Etiqueta: Porto Editora

  • Uma história banal

    Uma história banal

    Título

    Perla, a cadelinha poderosa

    Autora

    ISABEL ALLENDE & SANDY RODRÍGUEZ (ilustração)

    Editora

    Porto Editora (Maio de 2024)

    Cotação

    10/20

    Recensão

    Isabel Allende, um dos nomes mais consagrados da literatura latino-americana, e ainda hoje recordada como autora de uma das obras mais marcantes do realismo mágico, o soberbo ‘A casa dos espíritos’ (1982), teve, na verdade, a sua estreia literária com um livro infantil, em 1974, intitulado ‘La abuela Panchita’, que teve continuidade nesse mesmo ano com ‘Lauchas y lauchones, ratas y ratones’. Julgo nunca terem sido publicados em Portugal.

    Ao longo dos anos, Isabel Allende, de nacionalidade chilena, apesar de acumular com a cidadania norte-americana, esteve sempre um pé no público mais jovem, escrevendo diversas novelas juvenis, entre as quais a trilogia ‘As memórias da Águia e do Jaguar’, publicadas em Portugal na primeira década do presente século na extinta Difel.

    Em 2024, aos 82 anos, e meio século depois dessa sua estreia, Isabel Allende regressa ao livro infantil com ‘Perla, a cadelinha poderosa’, que pode deslumbrar o público-alvo, mas levanta questões sobre os desafios que os escritores reconhecidos pelo público adulto enfrentam se se aventuraram na literatura para crianças.

    E há uma certa frustração quando se folheia, e se ‘lê’ esta ‘Perla, a cadelinha poderosa’, que conta a história de uma cachorrinha pequena e corajosa que, mesmo com seu tamanho diminuto, se mostra heróica em diferentes situações, assim ‘ensinando’ a Nico como se deve comportar durante o ‘bullying’ escolar. Embora a premissa da superação por meio da coragem seja uma ideia interessante, especialmente quando destinada ao público infantil, o enredo não se destaca pela originalidade. A superação de desafios aparentemente impossíveis face ao ‘tamanho’ é uma metáfora clássica e amplamente utilizada na literatura para crianças, mas talvez se pudesse aguardar que, com Isabel Allende, essa abordagem trouxesse qualquer elemento inovador ou surpresa narrativa. Nada: é uma banal história, embora simpática.

    A ausência de qualquer realismo mágico – a assinatura de Allende em obras como ‘Eva Luna’ ou ‘A Casa dos Espíritos’ –, que, por certo, seria bem acolhido pela ‘criançada’, é talvez o que mais marca este livro, com ilustrações da norte-americana Sandy Rodríguez que ‘não aquecem nem arrefecem’. A história é linear e mais do que previsível.

    Resta assim saber se os pais – ou até avós – que cresceram a ler os romances de Isabel Allende –, vão comprar este livro só por causa do nome da autora, e, com isso, a autora ganha um cobres. Pode até suceder, mas, confessa-se, que este pequeno livro, num género que não deve ser considerado menor, nada acrescenta de positivo, pelo contrário, para a bibliografia da escritora chilena.

  • Espíritos inconformistas

    Espíritos inconformistas

    Título

    Velar por ela

    Autor

    JEAN-BAPTISTE ANDREA (tradução: Isabel Ferreira da Silva)

    Editora

    Porto Editora (Maio de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Jean Baptiste Andrea, um guionista que se sentia limitado pelo cinema, liberta a imaginação e emoção neste romance. O seu percurso inicial como escritor foi difícil até encontrar a editora L’Iconoclaste que lhe garantiu que o livro seria ‘um fogo de artificio’. E assim venceu o Premio Goncourt no ano passado, que agora chegou a Portugal numa oportuna edição da Porto Editora.

    Em ‘Velar por ela’, Pietra de Alba é uma pequena vila onde brotam fontes miraculosas e a luz de aurora banha o planalto de rosa matizado, sendo o cenário das aventuras de Michelangelo Vitaliani (Mimo) e Viola Orsini.

    Mimo é um anão de personalidade magnética e talento artístico excepcional, que desvela pacientemente estátuas com movimento de enormes blocos de mármore, enquanto Viola se apresenta como uma aristocrata romântica que transcende normas e comportamentos sociais: filha do planalto, guia-se pelas florestas com a sua bússola interna, convive com ursos e escuta os sons do submundo em incursões nocturnas ao cemitério.

    Os dois adolescentes de meios sociais opostos – numa era sem nuances, em que se é ou rico ou pobre, ou letrado ou analfabeto – constroem um amizade forjada na necessidade de extravasarem fronteiras: físicas, no caso de Mimo; e sociais, no caso de Viola. Ela voa; Mimo esculpe. As experiências aeronáuticas, a construção em segredo dum parapente em que Viola se lança do telhado da casa para escapar a um casamento de conveniência, acabam em queda livre protegida por uma árvore, com ossos e sonhos fragmentados. As cicatrizes internas e externas moldam o futuro da jovem mulher: “Je suis une femme debout au beau millieu des guerres que vos avez déclenchée/ Je suis celle que vous appelez quando tout se effondre autor de vous/ Mais que vous brulerez encore des que tout ira bien, ou cas ou je verrais que tout ne vas pas bien/ Vous me consumerez, vous me reduirez en cendres, vous me disperserez, ou vous croirez le faire car votre feu est sans chaleur et ne brule rien/Je suis une femme debout, j’ en vaut mille comme vous“. 

