbios mentais, entre muitos artistas e escritores, e de como esses desequilíbrios podem ser essenciais para as obras que aqueles e outros autores conceberam e publicaram, ou por eles foram publicadas post mortem.

    A autora retirou-se três anos para estudar psicologia e para investigar o que outros escritores considerados doidos, alcoólicos ou dependentes de outras drogas sofreram por serem estranhamente anormais, ou pior, loucos ao ponto de serem internados, como é o caso de Sylvia Plath.

    A história desta poeta é uma das biografias que Rosa Montero reconstrói para nos dar conta de como o sofrimento é um sentimento permanente, do qual se pode sair, ou pelo menos suspender, por intermédio da escrita. A escrita é uma não escolha. É a salvação de quem tem inúmeras vozes que dialogam nas cabeças, como as de muitos escritores – motivo pelo qual têm de necessidade de escrever.

    A tese de Rosa Montero é a de que a criatividade também é fruto da excentricidade, do facto de se sentir inadequada – como descreveu, também, em A louca da casa. Reconhecer essa extravagância e dar espaço e voz às alucinações é reconhecer a matéria-prima para escrever ou construir a obra.

    Neste exercício e ensaio, Rosa Montero, que “sempre soube que na minha cabeça alguma coisa não funcionava muito bem”, prova a si própria que está tudo bem em ser vulnerável, diferente e ter sentimentos suicidas – que, no seu caso, ainda bem que não os concretizou.

    Mas, como Rosa afirma, “a lista é arrasadora”: Cesare Pavese, Gérard de Nerval, Jack London, Maiakovski, Anne Sexton, Mishima, Walter Benjamim, Alejandra Pizarnik, Hemingway, David Foster Wallace, Gilles Deleuze, são alguns dos que a autora refere na página 180.

    Como em muitos romances, existem várias histórias secundárias e/ou paralelas. Uma é a de uma impostora que usurpou a identidade de Rosa Montero. Este é, aliás, um dos temas do livro. A ideia de que muitos artistas e escritores se sentem impostores na sua escrita, de que não são suficientemente bons e que quando fazem e/ou escrevem algo extraordinário, não terão sido eles ou terão sido bafejados pela sorte.

    Em relação a essa história paralela, a autora vai-nos dando a conhecer pormenores, sórdidos até, que nos provocam curiosidade, desejando saber mais e como e se terminou essa usurpação, bizarra e assustadora, da sua identidade por parte de outra mulher.

    Há um zumbido que sai do interior da obra e que ecoa no local mais profundo da nossa mente. O zumbido do mundo. Há uma pulsação essencial, um ritmo embriagador. É só preciso aprender a deixar-nos levar. A não ter medo de perder o contacto com o chão. Escrever é dançar, e a música foi-me levando, com quem desenha passos no ar, até chegar a estas linhas que escrevo agora” (pp. 200-201).

  • Do que comemos ao que somos: um prato nos une

    Do que comemos ao que somos: um prato nos une

    Título

    História global da alimentação portuguesa

    Autores

    JOSÉ EDUARDO FRANCO (dir.) e ISABEL DRUMOND BRAGA (coord.)

    Editora (Edição)

    Temas e Debates (Abril, 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    O livro que José Eduardo Franco (n. 1969), na direcção, e Isabel Drumond Braga (n. 1965), na coordenação, agora deram à estampa, com este desígnio e esta amplitude, há muito que era desejado em Portugal, tendo semelhante pretensão de traçar uma História da Gastronomia Portuguesa sido já manifestada em anteriores ocasiões por parte de alguns escritores gastronómicos da nossa praça mas, infelizmente, nunca concretizada.

    Até agora, a esta extraordinária edição pela Temas e Debates, que vem colmatar uma grande lacuna no conhecimento das influências culinárias em Portugal e no mundo. No texto de “Apresentação”, Isabel Drumond Braga revela a dimensão do projecto: “Apresentam-se aos leitores cento e um textos de 69 autores, 59 nacionais e 10 estrangeiros de formação especializada, em momentos distintos das suas carreiras, que redigiram sínteses atualizadas, procurando mostrar os encontros, as trocas, as adaptações e as transformações, numa rede complexa em que se articulam análises micro e macro, que permitem compreender o impacto dos fenómenos gerais nos espaços mais circunscritos”.

