Etiqueta: Quetzal

  • Ler a Bíblia de faca e garfo

    Ler a Bíblia de faca e garfo

    Título

    A Mesa de Deus – Os Alimentos da Bíblia

    Autora

    MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI

    Editora (Edição)

    Quetzal (Novembro de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Como todos talvez saibam, a Bíblia continua a ser não só um dos livros mais lidos e traduzidos no mundo, como também um dos mais estudados, interpretados e analisados, servindo o seu conteúdo a um surpreendente manancial de abordagens diferentes. Nos últimos tempos, uma dessas abordagens diz respeito aos alimentos mencionados na Bíblia, bem como aos utensílios, as práticas à mesa, aos animais, plantas, entre muitas outras referências de igual curiosidade e importância.

    Depois de, em 2011, o Chef Luís Lavrador ter dado à estampa Ao sabor da Bíblia (edição Casino Figueira, que registou outra publicação em 2017 na editora Alêtheia), eis que surge uma nova dissertação em língua portuguesa acerca da temática da alimentação na Bíblia, desta feita pela mão de Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti (n. 1950), jornalista e investigadora de gastronomia, que nasce após uma conversa entre a autora com o então padre Tolentino Mendonça, que assina o texto de abertura do livro.

    “Entrar na Bíblia pela porta da cozinha é um argumento mais sério do que se possa supor. E também mais espiritual”, assinala Tolentino Mendonça, uma vez que o livro oferece “estratos complementares de conhecimento: constitui uma espécie de micro-história da Bíblia”. De acordo com o agora Cardeal, a autora precisou de mais de uma década para concretizar este projecto, que, nas suas palavras, “não é apenas um ensaio exaustivo sobre a mesa bíblica: é um convite a entrar, um abrir da mesa, uma coreografia de odores, uma prática do saborear”.

    Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti leu e releu a Bíblia tendo o cuidado de anotar todas as referências ao tema: “E em cada passagem revela hábitos do povo de Deus, incluindo os alimentares: os sabores estão por toda a parte, do fruto proibido à Última Ceia, do maná no deserto do Sinai aos pães de cevada da Galileia, dos peixes secos do lago de Tiberíades (…) ao vinho que jorrava das talhas de uma casa em Caná”.

    Ficamos assim a saber que “a cozinha da Bíblia era feita com uma grande quantidade de ervas, especiarias, cereais e leguminosas, trazidos em caravanas da Índia e da Península Arábica, que eram usados na preparação dos pratos e no fabrico de pão e cerveja”, que “os hebreus utilizavam azeite de oliveira; da uva, faziam vinho e vinagre; com o leite de cabra, ovelha e vaca, preparavam queijos frescos ou secos” e “adoçavam os produtos com mel de abelha”. De todos os alimentos, “o mais importante foi sempre o pão”.

    Este livro revela um trabalho minucioso, de filigrana, na recolha de citações referentes à alimentação, todas elas com indicação do respectivo versículo, “desde os livros mais antigos (Pentateuco), até aos posteriores (Novo Testamento), do primeiro (Génesis) até ao último (Apocalipse)”, com notas acerca do contexto histórico, social ou religioso, igualmente cheio de menções a outras obras literárias como a Ilíada, a Odisseia, O Épico de Gilgamesh.

    O livro, naturalmente, está recheado de referências, numa abordagem muito interessante, completa e abrangente, onde se vislumbram as influências históricas da actual Dieta Mediterrânica. Mas também se mencionam os animais domesticados para a alimentação ou para outras finalidades, como o gado bovino, que, além da carne, também fornecia leite, queijo e couro, sendo a sua carne especialmente utilizada em ocasiões especiais. O gado caprino, desde o cabrito ao cordeiro, da cabra à ovelha, era o tipo de carne mais presente nas mesas da época.

    Acerca de aves, a Bíblia é profusa na referência de muitas espécies, embora para a alimentação algumas fossem consideradas impuras. Já aquelas permitidas “eram quase sempre assadas; mas também podiam ser salgadas e secas ao sol, ou cozidas e conservadas em gordura dentro de grandes recipientes”.

