Etiqueta: Recensão

  • Memórias de uma jornalista e ensaísta

    Memórias de uma jornalista e ensaísta

    Título

    Alegorizações

    Autora

    JAN MORRIS (tradução: Raquel Mouta)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Junho de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Jan Morris nasceu em 1926, no Reino Unido, e morreu em Novembro de 2020, aos 94 anos. Uma vida longa, com muitas peripécias e viagens, tendo publicado sob o nome de James Morris até à década de 1970, época em que concluiu a transição para o sexo feminino (1972).

    O seu livro autobiográfico, Conundrum – história da minha mudança de sexo, também publicado pela Tinta da China, é um relato pungente sobre essa mesma experiência. Além de ser uma referência para a comunidade LGBTQI+, esta autobiografia é considerada, pelo The Times, como um dos “100 livros fundamentais do nosso tempo”. 

    Antes disso, a sua experiência no exército inglês, no qual entrou aos 17 anos, permitiu-lhe tomar contacto com outros países no contexto do pós-II Grande Guerra e do declínio do império britânico. Estas viagens, juntamente com o curso de História em Oxford, contribuíram não apenas para enriquecer a sua experiência e aumentar a sua matéria de escrita, mas também e, sobretudo, para expandir a sua mundividência – algo que se espelha na sua obra. A trilogia composta por Heaven’s Command, Pax Britannica e Farewell The Trumpets, que retrata a ascensão e queda do Império Britânico, é disso exemplo.

    Em 2008, o The Times incluiu Jan Morris entre os 15 maiores escritores britânicos do pós-guerra. Em 2018, foi distinguida com o Prémio Edward Stanford, pelo seu contributo para a literatura de viagens – a autora publicou ensaios sobre inúmeras cidades, entre as quais Oxford, Veneza, Trieste, Hong Kong e Sidney. 

    Além deste género, a escritora é autora de livros de história e ensaios, dois romances e uma coletânea de contos.

    Este Alegorizações é um livro (póstumo) onde Jan Morris escreve sem pretensões e sem quaisquer limitações, sem necessidade de provar o que quer que seja – com os riscos que daí possam advir. Claro que, para a autora, não havia nenhum depois da sua morte, mas para quem conhece a sua obra, este pode ser um livro aquém das expectativas. Sugere-se, por isso, que não se abram as páginas em busca da obra-prima. 

    É um livro que inclui diversos relatos de viagens, pessoas e lugares memoráveis e episódios mais ou menos caricatos, mais ou menos engraçados, marcados pelo subtil humor britânico. Um conjunto de ensaios escritos a partir das suas recordações enquanto jornalista, cuja ideia subjacente à redação dos diversos textos é lembrar que nem tudo o que parece é, e que a compreensão da realidade implica ir além do que está, literalmente, escrito e à vista. Como na Alegoria da Caverna de Platão, em que as sombras e os ecos são um reflexo distorcido da realidade.

    Uma das alegorias explicitamente consideradas pela autora diz respeito ao texto “O montanhista”. Jan Morris fez a reportagem da expedição de Edmund Hillary e Tenzing Norgayo ao Evereste, em 1953, acompanhando aqueles que terão alcançado, pela primeira vez, o cume da montanha mais alta do mundo. O texto é sobre o nepalês Tenzing Norgayo, e de como este é um símbolo e “personificação da própria vida: ágil, célebre, sempre cheio de entusiasmo e incansável” (p. 187). A lenda sherpa encarna, igualmente, a inevitável força da natureza, nomeadamente o declínio das capacidades físicas. Para Tenzing, a força e representação máxima da sua singularidade. Sui generis, assim o descreviam no Ocidente, na época dos descobrimentos verticais, digamos assim.

    O envelhecimento é um dos temas que vai perpassando o livro. O que talvez seja natural, dadas as circunstâncias da sua publicação e da percepção de uma morte mais próxima que longínqua. Mais em retrospectiva, do que em sensação de perda. Como se envelhecer fosse uma arte, em que a aceitação é a regra básica para uma vida mais leve e livre. 

    Também a bondade faz parte desta criação artística. Para a autora, a bondade é, aliás, um conceito sem qualquer alegoria, é “a única abstracção que pode orientar a nossa conduta enquanto aguardamos a revelação final (se houver alguma)” (p. 216). Para Jan Morris, “a bondade tem latente uma grande arma conceptual que está só à espera de ser usada: é mais grandiosa do que a simples religião” (p. 217), sendo facilmente compreendida por qualquer pessoa, independentemente da sua condição. 

    O ridículo, como matéria de reflexão, é outro dos atractivos do livro. O texto “Sonhar sonhos?” é o ponto de partida para uma viagem meditativa sobre o acto de meter e tirar o dedo do nariz. As indagações da autora conduzem-na a reflectir sobre a (in)discrição do acto:

    “Desde então que tenho de lhe dar uma mãozinha pelo processo pouco bonito de lá enfiar um dedo. É uma coisa tão feia de se fazer não é, mas acham que toda a gente o faz?”

    O mesmo tipo de questão é formulado pela autora em relação a Ulisses, de James Joyce: 

    “Será que todos eles leram o livro de uma ponta à outra? Duvido muito. A maioria das pessoas que afirmam tê-lo feito tornam-se evasivas quando pressionadas…” (p. 37). 

    E o/a leitor/a, estará pronto para sair da caverna e viajar com Jan Morris?

  • Mãe não há só uma

    Mãe não há só uma

    Título

    Vínculos ferozes

    Autora

    VIVIAN GORNICK (tradução: Maria de Fátima Carmo)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Julho de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Há livros que escrevem a sua própria história, sem que se perceba porque são ignorados quando são publicados, e têm um sucesso enorme tempos depois. Foi o que se passou com este Vínculos ferozes. Foi publicado pela primeira vez em 1987, mas só acabou catapultado para o sucesso recentemente, pelos críticos literários do New York Times que o consideraram o Melhor Livro de Memórias dos Últimos 50 Anos.

