Etiqueta: Recensão

  • A tragédia como forma de silêncio

    A tragédia como forma de silêncio

    Título

    Naquele dia

    Autora

    LAURA ALCOBA (Tradução: Luísa Benvinda Álvares)

    Editora

    Dom Quixote (Março de 2025)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Há livros que parecem escritos não para serem lidos, mas para nos confrontarem com o que preferíamos não saber. Naquele Dia, da escritora Laura Alcoba, é um desses livros. Evita o alarido, recusa a grandiloquência, abdica de qualquer manobra de sedução narrativa — e, no entanto, impõe-se com a força de um sismo moral. Baseado num caso verídico ocorrido em Paris em 1984, Naquele Dia propõe uma reconstrução fragmentária, mas obsessivamente delicada, de um acto de violência doméstica que escapa a toda a lógica e que, por isso mesmo, exige escuta.

    Não é um romance no sentido clássico, e também não se entrega à crueza documental. Laura Alcoba faz — e fá-lo com uma contenção que roça o ascetismo — uma reconstituição de um espaço de ruína emocional através de três figuras: a mãe, Griselda, que mergulha num estado de desespero absoluto; o pai, Claudio, impotente e ausente; e a filha, Flavia, que sobrevive. Mas o verbo “sobreviver” aqui não é simples estatística vital: Flavia sobrevive à morte física, mas não ao colapso do mundo. A sua voz — ou melhor, os seus gestos, os seus silêncios, os seus desenhos infantis — atravessam o livro como restos de uma linguagem interrompida.

    Há neste gesto literário algo de Truman Capote, mas sem teatralidade. A escritora argentina, exilada desde a infância, inscreve-se na tradição da literatura do real, mas recusa o voyeurismo. Não há aqui nenhum esforço de dramatização. Nem julgamento, nem explicação. Alcoba compreende — como poucos — que há actos que não podem ser reduzidos a uma lógica causal, nem sequer à linguagem da psicologia. Aquilo que houve naquele dia — e nos dias que o antecederam — foi um paroxismo. Um termo árido, sim, mas talvez o único que se aproxima da natureza do que se passou: o colapso súbito, íntimo, surdo, da humanidade numa mulher. A maquilhagem de Griselda, obsessiva, torna-se não apenas máscara mas metáfora. E o frio de Paris, omnipresente, nunca é apenas meteorológico.

    A escrita, depurada até ao osso, é também um acto ético. Laura Alcoba não toma o lugar de ninguém: recolhe, escuta, recompõe. Nunca tenta explicar o que não é explicável. Nunca escreve em nome das vítimas — escreve perto delas. E, talvez por isso, Naquele Dia se torne mais do que um livro: uma forma de presença, uma tentativa de devolver ao espaço público uma história que parecia ter sido soterrada por neve e silêncio.

    Não deixa de ser significativo que a escritora, embora vivenda na França há décadas, ainda guarde um olhar argentino sobre o Mundo. Há no seu estilo uma densidade hispano-americana, uma estranheza dos exilados que vivem entre línguas. E se o livro nos fala de um drama familiar, fala-nos também do exílio — esse estado permanente de perda de referência e de reconstrução forçada da identidade. Perguntar se Laura Alcoba ainda se sente argentina é talvez redundante: aquilo que ela escreve só poderia ser escrito por alguém que traz um país inteiro dentro da memória.

    Naquele Dia não é um livro agradável, mas é um romance necessário. Não nos reconcilia com o mundo, mas também não nos entrega ao desespero. Obriga-nos apenas — e já é tanto — a parar, escutar e reconhecer que há actos humanos que não devem ser julgados à pressa, nem esquecidos em silêncio. Devem, isso sim, ser habitados. E, com a delicadeza quase litúrgica que lhe conhecemos, é isso que Laura Alcoba faz — e nos convida a fazer com ela.

  • Saúde: O comando está nas tuas mãos

    Saúde: O comando está nas tuas mãos

    Título

    Eu escolho crescer com saúde!

    Autores

    MANUEL PINTO COELHO

    Editora

    Oficina do Livro (Novembro de 2024)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    Já era fã do Dr. Manuel Pinto Coelho. Mas este livro é daqueles que, além de útil, me falou ao coração porque se dirige aos jovens. Nunca foi tão importante um livro como este, pela sua componente informativa e pedagógica, dirigida a uma faixa da população que, infelizmente, tem sido alvo de campanhas nefastas na área da Saúde.

    Nada é mais preciso do que ensinar os jovens a serem autónomos a ajudá-los a tomar decisões baseadas na evidência e no melhor que a Ciência e o conhecimento acumulado têm para oferecer.

    Escrito numa linguagem acessível e direccionada para os jovens, o livro aborda temas muito diversos, de uma forma simples e acessível. As ilustrações, as caixas de pontos e o grafismo, são muito apelativos (mesmo para adultos). 

    O livro está estruturado em cinco capítulos. O primeiro versa sobre o corpo humano, o sistema imunitário e o ‘rei’ intestino. O segundo, com o título ‘Os quatro elementos’ aborda temas como a importância da vitamina D e da água do mar. O terceiro capítulo anda à volta dos hábitos saudáveis e quarto propõe um ‘Reset’, debruçando-se, por exemplo, sobre o lazer, a amizade, os ecrãs e as doenças mentais. Por fim, o quinto capítulo, são deixadas mais algumas dicas e considerações, incluindo sobre o tema do tabagismo.

    O livro tem ainda o chamariz de ter prefácios da autoria de Cristiano Ronaldo e da ginasta olímpica Filipa Martins.