    Para a História e compreensão da alimentação portuguesa, foi adoptada uma análise de âmbito global, consentânea com o fenómeno que a alimentação representa no mundo, e não através de simples leituras lineares, centradas numa óptica nacional. De facto, só através de uma história global da alimentação portuguesa, focada numa perspectiva cultural, se conseguiria alcançar a verdadeira realidade dos cruzamentos que ao longo dos séculos ocorreram e que tanto impacto provocaram nos nosso hábitos alimentares.

    “Inúmeros estudiosos apontam que dois elementos fundamentais compõem a bagagem das pessoas que se deslocam: a língua e a cozinha maternas” (p.141). Temas que vão desde a formação de Portugal, século XII (pão, mel, queijo), até ao século XXI (batata, produtos DOP, produtos IGP, dieta mediterrânica, entre tantos outros), explorados através de questões relacionadas com a alimentação portuguesa, com os alimentos, mas também onde são abordados os utensílios, os métodos de conservação ou as técnicas culinárias, as influências portuguesas no mundo mas também as influências estrangeiras ocorridas em Portugal.

    A influência de produtos como o café, o cacau ou o chocolate, o que se comia nas mesas reais mas também na alimentação dos pobres e dos famintos mas também um olhar sobre a implementação de matadouros municipais ou as questões relacionadas com a segurança sanitárias, a importância da diplomacia e o conhecimento dos hábitos alimentares de várias cortes, uma vez que a comida assumia um papel relevante nas relações internacionais, numa visão abrangente e bastante acutilante.

    A globalização iniciada no século XVI irá trazer para a nossa mesa e campos agrícolas muitos produtos que hoje fazem parte da nossa identidade culinária, como o milho, o feijão, o tomate, a batata, entre muitos outros. “O reino de Portugal, tal como o de Castela, através das viagens marítimas dos séculos XV e XVI, foi pioneiro da globalização”, contribuindo para novas combinações culinárias e novos sabores, metamorfoseando as velhas práticas das suas cozinhas ancestrais. “Portugueses e castelhanos encontraram novos produtos em África, na Ásia e na América – alguns dos quais vieram posteriormente a ser explorados por outros europeus – conduziram-nos para a Europa e levaram-nos igualmente para outros espaços, por exemplo, transportando os de África e da Ásia para a América e os da Europa para esses continentes”.

    Embora este excerto seja sobre a presença dos portugueses no Brasil, o mesmo se aplica por onde quer que os portugueses tenham andado: “Além dos alimentos, o português trouxe o seu conhecimento e técnicas culinárias, seja nos procedimentos de cocção – assar, cozer, guisar, refogar, grelhar e pilar – nos métodos de temperar e de conservar os alimentos – com adição de sal ou de açúcar e de fumeiro – nos artefactos de preparo e consumo – caldeirões, tachos de cobre, formas de bolo, de diversos formatos – e nas receitas culinárias” (pp.111-112).

    O livro apresenta-se com um design sóbrio e elegante, algo a que o designer António Rochinha Diogo já nos habituou no seu trabalho, e que muito contribui para uma leitura prazenteira. Capítulos curtos, com o essencial sobre as temáticas em apreço, oferecendo uma panorâmica assaz abrangente, sem deixar de lado alguns dos formalismos da academia mas ideal para alcançar o público em geral, permitindo a qualquer leigo ou curioso na matéria compreender com facilidade o que fomos comendo ao longo dos séculos para aqui chegarmos e sermos como somos neste gosto tão nosso de nos sentarmos à mesa e brindarmos à vida.

    Especialmente indicado para as bibliotecas de todos aqueles que se interessam pela História da Alimentação, seja ela nacional ou internacional, ou que simplesmente sintam curiosidade sobre estas coisas do comer e do beber.