    Os críticos elogiaram-no pela avaliação crua e honesta que a autora faz sobre uma relação habitualmente não escrutinada nem por ensaios nem por ficção: a relação entre mães e filhas. Neste caso, entre a própria Vivian e a sua mãe. Trata-se de um livro autobiográfico, que explora a natureza do vínculo mãe-filha e, surpreendentemente, nos mostra como nem sempre é um relacionamento saudável.

    Escritora de não-ficção e crítica literária, Gornick normalmente escreve sobre assuntos polémicos, incluindo política e questões de género, mas, neste livro, explora tópicos familiares sob novos ângulos: o que significa ser mulher, mãe e filha. Refclete sobre o seu próprio relacionamento com a mãe, “Ma”, e o que esse vínculo filial lhe ensinou sobre feminilidade.

    Há muitas maneiras de ser mãe, e as outras influências femininas são tão importantes para as filhas em crescimento, quanto a influência das próprias mães. É isto que a autora explora. O relacionamento de Vivian Gornick com a mãe é difícil. “A minha relação com a minha mãe não é boa e, à medida que as nossas vidas se acumulam, parece muitas vezes piorar. Estamos encerradas num canal relacional estreito, intenso e vinculativo” (pág. 12).

    Aos quarenta e cinco anos da autora, elas encontram-se regularmente para passear pelas ruas de Manhattan. Esses passeios levam-nas a recordações nostálgicas da Nova Iorque do tempo da infância de uma e idade adulta de outra. Os diálogos são, por vezes, amistosos e cheios de sentido de humor mas, na maioria das vezes, essas caminhadas são ofuscadas por níveis de desprezo, irritação e raiva tão fortes que a mãe chega a interpelar estranhos na rua e dirá: “Esta é a minha filha. Ela odeia-me”.

    A narrativa passa-se então entre estes momentos do presente e as memórias do passado da autora. Vivian Gornick começa o livro com uma das suas primeiras recordações: tem oito anos e mora num bairro judeu, no Bronx, com Ma, que passa a maior parte do tempo a julgar as vizinhas do prédio e o que elas fazem. Tudo é objeto de escrutínio, o que fazem, o que compram, com quem se dão socialmente. Quem entra e sai das suas casas.

    Gornick reflete sobre o papel da mãe na sua educação, mas escreve também sobre as outras mulheres que moldaram a sua juventude, transformando-a na mulher que agora caminha com a mãe. Está particularmente grata a Nettie Levine. Nettie morava do outro lado do corredor do prédio, da sua infância, e era o oposto de Ma: coquete, liberal e feminina. Encorajou Viviane a “flirtar”, namorar e a usar os seus encantos femininos. Para Gornick, Nettie e Ma representavam os dois modelos antagónicos de feminilidade, e ela lutou, ao longo da sua vida, para os conciliar. 

    A mãe é ousada e obstinada, ela realmente quer o melhor para a filha, mas adora controlá-la. A tensão aumenta em casa. A casa da vizinha é um refúgio para a adolescente. E é neste diálogo de aproximação e de ruptura que toda a narrativa do livro nos vai levando num vai e vem de amor e de ódio.

    Vivian ama muito Ma, mas não a vê através de lentes cor-de-rosa. Vê-a como ela realmente é: não a sua mãe, mas uma mulher imperfeita com tantos defeitos como qualquer outra pessoa. Só quando crescemos é que vemos os nossos pais como pessoas reais e isso nem sempre é uma experiência agradável.

    A autora escreve também sobre si própria na amizade, no casamento, como filha, como uma mulher que vive sozinha em Nova Iorque e como uma escritora que tem dificuldade em escrever. Há momentos em que descreve as suas lutas e os seus fracassos com tanta franqueza calma que parece não haver nada sobre si que tema falar.

    É, por tudo isto, um livro brilhante, que nos deixa a pensar, e permanece por muito tempo na nossa mente.

  • Estoicismo para totós

    Estoicismo para totós

    Título

    O obstáculo é o caminho

    Autor

    RYAN HOLIDAY (tradução: Maria Saraiva)

    Editora (Edição)

    Lua de Papel (Junho de 2023)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Ryan Holiday auto-descreve-se como escritor e estratega dos meios de comunicação social. Aos 19 anos terá abandonado a faculdade para se tornar aprendiz de Robert Greene, um dos autores do livro As 48 leis do poder

    Fundador da agência criativa Brass Check, afirma-se ainda como conselheiro de empresas como a Google, a TASER e a Complex, bem como de diversos autores como Neil Strauss (Regras do jogo), Anthony Robbins (O poder sem limites) e Tim Ferriss (4 horas por semana).  

    É também autor já de uma dezena de livros, entres os quais A quietude é a resposta (Lua de Papel), Estoico todos os dias (Lua de Papel) e O ego é o seu inimigo (em português do Brasil, pela Editora Intrínseca). Livros que se inspiram no chamado estoicismo da Antiguidade Clássica.  

    Só por isso, talvez valha a pena pegar neste O obstáculo é o caminho, também publicado pela Lua de Papel, pois, tal como o Ryan Holiday sugere, mais do que ler livros sobre os clássicos, é melhor ler o que os próprios filósofos terão escrito, nomeadamente, Meditações de Marco Aurélio, ou Sobre a brevidade da vida, de Séneca.

    Será, portanto, natural que, no decorrer da leitura, a curiosidade vá aumentando, no sentido de se querer conhecer os princípios do estoicismo, a partir dos quais também este O obstáculo é o caminho se desenvolve. 