    Mimo, famoso escultor protegido pelo Vaticano, cria a sua obra-prima, a Pietá Vitaliani, causando estranhas reacções psicossomáticas aos apreciadores de arte. A Pietá é a homenagem pétrea e intemporal de Mimo à sua eterna amiga Viola. Quando o Vaticano, perturbado pelos relatos de crises sobrenaturais à visão da obra, decide escondê-la nas catacumbas de um convento, Mimo segue então as pisadas da sua expressão artística e amorosa, retirando-se para as montanhas, para ‘Velar por ela’: por Viola e por Pietá. 

    E é no seu leito de morte, nos anos 80, que Mimo evoca os anos turbulentos entre 1918 e 1946, tendo também como pano de fundo a ascensão da ditadura fascista de Mussolini e a sua dança com a Santa Sé, num clima social opressivo de poder bélico e patriarcal, mas onde não há lugar para mulheres brilhantes, como Viola, que recitam livremente todas as variantes do vento : tramontana, siroco, libecio, ponant, mistral…

  • Manifesto pela loucura

    Manifesto pela loucura

    Título

    O perigo de estar no meu perfeito juízo

    Autora

    ROSA MONTERO (tradução: Helena Pitta)

    Editora (Edição)

    Porto Editora (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Com uma obra traduzida em mais de 20 línguas, Rosa Montero é uma reconhecida autora espanhola, natural de Madrid, onde nasceu em 1951. Aos 73 anos de idade, a autora, jornalista de formação e profissão, ainda trabalha com o El País; algo que faz desde 1976, onde foi chefe de redacção do suplemento de Domingo, entre 1980 e 1981.

    Em 1978 ganhou o primeiro prémio de jornalismo, o Prémio Mundo de Entrevistas – área em que se especializou. Outros tem ganhado como jornalista, mas também como escritora. Em 2017, por exemplo, foi galardoada com o Prémio Nacional das Letras, tendo sido em 1979 que começou a viver o seu sonho de escrever ficção – Cronica del desamor, é o seu primeiro romance.

    Em 2022, foi galardoada com a Medalha de Ouro de Mérito em Belas Artes e com o Prémio Especial dos Prémios “El Ojo Crítico” da XXXIII RNE. Em Espanha, O perigo de estar no meu perfeito juízo foi considerado o Melhor Livro de Não-Ficção pelo Sindicato dos Livreiros.

    Nesta obra, agora publicada, em Portugal, pela Porto Editora, a dimensão jornalística está muito presente, estando este ensaio muito próximo do livro de divulgação científica. Para os admiradores de Rosa Montero, que ainda não conhecem a sua vertente jornalística, pode ser uma agradável surpresa perceber como a sua escrita é tão cativante e envolvente como nos seus romances.

    A louca da casa, publicado há vinte anos, é facilmente reconhecível, estando, até, omnipresente ao longo deste livro autobiográfico. Além desse quase intertexto com A louca da casa, Rosa Montero demonstra a sua capacidade de pesquisa e de síntese no tema principal do livro: a presença de distúrbios mentais, entre muitos artistas e escritores, e de como esses desequilíbrios podem ser essenciais para as obras que aqueles e outros autores conceberam e publicaram, ou por eles foram publicadas post mortem.

    A autora retirou-se três anos para estudar psicologia e para investigar o que outros escritores considerados doidos, alcoólicos ou dependentes de outras drogas sofreram por serem estranhamente anormais, ou pior, loucos ao ponto de serem internados, como é o caso de Sylvia Plath.

    A história desta poeta é uma das biografias que Rosa Montero reconstrói para nos dar conta de como o sofrimento é um sentimento permanente, do qual se pode sair, ou pelo menos suspender, por intermédio da escrita. A escrita é uma não escolha. É a salvação de quem tem inúmeras vozes que dialogam nas cabeças, como as de muitos escritores – motivo pelo qual têm de necessidade de escrever.

    A tese de Rosa Montero é a de que a criatividade também é fruto da excentricidade, do facto de se sentir inadequada – como descreveu, também, em A louca da casa. Reconhecer essa extravagância e dar espaço e voz às alucinações é reconhecer a matéria-prima para escrever ou construir a obra.

    Neste exercício e ensaio, Rosa Montero, que “sempre soube que na minha cabeça alguma coisa não funcionava muito bem”, prova a si própria que está tudo bem em ser vulnerável, diferente e ter sentimentos suicidas – que, no seu caso, ainda bem que não os concretizou.

    Mas, como Rosa afirma, “a lista é arrasadora”: Cesare Pavese, Gérard de Nerval, Jack London, Maiakovski, Anne Sexton, Mishima, Walter Benjamim, Alejandra Pizarnik, Hemingway, David Foster Wallace, Gilles Deleuze, são alguns dos que a autora refere na página 180.

    Como em muitos romances, existem várias histórias secundárias e/ou paralelas. Uma é a de uma impostora que usurpou a identidade de Rosa Montero. Este é, aliás, um dos temas do livro. A ideia de que muitos artistas e escritores se sentem impostores na sua escrita, de que não são suficientemente bons e que quando fazem e/ou escrevem algo extraordinário, não terão sido eles ou terão sido bafejados pela sorte.

    Em relação a essa história paralela, a autora vai-nos dando a conhecer pormenores, sórdidos até, que nos provocam curiosidade, desejando saber mais e como e se terminou essa usurpação, bizarra e assustadora, da sua identidade por parte de outra mulher.

    Há um zumbido que sai do interior da obra e que ecoa no local mais profundo da nossa mente. O zumbido do mundo. Há uma pulsação essencial, um ritmo embriagador. É só preciso aprender a deixar-nos levar. A não ter medo de perder o contacto com o chão. Escrever é dançar, e a música foi-me levando, com quem desenha passos no ar, até chegar a estas linhas que escrevo agora” (pp. 200-201).

