Etiqueta: Recensão

  • Histórias heroicas da vida real

    Histórias heroicas da vida real

    Título

    Um dia de cada vez

    Autor

    NELSON OLIM

    Editora (Edição)

    Lua de Papel (Outubro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Uma das melhores formas de descrever este livro, de forma simples, é dizer que é um “abraço” de 190 páginas. Por outras palavras, é um relato de esperança e humanidade e um testemunho de como os milagres acontecem nos cenários mais catastróficos e apocalípticos; de que quando o mundo parece desabar, há sempre quem se dedique a ajudar e a fazer de um desastre algo mais suportável. 

    Em Um dia de cada vez, Nelson Olim, que tem no seu currículo várias missões de ajuda humanitária como médico cirurgião, partilha com o leitor algumas dessas histórias – são onze no total –, que certamente não deixarão indiferente quem as lê.

    Actualmente, Nelson Olim é Conselheiro Regional de Trauma para a Organização Mundial de Saúde (OMS). Fez parte do Comité Internacional da Cruz Vermelha em Genebra, e foi Conselheiro Regional da Rede de Equipas Médicas de Emergência da OMS no Médio Oriente e Coordenador de Trauma da OMS para Gaza. Já esteve em missões em várias zonas assoladas por conflito e desastres, como Gaza, Kosovo, Somália, Iémen, Iraque, Sudão e o Afeganistão.

    O livro começa por remontar à altura em que o autor trabalhava no INEM e atravessava Lisboa a toda a brida, mas rapidamente somos transportados para outros cenários e países longínquos. Em Um dia de cada vez, ficamos a conhecer a experiência de Nelson Olim em Banda Aceh, na Indonésia, no rescaldo do tsunami de 2004. Uma viagem que optou por fazer, adiando umas férias planeadas com a mulher num destino paradisíaco. Conhecemos, também, a tribo “Murley” que com a qual se cruzou no Sudão do Sol e que fez o seu estômago “contrair”, ou a história sobre o “cerco” a que foi sujeito no Iémen.

    É particularmente interessante perceber os contratempos, as peripécias e até alguns sustos – enfim, os “bastidores” – envolvidos nestas missões humanitárias. Ou é o tempo que não está de feição para viajar de avião, ou são aterragens inesperadas, ou é uma mulher que entra em trabalho de parto em pleno aeroporto de Frankfurt, durante o trajecto de regresso a Portugal da sua equipa de médicos em missão, obrigando o autor a fazer, inesperadamente, o papel de cirurgião de serviço (neste caso, o obstetra) numa casa-de-banho. O inusitado e o cómico insistem em “dar o ar da sua graça”, não importa qual seja o contexto ou situação, e na vida de um cirurgião especializado em Medicina de Emergência, a imprevisibilidade é a norma. 

    Enquanto se descrevem as histórias, vamos imaginando os cenários e sentindo as emoções inerentes a cada situação. Consternação, quando lemos sobre uma mãe que perdeu o bebé de quatro meses por engasgamento, que Nelson Olim e um colega não conseguiram salvar. Uma ansiedade expectante, com as cirurgias delicadas que fez, batalhando contra o tempo, para tentar que a morte não fosse o destino do seu paciente. Comoção, quando o “milagre” acontece pela medicina e uma vida é salva, contra todas as probabilidades. 

    Embora se fale, por vezes, de situações que tipicamente fazem o coração acelerar e onde nos assola a curiosidade por descobrir o que vem a seguir, este livro revela-se aconchegante; porventura, devido ao amor e ao altruísmo envolvidos nestas histórias, e que passam para o leitor. Amor esse que a historiadora Raquel Varela, que assina o prefácio, sublinha e bem, quando salienta que o ofício escolhido pelo autor só pode dever-se a um prazer em cuidar dos outros – e à ocitocina, hormona do amor – mais do que à necessidade de adrenalina que o autor alega ter. 

    Não seria favor nem exagero apelidar médicos como Nelson Olim, que efectivamente salvam vidas – muitas vezes em condições, no mínimo, pouco favoráveis, e até arriscando a própria pele – como “super-heróis” da vida real. E se, por isso, o autor teria razões ter um ego inflamado, a verdade é que o oposto se verifica. E é isso que torna esta leitura ainda mais especial: a maneira despretensiosa e humilde como as histórias nos são contadas, sem vestígios de egocentrismo, megalomania ou “síndrome de salvador”.   

    O autor, aliás, destaca um conselho de um cirurgião israelita, chamado “Dr. Best”, que no início da sua carreira o orientou num estágio no Rambam Medical Center, em Haifa: “O ego de um bom cirurgião deve ser assim pequeno, tão pequeno que caiba no bolso de trás das calças”. E é visível que o médico acatou a “deixa”.

    Escrito num tom simples e despojado, o livro deve o seu título ao propósito do médico de lutar contra a morte, que ameaça os seus pacientes, “um dia de cada vez”.  

    Um dia de cada vez é uma leitura muitíssimo recomendável: uma obra sobre humanidade e a Humanidade, sem lamechismos ou lugares-comuns. Para os mais sensíveis, recomenda-se apenas “passar à frente” alguns parágrafos ocasionais em que o autor entra em maior detalhe sobre algumas das operações que efectuou. 