    De salientar que, para quem não conhece o estoicismo, as suas origens e tão-pouco os seus princípios, este pode ser, efectivamente, um ponto de partida interessante, sobretudo por ser de leitura fácil, pela simplicidade da escrita. Além disso, na tradução do livro, optou-se por tratar o leitor por “tu”, o que poderá resultar numa sensação de proximidade.

    O livro está dividido em três partes: “perceção”, “ação” e “vontade”. As partes para compreender e agir sobre os obstáculos, e, finalmente, para persistir e perseverar nessa jornada. Para cada uma das secções, o autor recorre a exemplos de pessoas que ficaram famosas pelos seus feitos, identificando-as como personalidades com atitude e pensamento estoicos.

    A título de exemplo, o primeiro presidente dos Estados Unidos, George Washington, terá recorrido com frequência a Catão, o Jovem – um dos primeiros estoicos da Antiguidade Clássica – nos seus discursos para as tropas, aquando da Guerra da Independência. Steve Jobs e Margaret Thatcher são outras pessoas referenciadas, entre muitas ao longo do livro. 

    Ainda que seja incerto que essas pessoas se tenham assumido como estoicas, Ryan Holiday consegue neste livro cativar aqueles que estejam em busca de uma orientação para alcançar os seus objectivos. É assim mais um livro de auto-ajuda que poderá ser útil a quem procura mudança na sua vida profissional, em particular aqueles que acreditam que basta desejar e visualizar o sucesso, como é apanágio agora de algumas correntes ‘New Age’.

    Em todo o caso, ao invocar alguns dos princípios do estoicismo, Ryan Holiday está sim a mostrar que a vida é constituída por um conjunto interminável de obstáculos. Embora não seja nada de novo, é um bom lembrete mostrar que a ilusão é apenas e somente isso mesmo: uma ilusão. Não basta acreditar que tudo se resolverá, que os astros se vão alinhar e que tudo será possível, que basta querer e seremos famosos ou pessoas de sucesso.

    Este livro tem assim essa grande vantagem: a de lembrar, aos mais ingénuos, que a vida, o mundo e a realidade são como são e não vale a pena perder tempo a desejar que fosse de forma diferente. Nesse sentido, é um livro prático, por recordar que os obstáculos, os percalços, as vicissitudes da vida são inerentes à existência e que quanto mais rápido se aceitar que assim é, mais rápido se aprenderá a tentar ultrapassar ou a contornar cada obstáculo.  

    Além da mudança, esta pode ser outra constante da existência: nada é fácil e haverá sempre mais uma barreira antes de alcançarmos os nossos objetivos, sendo certo que depois de os atingirmos (se os atingirmos), outras adversidades se terão de enfrentar. 

    Por isso, faz sentido o conselho do autor, repetido ao longo do livro, mesmo que inicie afirmando que não tem conselhos para dar: vejam as coisas como elas são, façam o que podem e aguentem e resistam ao que for preciso. Tudo isto, cumprindo com o nosso dever: “trabalho árduo, honestidade, ajudando os outros tanto quanto podemos”. Em que a “ação certa – altruísta, dedicada, magistral, criativa – é a resposta” ao sentido da vida e é “uma maneira de transformar cada obstáculo numa oportunidade” (p. 108).  

    No caso de haver reimpressões futuras, sugere-se uma revisão para corrigir gralhas.

  • A mística e a mágica das labaredas

    A mística e a mágica das labaredas

    Título

    Salvar o fogo

    Autor

    ITAMAR VIEIRA JUNIOR

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Abril de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Depois do seu romance de estreia, Torto arado, ter ganhado o Prémio LeYa em 2018, o baiano Itamar Vieira Junior estabeleceu-se como um dos escritores brasileiros mais reconhecidos da actualidade, e das últimas décadas. 

    Alcançando um sucesso estrondoso, Torto arado valeu também ao autor, em 2020, o prémio literário mais importante do Brasil, o Jabuti de Literatura, e o prémio Oceanos. Em 2022, Vieira Junior lançou ainda o livro de contos Doramar ou a Odisseia, também editado pela Dom Quixote.

    Com Torto arado, o autor cravou indelevelmente o seu nome no mundo literário transportando o leitor para a realidade de um Brasil rural, assolado pela pobreza e vítima de relações de poder e velhas estruturas opressoras que se perpetuaram no tempo. Em Salvar o fogo, replicou a receita (recuperando até uma personagem) –, e saiu-se bem. Não tendo conseguido exceder a “obra-prima” anterior, o que nunca seria tarefa fácil, solidificou o estilo com que se apresentou ao público.

    A história deste seu segundo romance passa-se nos anos 1960 e tem como protagonistas Moisés e Luzia, dois irmãos que vivem numa comunidade rural na Tapera do Paraguaçu, como inquilinos de terras detidas pela Igreja, e obrigados a pagar, todos os meses, impostos à instituição – uma injustiça aos olhos de Mundinho, o pai, que se recusa sempre a cumprir com os pagamentos. 

    Mundinho trabalha na terra, de sol a sol, e é dependente do álcool, ficado o peso da educação de Moisés, o “caçula”, para Luzia, cuja idade dista uma grande distância do seu irmão mais novo. Vivem apenas os três juntos, já que todos os outros irmãos abandonaram a aldeia assim que tiveram oportunidade; e a matriarca da família, Alzira, faleceu antes de Moisés poder sequer recordar o seu rosto.

    Luzia, por isso, assume o fardo de cuidar do “Menino”, como lhe chama, para além de trabalhar todos os dias como lavadeira da igreja do Paraguaçu, de forma abnegada e devota. Entre os dois, há um amor maternal profundo, mas raras vezes exteriorizado: Moisés anseia por afecto, mas a irmã educa-o de rígida e friamente, nunca se permitindo expressar actos de carinho. 

