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  • Catarina e a dúvida de matar fascistas

    Catarina e a dúvida de matar fascistas

    ATENÇÃO: Este texto revela detalhes sobre o conteúdo da peça teatral Catarina e a beleza de matar fascistas, pelo que coloca em causa o efeito de surpresa a potenciais espectadores que ainda não viram esta representação. O texto foi escrito para servir de reflexão ao conteúdo da peça e relata o que o repórter assistiu do que se passou em palco e também fora dele. Se ainda não viu a peça e tem planos de o fazer, terá então de ter em conta este esclarecimento e decidir se quer mesmo prosseguir com a leitura. Se deseja saber o que provoca a discussão sobre a peça e é-lhe indiferente conhecer antecipadamente detalhes da mesma, poderá ler à vontade e ficar na posse de informação que lhe será útil na medida daquilo que pretender depois fazer com ela.


    Devemos matar um fascista uma vez por ano? Este é o mote da peça de teatro Catarina e a beleza de matar fascistas, que regressou à cena no Centro Cultural de Belém (CCB), entre 4 e 7 deste mês, depois já aí ter estado em 2020 e ter percorrido várias salas em outras cidades portuguesas, de Espanha, França, Bélgica, Itália, Noruega e Suíça. Com texto e encenação de Tiago Rodrigues, este trabalho tem vindo a suscitar diversas reacções, nomeadamente no que diz respeito a críticas de incentivo à violência. Fomos ver e contamos o que vimos.

    Os actores já se encontram em palco à medida que os espectadores entram na sala. O cenário está iluminado e à vista de todos. Os artistas conversam em surdina entre si e observam os passos de quem entra, procura lugar e senta-se. Vê os que encontram amigos enquanto outros, sentados no lugar errado, têm de trocar de fila quando chegam os possuidores do bilhete certo.

    Quem se sentou nas pontas, tem de levantar-se para deixar passar aqueles que ocupam o meio da fila. Falam depois entre si, olham para quem entra e comentam o nome de alguma personalidade pública que, entretanto, apareceu. Apontam para detalhes no palco e há ainda os que tiram a fotografia para a sua rede social, informando uma audiência privada. É um espectáculo que só pode ser visto de cima do palco pelos actores.

    Talvez os espectadores ainda não se tenham apercebido nesse momento, mas dá para intuir que, ao longo da peça, algo vai mudar na ordem natural das coisas.

    Temos vista ampla para o cenário onde a acção se irá desenrolar: uma casa de madeira e uma mesa preparada para uma refeição. Visto da audiência, os actores movimentam-se no lado extremo esquerdo do palco, enquanto no lado extremo direito, onde está a mesa, permanece sentado à cabeceira da mesma apenas um actor. Veste fato e gravata e depreendemos, sem que seja necessário que nos digam, que aquele é o fascista que, fazendo jus ao título da peça, está ali para ser morto.

    A toalha que cobre a mesa tem escrito, na parte lateral virada para o público, a frase “Não passarão” – um lema cuja origem remonta às tropas francesas durante a I Guerra Mundial, mas tornado célebre na versão castelhana “¡No pasarán!” durante a Guerra Civil de Espanha por Dolores Ibárruri Gómez, dita “La Pasionara” e uma das fundadoras do Partido Comunista Espanhol. Saberemos depois que estamos no Alentejo, na propriedade de uma família, e que a história se passa num futuro próximo, com um governo de extrema-direita no poder.

    É tradição desta família matar um fascista por ano. E isso tem uma origem que remonta a 1954, ano em que a ceifeira Catarina Eufémia, de apenas 26 anos, foi assassinada pela GNR durante uma greve em Baleizão, Alentejo. Uma amiga de Catarina, casada com um guarda da GNR, discutiu nessa noite com o marido por ele não ter impedido aquela morte. O diálogo tornou-se violento e culminou com a mulher a matar o marido e pai de seus filhos. Por ser fascista. Foi o primeiro fascista a ser morto e acabou enterrado debaixo de um chaparro.

