Etiqueta: Recensão

  • Espectros de um regime

    Espectros de um regime

    Título

    Sombras do Império: Belém – Projetos, Hesitações e Inércia, 1941-1972

    Autor

    JOÃO PAULO MARTINS (Org.)

    Editora

    Tinta da China (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    No seguimento da exposição com o mesmo nome, no Padrão dos Descobrimentos, entre 2 de Maio de 2022 e 30 de Janeiro de 2023, este livro surge como uma compilação essencial de uma equipa multidisciplinar que focou a sua investigação em Belém no contexto paradigmático das acções (ou inacções e inquietações de projecto) após a Exposição do Mundo Português de 1940.

    O primeiro artigo que nos é apresentado pertence à pena de Pedro Rito Nobre, arquitecto e investigador, que, com uma forma de expressão leve e directa, nos apresenta o necessário contexto da Exposição de 1940 e os planos de urbanização associados a esta malha urbana. A paginação, porém, pode dificultar a comunicação – algo plasmado ao longo de toda a edição – sendo que, embora elegante no seu grafismo e de uma forma bela se regularize numa continuidade plástica a apresentação do espólio fotográfico e documental – esta opção compromete a leitura de alguns desenhos e até da lógica das legendas (caso da página 26, em que a própria legenda da planta refere o uso do sistema “vermelhos e amarelos” para indicação dos elementos a demolir ou construir, não existindo porém essas cores nos desenhos, em sacrifício pela uniformidade gráfica).

    Para o público fora das disciplinas de edificação e planeamento, a descrição de eixos de implantação e acções de projecto e obra arriscam provocar um grau de opacidade considerável, porquanto um longo parágrafo explicativo do que consta na planta poderá conter jargão não tão acessível. Ainda assim, é muitas vezes necessário assumir o seu público alvo e talvez não apaparicar todos os destinatários apenas para aumentar o alcance, e arriscar, por seu turno, desprestigiar o conteúdo e as suas nuances.

    É anunciado, na proporção correcta, o modo como as perspectivas que orientavam as decisões urbanísticas, neste caso de estudo, não assentavam com a mesma intensidade no actual culto historicista de preservação integral da cidade (diria eu e até alguns outros investigadores, por vezes de forma fachadista ou disneyficada).

    O acervo fotográfico e documental é absolutamente notável, cuidadosamente curado e apresentado de forma a enlevar o leitor e, portanto, apesar da gíria académica empregue na redacção, dir-se-ia até ser possível usufruir do livro abdicando do corpo do texto, tal é o impacto que a recolha releva.

    “Quando afinal as luzes de mil cores deixarem de incidir sôbre os pavilhões, quais são os candieiros que ficam acessos na nossa freguesia?” p. 20, citando Ecos de Belém, 10 de Julho de 1940, p. I

    Como este autor contribui na sua reflexão, após uma demonstração clara das aventuras e desventuras dos projectos e seus autores que tentavam criar novos mundos, “tão vasto plano para tão pouca concretização” (p. 43) é sem dúvida a melhor síntese desta apresentação.

    Segue-se o artigo de Joana Brites, historiadora de arte, investigadora e professora universitária, onde novamente a leitura em colunas – em que os subcapítulos interrompem as mesmas dentro da mesma página – dificulta a mesma. De ressalvar também que na página 27 do autor anterior e na página 59 desta autora, encontramos uma redundância de uma cartografia; não obstante, é excelente a contextualização histórica sobre os conteúdos ideológicos e programáticos das intervenções apresentadas para os projectos desta época, mesmo à luz do panorama internacional.

    Não podemos deixar de exaltar a reflexão da página 69, nas considerações finais do artigo, sobre as relações de poder plasmadas no estudo da “não concretização” – neste caso, lusitana – não só das intenções da época em apreço, como mesmo actualmente.

    O artigo do organizador João Paulo Martins, arquitecto e professor universitário, tem um título absolutamente brilhante pelo seu carácter ilustrativo: “Espectros, fantasmas e outras assombrações (…)”.

    A anatomia temporal do projecto do Palácio do Ultramar, sempre acompanhado pelos desenhos brilhantes de Cristino da Silva permite-nos vivenciar uma narrativa muito interessante, assim como demonstrar as dinâmicas do “pequeno” poder em Portugal (página 95), ou as secas respostas do poder político (página 96).

    Na página 101 surge timidamente um modelo digital do projecto em análise, executado por Marta Orszt, infelizmente sem o destaque que poderia colmatar as lacunas de comunicação que já mencionámos. Em seguida, os restantes anteprojectos ao longo da década de 60 são-nos apresentados e, de novo, na página 111, uma vez mais o azedume político a empatar o avanço de uma visão. Para remate mais feliz, o Museu da Marinha garante-nos o alívio de, após esta saga de rezingas que impedem projectos, podermos observar obra erigida.

    O artigo seguinte pertence a Sebastião Carmo-Pereira, arquitecto paisagista, novamente com a companhia dum acervo de imagens e desenhos fantásticos. Ficamos a conhecer com muito interesse a luta dos planos de Belém até à Ermida de São Jerónimo, neste caso na sua dimensão paisagista e, como sempre, com o modo peculiar como aparentemente, em Portugal, não se gosta de árvores, e citando Ribeiro Telles na entrevista com Urbano Tavares Rodrigues:

    “A concentração da população nas cidades é um facto que se perde no tempo. A ruralidade criou e durante séculos manteve a cidade. Esta não era mais do que um elemento pontual no espaço rural onde se processava um complexo sistema de trocas. A relação entre a paisagem humanizada, a Natureza mais ou menos selvagem e a urbe era íntima. (…)” (página 145)

    Por fim, mas sem demérito pela sua posição, o artigo de Natasha Revez, historiadora de arte e investigadora, traça a crónica de costumes mais divertida do livro, com ironias no subtexto (ou então mea culpa se vislumbradas foram por predisposição mais sardónica pessoal).