  • Um origami japonês

    Um origami japonês

    Título

    Mil grous

    Autor

    YASUNARI KAWABATA (tradução: Mário Dias Correia)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Agosto de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Esta história conta-se em duas linhas: Chikako, uma terrível e temível alcoviteira, antiga amante do pai de Kikuji, o protagonista, cria uma rede de mentiras para envolver todos os intervenientes: as jovens que ela faz questão de apresentar a Kikuji, a mãe de uma delas e os pais dele, ambos já falecidos. Tudo o resto é mestria pura do autor, uma linguagem suave, mais abstrata que descritiva, aproximando-se muitas vezes da prosa poética. 

    Outra ‘protagonista’ é a tradicional cerimónia do chá do Japão, cuja subtileza nos escapa muitas vezes por ser rica em símbolos e significados nem sempre são claros. A arte do chá, na qual Chikako é exímia, promoverá tanto aproximações quanto desencontros, sendo o pretexto que ela usa para se insinuar nas vidas alheias.

    O tradutor manteve os nomes dos objetos e dos locais envolvidos no ritual, com os termos no original. No entanto, uma nota de edição logo no início do livro, ajudam na sua compreensão.

    Os mil grous, título do livro, são também importantes na cultura japonesa: o grou, ou tsuru, é uma ave sagrada no Japão. Simboliza a longevidade, pois nas lendas vive mil anos. Diz-se que fazer mil origamis de tsurus traz a realização dos desejos. No romance, porém, os mil grous não são garantia de sorte, saúde, paz ou longevidade. As personagens não contam com as graças da ave mítica.

    Página a página, aquilo que começa com um monólogo interior de Kikuji, vai-se tornando cada vez mas denso. As suas recordações de infância trazem-lhe a memória do tempo em que Chikako esteve envolvida com o seu pai, o sofrimento da mãe a que assistiu impotente, o que faz que crie uma aversão enorme a essa mulher que, no entanto, e de forma abusiva se vai insinuando na vida do jovem, trazendo-lhe notícias que ele não pede, organizando cerimónias de chá na sua própria casa e à revelia da vontade dele. E, tudo isto, com uma contenção enorme de descrições. Cada linha de diálogo, cada descrição parecem extremamente importantes, talvez precisamente porque há tão pouco texto descritivo.

    Muito daquilo que se passa com os personagens sentimo-lo mais do que lemos. Há só pequenos indícios e pequenas pistas, num texto de uma contenção enorme que nos faz desejar mais. Yasunari Kawabata consegue uni elementos como sexo, sensualidade, luto, traição, calor e perda de valores orientais para nos contar uma história que, apesar de simples e linear, nos prende nas suas pouco mais do que 170 páginas.

  • Entre a ficção e a realidade

    Entre a ficção e a realidade

    Título

    Zuckerman libertado

    Autor

    PHILIP ROTH (tradução: Francisco Agarez)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Agosto de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Zuckerman libertado, original de 1981 e, agora, publicado em Portugal pela editora Publicações Dom Quixote, é uma obra do reconhecido autor Philip Roth (de quem falámos aqui, recentemente). Este é o segundo romance da série protagonizada pelo escritor Nathan Zuckerman, seguindo a sua jornada em busca pela liberdade pessoal e criativa (O escritor fantasma e A lição de Anatomia, juntamente com Zuckerman Acorrentado completam a série). 

    Narrado na terceira pessoa, a história passa-se em 1969, um ano depois de Martin Luther King e Robert Kennedy terem sido assassinados, com os protestos contra o Vietname como pano de fundo. É o ano em que Nathan Zuckerman está a aprender a lidar com a fama depois da publicação do seu romance Carnovsky

    A sociedade e os media perseguem o protagonista com a tentativa constante de o vincular à sua obra, altamente controversa. Quem leu O complexo de Portnoy, do mesmo autor, encontrará muitas semelhanças em relação ao enredo, às consequências e às polémicas geradas pelo efeito espelho relativamente às personagens criadas em ambas as referências. 

    Esse é, aliás, um dos grandes temas do livro. O pesadelo vivido por Zuckerman pelo facto de muitos leitores, incluindo a sua família e conhecidos, confundirem a ficção com a realidade. Ou será que é Nathan (e eventualmente Philip Roth) que, ao usar tanta matéria-prima da realidade quase em bruto, conduz os leitores a, facilmente, identificarem o escritor/autor com a personagem criada?

    Com Nathan Zuckerman, Roth explora, de forma exímia, a dificuldade em separar a vida do autor das suas criações literárias. À semelhança de Philip Roth, Zuckerman é constantemente questionado sobre o quão autobiográficas são as suas obras. Os factos – autobiografia de um escritor é disso ilustrativo.  

    “A ficção não é autobiografia, mas toda a ficção, estou convencido, mergulha as suas raízes na autobiografia” (pág. 160): excerto da recensão ao livro Carnovsky, escrita por Alvin Pepler, um admirador que persegue o escritor protagonista. Esta personagem cómica é baseada num concorrente histórico, também judeu, dos programas de perguntas e respostas da televisão dos anos 1950.  

    Zuckerman também lida com problemas pessoais, como conflitos amorosos, questões de identidade e dilemas éticos. Pode, por isso, ser um livro denso, dado o mergulho profundo na mente da personagem principal – provavelmente os dilemas existenciais por que o autor terá passado aquando da publicação de O complexo de Portnoy

    Neste fascinante e provocativo Zuckerman libertado, Philip Roth faz jus ao propósito do pós-modernismo. É quase certo que o leitor se sentirá sacudido, quase agredido, uma vez que será “obrigado” a reflectir, juntamente com a personagem, sobre a função da literatura. 