    A partir daí, essa mulher pediu, em carta deixada aos seus descendentes, que todos os anos se reunissem e mantivessem a sua tradição – embora na carta não especificasse que deviam matar um fascista (como será referido mais tarde ao longo da representação).

    Os protagonistas – à excepção do fascista – vestem-se todos de ceifeiras, seguindo as instruções da carta, homens incluídos – figurinos de José António Tenente. É-lhes ainda pedido que, enquanto estiverem juntos, tratem-se todos pelo nome de “Catarina”. Homens incluídos.

    O actor António Fonseca faz de tio. É o mais velho da família, sendo que seria filho do primeiro fascista morto, pois a primeira Catarina de todas era a sua mãe. Beatriz Maia é a Catarina que vai matar o seu primeiro fascista, enquanto Carolina Passos Sousa interpreta o papel da irmã mais nova, a Catarina que ainda tem de esperar pelo dia em que terá oportunidade de matar o seu fascista. Isabel Abreu é a mãe de Catarina, que já matou sete homens. Homens, não. Eram fascistas… Os outros três actores, todos Catarinas, são interpretados por Marco Mendonça, António Afonso Parra e Rui M. Silva.

    Depois, é claro, há o fascista, interpretado por Romeu Costa.

    E hoje é o dia em que uma Catarina, que cumpriu 26 anos – a mesma idade de Catarina Eufémia quando morreu –, vai matar o seu primeiro fascista.

    Ela está contente e mostra-se empenhada. Sente-se motivada para disparar a pistola, depois de ter raptado o fascista, tendo para isso criado um perfil falso nas redes sociais e, a pretexto de uma reunião secreta para a mudança da Constituição, leva-lo até uma cilada. Só que há algo que não corre como nas vezes anteriores. Como aconteceu todos os anos, desde 1954:

    Catarina tem dúvidas no momento de disparar e anuncia que não consegue matar o fascista.

    Começa então, em família, de uma forma mais ponderado, mas também exaltada, toda uma discussão filosófica e política sobre a necessidade e a beleza de matar fascistas. Saltam imensa citações e palavras como “a cadela do fascismo está sempre com cio” (isto é Brecht) ou ainda Karl Popper e o seu “Paradoxo da Tolerância”, que diz: “Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles”.

    E Catarina, aquela entre eles que tem dúvidas sobre matar fascistas, será ainda colocada face ao dilema sobre para que lado puxar uma alavanca de modo a desviar um comboio desgovernado: para o lado onde está uma aldeia e causar a morte a centenas de pessoas ou para o lado onde existe apenas uma casa, mas é nela que se encontra a sua mãe? Ela prefere uma terceira via, nada original e de duvidosa exequibilidade, mas que não satisfaz a resolução do dilema. E este permanecerá a pairar na sua essência.  

    Ao contra-argumentar com a mãe, Catarina pergunta se matar fascistas não será também uma forma de impor uma ditadura. Claramente, na ficção que serve de pano de fundo à peça, a tradição de matar um fascista por ano durante sete décadas – são 70 anos –, não impediu que eles chegassem ao poder.

    O fascista destinado a ser executado é o autor dos discursos que levaram um líder da extrema-direita a ser agora o primeiro-ministro de Portugal. E tem um cão chamado “Kaiser” – que significava “Rei” em alemão. Para Catarina, a solução não é matar os fascistas, mas falar com as pessoas que os elegeram e compreender os motivos que os levaram a votar neles. A mãe diz que o problema é “opiniãozinha” e o facto de os fascistas terem voz.

    Conforme explicou o autor Tiago Rodrigues, num texto datado de 25 de Abril de 2020, esta peça estava pensada para ser sobre o rapto de “um juiz ultraconservador e machista que proferiu várias sentenças favoráveis a homens que agrediram mulheres”.