    Sobre o Padrão dos Descobrimentos (curiosamente motivo de polémica recente), sobre a sua génese, sobre o seu orçamento começar em 9 mil contos e, mediante impugnação do primeiro concurso, subir para 12 mil; sobre as irregularidades do concurso e “projectos de cartaz” para se chegar até a abdicar do anonimato na segunda fase; sobre as alterações climáticas com o Infante a cair ao Tejo (página 157); e, de novo, a inépcia.

    Entretanto, a diferença entre o investimento em Sagres e em Lisboa, em que “mais um projecto «naufragou em ignotos baixios ante um terrível e inesperado cabo Não»” (página 161) com a devida homenagem a Teotónio Pereira e ao seu artigo “Não haverá ‘Mar Novo’” (talvez estes últimos parágrafos e imagens que o acompanham seja de observação essencial para os responsáveis autárquicos das encomendas de estatutária contemporânea em Portugal… talvez revejam os seus erros nuns pontos e, ao mesmo tempo, ironicamente constatem que até o atavismo do regime conseguiu – quando conseguia – produzir obras de melhor orgulho estético do que os suportes de pombos que vêm a ser erigidos ultimamente).

    “Da exposição ao livro”, a apresentação em jeito de prefácio do organizador do livro é, na nossa humilde opinião, o remate perfeito a esta recensão crítica de um conteúdo de pertinência essencial:

    “(…) ficam evidentes os confrontos entre protagonistas individuais – políticos, arquitetos, paisagistas… – a cujas diferentes formações e culturas disciplinares deram suporte a abordagens distintas e objetivos não coincidentes. Cumplicidades e disputas entre gerações ou meramente pessoais, raramente assumidas ou completamente explicitadas, percorrem as trocas de argumentos que a documentação administrativa regista. Nos jornais, a escassez de comentadores independentes baliza os limites do debate público.
    (…) Não será surpreendente reconhecermos então (como hoje, afinal) a incapacidade generalizada para o exercício do diálogo, capaz de conduzir soluções esclarecidas, convincentes e partilhadas, consensos negociados, e não apenas conquistados ou, simplesmente, impostos.” (página 9)

  • O quarto que fecha por fora

    O quarto que fecha por fora

    Título

    A criada

    Autora

    FREIDA MCFADDEN (tradução: Carla Ribeiro)

    Editora

    Alma dos Livros (Junho de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Freida McFadden, a autora deste thriller psicológico, é médica e especialista em lesões cerebrais. Talvez, também por isso, o relato que faz de algumas personagens seja com conhecimento de causa, por mais inverosímeis que nos pareçam os seus actos. O cérebro humano é cheio de surpresas.

    Neste romance, a autora inventa cenários inesperados e fora do comum, que nos apanham sempre de surpresa. É uma história cheia de voltas e reviravoltas, daquele género de narrativas que não conseguimos largar, porque sabemos que a próxima página nos reserva sempre surpresas, e queremos sempre saber o que vai acontecer.

    O livro conta-nos a história de Millie, uma mulher recém-libertada da cadeia, por um crime que inicialmente desconhecemos, e que procura emprego. Mal acredita na sua sorte quando é contratada por Nina Winchester, como empregada doméstica interna. Millie dorme no carro e está em liberdade condicional, de forma que ter o seu próprio quarto e tratar, aparentemente, de funções domésticas sem grande dificuldade, lhe parece uma sorte incrível.

    A casa é maravilhosa, Nina recebe-a muito amistosamente, mas aquilo que inicialmente lhe parecia uma bênção foi aos poucos transformando-se num enorme pesadelo. A patroa parece deleitar-se em enlouquecê-la, criando situações de mal-entendidos e sujando e desarrumando a casa toda apenas para ver Millie a limpar e a arrumar. 

    Para piorar as coisas, conta mentiras estranhas sobre a sua própria filha, Cecelia, uma criança de nove anos, caprichosa e mal-educada e com quem Millie tem imensas dificuldades em lidar. O único que parece escapar a este cenário é Andrew, o marido de Nina, um perfeito cavalheiro, lindíssimo, sempre irrepreensivelmente vestido, com um grande emprego e um grande carro. Ama a mulher e trata-a, aparentemente, muito bem. O marido perfeito, em suma.

    A primeira parte do livro, dedicado a Millie, fala-nos, pois, das suas funções, na casa, do seu emprego e dos mau tratos que Nina lhe inflige, mas que ela vai suportando porque a última coisa que quer é voltar a dormir no seu carro e, sendo despedida, sabe que irá ter dificuldade em arranjar um novo emprego, com o cadastro que tem. Afinal, ter o seu próprio quarto, apesar deste ser um aposento onde só cabe uma cama e com um armário minúsculo, parece-lhe uma boa troca. Até descobrir que o quarto só se fecha à chave, do lado de fora. 

    Descobriremos, depois, terríveis segredos na segunda parte do livro, dedicado a Nina. 

    Se há uma coisa que a grande maioria dos thrillers têm em comum são as caracterizações claras dos vários personagens. Os protagonistas são invariavelmente os bons, enquanto que os maus são identificados com precisão e descritos de forma a atrair nossa antipatia, respeitando, assim, as convenções clássicas. Millie é inegavelmente a vítima, e Nina a vilã, que queremos que seja castigada. Assim, quando Millie se começa a apaixonar por Andrew, quase desejamos que a criada fique a viver com o patrão e a malvada patroa seja expulsa de casa. E isso acontece, mas, quando acontece, saber que aquele quarto só fecha do lado de fora começa a fazer todo o sentido. Ou não…  

    A maior parte do romance concentra-se nas relações entre estas três pessoas, altamente disfuncionais e atormentadas à sua maneira. Às vezes bem-humoradas, e outras vezes bastante terríveis e preocupantes, as interações que têm uns com os outros é o que faz mover a história. E McFadden sabe exatamente como aumentar, consistentemente, a perturbação que vamos sentindo à medida que o lemos sabendo, de antemão, que todas as personagens correm perigo, que não sabemos bem qual até à última página. 