    O autor usa a própria personagem para justificar aquele intento, recorrendo a Frank Kafka, que terá escrito: “Creio que só devíamos ler aqueles livros que nos mordem e nos ferram. Se um livro que estamos a ler não nos desperta com uma pancada na cabeça, para quê lê-lo?” (pág. 212).

    A presença de Kafka na obra também poderá ser um indício da vontade que Philip Roth tem em explorar a natureza alienante da fama e do sucesso, bem como as consequências psicológicas e emocionais de se ser uma figura pública, um dos temas centrais do livro.

    A narrativa expõe, igualmente, a censura e os limites da liberdade de expressão, discutindo a responsabilidade de um escritor perante o seu público. De tal modo que o romance conflui para o momento em que o irmão de Nathan o confronta com a sua (ir)responsabilidade de “trazer tudo a público”, sem qualquer comedimento (pág. 229). 

    Numa era em que as distopias parecem tornar-se realidade, ler a obra deste escritor de origem judaica pode ser uma forma de nos alienarmos deliberadamente, nem que seja por algumas horas, de um mundo confuso e caótico.

  • Retrato da mesa e da cama na Roma renascentista

    Retrato da mesa e da cama na Roma renascentista

    Título

    A Louçana Andaluza

    Autor

    FRANCISCO DELICADO (tradução: Nuno Júdice)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Agosto de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    É a partir da publicação da novela La vida de Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades, de autor anónimo, provavelmente no ano de 1554, que se estabelece o nascimento do género literário apelidado de Picaresco, um género que fez furor em Espanha durante o Siglo de Oro e que estendeu a sua influência por vários países europeus, entre os quais Portugal, até aos dias de hoje. Porém, alguns autores consideram A Louçana Andaluza, livro “escrito em Roma por volta de 1524 e publicado de forma anónima em Veneza, provavelmente em 1530”, como sendo o percursor da novela picaresca, devido às inúmeras características que enformam o género. Não obstante tais considerações, a verdade é que esta novela curta conquistou lugar cimeiro na literatura ocidental.

    Apesar de publicada sem identificação do autor, sabe-se que o seu autor foi um clérigo de nome Francisco Delicado (1480-1535), natural de Córdova, provavelmente de origem judaica, e que, após o decreto de expulsão determinado pelos Reis Católicos, em 1492, abandonou a pátria para se exilar em Itália como cristão-novo. 

    Sabe-se também que foi um padre licencioso e assaz frequentador de bordéis onde, a dada altura, terá contraído o mal gálico ou sífilis, tendo padecido de semelhante maleita durante vinte e três anos. Quando se curou, Delicado escreveu um tratado acerca do morbo gálico e da sua cura através de um remédio originário das Índias Ocidentais. E foi devido a esse contratempo que enveredou pela escrita desta novela, como “modo de esquecer as dores provocadas”, mas também para ganhar algum dinheiro com ele, uma vez que o autor se achava num aperto financeiro.

    O livro, após a sua publicação, provocou escândalo “e a liberdade com que trata situações tão escabrosas para a moral da época, usando uma linguagem que ainda hoje não faz parte das boas convenções sociais, não permitiram que o livro fosse conhecido até ao século XIX, quando, na Biblioteca Imperial de Viena, foi descoberto por Fernando Wolf, em 1842, o único exemplar da obra que chegou até nós”, explica Nuno Júdice, tradutor da obra, no Prefácio

    Com este livro, o autor pretendeu fazer o retrato de uma certa Aldonça, mulher nascida em Córdova, na Andaluzia, que, após ficar órfã decidiu buscar melhor fortuna e ir viver para Roma que, naquele tempo, se dizia ser o “triunfo de grandes senhores, paraíso de putas, purgatório de jovens, inferno de todos, cansaço de animais, enganos de pobres, barraca de velhacos”, e onde se havia estabelecido uma forte comunidade espanhola, principalmente constituída por judeus fugidos de Espanha.

    Francisco Delicado, ao desenhar este retrato “tão natural que não há pessoa que tenha conhecido a senhora Louçana, em Roma ou fora de Roma, que não veja claramente como foi tirado de seus actos e meneios e palavras”, também nos revela a Roma renascentista nas primeira décadas do século XVI, tempos de esplendor e luxúria e a a sociedade e as instituições eclesiásticas daquele tempo, com um olhar atento e perscrutador acerca da vida nos bordéis da época, num tom irónico mas também sarcástico, mordaz.

    Uma narrativa burlesca, erótica, mas também satírica, de recorte picaresco, em jeito de paródia aos livros com cavaleiros heróis e aventurosos, composto por 66 capítulos, aqui designados pelo autor como “mamotreto”, em jeito de diálogo, uma das formas literárias mais em voga na época, carregada de eufemismos e metáforas eróticas, tanto sobre os genitais do homem como da mulher, assim como do acto sexual em si.

    Outra das grandes curiosidades do livro são as referências à culinária da época, tanto à da Andaluzia como à de Roma, a pratos típicos mas também aos muitos ingredientes que nesses locais se encontravam, evidenciando um conhecimento apurado sobre os ingredientes, os rituais e os pratos que chegavam à mesa das várias classes sociais, incluindo aquilo que se comia nas tabernas ou nos bordéis. 