  • Uma tragédia com um final feliz

    Uma tragédia com um final feliz

    Título

    70072: A menina que não sabia odiar

    Autora

    LIDIA MASKSYMOWICZ (tradução: Ivan Figueiras)

    Editora (Edição)

    Porto Editora (Janeiro de 2023)

    Cotação

    12/20

    Recensão

    As histórias sobre o Holocausto, narradas através da tela do cinema ou em livros, são inúmeras. Esta, é sobre Lidia Maksymowicz, uma sobrevivente dos campos de concentração nazis que foi levada para Auschwitz-Birkenau com apenas três anos e de onde só saiu treze meses depois, em Janeiro de 1945. Dizem os historiadores que foi a criança que passou mais tempo em Birkenau. Durante esse tenebroso período, foi uma das ‘cobaias’ de Josef Mengele para as suas experiências médicas, que incluíam a administração de vacinas a pedido de empresas farmacêuticas.

    Lidia não era judia (actualmente é católica); nasceu na Bielorrúsia, filha de guerrilheiros da resistência. O seu pai não acabou nos campos de concentração; é forçado a juntar-se ao Exército Soviético, separando-se do resto da família – Lidia, a mãe Anna e os avós – antes de estes serem capturados e deportados pelos alemães.
    Esta obra, prefaciada pelo Papa Francisco, é inspirada no documentário 70072: La bambina che non sapeva odiare, feito pela associação La Memoria Viva. Os números 70072 são aqueles que Lidia tem tatuados no seu braço, uma marca em si deixada pelo regime nazi. Tal como a terrível experiência que viveu estará para sempre gravada na sua mente, os dígitos que a identificavam em Birkenau permanecem ainda, indeléveis, na sua carne. A tatuagem foi beijada pelo Papa Francisco, a 26 de Maio de 2021.

    Como Lidia admite, as recordações que guarda da passagem pelos campos não são muitas – não obstante que, entre as poucas que tem, algumas sejam bem vívidas. Outras, ainda, não está certa se serão, de facto, memórias do que viveu ou se são construções que a sua mente foi edificando com o tempo, com base no que, já depois de ter sido libertada, foi escutando, lendo ou vendo e absorvendo sobre o que era o dia-a-dia dos prisioneiros.
    A história de Lidia, pode dizer-se, é daquelas que termina com “um final feliz”. Para além de ter conseguido escapar com vida da barbárie por que passou, foi adoptada, depois da libertação pelo Exército Vermelho, por uma mulher polaca, Bronislawa. Recomeçou a sua vida na Polónia, com a sua família adoptiva, na província de Oświęcim – lugar onde permanece até hoje, e que passou a considerar a sua casa.

    Também a sua mãe biológica sobreviveu aos campos nazis, e as duas reencontraram-se, finalmente, em 1961, já 17 anos após terem sido separadas em Birkenau. Este emotivo reencontro, que teve lugar em Moscovo, foi alvo de intensa cobertura mediática na altura, tanto pela comunicação social soviética como polaca.  Como Lidia explica, representou um dia que o regime soviético queria que fosse “histórico” e gritado aos sete ventos, para transmitir a imagem de que a União Soviética se preocupava com os filhos da sua terra. 

    70072 – A menina que não sabia odiar é um testemunho bonito de uma história que merece indubitavelmente ser contada, mas que acaba por ser apenas mais uma no meio de milhentas que já existem sobre Segunda Guerra Mundial. Não consegue ser particularmente impactante, e o leitor fica com a sensação de que o relato se sustenta mais nos factos que já são do senso comum – e que já foram repetidos múltiplas vezes ao longo das últimas décadas – do que nas memórias individuais e singulares desta sobrevivente em específico. Acaba por ter, por isso, um tom um pouco superficial e “fabricado”, carecendo de profundidade e sendo abundante em lugares-comuns.

    O momento mais comovente do livro é, então, aquele que se centra na reaproximação, após quase duas décadas de afastamento, de Lidia com a sua mãe biológica. As emoções contraditórias e humanas que envolvem este “retorno” improvável (e milagroso) da filha aos braços da mãe – já como uma mulher adulta e casada, e não como a criança que era –, conferem “cor” e intensidade à narrativa, que de outra forma não teria.

  • A mão e o abismo

    A mão e o abismo

    Título

    Dor fantasma

    Autor

    RAFAEL GALLO

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Março de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    A escrita de Dor fantasma terá sido, de certo modo, um exercício catártico para Rafael Gallo, que se digladiava com uma depressão durante o processo criativo. O labor não foi em vão: a obra valeu ao autor brasileiro o Prémio Literário José Saramago 2022. Uma distinção que o escritor almejava, já que é um fã assumido do Nobel português da Literatura e leu quase todos os seus livros.

    Nascido em São Paulo, Rafael Gallo venceu também o Prémio São Paulo de Literatura pelo romance Rebentar, lançado em 2015, e o Prémio Sesc de Literatura com o livro de contos Réveilon e outros dias, de 2012.

    Dor fantasma é aquilo que o título dá a entender: uma história de dor, tanto física como emocional, que tem como protagonista Rômulo Castelo, um ilustre pianista que vê o seu mundo ruir quando perde a mão direita depois de ser atropelado por um motociclista à porta da universidade onde ensina a sua arte. Após o acidente, é-lhe amputada não só a extremidade do braço direito como toda a sua (frágil) identidade.