    Os dois primeiros capítulos são narrados na primeira pessoa, sendo o primeiro contado pelos olhos de Moisés, e o segundo por Luzia. É neste último que se revela ao leitor um dos grandes segredos do romance, e que se compreende, finalmente, a atitude sempre ríspida e amarga de Luzia. 

    A Igreja surge, ao longo do romance, como um símbolo da opressão – sobre ela e através dela, contam-se muitas histórias. Essencialmente, é retratada como uma fonte do “Mal”, do que é profano e perverso, de agressão e subversão. As dores e os traumas que o mosteiro da aldeia provocou a Moisés – o único da família que frequentou a escola –, levaram-no a abandonar a sua casa, a irmã e o pai, e a rumar à cidade, com apenas 15 anos.

    Depois de um incêndio reduzir o mosteiro a ruínas, e o estado de saúde de Mundinho se deteriorar, os irmãos que há muito tinham virado costas às margens do rio do Paraguaçu, regressam para um reencontro familiar. O reencontro, já 15 anos após a partida de Moisés, reacende os fantasmas de um passado que, longe de enterrado, continua vivo e “efervescente”.

    Ao longo da história, há uma aura de mistério que envolve as personagens principais e que se vai adensando, enquanto vão, também, sendo desvendados alguns dos seus segredos.

    Luzia é tida por toda a comunidade como uma “bruxa” e acusada de práticas de feitiçaria, sendo por isso ostracizada, vilipendiada e alvo de chacota. A corcunda que, estranhamente, desenvolveu ainda em adolescente só cimentou, entre a população supersticiosa, o mito de eventuais poderes sobrenaturais. 

    Moisés, por sua vez, nascido nas águas do rio em noite de Lua Cheia, cresce e vive com muitas dúvidas em torno das verdadeiras causas do desaparecimento precoce da sua mãe e das circunstâncias em torno do seu nascimento.

    Salvar o fogo é sobre desigualdades e abusos de poder de instituições seculares perpetrados sob um manto de boas intenções, mas, mais do que isso, é sobre a complexidade dos laços familiares e os dramas subjacentes, a força do feminino e da Natureza – e, claro, do fogo, literal e metafórico, que tanto consome e destrói como aquece e eleva.

    Sobretudo, é um romance que nos abre as portas a uma dimensão mística e mágica da vida, contrastando-a com a singeleza de vidas aparentemente “comuns” e simples, iguais a tantas outras que vieram antes. 

    A escrita é melodiosa e envolvente, embora fazendo-se por vezes uso de expressões que soam um pouco a clichés, já muito “repisados”. 

  • A arte da auto-aceitação do idiota adorável

    A arte da auto-aceitação do idiota adorável

    Título

    O ódio a si mesmo

    Autor

    ALAIN DE BOTTON (tradução: João Van Zeller e Leya)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Julho de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Alain de Botton é um filósofo contemporâneo, nascido na Suíça, em 1969. Vive em Londres, onde fundou e é administrador da “The School of Life”, uma instituição que promove, investiga, reflecte e desenvolve novas formas de Educação que contribuam para que as pessoas vivam melhor. 

    É conhecido como “o filósofo da vida quotidiana”, pela autoria de livros de ensaios e programas de televisão que discutem temas mais ou menos prosaicos. Foi com How Proust can change your life (Como Proust pode mudar sua vida), em 1997, que Alain de Botton se viria a tornar mundialmente reconhecido. Um livro baseado na vida e obra de Marcel Proust, e a partir do qual Botton extrai de forma majestosa elementos para reflectirmos e, eventualmente, melhorarmos a nossa vida. Um livro amplamente vendido nos Estados Unidos e no Reino Unido.  

    Outros publicou, sendo de destacar A arquitectura da felicidade e A arte de viajar, ambos publicados, em Portugal, pela Dom Quixote, tal como este O ódio a si mesmo. Em cada uma destas obras, Alain de Botton convida os leitores a uma observação atenta para uma tomada de consciência de si próprios.  

    É precisamente desse modo que O ódio a si mesmo começa, com um teste em forma de questionário, que tem como objectivo avaliar a consciência da identidade de quem começou a ler este ensaio. O resultado é um ponto de partida para o leitor saber se se enquadra no conjunto de pessoas que se odeiam a si mesmas e se o grau de desprezo é ou não patológico. Razão pela qual o autor vai sugerindo, ao longo do livro, que se consulte um especialista para realizar terapia.   

    No capítulo III, o autor discorre sobre as consequências do ódio a si mesmo que, no limite, pode desencadear um processo de auto-destruição que culmina com o suicídio. Segundo Alain de Botton, “as pessoas não se matam por lhes ter acontecido coisas más; matam-se porque já sofrem de um intenso ódio a si mesmas” (pág. 63), sendo um ou outro acontecimento infeliz a demonstração dessa irrefutável justificação para o auto-extermínio. 

    O capítulo IV, “As origens do ódio a si mesmo”, é particularmente interessante, uma vez que o autor convida o leitor a uma viagem ao passado, numa espécie de terapia por regressão. O objectivo é levar o leitor a se observar, como se estivesse na plateia de um cinema, em cuja tela passam as cenas dos episódios mais marcantes da sua infância. 

    A partir dessa análise, em perspectiva e retrospectiva, o leitor terá elementos para compreender o seu modo de ser e até as razões por que se odeia – talvez, desse modo, consiga encontrar formas de aceitar as suas características e até mesmo limitações.  

    Na verdade, Alain de Botton não oferece receitas, tampouco sugere que se poderão alterar/melhorar essas características ou limitações. Aquilo que o autor propõe é que cada um se avalie de forma objectiva, começando com a recuperação das memórias, pesquisando de forma profunda os sentimentos que se terão vivenciado na infância, em especial com os respectivos progenitores e familiares mais próximos, como os irmãos.