    Do ponto de vista formal, o romance não traz nada de original, nem que mereça menção, mas o seu conteúdo não deixa o leitor indiferentes. Portanto, uma óptima leitura para o Verão.

  • Uma alma antiga feita de histórias

    Uma alma antiga feita de histórias

    Título

    Terra: Uma história do Esporão

    Autor

    JOÃO PEDRO VALA

    Editora (Edição)

    Quetzal (Junho de 2023)

    Cotação

    12/20

    Recensão

    No ano de 1973, um encontro entre José Alfredo Parreira Holtreman Roquette (n. 1936) e Joaquim Alberto Rodrigues Bandeira (1934-2003) esteve na origem de uma marca que se constituiu como uma referência nos Vinhos em Portugal. Agora, para celebrar o seu quinquagésimo aniversário, a Herdade do Esporão revela a sua História através de cinquenta pequenas narrativas pela mão do escritor João Pedro Vala (n. 1990), autor do romance Grande turismo, publicado pela Quetzal em 2022, numa abordagem irreverente mas que continua o legado inovador da Herdade do Esporão.

    No Prefácio, João Roquette esclarece que pretendiam “um livro que assinalasse o que de mais relevante se passou nestes anos.” No entanto, em vez de uma abordagem histórica e factual, optaram por uma abordagem “romanceada e livre: cinquenta estórias inspiradas em acontecimentos, mitos e abstracções que envolvem, de alguma maneira, o Esporão.” O mais importante “seria que neste livro habitasse a alma do Esporão, uma alma antiga e colorida pela extraordinária riqueza e diversidade dos que por aqui passámos.”

    Começa João Pedro Vala, em Nota Introdutória, por alertar o despreocupado leitor de que o que está prestes a ler são tudo histórias ficcionais: “Todas as histórias que contamos uns aos outros são ficcionais a partir do momento em que decidimos a ordem dos acontecimentos, o contexto que lhe damos, o encadeamento dos elementos.”

    Embora ficcionadas, o autor baseou-se em histórias que lhe foram contadas por várias pessoas associadas à Herdade do Esporão, sendo em momento posterior pelo seu estro “deliberadamente adulteradas, truncadas e misturadas para efeitos narrativos.”

    Depois, numa outra passagem, esclarece que “alguns nomes mantiveram-se, outros não, algumas pessoas vivem neste livro coisas que aconteceram a outras e há até uma história aí para o meio que não tem ponta de verdade (ou talvez também isto seja um artifício do escritor para se proteger de eventuais acusações).”

    Infelizmente, neste jogo literário, as narrativas não fornecem chaves suficientes para se distinguir a verdade da ficção e essa mistura não se afigura de receita fácil para quem lê. Alguns capítulos contêm narrativas de tal maneira herméticas, que pouco ou nada esclarecem o leitor acerca da sua inclusão ou em que sentido dizem respeito à história do Esporão. Exemplo disso verifica-se no capítulo I – Haifa, 11 000 a.C., ou no capítulo XII – Costa da Caparica, 1979, só para citar dois casos.

    Certas narrativas são mais lineares, num registo jornalístico, factual, onde se segue a linha do tempo para determinado assunto, por vezes com episódios curiosos, até mesmo mirabolantes, acerca da maneira como a Herdade do Esporão se foi construindo e afirmando no panorama nacional ao longo dos anos, demonstrando a sua visão para o sector, em contraste com um país saído do 25 de Abril, ainda a pensar pequenino, preso aos seus atavismos e burocracias, tiques e manias que se mantém até hoje.

    Para o leitor que aqui vem à procura da história tintim por tintim da Herdade do Esporão, desengane-se, pois não a irá encontrar. Mas é sobre vinho, e isso é sempre um bom propósito para ler um livro.

  • Manual de luta contra a desinformação

    Manual de luta contra a desinformação

    Título

    Como fazer frente a um ditador

    Autora

    MARIA RESSA (tradução: Carla Ribeiro)

    Editora (Edição)

    Ideias de Ler (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Maria Angelita Ressa é uma jornalista filipino-americana, nascida em Manila, em 1963, e que foi viver, a partir dos 10 anos, com a família para os Estados Unidos, depois de declarada a lei marcial nas Filipinas.

    Frequentou a Universidade de Princeton, onde se licenciou em inglês com um certificado em teatro e dança. Depois de se formar, em 1986, regressou às Filipinas com uma bolsa Fulbright para estudar em Manila, onde iniciou a sua carreira de jornalista.

    Em 2012, Maria Ressa fundou e lançou o sítio web Rappler, que rapidamente cresceu, tornando-se uma das maiores fontes de notícias das Filipinas. Esta empresa de comunicação social digital de jornalismo de investigação ficou internacionalmente conhecida por descrever, minuciosamente, o modo como as redes sociais se tornaram numa arma usada pelo poder dominante, bem como por expor o modus operandi corrupto do Governo abraçado por Duterte e seu sucessor , igualmente corrupto, Ferdinand Marcos Jr., filho do ex-presidente com o mesmo nome – conhecido por ter fugido de helicóptero, depois de ter feito o maior desfalque, alguma vez conhecido, a um Estado-Nação.

    Os seus “esforços para salvaguardar a liberdade de expressão, uma pré-condição para a democracia e a paz duradoura”, foram reconhecidos ao mais alto nível, tendo-lhe sido atribuído o Prémio Nobel da Paz, em 2021, em conjunto com o jornalista russo, Dmitry Muratov.