    Se se preocupa com a saúde dos jovens, se tem jovens na família, este é um livro que deve estar lá em casa. Mas também deve estar em todas as bibliotecas e escolas porque é de leitura obrigatória. Não só pelos conteúdos informativos sobre saúde mas também pela informação relacionada com a protecção ambiental.

    Mas este livro não é só útil para os jovens. Os adultos podem beneficiar muito com a leitura da obra. Até porque é mais divertida de ler do que os livros escritos para os adultos. Como se diz em inglês, é mesmo um caso ‘Win-Win‘.     

  • Scorsese espiritual

    Scorsese espiritual

    Título

    Conversas sobre a fé

    Autores

    MARTIN SCORSESE e ANTONIO SPADARO (tradução: Dinis Pires e Pedro Branco)

    Editora

    Casa das Letras (Outubro de 2024)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Mais do que serem meras ‘Conversas sobre a fé’, este livro, que resulta de um diálogo contínuo entre Martin Scorsese – um dos mais influentes cineastas contemporâneos – e o padre jesuíta Antonio Spadaro – com uma longa experiência em explorar as interseções entre cultura e espiritualidade –, deve ser lido sobretudo como um exercício de ‘confissão’,não tanto para um perdão, mas para uma auto-reflexão do conhecido realizador norte-americano, no contexto da sua vida e filmografia.

    De facto, embora o título sugira uma óbvia interacção entre Scorsese e Spadaro, os diálogos transformam-se sobretudo numa forma de conhecer os pensamentos e reflexões do realizador, numa profunda imersão nas dimensões humanas e transcendentais que lhe moldaram a vida e a obra, mas onde o jesuíta, que se coloca numa espécie de psicólogo espiritual, o conduz a reflectir sobre os mistérios da fé e a busca pelo sentido.

    A génese do livro, como explicado na introdução, remonta a Março de 2016, quando Spadaro e Scorsese se encontraram para discutir ‘Silêncio’, o filme de Scorsese sobre a perseguição aos jesuítas portugueses no Japão do século XVII. A obra cinematográfica, baseada no romance de Shūsaku Endō, tornou-se assim no catalisador de um diálogo que rapidamente ultrapassou o cinema para se tornar numa troca mais íntima e filosófica sobre a espiritualidade, a dúvida e a graça.

    A partir deste encontro inicial, os contactos dos dois aprofundaram-se, ao longo dos anos, e nessa intmidade revelam-se aspectos menos conhecidos da infância de Scorsese, o impacto da sua formação católica e a forma como a sua fé – muitas vezes turbulenta e desafiada – moldou a sua visão artística.

    O livro estrutura-se assim numa troca de ideias fluida, mas onde Spadaro se coloca apenas como interlocutor atento, guiando Scorsese por um percurso de memórias e reflexões, e simultaneamente introduzindo as perspectivas teológicas e culturais. Deste modo, de uma forma habilidosa, pela via destas conversas sobre fé – que, porventura, um jornalista não conseguiria –, Spadaro oferece-nos uma leitura perspicaz do percurso artístico de Scorsese, identificando as camadas de espiritualidade que atravessam filmes como ‘Táxi driver’, ‘A última tentação de Cristo’ ou o já mencionado ‘Silêncio’. Embora a sua abordagem seja de um enorme respeito intelectual, o jesuíta não abdica de provocar o cineasta, conduzindo-o a explorar os limites da sua compreensão sobre Deus, o sofrimento humano e a redenção. Em todo o caso, Scorsese não surge aqui como um devoto tradicional; antes sim alguém profundamente humano em constante questionamento e procura.

    Enquanto obra, ‘Conversas sobre a fé’ apresenta uma análise riquíssima das forças espirituais e culturais que moldam não só a criação artística, mas também a própria existência. No entanto, notam-se momentos em que o texto se torna demasiado autocentrado, especialmente quando as reflexões de Scorsese recaem em episódios conhecidos, já abordados em entrevistas. A ausência de uma análise mais crítica por parte de Spadaro, que frequentemente opta por concordar ou amplificar os pensamentos do cineasta em vez de os problematizar, pode não acrescentar nada de novo à obra do cineasta, mas enriquecem a transversalidade deste testemunho.

  • O poder da ilustração

    O poder da ilustração

    Título

    Arena

    Autor

    JOÃO FAZENDA

    Editora

    Tinta da China (Novembro de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Reunindo duas décadas de cartoons publicados pelo autor, inicialmente na revista Visão e, mais recentemente, no jornal Expresso, o livro ‘Arena’, de João Fazenda é uma obra que transcende a simples compilação de ilustrações; trata-se de um testemunho visual de um período marcado por acontecimentos políticos, sociais e culturais, capturados com a perspicácia de quem observou o mundo social e políticos com olhos atentos e um traço inconfundível.

    Sabe-se que, na imprensa, o título é por excelência o primeiro convite à leitura, que se insinua ao leitor, que o desafia e despertar curiosidade para a leitura. Mas, se o título é a primeira porta, as imagens – sejam fotografias ou ilustrações – são o impacto visual que pode determinar a permanência do olhar. As fotografias têm o poder de documentar, de capturar a realidade de forma imediata e emotiva. Contudo, mesmo quando uma imagem fotográfica pode valer mais do que mil palavras, há algo que frequentemente lhe escapa: a capacidade de transcender o momento captado e de oferecer uma crítica, uma reflexão ou uma síntese daquilo que se observa.

    E é aqui que entram as ilustrações, e, em especial, o trabalho de artistas como João Fazenda. As ilustrações não apenas acompanham ou embelezam; elas dialogam, desconstroem e reconstroem a realidade, conferindo-lhe novos significados. A ilustração editorial tem o poder único de condensar, num único quadro, aquilo que milhares de palavras talvez não consigam dizer com tanta clareza: a ironia, a denúncia, o absurdo ou até a esperança de uma situação. E João Fazenda é, sem dúvida, um mestre dessa arte.