    Os instrumentos de trabalho são, por isso, os da auto-análise, com recurso à visualização e sensorialização dos contextos iniciáticos. Desse modo, é possível que se consiga apreender a ira sentida e as respectivas causas. Nesse processo de auto-descoberta, mostra-se provável que se alcance um dos propósitos deste ensaio: a capacidade de se perdoar a si próprio, que é o primeiro passo para a auto-aceitação. 

    As estratégias que o autor propõe vão, então, no sentido de aprofundarmos a aceitação de que ninguém é perfeito, incluindo nós próprios, e que, em cada um de nós, mora um idiota adorável. Com o exemplo de David Brent, o chefe da série “O escritório”, o autor lembra-nos que são as idiossincrasias que nos tornam peculiares, e, por isso também, objecto do amor fraterno.

  • O incrível destino de Belle Gunness

    O incrível destino de Belle Gunness

    Título

    Os meus homens

    Autora

    VICTORIA KIELLAND (tradução: João Reis)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Julho de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Este livro é estranhíssimo. Embora escrito na terceira pessoa, deve ler-se, na sua maior parte, como um monólogo louco, desesperado e perturbador de uma mulher com problemas de saúde mental que, amiúde, nos traz um discurso desconexo que temos dificuldade em seguir.

    “O corpo de Nellie era tão quente e macio, ela cheirava tão bem, e Brynhild deixou-se tombar para dentro, agarrou-se mais e mais à irmã e Nellie não a soltou. Algo na visão que Brynhild teve naquele momento, nos braços de Nellie, virou tudo de cabeça para baixo, a libertação selvagem, esse sentimento repentino, ela só queria agarrar-se a Nellie para nunca mais a soltar. Brynhild sentiu a respiração desdobrar-se no corpo, como se todas as asas de borboleta lhe arrancassem a alma pela boca, como se conseguisse finalmente respirar e ao ar abrisse caminho até aos pulmões.”

    Brynild é a protagonista, e durante a narrativa muda o seu nome, primeiro para Bella, e depois para Belle, numa busca desesperada de se tornar alguém novo e começar de novo. Nellie é uma sua irmã que vive nos Estados Unidos, para onde Brynild vai depois de uma experiência traumática que viveu na Noruega, sua terra natal, por volta de 1880. 

    Os factos são baseados na história real de uma mulher, muitas vezes referida como “a primeira assassina em série da América”, Lady Barba Azul, Princesa do Inferno e a viúva negra de La Porte. A sua notoriedade já lhe valeu um lugar no Guinness e fascinou fãs de crimes. Inspirou baladas, panfletos e livros de não-ficção, alguns filmes e documentários, e pelo menos um longo romance. Agora, a escritora norueguesa Victoria Kielland pegou na história e dá-nos uma visão nova da mesma. 

    Depois de um breve período a viver com a irmã, casa-se com um norueguês, Mads Sørensen, e mata-o. Depois casa-se com Peder Gunness, outro norueguês, mata-o também. Depois de Peder, começa a publicar anúncios em jornais atraindo homens solitários e com posses e vai matando-os, um a um, e enterrando os restos desmembrados no quintal.

    Victoria Kielland é brilhante em descrever pequenos momentos quotidianos que, numa mente deprimida, se transformam num desespero avassalador.

    “As recordações eram como uma sopa branca atrás dela, faziam um som de sucção sempre que ela mexia a cabeça, a pura morte por afogamento. (…) A luz que a encadeava entrava pela janela, caía sobre todas as coisas, deixava à vista pó e moscas, deixava tantas coisas à vista que Bella sentiu uma náusea e, no meio de um pântano como uma vegetação luxuriante e canais construídos com represas, no meio de braços e pernas, com os olhos no meio da cara, Bella não mais aguentou.”

    Não é uma leitura fácil nem confortável e é cansativo estar dentro da cabeça de Belle. Os mesmos detalhes e imagens surgem repetidamente, numa vertigem da loucura que vai aumentando à medida que os acontecimentos se sucedem.

    Apesar da brutalidade de algumas páginas, trata-se de um romance até poético e comovente e damos por nós a tentar desculpabilizar a protagonista e a tentar perceber as razões que a levaram a atos tão violentos na sua busca insaciável do amor.

    A tradução de João Reis é, como habitualmente neste tradutor, exímia e cuidada.

  • Mulheres na guerra de caneta em punho

    Mulheres na guerra de caneta em punho

    Título

    As enviadas especiais

    Autora

    JUDITH MACKRELL (tradução: Isabel Pedrome)

    Editora

    Casa das Letras (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Traçar perfis de mulheres marcantes é algo que já consta do “currículo” de Judith Mackrell, e um ofício para o qual tem inequívoco talento. A biógrafa britânica e crítica de dança no jornal The Guardian, lançou, em 2013, Flappers: Six Women of a Dangerous Generation, sobre seis artistas arrojadas que viveram com intensidade os ‘loucos anos’ 1920. 

    Em As enviadas especiais, editado no início deste  ano pela Casa das Letras, a escritora escolheu novamente seis figuras femininas mas por motivos diferentes: estas fizeram História, no século passado, por pavimentarem o caminho para outras repórteres de guerra, numa época em que a sua representação nestes trabalhos era escassa. No final da Segunda Guerra Mundial, cerca de 250 jornalistas mulheres tinham conseguido acreditação junto dos Aliados para reportar o conflito, mas até lá o caminho foi sinuoso.  

    Estas seis pioneiras tiveram de lutar contra convenções sociais, o preconceito, e muitos outros obstáculos perante uma realidade dominada pelo masculino. Contornaram as dificuldades com engenho, criatividade e coragem, como os factos comprovam. Por exemplo, Martha Gelhorn viu-se “obrigada” a se infiltrar num barco-hospital da Cruz Vermelha para desembarcar na praia de Omaha um dia após o Dia D. 