    Embora Tiago Rodrigues não o mencione pelo nome, acrescenta que o magistrado “citou textos religiosos para condenar a vítima pelo seu comportamento adúltero”, sendo esse o caso de 2017, do juiz Neto de Moura, e que acabou por ter um castigo disciplinar pelo Supremo Tribunal de Justiça.

    Tiago Rodrigues gosta de juntar a vida contemporânea à ficção que cria. Isso viu-se com o seu trabalho de 2011, “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas”, peça teatral depois adaptada ao cinema por Tiago Guedes, cuja acção decorre durante o governo da Troika e onde o próprio autor do texto interpreta o papel de um primeiro-ministro inspirado na figura de Passos Coelho.

    “Não se trataria de uma história de justiça ‘olho por olho’ feita pelas próprias mãos, mas de um caso de justiça ‘olho real por olho teatral’”, explica o autor da peça “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”. Mas em 2019, quando estava a trabalhar no texto, a realidade em Portugal ofereceu-lhe mais material: “Em Outubro, as eleições legislativas em Portugal traduziram-se numa vitória expressiva da esquerda e de forças progressistas.

    No entanto, também resultaram na eleição de um deputado de extrema-direita pela primeira vez em 46 anos de democracia. De uma paisagem política em que a extrema-direita tinha uma expressão tão residual que quase parecia ridícula, passámos para um contexto em que o populismo de tendência fascizante passa a ter representação parlamentar”, registou.

    E acrescenta: “Dir-me-ão que estamos ainda longe do perigo ameaçador da ascensão dos populismos de extrema-direita em muitos países europeus, mas não podemos negar que se trata de uma alteração drástica e traumática da vida política portuguesa. Além disso e infelizmente, não parece ser um fenómeno passageiro”.

    É neste contexto que, enquanto Catarina discute com todas as outras Catarinas da sua família, o fascista permanece calado, tal como sempre esteve desde o início da representação. Sem voz. Há um momento em que é interrogado sobre a posse de um telemóvel, mas só responderá com abanos de cabeça para indicar “sim” e “não”. Permanecerá à vista do público durante toda a peça, com cara de assustado, de condenado à morte. É levado de um lado para o outro e tenta resistir, mas sem sucesso. Vai sendo exibido consoante algumas mudanças de cenário.

    Diga-se ainda, do ponto de vista cénico, a peça proporciona efeitos técnicos eficazes, como quando as paredes da casa criam cenários, movendo-se ao sabor dos protagonistas. Também os momentos em que se escuta música são acompanhados da acção em que os personagens colocam auscultadores – e ouvem-se composições de Hania Rani, Joanna Brouk, Laurel Halo e Rosalía. 

    Entre conversas sobre a vida das andorinhas e a sua felicidade e liberdade, Catarina decide-se a, finalmente, matar o fascista. Já é quase noite e a cova está preparada. O fascista será sepultado, tal como todos os outros antes dele, debaixo de um chaparro. E a cortiça nunca será retirada. Espera-se que Catarina dispare o seu revólver e todas as outras Catarinas têm também um revólver na mão. 

    Só que Catarina volta a ter dúvidas e defende que o fascista não deve ser morto. A irmã mais nova não aceita e avisa que, nesse caso, ela matará o fascista. Catarina mete-se à frente dele, defendendo-o. A seguir, passa-se tudo muito rápido… E é aqui que uma das Catarinas assume uma posição de maior relevo.

    O actor Marco Mendonça, por ser de origem moçambicana, destaca-se no elenco dos protagonistas que interpretam os descendentes da ceifeira alentejana. Ele interpreta uma Catarina pouco comunicativa em palavras. Fruto de um trauma por matar fascistas. Ele fala, e de forma assaz eloquente, mas apenas quando mete os auscultadores e o público entra no seu mundo interior. É ele que, em algumas situações, guia o público como um narrador.