    Por isso mesmo, se o objectivo inicial da ‘contratação’ de João Fazenda terá sido sobretudo ilustrar os textos de Ricardo Araújo Pereira, o humorista em muita razão, mesmo conhecendo-se a sua providencial pseudo-humildade auto-depreciativa, quando no prefácio escreve: “Como é evidente quando se abre o jornal, não é o desenho do João Fazenda que ilustra os meus textos, é o meu texto que acompanha os desenhos do João Fazenda. A primeira coisa que os leitores veem é o desenho. A seguir, tentam descobrir (os que se dão a esse trabalho) de que modo é que o texto se relaciona com ele”.

    Esta inversão de papéis sublinha, de facto, a força do traço de Fazenda, capaz de capturar a atenção e instigar uma leitura diferente, mediada pela imagem. E isso é mesmo verdade: folheando o livro, mesmo para quem leu pouco textos de Ricardo Araújo no original, se lembra de muitas das ilustrações- Até porque o traço de João Fazenda é único e marcante, com o seu estilo minimalista, satírico e profundamente simbólico, com formas simples e cores sólidas, mostra-se capaz de comunicar mensagens que combinam reflexão e leveza, evidenciando temas sociais e políticos muito abrangentes.

    Uma única nota: do ponto de vista editorial, teria sido útil, e não demasiado dificultoso, identificar, no final do livro, as datas das ilustrações, bem como dos textos originais. Em alguns casos, ajudaria a relembrar os “acontecimentos”, para quem os viveu; e para os mais jovens, seria um auxiliar para ‘identificar’ os protagonistas que eventualmente tenham saído da ‘cena política’ (que são pouco, porque são ‘perenes’, cá no burgo).

  • Ser indiferente à cor da pele

    Ser indiferente à cor da pele

    Título

    O fim das políticas de raça

    Autores

    COLEMAN HUGHES (Tradução: Pedro M. Santos)

    Editora

    Guerra & Paz (Outubro de 2024)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    O autor desta obra propõe algo que pode ser visto por muitos, designadamente de ideologia ‘woke‘, como revolucionário. Coleman Hughes propõe que se deve ser indiferente à cor da pele. 

    O que deveria ser óbvio para todos, infelizmente não é, apesar de estarmos em pleno século XXI: somos todos iguais, independentemente do tom que tem a pele de cada um. Discriminar com base na cor da pele é profundamente errada. É óbvio, mas ainda há quem defenda a divisão dos seres humanos com base neste critério. 

    E não, o autor não tem a pele de tom claro. O escritor, podcaster e colunista tem ascendência afro-americana e porto-riquenha e cresceu em Montclair, Nova Jersey, nos Estados Unidos. 

    Licenciado em Filosofia, Hughes falou perante o Congresso norte-americano, em 19 de Junho de 2019, numa audiência sobre reparações por causa da escravatura. Hughes mostrou ser contra aquela campanha, alertando que iria servir para apenas dividir ainda mais o país. Adiantou que a serem aprovadas reparações, todos os negros norte-americanos que são contra essa campanha iriam ser transformadas em vítimas sem o seu consentimento.

    Neste livro, Hughes propõe que se regresse aos ideais que inspiraram o movimento dos Direitos Civis americanos. Escreve que o afastamento desses ideais deu inicio a uma era de medo e ressentimento e políticas nefastas baseadas na raça. Para Hughes, as políticas ‘woke‘ supostamente anti-racismo criam uma falsa equidade. 

    O autor estruturou este livro em seis capítulos, sendo que começa com uma introdução em que responde à questão: ‘Porquê escrever sobre raça?’

    Na obra, Hughes debruça-se longamente sobre o conceito de neo-racismo, que tem como alvo a população branca, baseado no estereotipo de que todos os brancos são arrogantes, racistas e sem compaixão pela luta das pessoas não brancas. O autor ataca a autora Robin DiAngelo e outros que também defendem este tipo do chamado ‘racismo investido’. O autor também se debruça sobre as instituições neo-racistas de elite.

    No último capítulo, Hughes propõe soluções para ‘Resolver o problema do racismo na América’. Para o escritor, “o verdadeiro problema do racismo na América” é que “a nossa sociedade continua a não conseguir consagrar o daltonismo como seu ethos orientador”. E adianta que “é este fracasso contínuo que tem permitido que o racismo sancionado pelo Estado surja repetidamente sob novas e diferentes formas – mais recentemente através do movimento a que tenho chamado de neo-racismo”.

    “O caminho neo-racista conduz a um mundo sombrio em que brancos e minorias trocam eternamente os papéis, de opressores e oprimidos, de culpados e inocentes − um mundo sem qualquer concepção do bem comum, mas em que os indivíduos colocam os interesses do seu próprio grupo racial em primeiro lugar, independentemente dos custos para os outros”, escreve Hughes na página 166.  A alternativa, segundo Hughes, “é o sonho” que passa, designadamente, por “uma nação onde as pessoas vivem em segurança e gozam da liberdade de procurar a sua felicidade; uma nação sem cidadãos de segunda classe onde o espírito democrático prevalece e os políticos são responsabilizados perante as pessoas que servem; […]”.  

      

  • Luminoso mundo subliminar

    Luminoso mundo subliminar

    Título

    Psiconautas

    Autor

    MIKE JAY (tradução: Luís Filipe Pontes)

    Editora

    Zigurate (Setembro de 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Mike Jay, um escritor britânico premiado, escreve sobre História da Ciência e Medicina navegando entre temas como a loucura, memória, alucinações e é um perito sobre o impacto individual e colectivo de drogas que alteram estados de consciência.