    Por aqui se acham referências a pão ázimo, biscoito de manteiga com açúcar, pão de especiarias, carne estufada, peito de carneiro, guisado de beringelas, buchos de cabrito, cabidelas, cabrito salpicado com limão de Ceuta, refogados de peixe seco com rúcula ou leitão assado, “flocos, bolinhos, rosquinhas de gengibre, rodelas de cânhamo e alho, jogados, sopas, folhados, farinha de milho mexida em azeite, ervas e nabos sem toucinho e com cominho, couve marciana com alcaparra”.

    Além destas referências, Delicado alude também ao livro De voluptatibus de Platina e ao De re coquinaria de Apício, destacando que a comida confeccionada com fogo de carvão e panela de barro eram tidas como das melhores. Mas as referências não se esgotam somente na culinária, existindo também bastantes alusões aos cosméticos usados pelas mulheres e a todo o sortido de expedientes que elas usavam para se enfeitar e adornar, aos tecidos e à moda em voga por aquelas paragens, bem como a certas mezinhas para o tratamento de determinadas maleitas. 

    Um livro de leitura fácil e breve mas que deverá ser degustado com lentidão para assim ser mais gratificante a sua leitura.

  • A cláusula familiar

    A cláusula familiar

    Título

    A voz das mulheres

    Autora

    MIRIAM TOEWS (tradução: Ana Maria Pereirinha)

    Editora (edição)

    Alfaguara (Setembro de 2023)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    “O que se segue é fruto da imaginação feminina” – frase do início do filme inspirado neste livro.

    A história, arrepiante, passou-se numa comunidade religiosa rural, de menonitas, em Manitoba, na Bolívia. Trata-se de um acontecimento real que Miriam Toews ficciona após a prisão dos agressores sexuais, de um grupo indeterminado de mulheres (fala-se em várias centenas), que violaram, repetidamente, e ao longo de anos, depois de as adormecerem com recurso a uma substância química, usada como anestesiante de bovinos.

    O livro desenvolve-se através de uma série de diálogos transcritos por August Epp, um professor recentemente readmitido na colónia depois da excomunhão, anos antes, dos seus pais por terem feito circular literatura proibida pelos líderes religiosos.

    A narrativa anda à volta do relato dos ataques levados a cabo durante a noite, por parte do que alguns membros da comunidade afirmaram serem fantasmas ou demónios. Outros culpavam a “imaginação feminina selvagem” – até que vários dos homens por trás dos ataques são descobertos e detidos. O irónico é que essa detenção serve, não para os punir, mas sim para os proteger da fúria de algumas mulheres.

    Enquanto os homens se dirigem à cidade para resgatar os acusados, oito mulheres– entre elas, Ona Friesen, grávida do filho do seu violador, e a adolescente Neitje, cuja mãe se suicidou – reúnem-se, secretamente, num palheiro para decidir como responder aos acontecimentos. Elas têm apenas dois dias para decidir o que fazer antes dos homens regressarem.

    É Ona que convida o pária da cidade, para servir como escrivão. Ela quer que o encontro seja registado para a posteridade e, na comunidade, apenas os homens podem aprender a ler e escrever. E August fá-lo em inglês, uma vez que depois da excomunhão os pais emigraram para Inglaterra.

    Miriam Toews explora um universo de pensamentos revelador sobre género, justiça, liberdade e poder. No entanto, o seu objetivo não é tanto o trauma dessas mulheres, mas a sua capacidade de sobrevivência e resiliência. Numa entrevista, a autora diz: ‘Eu precisava de escrever sobre essas mulheres. Eu podia ter sido uma delas’. De facto, ela própria nasceu numa comunidade menonita do Canadá.

    Em vez de insistir nos crimes, Toews confere um poder extraordinário às suas protagonistas, enquanto elas discutem sobre a melhor forma de permanecer fiéis a um sistema que as traiu tão brutalmente. O resultado improvável é uma lição magistral de ética e, surpreendentemente, dado o título, A voz das mulheres, ser narrado por um homem, acrescenta-lhe uma ironia inesperada. Depois de tudo o que passaram, as ideias das mulheres passam a ser o centro, e elas conseguem fazer com que um homem escreva aquilo que elas pensam e dizem.

    A voz das mulheres funciona assim como um diálogo socrático. Elas tornam-se construtoras do seu próprio futuro. À medida que o romance avança, tornam-se cada vez mais conscientes desse futuro. Discutem acaloradamente sobre a escolha das palavras, procurando não apenas clareza, mas também precisão.

    Ao ouvir as mulheres falarem, August pensa: “Lembro-me de como o meu pai me disse que os pilares gémeos que protegem a entrada do santuário da religião são a narrativa e a crueldade”. No celeiro, que se torna o santuário destas mulheres, contar histórias é um ato coletivo de libertação e de catarse mas também de clarificação. Sócrates ficaria satisfeito. 

  • Um manual para ter tudo sob controlo

    Um manual para ter tudo sob controlo

    Título

    Influência: a psicologia da persuasão

    Autor

    ROBERT B. CIALDINI (tradução: Isabel Pedrome)

    Editora (Edição)

    Lua de Papel (Julho de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Robert B. Cialdini nasceu no Estado norte-americano do Arizona em 1945, e é professor emérito de Psicologia e Marketing. Desenvolveu o seu doutoramento na Universidade da Carolina do Norte e, ao longo de uma prestigiada carreira, amealhou, por três vezes, o reconhecimento como Doutor Honoris Causa. Razões que justificam então, por si só, o “Dr.” antes do próprio nome na capa do livro, ilustrando, assim, a maneira americana de se apresentar. 