    Será esta Catarina que dispara sobre Catarina e, então de forma muito rápida, sem se perceber de onde, todas as outras Catarinas são abatidas a tiro. O ruído do primeiro disparo, aquele que atinge Catarina enquanto tenta proteger o fascista, assusta-nos. Os outros disparos, nem tanto. Mas sente-se mesmo o cheiro a pólvora vindo da arma.

    Silêncio. Só há duas pessoas vivas em palco e uma delas é o fascista. A outra é a Catarina de Marco Mendonça. O fascista olha para ele e percebe que está livre. A Catarina viva não parece que o vá matar como fez às outras. Então, o fascista veste o casaco e prepara-se para ir embora. Abandonar aquele local e dar graças por estar vivo.

    Só que, obviamente, tendo estado calado durante toda a peça, o actor tem de mostrar que também tem voz. E um texto para dizer. O fascista vai à boca de cena e começa a falar. A falar sobre liberdade e o que aprendeu com a experiência. E o discurso do fascista usa palavras que nos parecem familiares. Daquelas que ouvimos às vezes na televisão ditas por quem defende o trabalho dos polícias, por exemplo. Não incentiva à invasão de países, mas diz defender o seu.

    Instala-se nesse momento a confusão da parte do público. Ouve-se um grito contra o actor e as suas palavras, vindo lá de cima, da zona das galerias. Seria um actor extra, alguém contratado para iniciar o momento que se seguiu ou foi mesmo uma reacção emocional genuína? Isso é para ser respondido por quem quiser um dia explicar como aconteceu. Agora, a seguir a esse primeiro grito de revolta, começou um coro de protestos à medida que Romeu Costa dizia o discurso do fascista.

    O discurso dura bem mais de 10 minutos – esta informação é apenas uma estimativa pessoal –, mas é difícil de captar os argumentos do fascista, pois agora o espectáculo está nos protestos que se ouvem vindos da plateia e galerias. As Catarinas “mortos” levantam-se e colocam-se em fila, no lado esquerdo do palco, atrás da Catarina viva, a olhar quer para o fascista que discursa, quer para o público que se manifesta.

    Canta-se o “Grândola Vila Morena”, mas não estamos na vida real, em 2013, quando, por exemplo, se interrompiam os discursos de Miguel Relvas com o mesmo cântico. Há legendas em inglês num discreto ecrã no topo da casa de madeira. É por elas que nos podemos guiar em relação a algumas das palavras do actor que representa o fascista enquanto o público não se cala e não deixa ouvir o que ele está a dizer. Pois o que ele diz também faz parte do texto de Tiago Rodrigues.

    A dada altura do discurso, percebe-se que o fascista fala das andorinhas. As mesmas que tanto agradavam às Catarinas. Só que, para ele, as andorinhas são pássaros que chegam, fazem ninho onde querem, sujam tudo à sua volta e vão embora sem dizer “obrigado”. Menciona ainda como uma minoria não pode impor a sua vontade a uma maioria – mas, sem lembrar que a legitimidade de uma maioria, vê-se na forma como esta trata as minorias.

    Há um espectador que tenta subir para o palco, mas é impedido por um segurança. No fim da peça, o segurança explica que não foi o primeiro a ter esse tipo de reacção: “Costuma acontecer também nas outras sessões”. Numa outra sessão há o registo de uma mulher que atirou um sapato contra o actor.  

    Será que essas pessoas que apupam e não deixam ouvir o discurso do fascista sabem que o actor Romeu Costa, aquele que até tentaram agredir, é um profissional da interpretação e que, no início de 2022, tinha em cena no Teatro D. Maria II um monólogo autobiográfico intitulado “Maráia Quéri“, onde relatava a sua experiência de vida como homossexual na cidade de Aveiro? [O título é uma versão aportuguesada do nome da artista Mariah Carey].