    Rômulo é um homem profundamente atormentado, e por isso intragável, para quem os que o rodeiam são seres ineptos, sempre aquém da perfeição e da excelência – qualidades que procura incessantemente alcançar através do seu trabalho. O seu trato difícil e frequentemente agressivo começa, a pouco e pouco, a alienar todos os que lhe são mais próximos. A sua mulher, Marisa, os seus alunos e colegas vão começando a perder a tolerância com a atitude hostil do pianista, que parece ter construído um fosso entre si e tudo o que não seja o seu piano.

    Até ao fatídico dia que o priva do seu instrumento de trabalho, os dias de Rômulo são quase todos iguais. Quando o despertador toca de manhã, fecha-se na sua sala de estudos, a sós com o seu Steinway para praticar o Rondeau Fantastique, a “peça intocável” do reputado pianista e compositor húngaro Franz Liszt. Rômulo é um dos melhores intérpretes do artista, e cada execução que repete da partitura é rumo a tornar-se numa espécie de “reencarnação” do compositor. O engenho que exibe foi herdado – ou incutido – pelo seu pai, George Castelo, um maestro que inculcou no filho, a par da paixão pela música, uma disciplina indefectível.

    Rômulo também tem um filho, de oito anos, a quem deu o nome Franz em homenagem ao seu ídolo, mas o descendente nunca irá preservar o talento que corre nos genes dos homens da família, já que sofre de uma forma rara de paralisia cerebral. Por isso, “Franzino” apenas recebe do pai uma declarada rejeição.

    De facto, o abismo começa a desenhar-se com as queixas por agressão dos seus alunos e o pedido de divórcio de Marisa. A partir daí, a descida aos infernos é ininterrupta. Não podendo fazer a tour pela Europa que tinha planeado antes de ser amputado, Rômulo deixa de ter a única razão que tinha para existir, e para que, pelo menos, o seu corpo estivesse presente, já uma espécie de ‘fantasma’.

    Nesta obra, as palavras seguem um encadeamento lírico, uma procede a outra, como se juntas formassem uma composição musical. Têm movimento, exaltam-se na leitura. Há uma ordem que é bela, o ritmo é compassado. A história é desconcertante. Dor fantasma é um romance sólido, pleno e arrebatador.

  • Um enteado à sombra do pai

    Um enteado à sombra do pai

    Título

    A viúva

    Autor

    JOSÉ SARAMAGO

    Editora (Edição)

    Porto Editora (Novembro de 2022)

    Cotação

    12/20

    Recensão

    Em 1991, no ano em que publicou o polémico O Evangelho segundo Jesus Cristo – e já sendo um escritor consagradíssimo, depois de Levantado do chão (1980), do sublime Memorial do convento (1982), de O ano da morte de Ricardo Reis (1984), de A jangada de pedra (1986) e de História do cerco de Lisboa (1991) –, José Saramago contou a génese do seu romance de estreia: Terra do pecado, publicado em 1947, quando o único Prémio Nobel da Literatura da língua portuguesa contava 25 anos: “Foi publicado pela Minerva, mas o editor achou que A viúva não era um título comercial e sugeriu que se chamasse Terra do Pecado. Pobre de mim, queria era ver o livro editado e assim saiu. De pecados sabia muito pouco e, embora a história comporte alguma actividade pecaminosa, não eram coisas vividas, eram coisas que resultavam mais das leituras feitas do que duma experiência própria. Não o incluo na minha bibliografia, apesar de os meus amigos insistirem que não é tão mau como eu teimo em dizer. Mas como o título não foi meu e detesto aquele título…”

    Em nota do próprio Saramago, nesta edição que a Porto Editora lança em parceria com a Fundação José Saramago, que recupera o título inicialmente desejado – a culminar as comemorações do centenário do nascimento do escritor –, além de contar a sua formação como leitor (alicerçado, como se sabe, na biblioteca das Galveias, em Lisboa), são revelados ainda outros pormenores da viagem do manuscrito até ser aceite inopinadamente pelo editor Manuel Rodrigues, que também criou o famoso Borda d’Água. E, por fim, conclui Saramago, não sem ironia, e em tom auto-depreciativo, que “não podia adivinhar que o livro terminaria a pouco lustrosa vida nas padiolas. Realmente, a julgar pela amostra, o futuro não terá muito para oferecer ao autor de A viúva.”

    Não tendo a “vida” de A viúva, como romance, acabado em padiolas, o futuro não teria, de facto, muito para oferecer ao seu autor se o estilo se tivesse mantido. Felizmente, mudou. Por ele e para agrado dos leitores. Depois da sua estreia, aos 25 anos, Saramago manteve um interregno em obras de ficção de três décadas, até que em 1977 publicou Manual de pintura e caligrafia, demorando depois mais três anos até Levantado do chão para apurar e depurar o seu estilo característico, de marcante oralidade e fluxo narrativo encantatório, crítico e irónico (e criativos enredos) com uma pontuação não convencional (na verdade, com poucos pontos).

    O interregno foi mais curto em outros géneros. Saramago publicou um livro de poemas em 1966, e na década de 70 mais dois livros de poesia, três livros de crónicas, sete contos (seis dos quais na obra Objecto quase, e o sétimo numa antologia) e duas peças teatrais. Em todo o caso, antes de Levantado do chão, Saramago era muito mais conhecido como (polémico) jornalista, de forte pendor ideológico, do que como escritor.

    Por isso, queiramos ou não, até ao início dos anos 80, Saramago – já a caminhar então para os 60 anos – não teria grandes motivos para se orgulhar do seu romance de estreia, e não propriamente por lhe terem trocado o título.