    Uma viagem pelo mundo das drogas, termo que adquiriu um significado ilegal, clandestino, evocando o submundo, para designar ópio, heroína, cocaína e haxixe no século XX por oposição ao século XIX em que o seu consumo livre e estimulado era anunciado como terapia e viagem química de libertação do individuo. As drogas eram comercializadas em farmácias, espaços luminosos de vidros e mármores, como excipientes de tratamentos manipulados por modernos boticários ou para funções recreativas.

    Os efeitos dissociativos da consciência, em que os sujeito consumidor se metamorfoseava simultaneamente em experimentador e observador alimentavam a literatura, como em ‘Confissões dum opiómano’, de Thomas Quincey, ‘O clube de comedores de haxixe’. de Theophile Gautier, e ‘Paraísos artificiais’, de Baudelaire, bem como em relatos de auto-experimentação de médicos e investigadores que eram publicados em folhetos jornalísticos.

    No mundo ocidental, as publicações subjectivas das experiências com drogas tinham as suas raízes no laboratório oitocentista do químico Humpry Davy com oxido nitroso, o gás do riso, que em experiências limite levara um grupo de filósofos da ciência à inconsciência. Só décadas mais tarde, em pleno século XIX, foi descoberto o poder anestésico do gás nitroso iniciando-se a era da cirurgia de larga escala.

    Em paralelo com as associações perceptivas intuitivas e com a percepção sinestésica, o impacto psicoemocional e fisiológico induzia – no caso do ópio, heroína e haxixe – um estado de beatitude serena e bem-estar relaxado. Ou o ´kif’, termo árabe para bem-estar, alegria, felicidade, que traduzia, nos meios magrebinos frequentados por aventureiros europeus, a euforia química dos consumidores de haxixe. “A sinestesia era tida como prova científica de que o haxixe – e agora o peiote/mescal – tinha o poder de criar experiências sensoriais que ninguém podia alcançar na vida normal, a não ser alguns indivíduos excepcionais”.

    O êxtase arrebatador de sobrecarga sensorial foi deliciosamente narrado por Baudelaire no poema ‘O comedor de ópio’:

    Estou submerso e deliciosamente afogado

    Música suave como um perfume e luz doce

    Dourada com aromas requintados e audíveis

    Também drogas estimulantes de actividade física e mental e antídotos contra a fatiga, como a cocaína, eram não só excipientes de fármacos como objectos de auto-experimentação em personalidades do mundo da Psicologia, como Freud.   

    O irmão do romancista Henry James, de seu nome William James, criador do conceito de fluxo de consciência – “uma confusão fluorescente e ruidosa de muitas maneiras diferentes de pensar onde correntes profundas de experiência mística se misturavam frequentemente com a espuma da vida quotidiana” – afirmava: “Sinto que não temos nenhuma desculpa filosófica para dizer que o mundo invisível ou místico não é real”.  A dessincronização cerebral sob ação dos psicadélicos ao dissolver as fronteiras tempo-espaço e o ego permite uma viagem ao inconsciente, uma experiência transformadora, um renascimento psíquico. William James sugeria que “a mente, nascida uma vez, por mais saudável que fosse, tinha tendência para um conservadorismo presunçoso e aborrecido, ao passo que o nascido duas vezes procurava a aventura e transformação”.

    As autoexperiências dos investigadores e o consumo colectivo no fim do século XIX, a época decadentista, filha dos valores emocionais e individualistas e dos mitos dos românticos criou o terreno para uma revolução artística e cientifica que estendeu as suas influencias para as vanguardas artísticas e cientificas do século XX: as impressões subjectivas dos impressionistas (1), os significados ocultos das obras dos simbolistas (2),  as utopias coloridas de Van Gogh (3), o terramoto terapêutico da Psicanálise e em pleno século XX os ângulos sobrepostos dos quadros de Picasso (4), a angústia visual de Edward Munch (5) e a teoria da relatividade espaço-tempo de Einstein.  

    A fruição das drogas estava associada ao estilo de vida de ‘dandy’, personificado por Oscar Wilde, ou a flâneurs, como Baudelaire, autor dos poemas ‘Paraísos artificiais’. Neste ambiente ‘fin de siécle’, o médico, esteta e critico de arte Havelock Elllis descreveu a sua primeira experiência com peiote (um cacto mexicano com conotações religiosas e espirituais das tribos indígenas) como sendo um novo paraíso artificial.

    As repercussões fisiológicas das drogas – como a dependência, ausência de controlo psicoemocional, busca incessante em detrimento de todas as outras actividades e as mortes prematuras de figuras públicas e ameaças crescentes à saúde pública – motivaram a regulação seguido do controlo legal internacional no século XX. O cenário das drogas transitou assim dos círculos artísticos e boémios para os palcos subterrâneos do crime e das actividades ilícitas, e dos balcões luminosos das farmácias para becos e clubes clandestinos. 

    No século XX, a Era Progressista da solidariedade social iria diluir o eu individual do século XIX, travar uma guerra feroz contra as drogas através da criação de Unidades Criminais de Narcóticos de âmbito internacional e a transformação do olhar social sobre o consumidor de droga de tolerante para critico, de ‘bon vivant’ para doente.    

    Na investigação de fármacos/drogas assistiu-se igualmente à supressão dos métodos de auto-experimentação dos investigadores, dado o carácter individual, subjectivo e dissociativo da experiência (o investigador ao consumir a droga era simultaneamente o observador e o observado) e à regulação dos estudos farmacológicos na forma de ensaios clínicos com dados objectivos, mensuráveis e replicáveis independentes do sujeito testado.    