    Eis um livro para se ir degustando devagarinho, apreendendo todos os sabores que estas aventuras globais culinariamente nos proporcionaram. Por isso mesmo, e muito mais, este livro merece não só ser objecto de grandes honrarias como também de singelos brindes: Hip, hip, hurra!

  • Guerreiras em corpo de panfleto

    Guerreiras em corpo de panfleto

    Título

    Mulheres na guerra

    Autora

    HELENA FERRO DE GOUVEIA

    Editora (Edição)

    Oficina do Livro (Maio de 2023)

    Cotação

    20/04

    Recensão

    No início deste ano, a Casa das Letras – uma das chancelas da Leya – publicou uma obra colossal, de grande profundidade investigativa, da inglesa Judith Mackrell que, fugindo da sua zona de conforto – é especialista em dança –, produziu uma obra de fôlego sobre “seis mulheres [jornalistas] extraordinárias na linha da frente da II Guerra Mundial”. Espero, na PÁGINA UM, ter ainda oportunidade de escrever sobre esse livro de extensas mas preciosas 526 páginas.

    Presumo que, apesar da excelência desta obra, as vendas não o tornem em sucesso comercial; e no mundo editorial sabe-se bem que há livros que só se publicam por outros havendo, mais comerciais, que os suportam. Um desses livros comerciais, de sucesso garantido, e de uma outra chancela da Leya – a Oficina do Livro –, será o de Helena Ferro de Gouveia, Mulheres na guerra .

    Antiga jornalista e actual administradora da Global Media e da Lusa, Helena Ferro de Gouveia é também comentadora da CNN Portugal, onde não se furta em defender intransigentemente as mulheres, enquanto debita sobre os mais variados assuntos, por vezes com as mais desvairadas teses. 

    Enfim, a discutida nunca mal fez ao mundo – bem pelo contrário. Tempere-se com o posfácio de Ana Gomes. Isto, em Literatura faz vender. Mas aquilo que deve ser o foco de uma recensão é o livro, em si mesmo, a sua qualidade intrínseca. E este de Helena Ferro de Gouveia, sejamos completamente francos e justos, é um perfeito díspar, se o propósito tiver sido mesmo (e desconfia-se que não foi) o de revelar e destacar “mulheres na guerra” ao longo da História – séculos ou milénios, portanto –, “catalogando-as” em combatentes, em comandantes (rainhas), em jornalistas e em espias.

    Livros deste género – com uma selecção de perfis ou de histórias ou eventos reais – não são novidade; são até banais na Literatura – e, de forma despretensiosa e não necessariamente depreciativa, servem a propósito muito limitados: divulgação histórica e/ ou de leitura prazenteira para aumentar um pouco a cultura geral. 

    Podemos, em Portugal, destacar a Coleção 10, escrita nos anos 40 e 50 do século passado pelo jornalista Américo Faria (hoje esquecido), composta por cinco dezenas de títulos com os mais variados temas, cinco dos quais exclusivamente dedicados às mulheres: Dez beldades perigosas  (nº 16), Dez amorosas românticas (nº 22), Dez rainhas que reinaram (nº 31), Dez mulheres no crime (nº 41) e Dez favoritas reais (nº 47). E que, aliás, merecia maior atenção das editoras para uma eventual republicação [a editora Parsifal reeditou três destes títulos em 2013 e 2014). 

    Neste género de obras, onde mais rapidamente se falha é logo na selecção, mesmo antes de se começar a escrever – e, nesse aspecto, diga-se, Helena Ferro de Gouveia escreve bem e em forma enxuta, pese embora os capítulos sofram, entre eles, de alguma desarmonia narrativa, permanecendo ausente um estilo uniforme, variando aqueles entre a reportagem e a compilação wikipediana . Sobre dedilhar texto não poderia deixar de se esperar outra coisa numa antiga jornalista que até se arvora de ter trabalhado “em mais de cinquenta países em quatro continentes”.