    De facto, sendo certo que A terra do pecado – ou A viúva, como agora se queira –, que era “renegado” por Saramago, acabou por ter mais edições do que a primeira, mas estas só começaram a surgir depois de 1997, a reboque da sua consagração, dois anos depois do Prémio Camões – e agregado a mais oito prémios literários – e em vésperas do Prémio Nobel da Literatura. As sucessivas edições que teve – na Editorial Caminho, foram sete até 1999 e 10 até à morte de Saramago, em 2010 – aparentam um sucesso literário, mas na verdade justificaram-se (e aceita-se que bem) somente pelo interesse, curiosidade e culto literários, tanto assim que os exemplares da primeira edição de 1947 atraem actualmente grande interesse bibliófilo. Os escassos exemplares no mercado alfarrabista atingem preços de 750 ou até de 1.000 euros. [com alguma sorte, há uns anos consegui um exemplar por 250 euros]. Um valor bem superior a um exemplar da primeira edição de Memorial do convento ou de Levantado do chão.

    De facto, pode-se acusar Saramago de muita coisa – além de se poder (e dever) venerá-lo pela sua extraordinária escrita a partir de 1980 –, mas jamais de falta de lucidez. Com efeito, não foi por acaso – nem pela questão do título – que Saramago não terá incluído, por décadas, o romance de estreia na sua bibliografia. Simpatias à parte, Terra do pecado (ou A viúva) é obra de Saramago mas não é obra saramaguiana; é romance completamente fora daquilo que viria a ser o seu universo e estilo; é um romance com enredo simples, escrita enquadrada no movimento entre o realismo e o naturalismo, mas com descrições banais e um encadeamento pueril. Por exemplo, veja-se a segunda metade do romance onde se sucedem os capítulos com um quase invariável “na manhã seguinte”. Ou diálogos que “não aquecem nem arrefecem” (pg. 193):

    – Boa noite, Joaquim! Já vais fechar?

    O taberneiro curvou-se:

    – Boa noite, senhor doutor! Já ia fechar, sim, senhor!… Mas cá o estabelecimento, para o senhor doutor, está sempre aberto. Faça favor de entrar.

    O médico entrou e sentou-se, enquanto o taberneiro corria a um armário, donde tirou um copo limpo e uma garrafa de vinho do Porto.

    – O costume, não é, senhor doutor?

    – Sim, claro, o costume…

    Não se diga, em todo o caso, que A viúva é um mau romance; é um romance de formação, de um jovem de 25 anos, ainda sem calo literário, e por isso muito aceitável. Não envergonha, merece até estar numa estante, mas não exalta. E olhando para a obra do seu autor, José Saramago, que nos ofereceu alguns romances de merecida nota 20, dar-se assim um 12 à sua A viúva acaba até por ser, pelas diferenças colossais num confronto com as suas (várias) obras-primas, um gesto de respeito.

  • Os dias últimos de Nicolau Coelho

    Os dias últimos de Nicolau Coelho

    Título

    A última curva do caminho

    Autor

    MANUEL JORGE MARMELO

    Editora (Edição)

    Porto Editora (Fevereiro de 2022)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Nicolau Coelho, um reformado professor de Filosofia e escritor está a preparar-se para morrer. Anda na casa dos 80 anos e muda completamente a vida:  abandona a sua rotina citadina, separa-se da mulher, Alba, que não o quer acompanhar porque “Parecia um plano perfeito, mas não fui capaz de prever que Alba se recusaria a morar na vila, longe dos centros comerciais e dos salões de beleza, dos ginásios e do peeling ultrassónico, das amigas e dos hipermercados, do design de sobrancelhas e das sessões de alexandrite. Demasiado tarde compreendi que ela não abdicaria das ambições, da comodidade e dos projetos que tem, das viagens que ainda pretende fazer, talvez de um amante ou dois e da vertigem que já não lhe proporciono…” e vai viver para a vila da sua infância tentando reencontrá-la e, com isso, reencontrar-se a si.

    Cada capítulo conta uma história, num ritmo diacrónico que nos leva desde a infância, em África: “Vivíamos, o meu pai, a minha mãe e eu, como instalados numas férias perpétuas e sem maiores aborrecimentos do que os impostos pela necessidade de vigiar os pretos para que não se entregassem à preguiça e à vadiagem. Creio, por isso, que fui feliz em África, na fazenda onde o meu pai era capataz”, até às recordações da avó Adalgisa que foi viver para casa de Nicolau quando enviuvou e com quem aprende ladainhas e orações (há várias na íntegra em vários capítulos) e histórias de família e de antepassados que ele só conhece através das palavras da avó e ainda, no presente, as conversas com o Dimas, o dono da papelaria, “um homem amistoso e enérgico. Aprecio bastante cavaquear com ele, o que faço, sem falta, de cada vez que se me acaba o fumo e o pretexto para ir à varanda tomar um pouco do ar puríssimo e frio que nesta altura do ano sopra do lado da serra. Encontro-o quase sempre à porta do estabelecimento onde passa a maior parte do tempo, saudando quem passa e sorrindo para as raparigas novas.

    É um misto de poeta e filósofo e no livro há vários diálogos deliciosos entre os dois. “Entendemo-nos perfeitamente, o Dimas e eu. Se o cumprimento com alegorias do Evangelho de Nicodemo, ele responde com paráfrases de Álvaro de Campos” e a tentativa de compreender a história da sua prima Delfina que tinha sido internada num hospício por, durante meses, ter transportado o cadáver do pai, num carrinho de mão, para ir levantar a reforma, no posto dos Correios, com o uso das impressões digitais da “mão morta, mas ainda útil” numa descrição simultaneamente tétrica e divertida: “Os habitantes da vila estavam habituados a que Delfina chegasse à praça acartando Estanislau num carrinho de mão. Ela transpirava ofegante de quase correr, com o rosto encarnado e os músculos retesados pelo esforço de erguer e empurrar a carreta. O velho vinha lá deitado com as pernas abertas e parecia satisfeito: acenava com o cajado e mostrava um grande sorriso quase sem dentes.”