    A obra agora publicada pela Ideias de Ler, intitulada Como fazer frente a um ditador: A luta pelo nosso futuro , é um relato dos anos de luta pela liberdade de imprensa, num país onde o uso da violência física, digital e até judicial está ao serviço de Governos ditatoriais e cada vez mais autoritários. 

    Com prefácio da reconhecida Amal Clooney, advogada dos direitos humanos e co-fundadora da Fundação Clooney, o livro está dividido em três partes. Num discurso na primeira pessoa, Maria Ressa narra o seu percurso de vida, desde a escola primária, expondo os seus princípios e códigos de conduta e de honra, iniciando com a sua regra de ouro. Aquele que lhe permitiu, desde sempre, discernir o que seria correto ou errado em qualquer situação na sua vida. 

    A missão do jornalismo está, igualmente, explicada, sendo, aliás, o motor para a criação de um site de notícias distinto de muitos outros, o Rappler, no sentido em que são os jornalistas (de investigação) que decidem o que noticiar e não os patrocinadores ou os governantes.

    A segunda parte é sobre o modo como o poder político usa as redes sociais para a desinformação, por intermédio de contas falsas e sobre a criação, divulgação e ocultação de notícias falsas e, consequentemente, para a destruição das democracias – a “infodemia”. como designa um jornalista.

    O poder político é o de Duterte que, logo após assumir a carga, controlou e gerou desequilíbrios nos três ramos da governação. O colapso aconteceu por meio de “um sistema de clientelismo, lealdade cega” e aquilo a que a autora denomina de “três C’s: corromper, coagir e cooptar. Se alguém recusasse o que o governo desejava ou oferecia (…) era atacado” (p. 184). Paralelamente, Maria Ressa desenvolve uma explicação detalhada sobre o funcionamento dos algoritmos e de como o Facebook tem contribuído para a manifestação do fascismo e desmoronamento das democracias.  

    Na terceira parte, a jornalista narra todo o processo de difamação contra si e contra o Rappler e os esforços de toda a equipa para se manter firme e sobreviver “à morte por mil cortes”, num contexto de novos e mutantes ecossistemas de informação. 
    Ao mesmo tempo, relata-se o crescente empobrecimento de um país alimentado pela desinformação. 

    Uma das pessoas com quem Maria Ressa trabalhou é a investigadora Shoshana Zuboff, cuja obra sobre o capitalismo de vigilância é um recurso teórico que ajuda a compreender o caso prático das Filipinas. 

    Ainda que não seja sobre a “A era do capitalismo da vigilância” que aqui se trata, esta obra, além de referenciada e usada por Maria Ressa, é indispensável para compreender todo o processo de transmissão de dados a que todos os que usam a Internet estão sujeitos, embora se saiba que o Facebook e o Google estão na primeira linha de transmissão e controle de dados, bem como na disseminação da desinformação.

  • A América não está bem

    A América não está bem

    Título

    Nenhum turista vai a Tucson

    Autor

    ALBERTO GONÇALVES

    Editora

    Alêtheia (Junho de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Nota prévia: mais do que leitor, sou apreciador de Alberto Gonçalves há muitos anos (e estive quase a fazer com ele uma viagem aos Estados Unidos, projecto que foi adiado mas de modo algum anulado). Este livro – o primeiro deste autor que leio – goza, portanto, à partida, de um enorme capital de simpatia, de aprovação e de expectativa positiva. Felizmente, não foi preciso tocar nesse capital. A excelência do livro basta-se a si própria. 

    Qualquer pessoa que siga o autor na imprensa sabe que ele é um apreciador dos Estados Unidos. Não pode é saber até que ponto conhece os e o quanto os ama.

    Mas comecemos pelo princípio: o título. Foi o que Alberto Gonçalves ouviu de uma senhora – em Tucson, claro – quando lhe disse que estava ali como turista, não estava a trabalhar. Os Estados Unidos de Alberto Gonçalves não são os de um turista habitual – e quando são, não são. Já lá vamos.

    O livro contém dezoito capítulos (cada um com uma «nota de rodapé»), uma introdução e um epílogo. Ao todo, pouco mais de 210 páginas que se lêem num ápice, porque não é só um livro de viagens. É também um livro sobre música, cinema e literatura americanos, de que o autor tem um conhecimento enciclopédico, passe o cliché.

    Para quem, como eu, gosta de tudo o que a cultura americana produz, mas não aprofunda muito esse gosto, Nenhum turista vai a Tucson é uma mina – tanto como para os lugares menos conhecidos do país, que Alberto Gonçalves visita por causa de uma canção, de um autor ou de um filme. Mesmo os mais conhecidos, aqueles aonde todos os turistas vão, são vistos à luz desse conhecimento: nomes de compositores, títulos de livros ou de canções, histórias com elas relacionadas, episódios anedóticos são invocados a cada passo, a cada olhar. 

    Há uma frase de James Baldwin de que gosto particularmente: «O viajante é sempre maior do que o mundo no qual viaja». Aplica-se como uma luva a Alberto Gonçalves e aos Estados Unidos. Tal como, de resto, outra do mesmo Baldwin: «Amo a América mais do que qualquer outro país no mundo e exactamente por essa razão insisto no direito de criticá-la perpetuamente.»