    A peça termina com o fim do discurso: “Viva Portugal”. E o fascista sai de cena. Vivo. Ninguém lhe deu um tiro. As luzes apagam-se e há, finalmente, aplausos do público. Várias chamadas de actores ao palco para os aplausos, onde eles agradecem de forma colectiva, deixando-nos a pensar como seria se fossem um a um, até ao actor fascista. 

    Tiago Rodrigues escreveu ainda: “Se, como defende o historiador Federico Finchelstein, os populismos contemporâneos são ‘uma reação autoritária a uma prolongada crise de representação democrática’, então não será precisamente no território dos sub-representados – esses que os líderes populistas manipulam para efeitos eleitorais, mas que continuam a oprimir com mecanismos de exploração – que podemos imaginar uma história de resistência violenta?”.

    Haverá alguma moral a retirar desta representação para além da manipulação das emoções dos espectadores a desejar a morte do fascista, mas que Catarina quis defender com o custo da sua própria vida? A moral será então pensar como, a caminho dos 50 anos do 25 de Abril, quantas mais Catarinas precisam de se matar entre si até que o fascismo deixe de ter razão para existir.

    Fotografias de ©Jaime Machado

  • Irmão do presidente da República ganha contrato na NAV três dias após nomeação de Alexandra Reis para liderar a empresa pública

    Irmão do presidente da República ganha contrato na NAV três dias após nomeação de Alexandra Reis para liderar a empresa pública

    Não foi apenas a negociar a indemnização de 500 mil euros por rescindir com a TAP que os caminhos do advogado Pedro Rebelo de Sousa e da ex-secretária de Estado do Tesouro se cruzaram. Três dias após a nomeação formal de Alexandra Reis para liderar a NAV, esta empresa pública contratou a sociedade do irmão do presidente da República para prestar serviços jurídicos na área do trabalho. Em todo o caso, já se sabia desde Abril passado que a agora ex-secretária de Estado do Tesouro iria para aquela empresa pública de gestão da navegação aérea. Quanto a Pedro Rebelo de Sousa, apesar do seu irmão, o presidente da República, defender que tem já pouca influência na gestão do sociedade de advogados que fundou, imagine-se então se tivesse muita: o PÁGINA UM revela aqui a evolução dos contratos públicos sacados pela SRS – Sociedade Rebelo de Sousa & Advogados Associados, na esmagadora maioria por ajuste directo.


    A sociedade de advogados de Pedro Rebelo de Sousa, irmão do presidente da República, conseguiu ganhar um contrato de prestação de serviços à Navegação Aérea de Portugal (NAV), no valor de 66.861 euros, apenas três dias após a nomeação formal de Alexandra Reis como presidente do conselho de administração daquela empresa pública.  O despacho de nomeação, assinado pelo ainda ministro das Finanças, Fernando Medina, e pelo demissionário ministro das Infraestruturas Pedro Nuno Santos tem data de 24 de Junho deste ano; o contrato entre a NAV e a SRS – Sociedade Rebelo de Sousa & Advogados Associados é de 27 de Junho, embora tenha entrado em vigor retroactivamente, em 14 de Junho daquele mês.

    Embora Alexandra Reis não tenha estado directamente envolvida no contrato – terá sido assinado por dois vogais em funções, uma vez que só assumiu a presidência formal em 1 de Julho –, há muito era conhecida a sua indigitação para liderar a empresa de gestão do tráfego aéreos. E as suas ligações a Pedro Rebelo de Sousa eram óbvias: o advogado negociara, no início deste ano, a famosa indemnização de 500 mil euros pela rescisão do cargo de vogal do conselho de administração da TAP.

    Pedro Rebelo de Sousa, como surge no site da SRS – Sociedade Rebelo de Sousa & Advogados Associados

    Alexandra Reis saíra da companhia aérea estatal em Fevereiro passado – em rota de colisão com a CEO Christine Ourmieres-Widener –, mas em 11 de Abril já estava o seu currículo em análise pela Comissão de Recrutamento e Selecção para a Administração (CReSAP).