    Não sendo possível aqui referir todas as suas singularidades, apenas deixo umas breves notas assaz curiosas e inusitadas que a leitura deste livro proporcionou. Por exemplo, os alimentos estranhos que se encontram mencionados na Bíblia, como os insectos que então se comiam, como gafanhotos ou grilos, sendo João Baptista um dos mais gulosos, pois “preferia comê-los com mel” silvestre. Os excrementos de pessoas ou de animais, em determinadas situações, “também serviram de alimento”. Mas havia também quem se alimentasse de cinza, “do próprio vómito” ou o mais extremo, praticasse o canibalismo.

    Um livro que seguramente não deixará ninguém indiferente, seja qual for a orientação religiosa do leitor, pois uma coisa é certa: todos precisamos de comer e o mais importante é saber aquilo que comemos e como comemos.

  • Uma alma antiga feita de histórias

    Uma alma antiga feita de histórias

    Título

    Terra: Uma história do Esporão

    Autor

    JOÃO PEDRO VALA

    Editora (Edição)

    Quetzal (Junho de 2023)

    Cotação

    12/20

    Recensão

    No ano de 1973, um encontro entre José Alfredo Parreira Holtreman Roquette (n. 1936) e Joaquim Alberto Rodrigues Bandeira (1934-2003) esteve na origem de uma marca que se constituiu como uma referência nos Vinhos em Portugal. Agora, para celebrar o seu quinquagésimo aniversário, a Herdade do Esporão revela a sua História através de cinquenta pequenas narrativas pela mão do escritor João Pedro Vala (n. 1990), autor do romance Grande turismo, publicado pela Quetzal em 2022, numa abordagem irreverente mas que continua o legado inovador da Herdade do Esporão.

    No Prefácio, João Roquette esclarece que pretendiam “um livro que assinalasse o que de mais relevante se passou nestes anos.” No entanto, em vez de uma abordagem histórica e factual, optaram por uma abordagem “romanceada e livre: cinquenta estórias inspiradas em acontecimentos, mitos e abstracções que envolvem, de alguma maneira, o Esporão.” O mais importante “seria que neste livro habitasse a alma do Esporão, uma alma antiga e colorida pela extraordinária riqueza e diversidade dos que por aqui passámos.”

    Começa João Pedro Vala, em Nota Introdutória, por alertar o despreocupado leitor de que o que está prestes a ler são tudo histórias ficcionais: “Todas as histórias que contamos uns aos outros são ficcionais a partir do momento em que decidimos a ordem dos acontecimentos, o contexto que lhe damos, o encadeamento dos elementos.”

    Embora ficcionadas, o autor baseou-se em histórias que lhe foram contadas por várias pessoas associadas à Herdade do Esporão, sendo em momento posterior pelo seu estro “deliberadamente adulteradas, truncadas e misturadas para efeitos narrativos.”

    Depois, numa outra passagem, esclarece que “alguns nomes mantiveram-se, outros não, algumas pessoas vivem neste livro coisas que aconteceram a outras e há até uma história aí para o meio que não tem ponta de verdade (ou talvez também isto seja um artifício do escritor para se proteger de eventuais acusações).”

    Infelizmente, neste jogo literário, as narrativas não fornecem chaves suficientes para se distinguir a verdade da ficção e essa mistura não se afigura de receita fácil para quem lê. Alguns capítulos contêm narrativas de tal maneira herméticas, que pouco ou nada esclarecem o leitor acerca da sua inclusão ou em que sentido dizem respeito à história do Esporão. Exemplo disso verifica-se no capítulo I – Haifa, 11 000 a.C., ou no capítulo XII – Costa da Caparica, 1979, só para citar dois casos.

    Certas narrativas são mais lineares, num registo jornalístico, factual, onde se segue a linha do tempo para determinado assunto, por vezes com episódios curiosos, até mesmo mirabolantes, acerca da maneira como a Herdade do Esporão se foi construindo e afirmando no panorama nacional ao longo dos anos, demonstrando a sua visão para o sector, em contraste com um país saído do 25 de Abril, ainda a pensar pequenino, preso aos seus atavismos e burocracias, tiques e manias que se mantém até hoje.