    Uma grande parte do conteúdo do livro são críticas a muito daquilo em que os Estados Unidos se estão a tornar. O último parágrafo do livro é paradigmático e comovente:

    «Em suma, a América não está bem e se calhar não está bem de um modo como nunca tinha estado. Em simultâneo, mantenho uma esperança talvez infundada de que a América recupere do modo como sempre recuperou. Quero voltar à América, e voltar a queixar-me dos limites de velocidade nas estradas largas e das escalas nos aeroportos e do calor do Yuma e do declínio de Nova Iorque e dos molhos na comida. E quero voltar a sentir lá o que não sinto em nenhum outro lugar com intensidade ou regularidade comparáveis: vida, liberdade e, o excesso lírico não é meu, o direito a procurar a felicidade, nem que a encontre só por instantes numa bomba de gasolina do Texas. Estas ligeirezas são, quer a humanidade saiba quer não, o que de melhor nos resta. E são sobretudo um privilégio da América, de que beneficiamos em grande medida graças à América. Se a América abdicar de ser um exemplo a seguir para se tornar num exemplo a evitar, o futuro da América será negro. E o nosso ainda mais.» 

    A quem lê quase religiosamente Alberto Gonçalves (a palavra-chave é “quase”), Nenhum turista vai a Tucson traz um bónus: ler o autor a falar do que gosta, em vez de o ler a falar daquilo que – muito justamente, de resto – detesta: a política portuguesa. Isto foi notado por alguém na apresentação e encheu-me de curiosidade: que mudaria? Calma: quase nada. A acutilância é a mesma, o humor também, idem a qualidade da escrita. Muda o tom.

    Enquanto lia, ocorreu-me várias vezes que «isto parece um pai a falar de um filho que adora mas é traquinas». Esse tom, que perpassa por todo o livro, aumenta exponencialmente o prazer da leitura. Talvez no fundo, a melancolia seja mais atraente do que o ódio, por justificado que este seja (e se é que tal termo se pode aplicar a Alberto Gonçalves, o que duvido. Mas isso é outra história).

  • Até para nascer é preciso sorte

    Até para nascer é preciso sorte

    Título

    Uma educação

    Autora

    TARA WESTOVER 

    Editora (Edição)

    Bertrand (Setembro de 2018)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Tara Westover é uma ensaísta e historiadora norte-americana. Em 2019 foi considerada pela revista Time uma das 100 pessoas mais influentes do ano. Licenciou-se em Cambridge, em 2009, e no ano seguinte foi professora convidada da Universidade de Harvard. Mais tarde, regressou a Cambridge onde, em 2014, se doutorou em História com a tese “The Family, Morality and Social Science in Anglo-American Cooperative Thought, 1813–1890”.

    Uma educação, estreou em 1.º lugar na lista de best-sellers do The New York Times e foi finalista de vários prémios, incluindo o LA Times Book Prize, o PEN America’s Jean Stein Book Award e dois National Book Prêmio Círculo de Críticos. O New York Times classificou este livro como um dos 10 melhores de 2018.

    Talvez isso se justifique por ser-nos revelado, neste livro, as suas experiências dramáticas e perturbadoras.

    Tara é a mais nova de sete filhos de uma família mórmon, no estado do Idaho, nos Estados Unidos. A família fazia uma interpretação fundamentalista do mormonismo e estabelecia regras sobre todos os aspectos da vida de Tara, como seja o que poderia vestir, que hobbies e que contactos poderia ter com o mundo exterior. 

    Nasceu em casa, porque os pais desconfiavam de médicos, hospitais e medicamentos. Não foi registrada até aos nove anos de idade, e quando chegou a altura de o fazer ninguém sabia muito bem em que dia ou mês ela tinha nascido. Os pais também não acreditavam na Educação ministrada na Escola Pública, de forma que nenhum dos irmãos a frequentava.

    Foram educados pela mãe, e um dos irmãos mais velhos ensinaou Tara a ler, usando as escrituras da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos DiasApesar de estar no ensino doméstico, nunca prestaram provas, nem sequer fizeram uma redacção ou participaram em qualquer outra actividade de educação formal. A família via as escolas como parte de um exercício de lavagem cerebral, por parte do Governo. O seu pai, obviamente, e obrigando a família a ajudá-lo, armazenava armas e mantimentos, preparando-se para o fim do Mundo e para se proteger de qualquer tentativa do Estado em imiscuir-se na vida da família.

    “A minha família passava sempre os meses quentes a cozer e a enfrascar fruta para armazenar, pois o meu pai dizia que precisaríamos dela na Abominação da Desolação (…) Passamos o dia seguinte a descascar e cozer pêssegos. Ao entardecer tínhamos enchido dezenas de frascos, que foram preparados em filas perfeitas, acabadinhos de sair da panela de pressão”.

    Esta paranóia manteve-se mesmo em casos de emergência, como, por exemplo, quando a família se feriu gravemente num acidente de viação e recusou a ajuda médica por considerarem os hospitais e os médicos como agentes de um Estado maligno.

    Mesmo quando gravemente feridas, as crianças eram tratadas apenas pela mãe, uma curiosa do herbalismo e de outros métodos alternativos de cura, para além de praticar como parteira de uma forma clandestina. “O trabalho de parteira mudou a minha mãe. Era uma mulher adulta, mãe de sete filhos, mas pela primeira vez na vida era ela quem mandava. Cobrava cerca de quinhentos dólares por parto e esta foi a outra coisa que o trabalho de parteira mudou nela: de repente tinha dinheiro”.

    E, depois, havia a sucata. A sucata era o local de trabalho do pai e dos irmãos mais velhos, até que um dia passou a ser também o de Tara. Era um local onde se desenvolvia um trabalho de extrema violência e onde era necessária muita força física, algo que uma rapariguinha não tinha. Passou uma infância obrigada a trabalhar entre máquinas, sempre à beira de ser triturada pela maquinaria e sem que o pai demonstrasse um mínimo de preocupação.