    Nos anos 60 e 70, a corrente de contracultura, os movimentos hippie e New Age e o Maio de 1968 – simbolizado pelo grito de revolta anti-conformista ‘É proibido proibir’, de Cohn Benedict –, fariam renascer o eu inconsciente, subliminar com necessidades místicas e espirituais facilitadas pela expansão da consciência, a abertura das ‘Portas da percepcão’, relatada por Aldous Huxley nos anos de 1940. O LSD tornou-se um símbolo da cultura hippie e da ‘beat generation’, foi celebrizado e festejado no tema ‘Lucy in the sky with diamonds’, dos Beatles.

    O recente e crescente interesse pela psilocibina, como agente terapêutico das depressões refractárias à terapia convencional e poderoso indutor de prazer, de experiências místicas transcendentais e de introspeção, fenómenos psíquicos  altamente recompensadores, deve-se à dessincronização cerebral e à alteração da conectividade cerebral, esbatendo as fronteiras do tempo/ espaço e do eu.  

    O passeio circular das drogas desde a atmosfera complacente e livre do século XIX passando pelos obstáculos sociais e legais do regulado e conformista seculo XX, com escapes transitórios da cultura de ‘laissez faire’ dos anos 60 e 70 e de estimulo energético da frenética cultura contemporânea de consumo desregrado reflecte-se  nas drogas de cada época: os opiáceos contemplativos e relaxantes dos românticos e simbolistas novecentistas e dos ‘hippies’ e New Age do século XX, as anfetaminas e cocaína estimulantes do seculo XX e XXI. O poder dissociativo do eu, e os mundos paralelos de ilusão e alucinação dos psicadélicos do novo século são o equivalente químico farmacológico do metaverso e dos jogos de ‘roleplay’, e dos alter ego e avatares que animam e mascaram as redes sociais, mas com pontos de estimulação do universo emocional interno e possibilidade, através do auto-conhecimento, de ‘reset’ psicoafectivo.

  • O que é ser maçom no mundo de hoje

    O que é ser maçom no mundo de hoje

    Título

    A palavra ao Grão-Mestre

    Autores

    ARMINDO AZEVEDO

    Editora

    Guerra & Paz (Agosto de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Os desafios da Maçonaria Regular contados por dentro. É a esta a proposta da obra do Grão-Mestre da Grande Loja Legal de Portugal/Grande Loja Regular de Portugal (GLLP/GLRP), a maior obediência maçónica e a única no país que cumpre os critérios internacionais de regularidade.

    O livro reúne textos de Armindo Azevedo que foram publicados na comunicação social e alocuções que proferiu em assembleias maçónicas em longo dos últimos seis anos.

    Eleito, em 2018, Armindo Azevedo desempenhou as funções de Grão-Mestre durante dois mandatos. Actualmente, o economista e pós-graduado em Recursos Humanos, é o Embaixador da Confederação Maçônica Interamericana − CMI junto da Comunidade Maçónica Europeia. 

    O livro começa com um prefácio sobre ‘De onde vem e para onde vai a Maçonaria Regular’, seguindo-se uma Nota de Abertura sobre o facto do livro ter nascido do confinamento, que foi uma das medidas impostas pela estratégia de gestão radicai adoptada pelo Governo português na pandemia de covid-19.    

    De carácter mormente pedagógico e propagandista, porque serve como ‘panfleto’ sobre as actividades e ‘feitos’ da Maçonaria, este livro está organizado em 11 capítulos e inclui ainda uma ‘Introdução’ e ‘Notas Finais’.

    No capítulo sobre ‘As eleições de 2018 e o ciclo de abertura à sociedade’ são recordados os “dois momentos negativamente marcantes” do mandato de Armindo Azevedo: a pandemia; e a aprovação na Assembleia da República “da Lei regimental de declaração de pertença a associações ditas discretas, que visava claramente a Maçonaria”.  “Vieram-me à memória as perseguições perpetradas pelos ditadores Hitler, Mussolini, Franco e Salazar, e a famigerada Lei Cabral, de 1935, que levou Fernando Pessoa, não sendo maçom, a tomar a defesa da Maçonaria”, escreveu o ex-Grão-Mestre. Adiantou: “A aprovação desta Lei em pleno século XXI foi para mim interpretada como um sinal claro de que, passados 50 anos do 25 de Abril, ainda não aprendemos a viver plenamente em democracia”.

    Seja para os curiosos da Maçonaria ou para os anti-maçons, esta obra serve para fomentar a literacia sobre o mundo da Maçonaria em Portugal, em particular na maior obediência regular, desde que se entenda que se está perante um livro cujo autor foi Grão-Mestre, sendo um olhar de dentro. Tendo consciência desse facto, é uma obra valiosa para um maior conhecimento e compreensão de um universo que não está ao alcance de todos.   

      

  • Uma faca de dois gumes

    Uma faca de dois gumes

    Título

    O coração pensante

    Autor

    DAVID GROSSMAN (tradução: Lúcia Liba Mucznik)

    Editora

    Dom Quixote (Novembro de 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Uma das vozes literárias mais profundas e complexas de Israel, David Grossman é reconhecido tanto pela sua ficção quanto pelos seus ensaios e intervenções públicas. Nascido em Jerusalém em 1954, a sua carreira literária nota-se pela exploração das vulnerabilidades humanas e pelos dilemas éticos da sociedade contemporânea, transitando entre a dor íntima e o trauma coletivo, sempre com uma abordagem literária de fino recorte. Por isso, a sua obra transcende as fronteiras do conflito israelo-palestiniano – mas não a esquece, pelo contrário – e foca-se, amiúde, em questões universais como a perda, a memória e a procura de sentido em tempos de adversidade.