    O contrato de prestação de serviço, disponível no Portal Base, não identifica sequer quem assinou o contrato de ambas as partes – o que é uma situação ilegal e de pouca transparência, uma vez que a protecção de dados não se aplica aos nomes das pessoas envolvidas na sua assinatura –, e apenas refere, de forma muito abstracta, o objecto: “serviços de assessoria jurídica no âmbito da área de prática de Direito do Trabalho”, remetendo para um caderno de encargos não disponibilizado (o que também não é legal). Sabe-se apenas que a sociedade de Rebelo de Sousa foi a escolhida, ignorando-se os critérios, depois de uma consulta prévia a outros três conhecidos escritórios de advogados: PLMJ, Garrigues e Vieira de Almeida.

    Alexandra Reis foi nomeada para liderar uma empresa que três dias depois contratou o advogado que negociara a sua indemnização pela rescisão na TAP.

    Este contrato de Rebelo de Sousa acaba por ser, porém, apenas mais um dos muitos que a sua sociedade tem conseguido nos últimos anos.

    Apesar de Marcelo Rebelo de Sousa, presidente da República, ter já tentado desvalorizar o papel do irmão na sociedade SRS (que fundou e onde é manager partner), dizendo que tem “uma posição simbólica” –, na verdade os contratos com entidades públicas e similares têm estado a aumentar nos últimos três anos. E este ano bateu já mesmo um recorde: contabilizam-se 10 contratos com o valor total de 471.216 euros, sem IVA incluído.

    Este ano, o contrato mais elevado foi assinado com a Secretaria de Estado Regional da Economia da Madeira (100.000 euros). Aliás, no arquipélago madeirense, Pedro Rebelo de Sousa conseguiu seis contratos nos últimos dois anos no valor de 234.950 euros.

    Acima do valor do contrato com a NAV, a SRS obteve também um contrato de 70.000 euros com a ATEC, uma academia de formação nascida de um acordo entre o Instituto de Emprego e Formação Profissional e empresas alemãs (Volkwagen, Autoeuropa, Siemens e Bosch).

    No lote de entidades públicas com contratos este ano com Pedro Rebelo de Sousa conta-se ainda a Fundação Centro Cultural de Belém (15.000 euros), os municípios de Sever do Vouga (50.000 euros) e do Porto (44.955), a própria Ordem dos Advogados (20.000 euros), a Ordem dos Contabilistas Certificados (59.400 euros), a Secretaria Regional de Equipamentos e Infraestruturas da Madeira (25.000 euros) e a Transtejo (20.000 euros).

    Uma evidência dos negócios da sociedade de Pedro Rebelo de Sousa estarem de vento em pompa é a evolução da facturação. Nos últimos três anos (2020-2022), a SRS concretizou contratos públicos no total de 1.286.751 euros, quando no triénio anterior facturara, em contratos deste género, apenas 455.378 euros.

    Evolução do valor total dos contratos públicos da SRS – Sociedade Rebelo de Sousa & Advogados Associados. Fonte: Portal Base.

    Se se considerar a média dos 10 anos anteriores a 2020, a SRS registara apenas um valor anual de 158.054 euros, que contrasta com os 428.917 euros de média anual do triénio 2020-2022. Ou seja, um aumento de 171%.

    Além disto, nos últimos três anos, Pedro Rebelo de Sousa conseguiu também angariar 17 novos clientes entre as entidades públicas, ou seja, antes de 2020 nunca com estas estabelecera contratos. E também desde 2020, grande parte dos contratos obtidos foram concretizados apenas pela “linda cor dos olhos” do irmão do presidente da República: 73% do montante nestes últimos três anos foi obtido em ajustes directos, sem concorrência, apenas por contactos privilegiados.

    Note-se que alguns dos contratos entretanto assinados nos últimos anos podem não estar ainda no Portal Base.