    E é, de facto, na selecção das suas heroínas que a autora cometa um erro de palmatória: mostrou que a sua intenção não foi divulgar mulheres automáticas, mas sim compor uma obra panfletária, tão panfletária que a torna ridícula. A si e à obra.

    Com efeito, a tarefa de escolher um leque de mulheres que, efetivamente, “merecem” ser destacadas num livro deste gênero nunca seria fácil. E quanto mais se reduz o lote, para duas dezenas (na verdade, em Mulheres na guerra são 19), mais exige ser os critérios para a inclusão das eleitas numa lista final, na lista definitiva, apresentada aos leitores.

    E foi aqui – nas suas escolhas – que Helena Ferro de Gouveia se estatelou ao comprido, deu tiros nos pés, mostrando que este livro lhe serviu somente para “piscar o olho” – como faz a militar que empunha a arma na capa do livro – aos leitores, colando-o à Guerra da Ucrânia.

    Quem ouve Helena Ferro de Gouveia na CNN Portugal compreende que, aos seus olhos, a invasão da Rússia de Putin (um ditador que, convenhamos, não “nasceu” em Fevereiro de 2022) é a primeira e única barbárie cometida ao cimo da Terra desde que Deus criou Adão e depois Eva.

    Mas daí até seleccionar, num livro que destaca apenas 19 mulheres na História da Humanidade – sendo que a primeira é Fu Hao, uma das esposas do imperador Wu Ding, da dinastia Shang, que viveu no século XIII antes de Cristo –, duas jovens mulheres ucranianas (com um papel pouco mais que simbólico) é estar a gozar com a História. E com os leitores.

    Não tenhamos dúvidas que são enternecedoras as recentíssimas histórias de coragem de Kateryna Polishchuk – que ficou conhecida por Birdie, durante o cerco de Azovstal – e de Olesia Vorotnyk, a bailarina da Ópera Nacional da Ucrânia que pegou em armas pelo seu país. Provavelmente, darão bons enredos hollywoodescos. Mas, caramba!, há que ter noção: quando se oferece ao prelo um livro sobre “mulheres na guerra”, pegando em toda a História, como se pode colocar estas duas ucranianas, nossas contemporâneas, ao mesmo nível das restantes 17?

    Não confundamos, num contexto histórico, a beira da estrada com a Estrada da Beira.

    Como podem, na História, estas duas ucranianas “destronar” (porque Helena Ferro de Gouveia as omitiu) mulheres como a rainha celta Boadiceia, Joana d’Arc, Isabel I de Inglaterra, a Rainha Ginga, Anita Garibaldi, Catarina a Grande, Harriet Tubman, Maria Quitéria ou até Dilma Rousseff, se se quiser chegar à contemporaneidade? E isto, hélas, sem aqui incluir a famigerada Brites de Almeida, a portuguesíssima Padeira de Aljubarrota. Ou a injustiçada na História de Portugal, Teresa de Leão, condessa de Portucale e mãe de D. Afonso Henriques.

    Na ânsia de promover duas simples ucranianas – sem desprimor da coragem – ao pináculo das heroínas ímpares da secular História da Humanidade no feminino, Helena Ferro de Gouveia aparenta nem sequer se ter aconselhado previamente com o prefaciador da sua obra, Duarte da Costa, porquanto este até elenca muitas figuras femininas de grande proeminência que deveriam, obviamente, por tão evidente, estar incluídas nos seus capítulos.

    Por fim, além de tudo isto, se o seu objetivo era escrever sobre mulheres guerreiras ao longo da História, sempre deveria Helena Ferro de Gouveia ousar-se mais nas pesquisas: em vez de usar somente nove obras como referências – as que cita na bibliografia , sendo que a mais antiga é muito recente, de 2003 –, talvez não tivesse sido má ideia procurar no Google. No Google Scholar – entenda-se –, porque aí encontraria infindáveis conceituados estudos sobre o papel das mulheres, e de muitas mulheres em concreto, entre dois períodos de paz.