    Quando crescesse, Tara sabia bem o que lhe estava destinado: aos 18 ou 19 anos “casava-me”; “o pai dava-me uma quinta” e “o marido fazia ali a casa”; a “mãe” ensinar-lhe-ia a ser parteira e “a usar ervas medicinais”. Os CDs de música clássica do irmão Tyler procuraram fazer a diferença na sua vida. Ouviu-os vezes sem conta. A música e a dança marcaram a sua adolescência – ainda que, mesmo aí, com mil cuidados, não pudesse usar roupa um tudo ou nada mais colada ao corpo. O pai chamava prostitutas às mulheres que o faziam. 

    Na primeira vez que usou batom, o irmão Shawn chamou-lhe galdéria – ela que, aos 15 anos, nada sabia sobre concepção, nunca beijara um rapaz, mas chegara a julgar poder estar grávida. Tyler, o irmão que gostava também de aprender com os livros, e se fechava no quarto a estudar contra a vontade paterna – “um homem não pode ganhar a vida com livros e folhas de papel”, “os doutorados eram Filhos da perdição” –, ajudou-a a dar o salto e a preparar o exame final dos estudos secundários que completou com sucesso.

    Depois disso, foi sempre em crescendo até entrar para uma das mais prestigiadas universidades do Mundo. No entanto, o trauma, as gravações dramáticas e a família neurótica, de quem se foi afastando, marcou-lhe a vida e, ainda hoje, embora ausentes da sua vida, continuam a assombrar-lhe os sonos.

  • Mistério em Downing Street

    Mistério em Downing Street

    Título

    A secretária de Churchill

    Autora

    SUSAN ELIA MACNEAL (tradução: Sónia Maia)

    Editora

    Saída de Emergência (Abril de 2023)

    Cotação

    12/20

    Recensão

    Susan Elia MacNeal nasceu em 1968, em Buffalo, Nova Iorque, onde também se formou na Nardin Academy. Além disso, terminou o curso de Inglês no Wellesley College, com mérito e distinção. Antes de se dedicar à escrita, trabalhou na área editorial, na Random House, na Viking Penguin e Dance Magazine.

    Mr. Churchill’s Secretary é um original de 2012 que está na génese da série de mistério Maggie Hope: uma série vendida em todo o mundo e traduzida em várias línguas e um grande êxito do The New York Times e do Washington Post, cujos direitos cinematográficos e televisivos foram obtidos pela Magnolia Productions/Warner Bros. Pictures. 

    Já na sua 22ª edição, A secretária de Churchill, recentemente publicado, em Portugal, pelas Edições Saída de Emergência, foi nomeado para o prémio “Edgar Allan Poe” e venceu o prémio de ficção policial, “Barry Award”. 

    A história começa no dia em que Winston Churchill é nomeado Primeiro-ministro, em Maio de 1941 e passa-se, em grande parte, no número 10 de Downing Street, fazendo referências aos discursos galvanizantes do político que conduziu o Reino Unido durante a Segunda Grande Guerra. É precisamente sobre a oposição à entrada na guerra e as relações com a Irlanda que o mistério se desenrola.

    O enredo começa com o assassinato de uma das dactilógrafas de serviço, ficando em suspenso o motivo desse crime. A sua substituição dá início à trama que conduz ao crescimento de Maggie Hope, que se estreia como dactilógrafa substituta de Winston Churchill, mas sem grande convicção, já que, sendo matemática de formação, muito inteligente e perspicaz, se considera mal aproveitada. O romance policial também gira em torno dessa frustração, dado que, sendo mulher, não tem acesso às funções que os homens têm. 

    A temática do feminismo está bem presente nos pensamentos da personagem principal, feita heroína ao longo da história, o que reflete numa narrativa pró-feminista. É pena que esta construção seja edificada com recurso a lugares-comuns. Em alguns momentos corre mesmo o risco de se contradizer, ao dar atenção a pormenores que mais não são que uma apologia à objetificação da mulher.

    A tensão e o mistério estão presentes, ainda que o leitor se pergunte por que motivo a autora descreva de forma tão explícita os pensamentos de alguns dos personagens, em particular da heroína. Uma das características de um bom livro é, precisamente, deixar que o leitor chegue às suas próprias conclusões. Por isso, sim, o narrador poderia ser menos óbvio. 

    É possível que esse problema se resolvesse com uma revisão mais profunda. Uma vez que o livro já vai na sua 22ª edição, pode questionar-se por que não foi revisto. O caso mais evidente é a repetição do motivo pelo qual a personagem principal, Maggie Hope, tem aversão ao Sr. Snodgrass – um dos chefes do gabinete do ministro. São várias as vezes que Maggie, ou Magster – a alcunha usada por um dos seus amigos – se refere àquela figura masculina para manifestar o feminismo que a autora quer defender, ainda que de uma forma, diríamos, superficial.

    Como mencionado, este livro está na origem da saga Maggie Hope e, como tal, é recomendável para quem tenha interesse em compreender o contexto da aparição daquela espia, tanto que, mais dia, menos dia, a série televisiva estará disponível.

  • Uma errância fecunda

    Uma errância fecunda

    Título

    A vida errante

    Autor

    GUY DE MAUPASSANT (tradução: Carlos Vaz Marques)

    Editora (edição)

    Tinta da China (Maio de 2023)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Guy de Maupassant nasceu na Normandia, em 1850, e é um dos autores mais célebres da sua época. É a partir de 1880 que se dedica fervorosamente à sua paixão, a escrita, tendo publicado desde então, e até à sua morte, cerca de 300 novelas, seis romances e contos e inúmeras crónicas para jornais. 

    A sua doença e depressão levam-no a sair de Paris, uma cidade que abomina pela confusão, para passar temporadas na Costa Azul, de França, e viajar pelos países que circundam o mar Mediterrâneo. 

    Este livro, A vida errante, agora publicado pela Tinta da China, resulta dessas mesmas viagens. 