    A inspiração para continuar a escrever não chega e Nicolau Coelho confessa: “Vim para a vila sem Alba – para recordar, mas também para morrer ou escrever, consoante o que acontecesse mais depressa. Mas não escrevo nada. Encaramo-nos de perto, cada vez mais próximos, o meu computador e eu. Opomos um ao outro as respetivas folhas em branco, a minha e a sua, como gémeos ciclópicos jogando ao sério.”

    Há também um mergulho nas redes sociais e nas notícias online para compensar o afastamento da cidade e das suas relações de uma vida. O livro aborda ainda a questão da inteligência artificial naquilo que interessa ao narrador: uma máquina que escreva livros. Pondera como seria uma máquina que escrevesse por ele romances, que tivesse na sua inteligência artificial um catálogo de milhares de livros para se guiar e lhe fosse possível redigir uma obra.

    Deixa de ter pressa e habitua-se aos ritmos do interior em abandono, reconstruindo memórias e protagonistas da história da sua família. Algumas personagens são inesquecíveis: Henrique Damião Coelho, o Cricas, o Quim pila de ouro, o Tronquinhas, o Fura Pitos, cada um deles a viver situações que nos prendem à narrativa e nos divertem e enternecem.

    A memória da mulher permanece sempre presente e esperança que ela apareça também. Nunca acontece. O desfecho é inesperado. A vida deixa de fazer sentido e, para o leitor, fica uma sentença do protagonista: Agora já não tenho necessidade de me justificar.

  • De Cuba para o mundo, sem filtros

    De Cuba para o mundo, sem filtros

    Título

    Como poeira ao vento

    Autor

    LEONARDO PADURA (tradução: Helena Pitta)

    Editora (Edição)

    Porto Editora (Abril de 2022)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Cubano de Havana, nascido em 1955, Leonardo Padura, além de escritor, tem trabalhado como guionista e jornalista. O detective Mário Conde é uma personagem sobejamente conhecida dos seus romances policiais, que, além de estarem traduzidos para muitas línguas, são vencedores de importantes prémios literários, como o Prémio Café Gijón 1995, o Prémio Hammett em 1997, 1998 e 2005, o Prémio do Livro Insular 2000, em França, ou o Brigada 21 para o melhor romance do ano.  

    Em 1993, Leonardo Padura recebeu o Prémio Nacional de Romance em Cuba, e em 2012 arrecadou o Prémio Nacional de Literatura pelo conjunto da sua obra. Em 2015 foi ainda galardoado com o Prémio Princesa das Astúrias das Letras.

    Em Portugal, podemos encontrar vários livros deste autor, entre os quais O Homem que gostava de cães, Hereges, A transparência do tempo, Quarteto de Havana I e Quarteto de Havana II, editados pela Porto Editora, que agora nos traz este Como poeira ao vento.

    Este é um daqueles livros que nos causa várias emoções e sensações. Desde logo, uma certa hesitação em avançar rapidamente na leitura. É que, com efeito, a urgência em prosseguir para conhecer e apreender mais acerca das personagens, e das ligações que as envolvem, não é compatível com a densidade e profundidade do enredo.

    Ler devagar é quase uma imposição para, desse modo, atentarmos e guardarmos cada pormenor dos contextos, das épocas, das personagens, das diferentes vias que se cruzam e teias que se entrelaçam.

    O equilíbrio é o que nos ajuda a avançar, com moderação, e assim desfrutar das mais de 600 páginas com que Padura nos presenteia, neste romance épico – creio que este adjetivo tão na moda se adequa a este romance cuidadosamente escrito.

    Sim, cuidado é um termo que se aplica na perfeição: somos encaminhados ao longo de várias décadas da História de Cuba por meio de personagens construídas de forma detalhada e escrupulosa, baseadas em pessoas, locais e situações reais – também, por isso, tão intenso.

    Contrariamente ao título, esta obra permanecerá e reverberará em cada leitor que seja apaixonado por Cuba, pela sua História, pelas suas geografias (afinal os cubanos alargaram as suas fronteiras) e, sobretudo, pelas suas gentes, ora mais conformadas, ora mais inconformadas, ora mais inquietas, ora mais revoltadas com tudo o que aconteceu desde o embargo dos Estados Unidos, em particular, durante o ‘Período Especial em Tempos de Paz’, ocorrido entre 1989 e metade da década de 1990.

    Uma época de restrições, de todo o tipo de restrições, em que até o livro ‘1984’, de George Orwell, é invocado. Não sem uma certa ambivalência, uma vez que para que para a maioria dos cubanos, de entre os quais, algumas das personagens, era inconcebível que o Estado fosse tão longe no seu regime totalitário e controlador.

    É, então, a história de um grupo de jovens – o Clã – que cresce em conjunto, desde a juventude até ao derradeiro desaparecimento de vários elementos. Jovens apaixonados pela vida, cuja evolução e prática profissional se torna cada vez mais difícil em face de tantos obstáculos e de tantas limitações. A busca pelo exílio, seja de forma legal, seja como fuga à incerteza, seja ainda pela infeliz constatação de que a liberdade para se ser é só uma palavra.

    O livro descreve de dentro, mas com um olhar limpo, sem ressentimento e quase factual, o sofrimento vívido de quem perde, um a um, os seus referentes mais íntimos.