    Nesta colectânea de ensaios intitulada ‘O coração pensante’, Grossman reafirma o seu compromisso com uma literatura que questiona e ilumina. A obra reúne reflexões, que se iniciam em 2017 e se prolongam até ao presente ano, com enfoque aos acontecimentos após 7 de Outubro de 2023, o enfoque do prólogo. Acreditando que a literatura deve ser um espaço de resistência à indiferença, uma forma de capturar a essência humana mesmo em contextos de desumanização. Os textos de ‘O coração pensante’, reflectem uma sensibilidade que vai além da emoção imediata para integrar pensamento, ética e acção.

    Aliás, Grossman não se limita a explorar o sofrimento pessoal, não o explora para comover. Embora a dor seja um tema constante na sua obra, essa questão nunca aparece isolada; ela é contextualizada, analisada e, muitas vezes, transformada num convite à empatia, aparentemente impossível entre palestinianos e israelitas.

    Embora ‘O coração pensante’ não seja um manifesto político, Grossman não se esquiva das questões mais prementes deste seu e nosso tempo. O conflito israelo-palestiniano atravessa as suas reflexões, mas não como uma mera análise directa, mas como cenário e palco inevitável, sendo que David Grossman se posiciona como um crítico tanto das políticas de ocupação israelitas quanto da violência por parte de extremistas palestinianos.

    Em todo o caso, trespassa, desde logo no prólogo, escrito no dia 10 de Outubro do ano passado, um tom avassaladoramente crítico ao Governo de Netanyahu, que fere pela justa crueza: “Vejo também um profundo sentimento de traição. A traição dos cidadãos pelo seu governo. Traição a tudo o que nos é caro, a nós enquanto cidadãos, enquanto cidadãos deste Estado. Traição no sentido específico e vinculativo da palavra. Traição à garantia mais cara de todas – a lei nacional do povo judeu – que foi entregue aos seus dirigentes para salvaguarda, e que eles deviam ter tratado com reverência. E em vez disso, o que vimos? O que é que nos habituámos a ver como se fosse normal e inevitável? O que vimos foi o abandono deste país em benefício de interesses mesquinhos, de uma política cínica, tacanha de espírito e delirante. O que acontece hoje é o preço que Israel paga por se ter deixado seduzir durante anos por uma governação corrupta, que o conduziu de fracasso em fracasso. Que corroeu as suas instituições de direito e justiça, os sistemas militar e de educação; que estava disposta a colocá-lo perante um perigo existencial, a fim de salvar o primeiro-ministro de ser preso. Basta pensarmos naquilo em que colaborámos durante anos. Na energia, pensamento e dinheiro que desperdiçámos vendo a família Netanyahu representar o seu drama estilo Ceaușescu. Nas fraudes grotescas que ela encenou perante os nossos olhos estupefactos.”

    E, não esquecendo a barbárie do Hamas, há muitas críticas mais que sibilinas a Netanyahu, a quem os ataques terroristas serviram para a sua salvação política. “Nos últimos nove meses”, salienta Grossman, “milhões de israelitas manifestaram-se semanalmente contra o governo e contra o   homem que o chefia. Foi um processo extremamente importante que exigia devolver Israel a si próprio, à grandiosa ideia que está na base da sua existência: criar um lar para o povo judeu. E não um lar qualquer: milhões de israelitas queriam criar um estado liberal, democrático, amante da paz, pluralista, respeitador das crenças de todos os homens. Em vez de escutar o que o movimento de protesto propunha, Netanyahu preferiu desacreditá-lo, chamar-lhe traidor, incitar contra ele e aprofundar o ódio entre as partes. Mas aproveitou todas as oportunidades para declarar o quanto Israel era forte, determinado e, acima de tudo, preparado, preparado para enfrentar qualquer perigo. Diz isso agora aos pais loucos de dor, ao bebé atirado para a berma da estrada. Diz isso aos reféns, pessoas partilhadas como rebuçados entre as diferentes organizações terroristas. Diz isso aos que te elegeram. Diz isso às oito brechas no muro de fronteira mais sofisticado do mundo”. 

    E continua, assertivo, virando-se para o Hamas: “Mas não se pode errar e confundir: com toda a ira contra Netanyahu, os seus pares e os seus métodos, não foi Israel que causou aquele horror. Foi o Hamas quem o causou. A ocupação é certamente um crime, mas prender centenas de cidadãos, crianças, pais, idosos e soldados, e depois passar por eles um a um e disparar sobre eles a sangue-frio – é um crime muito mais horroroso. Na hierarquia do crime também há ‘graus’”.

    Lidas as crónicas, fica-se no fim com uma estranha sensação sobre a impossibilidade para um fim do conflito. Num dos ensaios, um discurso pronunciado na Praça Habima, em Telavive rem Maio de 2021, um Grossman profético sentencia: “Nós, os israelitas, ainda recusamos entender que terminou a era em que a nossa força pode decidir uma realidade cômoda apenas para nós, para as nossas necessidades e interesses. Será que a última guerra nos convencerá finalmente que, de certo ponto de vista, a nossa força militar já quase não é relevante? Que não importa quão grande e pesada é a espada que empunhamos, no final de contas qualquer espada é uma espada de dois gumes?”

    No final de 2024, vemos que essa faca de dois gumes continua a dilacerar a Humanidade.