    Além de Gelhorn, as outras cinco “protagonistas”, que ficamos a conhecer em pormenor no final da leitura, são Sigrid Schultz, Virginia Cowles, Helen Kirkpatrick, Lee Miller e Clare Hollingworth. Com excepção desta última, que era britânica, todas de nacionalidade norte-americana.  

    Nesta obra são descritas as suas trajectórias como repórteres de guerra, revelando também as vidas que levaram depois da Segunda Guerra Mundial, e que continuaram a ser tudo menos aborrecidas, para além de longas. Por exemplo, Clare Hollingworth atingiu a meta dos 105 anos, tendo falecido em 2017. Foi a responsável pelo “furo do século”, ao noticiar o deflagrar da guerra, com a invasão da Polónia pela Alemanha.  

    A bravura destas jornalistas, plasmada nos acontecimentos relatados neste livro, valeu honrosas distinções: Helen Kirkpatrick recebeu a Medalha Presidencial da Liberdade, e Virginia Cowles – que quase foi presa em Espanha, em plena guerra civil –, foi distinguida com a Ordem do Império Britânico (OBE).

    Mesmo assim há muitas diferenças entre elas, embora em alguns casos os seus caminhos se tenham cruzado: Martha Gelhorn e Virginia Cowles tornaram-se amigas, apesar dos feitios pouco compatíveis e divergências políticas: a primeira apoiava ferozmente os republicanos, que combatiam a ditadura franquista, enquanto a segunda assumia uma postura de maior imparcialidade. A amizade, contudo, não foi isenta de crispação, e desenvolveu-se em grande parte como tentativa de ‘colmatar’ o sentimento de serem uma minoria feminina no meio dos homens. 

    Feitas as apresentações de cada uma delas, a narrativa desenvolve-se com histórias “entrelaçadas”, condensadas em 16 capítulos e quase 500 páginas. Profícua em detalhes sobre a vida pessoal (e também íntima e até sexual) das correspondentes, é notória a profundidade da investigação levada a cabo pela autora, que fez também uso dos seus diários, notas e registos. 

    As enviadas especiais expõe assim a complexidade das dinâmicas entre as jornalistas e os homens de quem estavam rodeadas, que se revestiam de diversas maneiras: romances sólidos ou fugazes, parcerias, amizades e também o oposto, nomeadamente “desamores”, traições, antipatias e competitividade.  

    Pela negativa, salientamos a omnipresente retórica feminista da obra, que por vezes se torna enfadonha – mas que não surpreende, dado o contexto actual. É perceptível um tom que diminui os homens, insistindo em apontar-lhes inúmeros defeitos, ao passo que as menções a virtudes são “guardadas” exclusivamente para as repórteres, a quem até os traços mais condenáveis nunca merecem reprovação, mas somente elogios.  

    Um dos exemplos é o caso amoroso entre Ernest Hemingway e Martha Gelhorn – que viriam a tornar-se marido e mulher, por poucos anos –, iniciado quando o famoso escritor ainda era casado. Explicando como o romance adúltero serviu para abrir muitas portas à (então aspirante) jornalista, a autora mostra-se complacente com Gelhorn, apontando a “crise” histórica que assolava o Ocidente, e que justificava a transgressão de quaisquer limites morais.  

    A propósito, é patente a forma como as repórteres souberam utilizar o seu ‘charme feminino’ para obter vantagens como jornalistas. Lee Miller, a fotojornalista que cobriu a libertação de Paris e esteve nos campos de concentração nazi de Buchenwald e Dachau, foi acusada por colegas (homens) de granjear sucesso profissional através da sua sexualidade.

    No todo, contudo, esta é uma obra sólida e bem documentada, recheada de dados curiosos. Desde a proximidade entre Martha Gelhorn e os Roosevelt e de Lee Miller com Pablo Picasso, à relação de relativa confiança de Singrid Schultz e Hermann Göring, um dos deputados mais prominentes do partido nazi, estabelecida com o intuito de obter informações privilegiadas sobre os líderes do Terceiro Reich.  

    A obra termina com uma espécie de balanço, em que a autora sugere haver ainda um longo caminho a percorrer para a igualdade, na cobertura de “guerras, revoluções e catástrofes” (pág. 491). Contudo, entre os traumas e horrores da guerra suportados pelas repórteres, torna-se cómico, mas elucidativo, que a Judith Mackrell faça alusão às palavras da jornalista britânica Kate Adie que, cinquenta anos depois da Segunda Guerra Mundial, afirmou: “Nunca é fácil (…) «baixarmo-nos […] no meio do deserto […] e fazermos chichi à frente de 2 mil tipos»”. (pág. 490)

  • O passado que nos assombra

    O passado que nos assombra

    Título

    As mães

    Autora

    BRIT BENNETT (tradução: Eugénia Antunes)

    Editora

    Alfaguara (Maio de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    O livro começa no final. Numa comunidade negra e cristã no sul da Califórnia, Nadia Turner, uma jovem bonita, obstinada e ainda a sofrer pelo recente e inexplicável suicídio da mãe, envolve-se com o filho do pastor de uma das igrejas da localidade, Luke Sheppard.

    Aos 21 anos, Luke é um ex-atleta que trabalha como empregado de mesa num restaurante, depois de ter sofrido uma grave lesão numa perna que o afastou do campo de futebol, onde estava a ter uma carreira brilhante, e que o impede de seguir para a universidade, como pretendia, com uma bolsa de estudo.

    Dessa relação, resultou um segredo que vai marcar todo o romance e que dita o fim do relacionamento. Depois do afastamento dos dois, aparece a figura da doce Aubrey Evans, completando o conflituoso triângulo amoroso. Após o afastamento de Luke, Nadia e Aubrey tornam-se as melhores amigas, mas quando Nadia deixa a cidade para ir para a Universidade, Aubrey e Luke envolvem-se sem que Aubrey saiba do segredo do passado do namorado e da melhor amiga.