    Em 2014, dois jovens de origem cubana apaixonam-se. Adela e Marcos conhecem-se em Miami sem saberem que as suas origens são as mesmas e que as suas mães haviam sido amigas íntimas, Elisa e Clara, respetivamente – as mulheres do Clã.

    Clara, a matriarca que segura e mantém o grupo, uma das personagens que nos comove pela resistência, pela força e pela coragem – aquela que não se rende; a última a deixar Cuba.

    Elisa, a british, filha de um diplomata que viveu em Inglaterra até ao fim da adolescência. Diferente, portanto, vivida, com uma visão mais ampla do mundo, além de Cuba. Algo que fascinava os amigos e a tornava quase idolatrada, não fora as suas atitudes a roçar a manipulação e “quase” mentiras.

    Darío, o primeiro a partir, deixa para trás a mulher (Clara) e dois filhos, com o intuito de prosseguir a sua carreira de médico e académico em Espanha, sem a limitação de um salário de três dólares. 

    Irving, o homossexual que vive no medo e que com medo não vive. Depois de torturado pela polícia durante vários dias, foge para Espanha, onde mais tarde se juntará o seu companheiro, Joel.

    Estas e outras personagens com vidas únicas e interligadas são ingredientes que nos mantêm e nos retêm em cada página folheada, numa escrita encantatória, que nos recorda Gabriel Garcia Márquez e que faz antever a atribuição do Prémio Nobel da Literatura.

    Destaco, por fim, um excerto (página 103): “A clausura física e mental de que sofriam, sem terem consciência até que ponto sofriam (exceto Elisa, a british), fazia-os ver o mundo exterior como um mapa de duas cores antagónicas: países socialistas (bons) e países capitalistas (maus). Nos países socialistas (para onde se podia viajar) construía-se arduamente o futuro perfeito (…) de igualde e justa democracia da ditadura proletária, atribuída à vanguarda política do Partido na fase de construção do comunismo, com cuja chegada se atingiria o apogeu da História, o mundo feliz”.

  • Um encontro musical na corte de D. João V

    Um encontro musical na corte de D. João V

    Título

    O maestro e a infanta

    Autor

    ALBERTO RIVA (tradução: José Colaço Barreiros)

    Editora

    Porto Editora (Março de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Nascido em 1970 e a viver em Milão, Alberto Riva é um escritor e jornalista italiano, que desde há muitos anos escreve sobre literatura e música para a revista semanal do jornal La Repubblica (Il Venerdí).

    Entre outros livros, é autor de Sete (Mondadori 2011) e Tristezza per favore vai via (Il Saggiatore 2014). Com o trompetista de jazz italiano, Enrico Rava, escreveu Note Necessarie (Fax mínimo, 2004) e com o pianista de jazz, Stefano Bollani, escreveu Parliamo di musica (Mondadori 2013) e Il monello, il guru, l’alchimista e altre storie di musicisti (Mondadori 2015). Publicou ainda a edição de Il mondo è ingiusto, de Oscar Niemeyer (Mondadori, 2012).

    No ano passado publicou O maestro e a infanta, um do género histórico agora chegado a Portugal, mas que retrata o nosso país em Setecentos.

    Romance leve, mas cativante e empolgante, O maestro e a infanta  conta-nos a história da amizade entre a Infanta Maria Bárbara de Bragança, filha do rei D. João V, e o maestro Domenico Scarlatti – um jovem compositor italiano, filho do reconhecido compositor Alessandro Scarlatti, e que muitos leitores “reconhecerão” como um personagem de Memorial do convento, de José Saramago –, convidado para a luxuosa corte portuguesa do século XVIII, a fim de instruir musicalmente o filho mais novo do Rei de Portugal.

    Após a apreciação do maestro Scarlatti, os planos do rei ficam defraudados e é à infanta que o italiano dedicará o seu tempo. A infanta, em honra de quem foi mandado construir o convento de Mafra, é uma discípula empenhada que, além da aptidão para os idiomas – domina vários –, se dedica de corpo e alma à educação musical empreendida pelo maestro, cuja composição insegura é, afinal, a de um génio.

    O primeiro encontro acontece em 1720 e desde então a sua amizade cresce e mantém-se até ao final da vida do maestro, que acompanha a infanta para a corte de Espanha, aquando do seu casamento com D. Fernando de Borbón, herdeiro do trono espanhol. A infanta tornar-se-ia então Princesa das Astúrias e posteriormente Rainha de Espanha. 

    As histórias das duas cortes cruzam-se com descrições que nos transportam para os tempos áureos da monarquia portuguesa e das suas relações com outros Estados.

    A descrição fluida, com alguma ironia à mistura, é o motor para uma leitura fácil e envolvente e, ao mesmo, tempo instrutiva – como é usual nos romances históricos.

    A forma como o autor retrata a infanta, e a coloca no centro deste romance, partilhando o protagonismo com o maestro, é original. Ao alternar o realismo histórico com as teias de um enredo ficcional, o leitor mergulha numa outra época repleta de um luxo imperialista e intrigas palacianas, bem como nos meandros da diplomacia europeia da época, em que se jogavam peças e cartas muito altas, para obter o domínio das colónias e das suas riquezas.

    As personagens principais, a infanta e o maestro, são quase opostas em termos de personalidade e temperamento. A infanta extravasa a sua alegria e boa disposição através de um sorriso fácil e genuíno, enquanto aprende a lidar com as tramas da sua sogra – a então Rainha de Espanha, que passa para segundo plano quando a Princesa das Astúrias assume o lugar –, o maestro é a melancolia e seriedade em pessoa.