    Talvez até, por essas pesquisas, pudesse então sim, com propósito, incluir uma heroína da Ucrânia no seu livro, assumindo a sua existência: a lendária Marusia Bohuslavka, que consta ter libertado, sozinha, 700 cossacos detidos pelos turcos num episódio mítico em volta do século XVII.

  • Uma tragédia com um final feliz

    Uma tragédia com um final feliz

    Título

    70072: A menina que não sabia odiar

    Autora

    LIDIA MASKSYMOWICZ (tradução: Ivan Figueiras)

    Editora (Edição)

    Porto Editora (Janeiro de 2023)

    Cotação

    12/20

    Recensão

    As histórias sobre o Holocausto, narradas através da tela do cinema ou em livros, são inúmeras. Esta, é sobre Lidia Maksymowicz, uma sobrevivente dos campos de concentração nazis que foi levada para Auschwitz-Birkenau com apenas três anos e de onde só saiu treze meses depois, em Janeiro de 1945. Dizem os historiadores que foi a criança que passou mais tempo em Birkenau. Durante esse tenebroso período, foi uma das ‘cobaias’ de Josef Mengele para as suas experiências médicas, que incluíam a administração de vacinas a pedido de empresas farmacêuticas.

    Lidia não era judia (actualmente é católica); nasceu na Bielorrúsia, filha de guerrilheiros da resistência. O seu pai não acabou nos campos de concentração; é forçado a juntar-se ao Exército Soviético, separando-se do resto da família – Lidia, a mãe Anna e os avós – antes de estes serem capturados e deportados pelos alemães.
    Esta obra, prefaciada pelo Papa Francisco, é inspirada no documentário 70072: La bambina che non sapeva odiare, feito pela associação La Memoria Viva. Os números 70072 são aqueles que Lidia tem tatuados no seu braço, uma marca em si deixada pelo regime nazi. Tal como a terrível experiência que viveu estará para sempre gravada na sua mente, os dígitos que a identificavam em Birkenau permanecem ainda, indeléveis, na sua carne. A tatuagem foi beijada pelo Papa Francisco, a 26 de Maio de 2021.

    Como Lidia admite, as recordações que guarda da passagem pelos campos não são muitas – não obstante que, entre as poucas que tem, algumas sejam bem vívidas. Outras, ainda, não está certa se serão, de facto, memórias do que viveu ou se são construções que a sua mente foi edificando com o tempo, com base no que, já depois de ter sido libertada, foi escutando, lendo ou vendo e absorvendo sobre o que era o dia-a-dia dos prisioneiros.
    A história de Lidia, pode dizer-se, é daquelas que termina com “um final feliz”. Para além de ter conseguido escapar com vida da barbárie por que passou, foi adoptada, depois da libertação pelo Exército Vermelho, por uma mulher polaca, Bronislawa. Recomeçou a sua vida na Polónia, com a sua família adoptiva, na província de Oświęcim – lugar onde permanece até hoje, e que passou a considerar a sua casa.

    Também a sua mãe biológica sobreviveu aos campos nazis, e as duas reencontraram-se, finalmente, em 1961, já 17 anos após terem sido separadas em Birkenau. Este emotivo reencontro, que teve lugar em Moscovo, foi alvo de intensa cobertura mediática na altura, tanto pela comunicação social soviética como polaca.  Como Lidia explica, representou um dia que o regime soviético queria que fosse “histórico” e gritado aos sete ventos, para transmitir a imagem de que a União Soviética se preocupava com os filhos da sua terra. 

    70072 – A menina que não sabia odiar é um testemunho bonito de uma história que merece indubitavelmente ser contada, mas que acaba por ser apenas mais uma no meio de milhentas que já existem sobre Segunda Guerra Mundial. Não consegue ser particularmente impactante, e o leitor fica com a sensação de que o relato se sustenta mais nos factos que já são do senso comum – e que já foram repetidos múltiplas vezes ao longo das últimas décadas – do que nas memórias individuais e singulares desta sobrevivente em específico. Acaba por ter, por isso, um tom um pouco superficial e “fabricado”, carecendo de profundidade e sendo abundante em lugares-comuns.