  • Ricardo Araújo Pereira pode boicotar políticos no seu programa, mas SIC tem de encontrar formas de compensação

    Ricardo Araújo Pereira pode boicotar políticos no seu programa, mas SIC tem de encontrar formas de compensação

    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social aceita que um humorista pode, em plena campanha eleitoral, convidar quem achar por bem, mas que o canal televisivo tem de compensar eventuais desequilíbrios em matéria de igualdade de oportunidades e de tratamento de candidaturas. A deliberação do regulador foi espoletado por duas queixas junto do regulador, uma das quais por causa da ausência de André Ventura no programa de Ricardo Araújo Pereira (RAP) em que entrevistou nove dirigentes políticos. RAP tem assumido que nunca convidará o líder do Chega para o seu programa por razões ideológicas. Mas o regulador também mostra que o tempo dedicado por RAP a cada dirigente foi muito distinto: António Costa foi aquele que teve mais “tempo de antena” em “Isto é gozar com quem trabalha”.


    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) aceita que um humorista pode, em plena campanha eleitoral, convidar quem achar por bem, mas que o canal televisivo tem de compensar eventuais desequilíbrios em matéria de igualdade de oportunidades e de tratamento de candidaturas. O caso foi espoletado por duas queixas junto do regulador, uma das quais por causa da ausência de André Ventura no programa de Ricardo Araújo Pereira (RAP) em que entrevistou nove dirigentes políticos. RAP tem assumido que nunca convidará o líder do Chega para o seu programa por razões ideológicas.

    Ricardo Araújo Pereira (RAP) pode ser um excelente comediante, mas a ERC não achou piada ao facto de o humorista ter beneficiado alguns partidos políticos no seu programa na SIC “Isto é gozar com quem trabalha” em plena campanha eleitoral das últimas legislativas.

    Por razões ideológicas, Ricardo Araújo Pereira recusa sentar André Ventura è mesa do seu programa.

    Entre 17 e 28 de Janeiro deste ano, o humorista decidiu, de forma explícita, excluir o líder do partido Chega, André Ventura, quando fez uma série de entrevistas diárias a dirigentes de partidos então com assento parlamentar (Bloco de Esquerda, PCP, PSD, Iniciativa Liberal, PAN, CDS e Partido Socialista) no seu programa especial dedicado às eleições legislativas.

    RAP apenas convidou dirigentes de dois outros partidos então sem assento parlamentar Rui Tavares, do Livre (que deixara de ter deputados com a “desfiliação” de Joacine Katar Moreira) e Vitorino Silva, do RIR). Já em 2020, RAP boicotara André Ventura nas Presidenciais de 2020, brincando com o facto de que o líder do Chega “não aguentaria a experiência”.

    Em deliberação divulgada na sexta-feira passada, a ERC até achou que RAP tem, como “célebre comediante” e “protagonista central” de um “programa de autor”, o direito a “uma maior discricionariedade na forma como é abordado o período eleitoral”, mas que não vale tudo em plena época eleitoral. E que, por isso, a SIC deverá, em futuras ocasiões, “compensar, na restante programação, os desequilíbrios gerados num determinado programa em matéria de igualdade de oportunidades e de tratamento de candidaturas”.

    António Costa foi o dirigente político com mais “tempo de antena” no programa humorístico de RAP em plena campanha eleitoral.

    Saliente-se, aliás, que de acordo com a contabilização da ERC, António Costa foi, nas entrevistas de RAP, o político com mais “tempo de antena” com 19 minutos e 16 segundos, enquanto Catarina Martins teve direito a apenas a 10 minutos e 52 segundos e Inês Sousa Real a 11 minutos e 12 segundos. Rui Rio teve menos 6 minutos e 4 segundos do que o líder do PS. Os restantes entrevistados (Vitorino Silva, Rui Tavares, João Oliveira, João Cotrim Figueiredo, Inês Sousa Real e Francisco Rodrigues dos Santos) estiveram sentados defronte a RAP entre 13 e 16 minutos.