    A sua discrição só é quebrada quando se vê no meio de uma nova sonoridade, que o encanta de tal modo que quase o faz perder o seu lugar. É da musicalidade da guitarra cigana que se trata, uma etnia que já na época é ostracizada e quase silenciada, através da perseguição e aprisionamento.

    A amizade entre Domenico Scarlatti e Maria Bárbara perdura ao longo de 38 anos, sendo a rainha de Espanha a responsável pelo registo e divulgação das célebres Sonatas do maestro: 555 exercícios compostos pelo italiano para a sua discípula.  

    O que são exatamente estas coisas que compõe, Mestre?

    – Exercícios.

    – Tudo bem, mas onde está a música?

    – A música está dentro de vós, Majestade.

  • Uma ode à Sétima Arte

    Uma ode à Sétima Arte

    Título

    O Sr. Wilder & eu

    Autor

    JONATHAN COE (tradução: Rui Pires Cabral)

    Editora (Edição)

    Porto Editora (Março de 2022)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Jonathan Coe nasceu em 1961, nos subúrbios de Birmingham. A sua primeira história conhecida foi escrita aos oito anos de idade: essas primeiras páginas surgem no seu quarto romance, What a Carve Up! – aquele que o faria chegar a um público mais vasto e internacional: foi traduzido para 16 línguas.

    Com vários livros publicados, a sua obra já recebeu diversos prémios e distinções, incluindo o Prémio Literário Costa e o Prix du Livre Européen, com o livro O coração de Inglaterra; em França ganhou o Prix Médicis, pelo livro “A Casa do Sono”, tendo sido nomeado Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras. Em Itália ganhou o Prémio Flaiano e o Prémio Bauer-Ca’ Foscari.

    Razões de sobra, assim, para ser considerado um dos autores contemporâneos mais aclamados, criando-se, também por isso, algumas expectativas quando se começa a leitura do romance, O Sr. Wilder & Eu. E não serão, certamente, goradas.

    O romance começa com as memórias de Calista Frangopoulos, uma compositora grega de bandas sonoras, que, aos 57 anos, vive uma crise familiar e profissional, que a faz regressar ao passado, dando-nos, assim, a conhecer o grande realizador Billy Wilder.

    As suas recordações transportam-na para uma viagem no início da sua juventude, nos Estados Unidos, durante a qual conhece outra jovem, cujo pai é amigo de longa data de Billy Wilder. O mote para um jantar com o realizador e o seu companheiro de sempre, I.A.L. Diamond, e as respetivas mulheres.

    O glamour do cinema de Hollywood entra, assim, por acaso na vida da jovem grega, que, passado algum tempo, é contactada por Diamond para ser integrada, como intérprete, na equipa das filmagens de Os Segredos de Fedora, numa ilha grega.

    Curiosamente, a entrada da jovem Calista, na sétima arte, coincide com a tomada de consciência do fim de carreira de Billy Wilder. Na verdade, o filme em realização é, precisamente, uma metáfora a este crepúsculo, recorrendo a um dos géneros do próprio Wilder, ou seja, a cenas cómicas, como que para tornar a velhice mais leve.

    Através dos olhos de uma jovem deslumbrada, somos encaminhados para a intimidade do processo de realização; mais do que isso, para a intimidade de um dos realizadores mais proeminentes de Hollywood. “Escutamos” as histórias de vida de Wilder, contadas pelo próprio, denotando-se uma nostalgia do passado, enquanto forma de adiar o inevitável.

    A busca incessante de Wilder pela sua família, que terá sido incinerada viva nos campos de concentração nazis – uma das cenas mais fortes do livro é mesmo a descrição de Wilder em forma de argumento, aquando da sua viagem de regresso à Europa, para realizar um documentário sobre os campos de concentração.

    Esta história memorável é a resposta a uma das personagens que pretende negar que tenham morrido assim tantos judeus – a negação do holocausto que viria dar origem ao termo “negacionista”, actualmente tão em voga.

    O romance interliga várias histórias. A de Calista, que além de encantada com o cinema, vive o seu primeiro amor – e, de imediato, a sua desilusão: a vida ela própria, sem a encenação que o cinema e outros meios constroem à volta do amor.

    A da amizade de Calista com Wilder e Diamond, numa celebração à amizade intergeracional e reconhecimento da experiência e sabedoria dos mais velhos. Estes, a quem o envelhecimento faz relegar o estatuto de melhores do panorama de Hollywood para o declínio e esquecimento.

    Como lidar com o envelhecimento e com a percepção de que mais cedo do que mais tarde se será substituído pelos mais jovens: pelos barbudos, entre os quais Steven Spielberg que, neste enredo, acaba de facturar milhões de dólares com a estreia d’O tubarão.

    O romance é, também por isso, uma ode ao cinema enquanto Arte – ultrapassando a experiência de entretenimento. Essa é, aliás, uma das questões que perpassa toda a obra – revelando-se, em alguns momentos, uma nuance de ensaio sobre o fim do cinema clássico de Hollywood e sobre o papel do cinema enquanto arte interventiva.

    Ler este romance impele o leitor a revisitar a obra de Billy Wilder – como não encontrámos Os segredos de Fedora (o filme a ser dirigido neste romance), estivemos a ver a comédia Beija-me, estúpido. Isto, para dizer que as únicas interrupções justificadas são essas, as de relembrar os filmes e os actores em cena neste romance, que está próximo da classificação de obra-prima.

    Coibimo-nos de a conferir pelo modo como o autor resolve uma ou outra situação da personagem Calista Frangopoulos, cujo dilema da vida pessoal é claramente um pretexto, nem sempre bem conseguido, para nos enlevar com gentileza pela história de um dos realizadores mais extraordinários da sua época, Billy Wilder.