  • À bolina culinária pelo melhor bago

    À bolina culinária pelo melhor bago

    Título

    O arroz português: um mundo gastronómico

    Autor

    FORTUNATO DA CÂMARA

    Editora

    Clube do Coleccionador dos Correios (Setembro, 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Começo com uma declaração de interesses: sou apaixonado pelo Arroz Carolino português. Faz parte da minha infância, das minhas memórias gustativas e das minhas aventuras culinárias na recriação de receitas tradicionais.

    Posto isto, foi com elevado entusiasmo que recebi a notícia de mais um livro escrito por Fortunato da Câmara (n. 1977), ainda por cima, versando o Arroz em toda a sua plenitude, desde as origens até às novas variedades autóctones de Arroz português, culminando com um excelente sortido de receitas para o leitor confeccionar, onde se especifica o tipo de variedade de Arroz a utilizar, medida que importa implementar cada vez mais para melhor informar o consumidor e o ajudar no seu processo de decisão de compra.

    O Arroz (da família das gramíneas e do género Oryza), que o historiador Fernand Braudel (1902-1985), considerou como uma das três “plantas da civilização” (a par do trigo e do milho), alimenta “3 500 milhões de pessoas no planeta, sendo cultivado em todos os continentes”. Em termos europeus, somos os maiores consumidores, com cada português a ingerir 17 kg/18 kg de Arroz anualmente, contra uma média europeia de 5,5 kg/ano por pessoa. Tal voracidade valeu-nos o epíteto de os “asiáticos da Europa”.

    Entre os especialistas em botânica, conforme refere o autor, “é aceite que a família [género] Oryza spp. se reparte entre 23 e 27 espécies diferentes”, embora, em diferentes bases de dados internacionais, estejam até ao momento “identificadas mais de 450 espécies de plantas Oryza, com variações a partir de espécies e subespécies distribuídas por todo o mundo”.

    Segundo Fortunato da Câmara, “a domesticação da planta Oryza a partir do seu estado selvagem foi um primeiro passo, quando há mais de 10 000 anos o homem de épocas remotas começou lentamente a colher e a tratar de um modo agrícola plantas e cereais espontâneos até conseguir fazer com eles as suas próprias culturas.” Os estudos arqueológicos apontam “duas grandes regiões de domesticação do Arroz onde foram achados pedúnculos ancestrais de espiguetas ainda intactas, em zonas de arrozais dos rios Yangtzé, na China, e do Ganges, na Índia”.

    Por esta altura, já o amável leitor terá notado que escrevo “Arroz” com o vocábulo grafado assim, em letra maiúscula. Tal como expresso pelo autor, também eu considero que este cereal “merece tratamento distinto como nome próprio, pois esta palavra única abraça o mundo e tem um papel maior na história da humanidade como alimento preponderante”.

    Há muito tempo que Fortunato da Câmara, jornalista e crítico gastronómico, tem vindo a defender não só a qualidade dos produtos de origem portuguesa mas também a sua boa confecção, promovendo uma educação do gosto. Nesse desiderato, enquadra-se perfeitamente o Arroz português, tão celebrado no receituário nacional mas que ainda não se alcandorou ao patamar de excelência que merece, a par de outras variedades de Arroz internacionais, que brilham em celebradas especialidades culinárias: “Comemos muito, mas descuidamos ainda mais em garantir que fazemos receitas perfeitas, como os melhores risotos, paelhas e afins que fazem o nome dos outros.”

    Em Portugal, existem dois tipos de Arroz cultivados, os “agulhas” e os “carolinos”, “nas margens e estuários dos rios Mondego, Sorraia, Tejo e Sado.” Destes, o Arroz Carolino do Baixo Mondego (2015) e o Arroz Carolino das Lezírias do Ribatejo (2008) possuem denominação de Indicação Geográfica Protegida (IGP). Apenas o Arroz Carolino do Sado ainda não tem esta denominação.

    Almarelo, Alvario, Amarelês, Arbelo, Campino, Ferónio, Lezíria, Saloio e Tardio são os nomes das variedades existentes de Arroz português. Não obstante, o grão carolino Ceres e o grão agulha Maçarico tornaram-se, em 2017, nas duas primeiras variedades autóctones de Arroz do séc. XXI. Em 2019, foi acrescentado a este rol o grão carolino Diana e em 2021, o carolino Caravela, que se espera venha a ser comercializado ainda neste ano de 2024: “Este Caravela promete uma descoberta no mundo dos carolinos, ao permitir que o bago se mantenha inteiro e cremoso, absorvendo sabores, trazendo um resultado final diferente do que por vezes sucede com a mistura de diferentes variedades na mesma embalagem.”

    Não só somos os maiores consumidores europeus como estão identificadas mais de 100 receitas de Arroz, abrangendo todas as regiões de Portugal, “entre livros portugueses de referência publicados desde o século XVII e recolhas populares.” Esta diversidade de receitas oferece-nos “uma espécie de fresco sobre a capacidade inventiva de o receituário português pintar com sabores de Arroz o nosso mapa gastronómico com uma distinção assinalável, que se destaca a nível internacional.” Fortunato da Câmara apresenta mesmo uma lista com 118 receitas onde o Arroz é protagonista, que vão desde o “Arroz de Cabidela”, na Carne, até ao “Pudim de Arroz”, na Doçaria.

    Apesar de toda esta riqueza culinária, ainda hoje somos confrontados com “a versão Arroz branco ‘soltinho’ de bago agulha, que surge como acompanhamento básico quase omnipresente nas ementas de inúmeros restaurantes de cozinha popular económica, fazendo parte da temível e discutível parceria ‘Arroz & batata frita’ que se alastrou de norte a sul do país.”