    Para o leitor que aqui vem à procura da história tintim por tintim da Herdade do Esporão, desengane-se, pois não a irá encontrar. Mas é sobre vinho, e isso é sempre um bom propósito para ler um livro.

  • O magnífico voo do colibri

    O magnífico voo do colibri

    Título

    O colibri

    Autor

    SANDRO VERONESI (tradução: Cristina Rodrigues e Artur Guerra)

    Editora (Edição)

    Quetzal (Março de 2022)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Sandro Veronesi é considerado um dos mais importantes romancistas italianos dos últimos trinta anos e é um (o outro é Paolo Volponi) dos dois únicos que ganharam duas vezes o Prémio Strega, o mais prestigiado prémio literário entre os que reconhecem obras em italiano. 

    Nasceu em Florença, em 1959, e licenciou-se em arquitetura. Entre os seus livros destacam-se: Caos calmo, adaptado ao cinema e interpretado por Nanni Moretti, nomeado como actor para o Urso de Ouro do Festival de Berlim, em 2008.

    Este, O colibri, publicado em Portugal pela Quetzal, terá também, em breve, uma adaptação ao cinema. O livro é um excelente romance que impõe uma releitura, porque é riquíssimo em referências e pormenores que nos prendem desde o início, e sendo tantos e tão ricos não os apreendemos a todos na primeira leitura.

    O título remete para a alcunha que o protagonista, Marco Carrera, médico oftalmologista, tinha em criança, dada pela sua mãe, por causa da sua pequena estatura, abaixo do percentil considerado normal. O problema físico resolveu-se, na adolescência, com um tratamento à base de hormonas de crescimento, mas Marco permanece toda a vida um colibri por causa da sua capacidade de permanecer no ar, apesar das adversidades.

    Numa carta que lhe é enviada por outra personagem, Luísa, é-lhe dito: “Consegues ficar parado no mundo e no tempo, consegues parar o mundo e o tempo à tua volta, às vezes consegues até remontar e recuperar o tempo perdido, tal como o Colibri és capaz de voar para trás. Por isso, é tão agradável estar ao teu lado.”

    O livro é uma saga familiar, marcada por uma sucessão de perdas e de impossibilidades que marcam profundamente Marco que, apesar de tudo, se reergue, se reorganiza voltando a cair e a organizar-se, numa vertigem de perdas irreparáveis (a morte de uma irmã, o afastamento do irmão, a doença do pai e depois da mãe de quem tem que cuidar até à morte) e a vivência de relações fortes tecidas com uma ternura que nos comove (a filha, com problemas psiquiátricos, de quem fica responsável quando se separa da mulher,  a neta linda, Miraijin, de uma beleza exótica, que vem encher de alegria e esperança a parte final da vida do protagonista).

    O mais surpreendente, contudo, é a voz do narrador polifónico: a correspondência entre Marco e Luísa, que vivem um amor sempre no limbo, sempre a pairar e só no final do livro percebemos na sua totalidade, os telefonemas, com outros personagens que aparecem transcritos assim como as SMS e os e-mails, versos citados, frases de outros romances inseridas no discurso, alusões frequentes a outras formas de arte, músicas e letras de canções, obras de arte e de design, mistura de ficção e realidade, títulos de livros e, um dos capítulos, é até a adaptação (ou transcrição?)  de um conto de Beppe Fenoglio, Il gorgo. O autor explica-nos todas essas referências no final do livro.

    A narrativa não está organizada linearmente, oscila no tempo, há penumbras que antevemos e só mais tarde se iluminarão, ora pelas analepses proporcionadas por jogos de memórias, ora pelas prolepses que antecipam momentos decisivos para as personagens. Mas o ritmo é encantatório com uma beleza de linguagem sem notas dissonantes que não conseguimos deixar de seguir numa leitura que não conseguimos largar.