    Toda a sua formação e estatuto deste especialista na área da psicologia social conferem-lhe assim autoridade mais do que suficiente no tema da Psicologia Social que este Influência; a psicologia da persuasão, editado em Portugal pela Lua de Papel, desenvolve.  

    A autoridade é, com efeito, um dos sete princípios universais que o autor explica, sustentada e minuciosamente ao longo de mais de 600 páginas. Em cada um dos capítulos, o Robert B. Cialdini apresenta uma série de notas que remete para um anexo, no qual menciona e descreve muitos dos estudos que fundamentam as ideias destacadas. Adicionalmente, no final do livro, estão indicadas todas as referências bibliográficas a que o autor recorreu para ilustrar, demonstrar e apoiar o que afirma.

    Este Influência pode, assim, ser entendido como um compêndio revisto e aumentado das edições anteriores que contemplavam seis destes sete princípios de influência. Os princípios, a que o autor designa como armas da influência, e que são os seguintes: Reciprocidade; Gostar; Prova Social; Autoridade; Escassez; Compromisso e Coerência; e Unidade, o princípio que, entretanto, incorporou nesta edição revista e aumentada.

    Um dos muitos aspectos positivos deste manual, chamemos-lhe assim, é o modo como o autor organiza a explanação de cada um dos princípios. A contextualização é seguida de uma explicação que ajuda à compreensão da sua força, como técnica de influência. 

    Os exemplos e os estudos apresentados são casos concretos que contribuem para o entendimento dos princípios da influência. Robert B. Cialdini também divulga situações e experiências vivenciadas por leitores de edições anteriores, como forma de comprovar o que vai sendo exposto, bem como de congregar e pôr em prática alguns dos princípios que propõe como universais, nomeadamente o da reciprocidade, o da prova social e, até, o mais recente, o da unidade, como quem diz, “fazemos todos parte da mesma comunidade”.

    Antes de terminar cada um dos capítulos, o autor dedica ainda um espaço à defesa do leitor, para que este saiba como se proteger da manipulação e do mau uso destes princípios, que considera como respostas automáticas. Automatismo que, provavelmente, tenderá a exacerbar-se, dadas as características inerentes à sociedade contemporânea, designadamente a pressão do imediatismo a que estamos cada vez mais sujeitos.

    No fim de cada capítulo, o autor resume, de igual modo, as principais ideias do princípio em questão. O que se afigura como outra mais-valia, não só pela síntese recordatória, mas também pela possibilidade de se revisitar o princípio que for mais relevante para a situação prática que se prevê viver. 

    Estamos, portanto, perante  um livro vivamente recomendado para as pessoas empreendedoras, que se estão a iniciar numa carreira ligada ao marketing, ou a implementar o seu próprio negócio, qualquer que seja a área de intervenção. E além de ser um livro de referência da Psicologia Social acaba também por ser um guia antropossociológico que, seguramente, auxiliará a compreender como melhor cativar e manter clientes ou parceiros de negócios. 

    As pessoas ligadas aos recursos humanos e relações-públicas, ou aspirantes à liderança encontrarão uma significativa utilidade neste compêndio sobre o comportamento humano, nas mais diversas situações de inter-relacionamento social.

    Por outro lado, como o autor termina cada um dos princípios com sugestões sobre como nos podemos defender daqueles que nos estão a tentar manipular, também se mostra uma boa leitura para aprender a evitar a comprar ou a adquirir aquilo de que não precisamos. 

    Depois de ler este manual, o leitor pode ainda entrar no site Influence at work e testar as suas capacidades persuasivas. 

    Tendo em conta a dimensão do livro, é natural que existam algumas gralhas, que se detectaram. Mas dado o carácter didáctico da obra, sugere-se então, no caso de uma reimpressão,  nova revisão a começar, por exemplo, pela folha de rosto e o seu verso, corrigindo o título original.

  • A genialidade que descambou na loucura

    A genialidade que descambou na loucura

    Título

    A sociedade industrial e o seu futuro

    Autor

    THEODORE KACZYNSKI (tradução: João Franco e Álvaro Fernandes)

    Editora

    Libertária (Fevereiro de 2022)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Um prodígio da matemática, com um Q.I. de 167, Theodore Kaczynski – mais conhecido como Unabomber –, parecia enquadrar-se na definição de génio, com um futuro promissor, até à primeira metade da sua vida. Contudo, o “génio” transformou-se em “louco” e num terrorista condenado. Depois de obter um doutoramento em Matemática e de, com apenas 25 anos, tornar-se professor na Universidade da Califórnia, em Berkeley, Kaczynski decidiu demitir-se no final dos anos de 1960 e mudou-se para uma cabana no Estado de Montana, adoptando um estilo de vida primitivo, sobrevivendo como agricultor, caçador e recolector.

    Foi também nesse período que, em nome dos seus ideais revolucionários e contra o progresso tecnológico, começou a enviar bombas por correio entre 1978 e 1995, que mataram três pessoas e feriram outras tantas – os alvos dos seus ataques eram sobretudo companhias aéreas, faculdades e empresas. Em 1996, prometeu pôr um fim aos seus atentados se o New York Times e Washington Post publicassem o seu manifesto, A sociedade industrial e o seu futuro – condição que os dois jornais norte-americanos aceitaram.  

    Após a publicação do texto pelos jornais, Kaczynski foi finalmente identificado pelas autoridades e detido, em Abril de 1996. Foi na prisão que passou os seus últimos dias e onde faleceu em Junho deste ano, com 81 anos. A sua história deu origem a filmes, documentários e séries, tendo o mais recente sido o filme Ted K, de 2021. 