    O momento mais comovente do livro é, então, aquele que se centra na reaproximação, após quase duas décadas de afastamento, de Lidia com a sua mãe biológica. As emoções contraditórias e humanas que envolvem este “retorno” improvável (e milagroso) da filha aos braços da mãe – já como uma mulher adulta e casada, e não como a criança que era –, conferem “cor” e intensidade à narrativa, que de outra forma não teria.

  • A mão e o abismo

    A mão e o abismo

    Título

    Dor fantasma

    Autor

    RAFAEL GALLO

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Março de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    A escrita de Dor fantasma terá sido, de certo modo, um exercício catártico para Rafael Gallo, que se digladiava com uma depressão durante o processo criativo. O labor não foi em vão: a obra valeu ao autor brasileiro o Prémio Literário José Saramago 2022. Uma distinção que o escritor almejava, já que é um fã assumido do Nobel português da Literatura e leu quase todos os seus livros.

    Nascido em São Paulo, Rafael Gallo venceu também o Prémio São Paulo de Literatura pelo romance Rebentar, lançado em 2015, e o Prémio Sesc de Literatura com o livro de contos Réveilon e outros dias, de 2012.

    Dor fantasma é aquilo que o título dá a entender: uma história de dor, tanto física como emocional, que tem como protagonista Rômulo Castelo, um ilustre pianista que vê o seu mundo ruir quando perde a mão direita depois de ser atropelado por um motociclista à porta da universidade onde ensina a sua arte. Após o acidente, é-lhe amputada não só a extremidade do braço direito como toda a sua (frágil) identidade.

    Rômulo é um homem profundamente atormentado, e por isso intragável, para quem os que o rodeiam são seres ineptos, sempre aquém da perfeição e da excelência – qualidades que procura incessantemente alcançar através do seu trabalho. O seu trato difícil e frequentemente agressivo começa, a pouco e pouco, a alienar todos os que lhe são mais próximos. A sua mulher, Marisa, os seus alunos e colegas vão começando a perder a tolerância com a atitude hostil do pianista, que parece ter construído um fosso entre si e tudo o que não seja o seu piano.

    Até ao fatídico dia que o priva do seu instrumento de trabalho, os dias de Rômulo são quase todos iguais. Quando o despertador toca de manhã, fecha-se na sua sala de estudos, a sós com o seu Steinway para praticar o Rondeau Fantastique, a “peça intocável” do reputado pianista e compositor húngaro Franz Liszt. Rômulo é um dos melhores intérpretes do artista, e cada execução que repete da partitura é rumo a tornar-se numa espécie de “reencarnação” do compositor. O engenho que exibe foi herdado – ou incutido – pelo seu pai, George Castelo, um maestro que inculcou no filho, a par da paixão pela música, uma disciplina indefectível.

    Rômulo também tem um filho, de oito anos, a quem deu o nome Franz em homenagem ao seu ídolo, mas o descendente nunca irá preservar o talento que corre nos genes dos homens da família, já que sofre de uma forma rara de paralisia cerebral. Por isso, “Franzino” apenas recebe do pai uma declarada rejeição.

    De facto, o abismo começa a desenhar-se com as queixas por agressão dos seus alunos e o pedido de divórcio de Marisa. A partir daí, a descida aos infernos é ininterrupta. Não podendo fazer a tour pela Europa que tinha planeado antes de ser amputado, Rômulo deixa de ter a única razão que tinha para existir, e para que, pelo menos, o seu corpo estivesse presente, já uma espécie de ‘fantasma’.

    Nesta obra, as palavras seguem um encadeamento lírico, uma procede a outra, como se juntas formassem uma composição musical. Têm movimento, exaltam-se na leitura. Há uma ordem que é bela, o ritmo é compassado. A história é desconcertante. Dor fantasma é um romance sólido, pleno e arrebatador.