    A escrita envolvente do autor é, em muitos momentos, a de uma prosa poética, tal a sensibilidade captada e expressa por este observador contemplativo e perscrutador exímio. Os pormenores dos lugares, a descrição e análise dos gestos e comportamentos das pessoas, originados pelos seus contextos, cativam o leitor que gosta de viajar e de conhecer outros lugares, gentes e culturas.

    A arquitectura e a decoração são os elementos mais presentes nas suas descrições. As cores exuberantes são decalcadas em cada decoração, transportando o leitor para cada um dos lugares desta viagem, diríamos, pouco errante.

    Aliás, este livro pode recomendar-se aos autores de blogs de viagens e afins, e a viajantes com intenção de partilharem e publicarem as suas experiências, quer de forma escrita, quer visual. De facto, até para se captarem imagens com história, ou que pretendam contar o fragmento de uma história, é necessário alcançar a peculiaridade de um sítio vivido e habitado.

    Nesta obra, Guy de Maupassant observa e partilha as suas cogitações contemplativas durante uma viagem que começa em Paris – justificando, então, por que se tornou insuportável permanecer nessa cidade, cheia de gente.  

    Durante a viagem de barco, somos conduzidos pelo seu olhar atento, desde o anoitecer em Cannes até ao amanhecer na costa italiana, passando pela Sicília, Argel, Tunes e terminando em Cairuão, outra cidade da Tunísia.

    Os parágrafos introdutórios que o autor escreve, aquando da sua chegada à Sicília, parecem ter, como propósito, convencer o leitor, futuro viajante, a conhecer esta ilha. A arquitectura e os odores são os argumentos, em particular, quando se demora no quarto onde Richard Wagner terá vivido no último ano da sua vida, em Palermo.

    “Mas fui abrir a porta do armário espelhado e um perfume forte e delicioso evolou-se com a carícia de uma brisa que tivesse passado por um roseiral (…). Inspirei aquele hálito a flores, fechado no móvel, esquecido dentro dele, cativo; e pareceu-me, de facto, encontrar qualquer coisa de Wagner nesse sopro que ele amava, um pouco dele, um pouco do seu desejo, um pouco da sua alma, naquele quase nada dos hábitos secretos e queridos que constituem a vida íntima de um homem” (p. 53). 

    O excerto anterior é apenas um exemplo de como o autor nos conduz ao deleite, para que, também nós, possamos apreciar cada instante percepcionado e vivenciado por Guy de Maupassant.  

    Enquanto objeto, o livro é uma peça bem conseguida. A encadernação em capa dura e o separador em fio, cosido no livro, é disso demonstrativo. Só um reparo: o mapa colado na folha de guarda e contra-guarda do livro poderia estar mais bem centrado, de maneira a ter a Península Ibérica visível.

  • Os destroços de uma utopia

    Os destroços de uma utopia

    Título

    Regresso da URSS seguido de apontamentos ao meu “Regresso da URSS”

    Autor

    ANDRÉ GIDE (tradução: João van Zeller)

    Editora

    Dom Quixote

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Nobel da Literatura em 1947, o francês André Gide (1869-1951) publicou, em 1936, Regresso da URSS, no qual relatava a viagem à União Soviética que fez naquele ano, e posteriormente lançou também Apontamentos , sobre essa mesma jornada. Agora, ambos os títulos foram publicados pela Dom Quixote num só volume, que conta com uma apresentação do filósofo, investigador e professor Paulo Tunhas, falecido em Abril passado.

    Considerado o último dos mais importantes escritores franceses do século, André Gide nasceu em Paris no seio de uma família burguesa protestante, tendo uma educação rígida e moralista. Influência que veio a desconstruir, já que Gide se enquadrava no arquétipo do artista subversivo: homossexual, praticava e defendia abertamente a pederastia, e nutria simpatia pelos ideais comunistas e revolucionários.

    Um prolífico escritor, Gide teve o seu primeiro livro publicado em 1891, e muitas das suas produções literárias eram de carácter autobiográfico. Escreveu em diversos estilos, incluindo ensaios e críticas, e traduziu ainda autores como Shakespeare, Joseph Conrad e Rainer Maria Rilke. O imoralista , Corydon e Os frutos da terra são algumas das suas obras de maior destaque. 

    O escritor francês conheceu a União Soviética em 1936, poucos anos depois de ter declarado, nas suas próprias palavras, direitos e amor pelo país. Porém, com a sua visita ao território soviético, a opinião que então acalentava esbarrou com uma realidade menos idílica do que aquela que tinha imaginado. Ainda assim, diga-se, o autor faz, logo no início, uma ressalva: apesar das críticas que desferem à União Soviética, consequências de um compromisso para com a verdade, a sua fé na possibilidade de o país alcançar o ideal comunista não abandonado.

    Mas, de facto, o que André Gide descreve parece longe de se assemelhar a uma utopia. Embora ressalte alguns aspectos positivos e dignos de elogio, o retrato que traça é inequivocamente mais negro do que risonho. 

    O que o escritor encontra aquela URSS de Estaline é um povo domesticado, mergulhado na propaganda do regime, sem conhecimento do que acontece além das fronteiras soviéticas, resignado e reduzido a uma uniformização castradora.

    Convencidos de que o seu país é, em todos os aspectos, superior aos demais, adultos e crianças vivem alheados da realidade dos restantes países europeus, mas convictos, não obstante, de que sabem exatamente do que se passa para lá “da sua rua”.  Mostram-se atónitos, até cinicamente descrentes, quando Gide lhes revela, por exemplo, que em França também existem escolas e um metropolitano.

    A somar à ignorância sobre a conjuntura europeia, as crianças aprendem desde cedo quais são as qualidades do regime estalinista, que reproduzem sem questionar. O lema subjacente é simples: tudo o que se faz na URSS é bom e virtuoso; o que se faz fora dela é, no mínimo, medíocre.  