    A sociedade industrial e o seu futuro é, fundamentalmente, um manifesto “anti-tecnologia”. Para Kaczynski, a Revolução Industrial levou a uma cisão entre os cidadãos e a Natureza, transformando o estilo da vida da população de um modo que atenta contra a sua essência. O autor argumenta que os males provocados pelo progresso tecnológico não superam os seus eventuais benefícios, e que, mesmo com todos os desafios que enfrentava, o homem primitivo estava melhor do que o homem moderno. 

    Na parte inicial do livro, Kacznyski teoriza que os seres humanos têm uma necessidade intrínseca de “empoderamento”, que é satisfeita através da conquista de objectivos por via do seu esforço. Contudo, defende, uma vez que na actual sociedade industrial e tecnológica, todas as pulsões mais primárias do Homem são supridas sem que ele tenha de empreender grandes esforços, o resultado é um sentimento de frustração e impotência.

    Como forma de colmatar o vazio e a ausência de sentido na vida pela impossibilidade de assegurar a sua subsistência pelas próprias mãos, o Homem dedica-se a “actividades de substituição” – que incluem todos os trabalhos nos sectores secundário e terciário, ascensão na hierarquia social, estatuto, ciência e tecnologia. Porém, para o autor, estes ofícios nunca preenchem verdadeiramente a necessidade de empoderamento da sociedade.

    Kaczynski considera que a única forma de erradicar os danos colaterais do progresso tecnológico é por meio de uma revolução. Nesse sentido, afirma que qualquer tentativa de reforma ou de “remendo” é inútil e não surtirá qualquer efeito; apenas um corte radical e a abolição da tecnologia poderá salvar o mundo da escravidão e de uma distopia de calibre similar à de Admirável Mundo Novo. A este respeito, é irredutível: a liberdade e tecnologia são irreconciliáveis (pág. 77).

    Curiosamente, o “esquerdismo” moderno é um dos principais alvos da sua crítica, atribuindo ao movimento uma série de características que considera perniciosas e até mesmo impeditivas da revolução que pretende levar a cabo. Por “esquerdista”, o autor entende, em traços gerais, aquele que simpatiza com as ideologias do “feminismo, dos direitos dos homossexuais, das minorias étnicas, dos animais e politicamente correcto” (pág. 138). 

    Kaczynski acusa estes esquerdistas de tendências totalitárias e colectivistas, e de um tom moralista, sentimentos de inferioridade, e uma vontade de poder reprimida e frustrada, que os impele ao seu activismo prepotente, hostil, e a queixumes fúteis e constantes.

    Sobre a modernidade, o autor também denuncia uma abundância de direitos “no papel”, mas que, na realidade, não são tão “importantes” para o cidadão comum quanto possam parecer. Um dos exemplos que dá é o da liberdade de imprensa:

    “(…) a liberdade de imprensa de pouco serve ao cidadão comum enquanto indivíduo. Os mass media estão na sua maioria sob controlo de grandes organizações, integradas no sistema. Quem tiver algum dinheiro pode mandar imprimir o que quiser, ou ainda distribuir conteúdos na Internet ou qualquer coisa que o valha, mas o que tiver a dizer será submerso pelo vasto volume de material publicado pelos mass media, não surtindo qualquer efeito prático. Abalar a sociedade com palavras é, por conseguinte, quase impossível para a maioria dos indivíduos e pequenos grupos.” (pág. 61) 

    “Excessos” à parte, nomeadamente o ímpeto revolucionário e a apologia da violência, Kaczynski avança ideias válidas, alicerçadas em argumentos sólidos, factuais e coerentes. A sua preocupação com a ameaça de uma tecnocracia em que uma ínfima minoria de burocratas “invisíveis” consideram as massas inúteis e descartáveis – e decidem, sem escrutínio, o seu destino –, utilizando-as apenas como peças bem oleadas de uma engrenagem por si montada não só é plausível, como parece cada vez mais real. 

    De facto, com a crescente concentração de poderes, possibilitada pela inovação tecnológica, torna-se difícil discordar de Kaczynski quando afirma que “a restrição da liberdade é inevitável na sociedade industrial” (pág. 69).

    Nenhum dos cenários que o autor vislumbra para o futuro da sociedade tecnologicamente evoluída é risonho, mas entre as suas previsões, estas farão o topo das mais negras: 

    “(…) uma vez que o trabalho humano já não será necessário, as massas serão supérfluas, um fardo sem utilidade para o sistema. Se a elite for impiedosa pode simplesmente decidir-se pelo seu extermínio. Caso tenham uma réstia de humanidade poderão usar de propaganda ou outras técnicas, biológicas ou psicológicas, para reduzir a taxa de natalidade até as massas se extinguirem, deixando o mundo para a elite”.

    Certo é que, atendendo aos acontecimentos dos últimos anos, o que Kaczynski, que morreu em Junho passado num prisão da Carolina do Norte, vaticinou não parece assim tão descabido. Por isso, a respeito deste revolucionário, à pergunta “louco ou génio à frente do seu tempo?”, a resposta terá de ser, infelizmente: um pouco dos dois!