    As ramificações que se seguem vão acompanhar as três personagens, desde o fim da adolescência até o início da vida adulta, exercendo um impacto e ondas de choque capazes de influenciar as suas trajetórias de vida durante muito tempo, mesmo depois de passados os seus anos de juventude. Anos depois, eles ainda vivem à sombra das escolhas da juventude e da insistente dúvida: e se tivessem agido de forma diferente? As possibilidades dos caminhos não escolhidos tornam-se uma sombra implacável.

    Mas o que dá nome a este livro não é nenhuma destas personagens, e sim um grupo peculiar de senhoras que frequentam a Upper Room, a Igreja. Elas aparecem no livro em capítulos intercalados, quase como um coro grego a reforçar as opções ou não-opções das personagens e formam, como uma entidade, uma personagem em uníssono: os trechos em que elas aparecem são narrados na primeira pessoa do plural, e esse “nós” traz-nos a sensação de que elas são todas, mas também nenhuma.

    A história de Nadia é, assim, emoldurada por esse coro de vozes das alcoviteiras anciãs da igreja que servem de polícia da moralidade da comunidade:

    “Nós já fomos jovens. Embora não pareça. É claro, quem nos vê hoje nem imagina como éramos – a flexibilidade e o vigor já se foram, a pele do rosto e do pescoço caiu. É o que acontece quando envelhecemos. Tudo cai, como se o corpo estivesse a aproximar-se de onde veio e para onde vai voltar. Mas já fomos novas e bonitas, e isso significa que já amámos homens de merda. Não há maneira cristã de dizer isso. Existem dois tipos de homens no mundo: homens de verdade e homens de merda.” 

    Observadoras, contam-nos, nas suas narrativas, factos que muitas vezes ainda não eram muito claros para nós, leitores, ou revelam partes do passado das personagens, recordando-as enquanto conversam.

    Na pequena comunidade onde todos sabem da vida de todos, As mães sabem-na melhor que ninguém. As mães acompanham a história da mãe de Nadia sem compreender o seu suicídio; acompanham a ida de Nadia para a Universidade, assim como a sua longa ausência; acompanham o relacionamento de Luke e Aubrey e o seu desejo de terem um filho, e assim vão entrelaçando os fios das histórias de todos numa história extremamente profunda e comovente. 

    As mães é um livro sobre as consequências das nossas escolhas e a forma como estas moldam os nossos caminhos.

  • Jovem à beira de um ataque de nervos

    Jovem à beira de um ataque de nervos

    Título

    Indignação

    Autor

    PHILIP ROTH (tradução: Francisco Agarez)

    Editora

    Dom Quixote (Abril de 2023)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Desaparecido em 2018, aos 85 anos, Philip Roth é considerado o maior escritor americano do século XX. Foi reconhecido pelo seu trabalho, com vários prémios, como o Pulitzer, em 1998, pela obra Pastoral americana, e o National Book Award, em 1969, por Adeus, Columbus, entre muitos outros.

    O escritor foi várias vezes mencionado para o Nobel da Literatura, mas é provável que a crítica que lhe está associada, a de ser antissemita, tenha tido algum peso nessa ausência.

    O judaísmo era, aliás, um dos temas recorrentes do autor, o que lhe terá valido uma série de críticas por parte da comunidade judaica. Paralelamente, os temas da família e da sexualidade concorriam para as polémicas de que foi alvo ao longo da sua vida, como aconteceu com a obra O complexo de Portnoy.

    Uma das características do autor era, precisamente, a sua capacidade para conjugar diferentes temas numa mesma obra, no que alguns designam de “realismo sincrético”, tal a sua habilidade genial para entrelaçar o homem comum numa teia que envolve tanto a política norte-americana, como a família, a religião e a sexualidade. Posteriormente, acrescentou o tema do envelhecimento, de que são exemplos Humilhação e O fantasma sai de cena.

    Em Indignação, reeditado pela D. Quixote, repete-se a figura recorrente: o jovem judeu. Neste caso, o jovem Marcus Messner, filho de um talhante kosher, que vive em conflito com o pai desde que entrou na universidade. Para se afastar das preocupações, sem sentido, da figura paterna, prefere estudar noutra cidade.

    De Newark, muda-se então para Ohio, onde descobre a sexualidade, com uma jovem problemática que, logo no primeiro encontro, lhe oferece sexo oral.

    Perplexidade à parte, o seu objetivo é estudar e ser o melhor aluno, de modo a escapar à guerra da Coreia. Mas, conflito atrás de conflito com os colegas de quarto, Marcus vê-se em situações inimagináveis para a sua juventude e parca experiência. Reconhece, assim e sem compreender ainda, o peso das instituições e da política, ficando indignado com o modo como é tratado, em particular, pelo Deão da Universidade de Winesburg.

    É com o responsável máximo da Universidade que Marcus tem grandes discussões ideológicas, indo buscar a Bertrand Russel os seus argumentos para não frequentar a capela (cristã), onde todos os estudantes (em teoria) estão obrigados a assistir à missa, pelo menos quarenta vezes.

    O narrador é a personagem principal que, sob o efeito da morfina, nos conta como e porquê pediu transferência para outra universidade, bem como a cadeia de acontecimentos que o conduziram à indignação.

    Como é hábito, o autor é mestre em agarrar o leitor desde a primeira, até à última página, talvez pelo realismo que caracteriza a sua obra, sendo fácil e provável uma identificação com a personagem principal.

    Ainda que o prosaico se possa sentir, a profundidade da vida espelha-se nessa simplicidade e na angústia e medo que assalta qualquer ser humano: a morte – aqui, representada pelo medo da personagem principal em ser chamada para combater na guerra da Coreia.