    Em confronto com a actual conjuntura culinária arrozeira, e como acto de resistência, propõe Fortunato da Câmara, em boa hora, um ilustre conjunto de receitas de “Arrozes regionais, tradicionais e populares” de norte a sul e ilhas, confeccionadas pelo Chefe Luís Gaspar (n. 1991). Nas receitas, são sugeridas as variedades de Arroz que devem se usadas na confecção destes pratos tão emblemáticos, pormenor que raramente, ou nunca, sucede encontrar-se em livros de culinária, sejam eles nacionais ou internacionais. À exceção do “Arroz de lampreia”, todas as receitas foram preparadas pelo Chefe Luís Gaspar, “em que foram utilizadas sete variedades de Arroz carolino, duas variedades de Arroz agulha e duas variedades de Arroz médio, no total de onze bagos de Arroz diferentes.” Neste capítulo, assinale-se “a inclusão, em estreia absoluta, de duas variedades autóctones de grãos carolino 100% desenvolvidas em Portugal nos últimos vinte anos: o Caravela e o Ceres.” Um triunfo da ciência em prol da gastronomia: conhecer e saber fazer para melhor comer.

    Para finalizar, destaque para a emissão de selos intitulada “Arroz Português”, que acompanha o livro, evidenciando algumas das especialidades culinárias mais emblemáticas do receituário nacional com selos dedicados ao Arroz de Cabrito, Arroz de Bacalhau, Arroz de Grelos e Arroz de Lampreia.

    Soberbo este périplo arrozeiro proposto por Fortunato da Câmara, manifestando-se como um elogio mas também uma verdadeira defesa do nosso património culinário, que tanto nos agasalha o espírito e aguça o paladar.

  • Relatos do dono do Felício

    Relatos do dono do Felício

    Título

    Aventuras de um alferes em Angola

    Autor

    PEDRO BELTRÃO

    Editora

    Oficina do Livro (Julho de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Os testemunhos sobre guerras configuram um estilo literário singular, situado na confluência entre a História e a literatura, e ainda por vezes o jornalismo. Este género caracteriza-se por apresentar narrativas pessoais, frequentemente na primeira pessoa, que procuram documentar eventos marcantes de conflitos armados, oferecendo perspectivas humanas e íntimas sobre acontecimentos de dimensão colectiva. Estes textos transcendem muitas vezes o mero relato de factos, explorando as emoções, os dilemas éticos e os traumas vividos pelas pessoas comuns, soldados, vítimas civis ou até líderes políticos.

    Historicamente, os testemunhos de guerras têm servido como fontes primárias de valor inestimável para historiadores e leitores interessados nos conflitos que moldaram o mundo. No século XX, por exemplo, obras como o ‘Diário de Anne Frank’, que documenta o terror vivido durante a perseguição aos judeus na Segunda Guerra Mundial, tornaram-se ícones universais deste género. Outro exemplo é ‘Se isto é um homem’, de Primo Levi, que descreve com uma linguagem crua e profundamente reflexiva a sua experiência como prisioneiro em Auschwitz. Estes testemunhos não apenas relatam os factos, mas também humanizam as estatísticas de guerra, trazendo para o primeiro plano as vidas que se perderam ou foram irrevogavelmente alteradas.

    A literatura testemunhal de guerra em Portugal também tem os seus expoentes. Durante a Primeira Guerra Mundial ficou o testemunho de Jaime Cortesão, com o seu ‘Memórias da Grande Guerra’, como médico voluntário do Corpo Expedicionário, ou ainda ‘Nas trincheiras da Flandres’ e ‘Calvários da Flandres’, de Augusto Casimiro. Na Guerra Colonial (1961-1974), o último conflito militar com participação portuguesa, abundam os relatos, mas nem sempre com grande divulgação. Talvez o mais marcante seja ‘D’este viver aqui neste papel descripto’, compilação de cartas que o médico e escritor António Lobo Antunes escreveu à família durante a sua estadia em Angola. Estas cartas oferecem uma visão mais pessoal e directa do impacto emocional da guerra, complementando os seus romances.

    Podendo inserir-se neste género, o livro ‘Aventuras de um alferes em Angola’, que retrata a experiência de Pedro Beltrão, gestor e escritor – autor, por exemplo, dos romances do género histórico ‘Tempo de esperança’ e ‘O mordomo do rei’ -, em Angola entre 1963 e 1967, acaba por ser mesmo mais um livro de ‘aventuras’ do que um livro sobre a guerra, porque, ao longo das suas 190 páginas, há pouco de conflito (uns tiros e umas desmontagens de minas), e quando relatado, se faz sem grande emoção ou detalhe.

    Já no caso das ‘aventuras’, estas vão-se sucedendo ao longo do livro, ao ponto de o macaquinho Felício, que Pedro Beltrão comprou a um soba e chegou a trazer para Portugal no fim da comissão, se tornar mesmo um quase-protagonista, ou o ponto mais interessante.

    De leitura fácil, e num relato escorreito e bem escrito, o livro de Pedro Beltrão pode também servir como documento sobre um conflito que, pelo menos em Angola, aparenta não ter sido, pelo menos na zona onde Pedro Beltrão esteve, tão traumatizante. Mas, convenhamos, que lhe falta profundidade e substância. Grande história, sim, mesmo se ficcionada, daria a vida do macaquinho Felício que, depois de uma rocambolesca fuga na Estrada da Luz, acabou doado a um sanatório da Parede, onde foi mascote dos doentes durante muito tempo, mas sem que alguém lhe tenha dado testemunho. Essa sim seria uma grande história, a atender à ‘personalidade do bicho’ apenas aflorada por Pedro Beltrão nas suas ‘aventuras’ como alferes.