  • Uma introdução à cultura milenar

    Uma introdução à cultura milenar

    Título

    Namasté: o caminho indiano para a felicidade

    Autores

    HÉCTOR GARCIA E FRANCESC MIRALLES (tradução: André Marcelo)

    Editora (Edição)

    Albatroz (Abril de 2023)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Nascido em 1981, em Espanha, Héctor García vive no Japão desde 2004. Antes de se radicar no oriente, trabalhou como engenheiro de software no CERN (Centro Europeu de Pesquisa Nuclear), na Suíça. Ficou conhecido desde a publicação do livro A geek in Japan. Mas foi com o livro Ikigai, escrito com o conterrâneo Francesc Miralles, que se viria a tornar um fenómeno mundial. 

    Francesc Miralles é também um autor premiado de livros de desenvolvimento pessoal. Nascido em Barcelona em 1968, já trabalhou como editor, tradutor e ghost writer. Estudou jornalismo, literatura inglesa e alemão, e é músico. Foi, também, depois de uma longa viagem à Índia que escreveu o seu primeiro romance.

    Depois de Ikigai e outras derivações do método pelos autores desenvolvido, surge este Namasté: o caminho indiano para a felicidade, editado, em Portugal, pela Albatroz.

    Se os leitores estavam à espera de um manual – com receitas para encontrar o nirvana, o zen, ou algo semelhante, dependendo da crença religiosa de cada um –, é disso que se trata: uma introdução a diversas religiões e práticas espirituais, sobretudo as que estão ligadas ao hinduísmo, não fosse este um caminho indiano.

    O livro está divido em três partes. Na primeira, “A cultura da felicidade”, os autores começam por descrever a saudação e o significado de “Namasté”. Se dúvidas havia, quando alguém une as palmas das mãos, à altura do centro do peito, com os dedos a apontar para cima e os polegares próximos do peito, inclinando o tronco para a frente e pronunciando a palavra “Namasté”, está a dizer: “a minha alma saúda a tua”, ou “o que há de sagrado em mim reconhece o que há de sagrado em ti”.

    Os autores prosseguem apresentando cinco ideias de cinco mestres para o mundo atual. Impressionante pode ser o caminho Sadhu, o estilo de vida do viajante indiano, “baseado na renúncia para atingir a lucidez espiritual”. A renúncia e a sobriedade caminham juntas neste percurso constituído por quatro fases de vida, cuja resposta à questão “De que podemos prescindir?”, parece ser uma das opções mais práticas da existência.

    É num “ashram” que se podem encontrar as condições ideais para aprender a viver em comunidade. O exemplo de Elizabeth Gilbert também é nomeado, com o seu Comer, orar e amar.  

    Na segunda parte do livro, “A filosofia da felicidade”, os autores convidam ao leitor à auto-indagação, em que a primeira pergunta é, naturalmente, “quem sou eu?”. Apesar de ser uma formulação simples, nem sempre é fácil de responder, tão embrenhados que estamos na corrida para ter e ter e ter. É precisamente aquilo que resta, depois de tudo o que se perde num naufrágio, por exemplo, que se poderá eventualmente saber responder àquela grande questão existencial. 

    Para auxiliar à reflexão, os autores vão citando outras obras, destacando-se o livro de Don Miguel Ruiz, Os quatro acordos, aqui denominados de “os quatro desapegos”, o primeiro dos quais é sempre o “ego”.  

    Dharma, karma, samsara e nirvana são outros termos que o leitor poderá reconhecer e relembrar, estando aqui contextualizados e como introdução à terceira e última parte do livro, “A prática da felicidade”. Nesta, os autores sugerem e descrevem algumas técnicas de respiração para diversas situações do quotidiano. A prática do ioga, a medicina Ayurveda são outras sugestões dos autores. 

    Fica, por isso, patente a ideia de que é uma introdução às diversas possibilidades para o caminho espiritual. O importante é que cada pessoa percorra aquele com o qual se identifica, quer em termos de práticas meditativas, mais passivas ou ativas, como o ioga, quer em termos de aprendizagem e mesmo de alimentação. No fundo, as bases para uma vida espiritual, sendo certo que uma alimentação saudável é fundamental para uma vida globalmente saudável, onde se insere, naturalmente (para os autores, claro), a prática da meditação.

    Este é um livro de leitura curta e fácil, porque escrito de forma simples, para principiantes em meditação, ou para as pessoas curiosas pela cultura milenar indiana. 

  • Quo vadis, Humanidade?

    Quo vadis, Humanidade?

    Título

    A maldição da noz-moscada

    Autor

    AMITAV GHOSH (tradução: Miguel Romeira)

    Editora (Edição)

    Elsinore (Junho de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Confesso que estava um pouco reticente em levar este livro na bagagem para preencher a ociosidade dos meus dias de veraneio. As férias pediam leituras mais ligeiras, para não dar muito trabalho ao miolo ou narrativas que fossem bem-dispostas, de preferência na companhia de um branco fresquinho. Como se diz, espalhei-me ao comprido – mas ainda bem.

    A partir de um episódio ocorrido em 1621 numa das ilhas Banda, no território das Molucas, na actual Indonésia, o romancista e ensaísta indiano Amitav Ghosh (n. 1956) tece uma teia de relações entre os factos aí ocorridos, o massacre de toda a população local (provavelmente um dos grandes genocídios esquecidos pela História), e as presentes alterações climáticas que afectam todo o planeta. Uma alucinante viagem por tudo aquilo que o Homem (leia-se o Homem Branco e Ocidental) foi fazendo e provocando em vários lugares do globo, interferindo com a Natureza nas mais variadas maneiras, com consequências devastadoras. 