  • Um pé de guerra pelo “novo petróleo”

    Um pé de guerra pelo “novo petróleo”

    Título

    A guerra dos chips

    Autor

    CHRIS MILLER (tradução: Diogo Freitas da Costa)

    Editora

    Dom Quixote (Julho de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Muito se tem dito sobre o fim da hegemonia dos Estados Unidos, e o início de uma nova era onde outras potências adquirem destaque internacional, sobretudo a China, o seu principal adversário. Teme-se, digamos assim, que o verniz mais do que estale entre estas duas nações, em grande parte devido às tensões envolvendo Taiwan.

    Contudo, como Chris Miller demonstra em A guerra dos chips, por enquanto, se “guerra” há, esta vai-se travando com outras armas: os chips. 

    Professor de História Internacional na Tufts University’s Fletcher School, e investigador convidado no think-thank American Enterprise Institute, o autor deste best-seller do New York Times ocupa também o cargo de director para a Eurásia no Foreign Policy Research Institute. Eis, portanto, um verdadeiro especialista nas relações entre os Estados Unidos e a Rússia, a política externa russa e a história das relações norte-americanas com o estrangeiro, como se vê por algumas das suas obras, como The Struggle to Save the Soviet Economy: Mikhail Gorbachev and the Collapse of the USSR e ainda Putinomics: Power and Money in Resurgent Russia.

    A narrativa desta sua obra, agora publicada em Portugal, assemelha-se ao enredo de um filme de acção, em que os protagonistas se debatem pela vitória, enquanto os acontecimentos se vão adensando e tornando cada vez mais imprevisíveis, fazendo-nos colar ao ecrã. E o propósito será mesmo esse, uma vez que A guerra dos chips mostra ser uma espécie de thriller de não-ficcão e, por isso, o autor confere-lhe uma boa dose de intensidade dramática. Nesta história da vida real, o que está em causa é a cobiça pelo lugar cimeiro na indústria dos semicondutores – e é isso que assegurará a consolidação e manutenção do poder, a nível global, a quem o alcance. 

    Ao longo de cerca de 450 páginas, Chris Miller recua até às origens desta tecnologia, que diz ser o “novo petróleo”, e explica em detalhe como se tem desenrolado, neste campo de autêntica batalha, a luta entre os Estados Unidos e a China. Fala do caso das sanções à Huawei, que fizeram manchetes no início deste ano, mas que foram apenas uma das medidas que os Estados Unidos já tomaram para tentar evitar, ou atrasar, a ascensão da China neste sector. 

    Os chips, como se sabe, são uma peça fundamental de variados equipamentos, e o autor lembra-nos como uma grande parte da nossa existência está profundamente alicerçada nesta tecnologia. Desde os micro-ondas, smartphones, frigoríficos, computadores, à Bolsa de Valores e ao armamento, o Mundo como o conhecemos hoje não existiria sem estes minúsculos objectos. Na verdade, “grande parte do PIB Mundial é produzido com máquinas que só funcionam com semicondutores. Para um produto que não existia há 75 anos atrás, esta é uma evolução extraordinária”. (pág. 34)

    Não é, assim, de espantar que a China esteja tão apostada em destronar os Estados Unidos, gastando já mais dinheiro a importar chips anualmente do que em petróleo. No caminho, tem tentado fintar as duras restrições aplicadas pelos Estados Unidos, como a Lei dos Chips, e outros entraves à sua capacidade de produção, como os controlos à exportação de materiais necessários.  

    Para sabermos se será, ou não, bem-sucedida, teremos de esperar pelos próximos capítulos, mas aquilo que Chris Miller salienta é que se pode estar na iminência de uma mudança abissal no panorama geopolítico, alterando o equilíbrio das relações económicas internacionais e do poder militar. O seguinte trecho resume o seu argumento: “A Segunda Guerra Mundial foi decidida pelo aço e pelo alumínio, logo seguida pela Guerra Fria, que foi definida pelo armamento atómico. A rivalidade entre os Estados Unidos e a China pode muito bem ser decidida pela capacidade computacional”. (pág 29)

    Até a famosa Sillicon Valley, que é também central nesta indústria, deve ao seu nome ao material com que se fabricam os chips. Como Chris Miller destaca pertinentemente, a Internet e as redes sociais, de que hoje estamos tão dependentes, só existem graças à genialidade de alguns cientistas, e “porque os engenheiros aprenderam a controlar o mais diminuto movimento dos eletrões na sua corrida através de superfícies de silício. A ‘Big Tech’ não existiria se o custo de processar e memorizar 0 e 1 não tivesse caído um bilião de vezes nas últimas cinco décadas”. (pág. 32)

    Mas se é inegável a relevância desta tecnologia neste nosso Mundo globalizado, também é verdade que a sua importância assume contornos mais delicados, tendo em conta que a produção se concentra num reduzido número de companhias, que, ainda por cima, se localizam em países vulneráveis a conflitos bélicos ou até a desastres naturais, como terramotos – como é o caso de Taiwan e do Japão. 

    No entanto, o “fantasma” mais assustador, que paira sobre a gigante indústria dos chips e, acima de tudo, sobre o Ocidente, é a de uma Terceira Guerra Mundial entre os Estados Unidos e a China. 

    A guerra dos chips “troca por miúdos”, assim, tanto quanto é possível num assunto deste calibre, as dinâmicas perigosas entre as duas potências que continuarão, previsivelmente, a digladiar pelo “domínio” do Mundo, num verdadeiro duelo de titãs. 

    No final desta colossal e fascinante obra, Chris Miller confessa que “escrever este livro foi só ligeiramente menos complexo do que fazer um chip” (pág. 451), o que, passando o humor ou ironia, acaba por mostrar, com justiça, o grau de minúcia, investigação e de esforço de simplificação que ele colocou num tema tão complexo mas tratado com mestria.