    Gide revela-se igualmente desapontado com o culto do líder e a constante bajulação a Estaline, dando conta de que a sua efígie se ergue por toda a parte, e a sua imagem está pendurada em todas as casas por que passou. 

    Por outro lado, a pobreza ainda prevalecente que o regime comunista não conseguiu erradicar, constituiu uma surpresa para o autor: “Supostamente, já não existem classes na URSS. Mas existem pobres, muito pobres. Esperava, no entanto, já não os ver, ou mais precisamente: foi para já não os ver que fui à URSS” (p. 65).

    Sobre o Pravda, o principal órgão de comunicação social soviético, que determina o sentido que deve seguir o pensamento do povo, Gide é assertivo: “Todas as manhãs, o Pravda ensina-lhes o que deve saber, pensar, acreditar. E não é aconselhável afastar-se disso!” (pág. 51). 

    Salientando a importância da liberdade artística – por óbvias razões – como instrumento de crítica do poder e do status quo, o escritor lamenta a censura que observou: qualquer obra só é aceite se estiver “alinhada”. 

    Gide acaba por denunciar, enfim, a morte do espírito crítico, e o encorajamento à subserviência e à delação. Os opositores, que se atrevam a mostrar insatisfação perante o regime instalado, são facilmente imputados de uma atitude “contrarrevolucionária”. O essencial do seu pensamento sobre o que testemunhou pode resumir-se nestas linhas:

    Ditadura do proletariado , foi-nos prometido. Estamos longe disso. Sim: ditadura, obviamente; mas ditadura de um homem, e já não dos proletários unidos, dos soviéticos. É importante não nos iludirmos, e temos de reconhecer muito claramente que não era isto que gostaríamos. Mais um passo e diríamos até: é isto precisamente o que não queríamos” (p. 76). 

    Para além do sublime domínio da palavra, que tornou André Gide num marco na literatura francesa, o uso inteligente do sarcasmo e de um humor acutilante, faz deste relato uma leitura imperdível. 

    Em última análise, a obra convida o leitor, sobretudo o mais obstinado, a reflectir sobre se os mais nobres valores podem ter, como consequência legítima, a tirania. Mas, antes disso, se uma filiação ideológica deve redundar num envio que não permita constatar o esclarecer. Porque, como nota Gide, “é importante ver as coisas como são , e não como gostaria que fosse”. 

  • As civilizações empilhadas num mar

    As civilizações empilhadas num mar

    Título

    Atlas histórico do Mediterrâneo

    Autor

    FLORIAN LOUIS (tradução: Luís Filipe Pontes)

    Editora

    Guerra & Paz (Janeiro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Em cada novo número, a Guerra & Paz merece todos os elogios pela colecção que começa a compor, por contribuir, digamos assim, para se recuperar o amor perdido ao livro físico perante a avalanche tecnológica assente no digital.

    aqui tivemos a oportunidade de abordar, no caso sobre a água, esta coleccção Atlas, que já conta agora com 12 temas, criteriosamente escolhidos e sabiamente escritos, abordando quer períodos históricos (Primeira Guerra Mundial, Holocausto e Guerra Fria, por agora, presume-se), quer países ou impérios (Antigo Egipto, Império Romano, Estados Unidos), quer regiões (África, Médio Oriente), quer temáticas “globalistas” (Água, Escrita e Fronteiras).

    Claramente, o objectivo destas obras não é apresentar um tratado sobre estes assuntos, até pela sua vastidão, e porque, por regra, não passam das 200 páginas. O interesse desta colecção é, exactamente, o oposto: depurar a vastidão para apresentar o essencial, aguçando o apetite para se poder buscar mais. E aí, no final, é apresentada uma extensa lista de referências bibliográficas, sobretudo de índole académica.

    Porém, aquilo que mais se destaca nos livros desta colecção, e este Atlas histórico do Mediterrâneo não constitui excepção, é o detalhe da cartografia que acompanha os curtos mas informativos textos que se vão sucedendo ao longo das páginas. 

    Mas independentemente desta parte mais “lúdica” do livro, este Atlas histórico do Mediterrâneo tem também o condão de relembrar o magistral trabalho histórico de Fernando Braudel, que durante décadas estudou o Mediterrâneo, não como um simples mar banhando o sul da Europa, o Norte de África e uma pequena parte ocidental da Ásia, mas sim um mar “no meio de terras” (mediterraneus, com “várias civilizações empilhadas umas em cima das outras”.

    E são essa “pilhas” de História que nos são presenteadas, desde o berço da Civilização na Mesopotâmia (embora Eufrates e Tigre desaguem no Golfo Pérsico), passando pelo Egipto e pelos Fenícios, até aos nossos dias.

    Distribuído por cinco grandes capítulos temáticos ou por períodos históricos (até à queda do Império Romano; desde a expansão islâmica na Europa até à dominância dos territórios marítimos pelos povos europeus; desde a expansão otomana às guerras e pilhagens de corso dos séculos XVI, XVII e ainda XVIII; os processos independentistas e de unificação de importantes países como a Grécia e a Itália; e, por fim, os tempos mais recentes da História, isto é, o século XX), este livro confirma-nos como o Mediterrâneo assistiu, quer pelas armas quer pelo comércio, às glórias e às derrotas de muitos povos, à ascensão e queda de outros tantos, dando naquilo que hoje conhecemos na complexidade do Sul da Europa, Norte de África e mesmo Médio Oriente.

    E permite-nos concluir que, enfim, e na verdade, estamos, aqui, em Portugal, com mais raízes mediterrânicas do que propriamente europeias, mesmo se nos localizamos um pouco na extremidade desta vasta região, e, por ser tão ambicionada, tivemos, para crescer, de olhar ainda mais além, para o grandioso Atlântico, cujo Atlas esperamos que também venha um dia a ser publicado pela Guerra & Paz.