    Naquele tempo vivia-se uma corrida às especiarias, caracterizada pelo autor como “a corrida espacial da época”, em particular a tão demandada noz-moscada (Myristica fragans). Para a colher era preciso atravessar meio mundo. Com isso, “ao viajarem pelo mundo conhecido, a noz-moscada, o macis e outras especiarias fizeram nascer rotas de comércio que atravessavam o oceano Índico e entraram por África e pela Eurásia.” 

    A noz-moscada, além do uso culinário, também era procurada devido às suas propriedades medicinais, sendo cobiçada como símbolo de luxo e de estatuto: “No final da Idade Média, a noz-moscada tornou-se tão valiosa na Europa que uma mão-cheia pagava uma casa ou um navio.”

    Ao analisar este caso, a eliminação do povo Banda, levada a cabo pelos holandeses a fim de assegurar o monopólio do comércio da noz-moscada, Amitav Ghosh estabelece paralelismos com outros episódios ocorridos em diferentes partes do Mundo e em outros tempos, como o caso das tribos indígenas nos Estados Unidos da América ou no Amazonas, e de como, ao destruíram as suas maneiras de viver, acabam por destruir todo um equilíbrio existente, com repercussões, por vezes, difíceis de alcançar. 

    O autor desdobra-se em múltiplas e inteligentes abordagens, seguindo um fio condutor, a acção do Homem Branco e Ocidental, tido como o pináculo do mundo civilizacional, contra um outro Mundo, inferior, o dos outros, vistos como “bestas”. Abordagens essas que vão desde a biologia ao racismo, da escravidão aos actuais movimentos como o Black Lives Matter.

    Este é um livro que exige um certo nível de concentração, não por apresentar um discurso complexo, muito pelo contrário: explana uma narrativa bastante fluída, com diferentes histórias que se vão interligando numa malha mais ampla, quase gigantesca. A concentração é necessária para, com cada uma dessas histórias ou curiosidades (que são mesmo imensas), como se fossem folhas, não só conseguirmos ver a árvore como toda a floresta de conhecimento que o autor nos oferece.

    Uma leitura que além de ser um murro no estômago, provoca também um nó na garganta e um aperto no coração: o que andámos nós a fazer para deixar o Mundo neste estado?

  • Ciência pop

    Ciência pop

    Título

    Perguntas frequentes sobre o Universo

    Autores

    JORGE CHAM e DANIEL WHITESON (tradução: Joana Honrado)

    Editora (Edição)

    Saída de Emergência (Julho de 2023)

    Cotação

    10/20

    Recensão

    Desde 2019, a coleção “Eu amo Ciência”, através da Dessassossego, a chancela de não-ficção da Saída de Emergência, assume como objetivo “revolucionar a forma como se divulga a ciência em Portugal e conquistar espaço e visibilidade para a ciência nas livrarias”, acrescentando ainda que “pretende divulgar a ciência e o método científico”, e nessa tarefa “não pretende confrontar nem antagonizar, mas sim dar a conhecer”.  

    Tem cumprido, e tanto assim que já lançou 24 títulos em apenas três anos, sendo que Perguntas frequentes sobre o Universo é um dos mais recentes.

    Mas, antes, os autores: Jorge Cham e Daniel Whiteson. O primeiro é doutorado em Robótica/Engenharia Mecânica pela Universidade de Stanford e colabora com o The New York Times, The Washington Post, The Atlantic, Scientific American, entre outros. É, ainda, o criador do popular site PHD Comics. Daniel Whiteson é professor de Física na Universidade da Califórnia. Colabora com Jorge Cham em comics e vídeos explicativos de ciência que são visualizados por milhões de pessoas, em todo o mundo. 

    Este é, como o título indicia, um livro de perguntas e respostas do género: Por que razão os extraterrestres ainda não nos visitaram? Por quanto tempo sobreviverá a Humanidade? Serão os seres humanos previsíveis? Onde se situa o centro do Universo? E outras do género. 

    Os autores informam que respondem às questões como cientistas e não como engenheiros. “Um físico dirá que algo é possível se não conhecer uma lei da física que o impeça”. Assim, uma nave espacial a viajar a uma velocidade suficiente para alcançar a estrela mais próxima num período de tempo razoável não é impedida pelas leis da física, no entanto, explicam, é impossível construí-la para esse fim. Da mesma forma, buracos de minhoca (wormhole), a nossa versão moderna de espaço-tempo, e viagens no tempo “não são considerados impossíveis” – assim como muitos outros cenários. Por outro lado, por exemplo, prevê-se que um asteroide possa atingir a Terra, que o Sol explodirá e a raça humana será extinta, mas estudos afirmam que nenhum desses acontecimentos é uma ameaça imediata.  

    Assim, mantendo-se fiéis à ciência pura, os autores oferecem uma visão alicerçada em conhecimentos profundos das matérias que tratam, tentando, ao mesmo tempo, torná-la acessível ao público em geral e, parece-nos, ao público jovem.

    Trata-se de um livro híbrido, entre uma tentativa de explicação racional de problemas que nos intrigam a todos, mas, ao mesmo tempo, quer chegar a toda a gente, com piadas, às vezes a despropósito, com ilustrações profusamente espalhadas por todas as páginas, cheias de “pseudo-humor”, apartes e desenhos animados para servir como introdução a conceitos que requerem muito mais estudo uma total compreensão.

    É, por isso, acaba por se tonar num um livro de Ciência Pop, que não nos convenceu de todo.