    Na sua análise, a ERC considerou que “num programa em que a política se cruza com o entretenimento e em que os candidatos convidados para o programa beneficiam de grande visibilidade para apresentar os seus programas eleitorais, convicções e personalidade, a escolha de determinados entrevistados, com a exclusão de outros, deve ser objeto de especial ponderação, de modo a respeitar os princípios que enformam a atividade dos órgãos de comunicação social durante o período eleitoral”.

    O regulador não acolheu assim quaisquer dos argumentos da SIC que defendeu que o programa de RAP era “entretenimento de cariz humorístico” e que o autor tem “total independência”, pelo que, não se tratando de “um programa informativo, não está adstrito ao cumprimento das normas da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido e das leis eleitorais dirigidas a programas de atualidade informativa e serviços noticiosos”. O canal do Grupo Impresa advogou que “o critério de escolha dos convidados [era] também, por isso, do humorista, o qual tem total liberdade de conformação em relação a quem deseja [e a quem não deseja] receber no seu programa”.

    Catarina Martins teve pouco mais de metade do “tempo de antena” de António Costa.

    Admitindo que o boicote a Ventura e ao Chega foi intencional, a SIC defendeu RAP, dizendo que “o humorista tem total liberdade para não querer dar espaço, num programa de humor da sua autoria, à defesa de ideias que, do seu ponto de vista, atentem contra a dignidade da pessoa humana, igualdade e direitos, liberdades e garantias”.

    Esta defesa acabou mesmo por ser duramente criticada pela ERC: “O argumento aduzido pela SIC parece não ter cabimento, uma vez que, no que respeita aos vários partidos sem representação parlamentar, o programa apenas privilegiou o Partido RIR, não parecendo crível” que todos os partidos excluídos – num total de 12, uma vez que participaram 21 partidos nas legislativas deste ano – “atentam contra a dignidade da pessoa humana, igualdade e direitos, liberdades e garantias”.

    Quanto ao argumento de que o programa de RAP não é informativo, pelo que não tem de cumprir os mesmos preceitos legais dos programas informativos no que toca às campanhas eleitorais, a ERC também destrói a defesa da SIC, lembrando que a lei não circunscreve “o princípio da igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas à cobertura jornalística da campanha ou a programas de atualidade informativa e a serviços noticiosos”.

    ERC defende que canais de televisão devem compensar desequilíbrios, mesmo se causados por programas de entretenimento.

    Assim, o regulador defende que “num programa em que a política se cruza com o entretenimento, em que os candidatos convidados para o programa beneficiam de uma visibilidade para apresentar os seus programas, convicções e personalidade, o operador não pode deixar de fazer uma reflexão sobre a escolha de determinados entrevistados, com a exclusão de outros, nos seus diversos programas”.

    Mais. A ERC frisa que “um programa de entretenimento, apesar de beneficiar de uma maior margem de discricionariedade na forma como aborda o período eleitoral, não pode – atento o seu potencial para conferir visibilidade aos candidatos e influenciar o sentido de voto –, deixar de ser objeto de avaliação de acordo com os princípios que enformam a atividade dos órgãos de comunicação social durante o período eleitoral”.

    O regulador recorda “que a SIC, enquanto serviço de programas televisivos, está obrigada a assegurar o princípio da igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas e a garantir o pluralismo político-partidário”.

    Por isso, conclui que “o facto de se optar por não convidar determinadas candidaturas para o programa ‘Isto É Gozar Com Quem Trabalha’ imporia à SIC um especial cuidado em compensar desequilíbrios surgidos em virtude de opções editoriais no âmbito dos seus programas de entretenimento”.

  • Esquecidos estavam, esquecidos continuam

    Esquecidos estavam, esquecidos continuam

    O PÁGINA UM desafiou Joaquim Magalhães de Castro, jornalista em Macau e autor de um vasto conjunto de obras de viagens e sobre o passado dos portugueses na Ásia, a escrever sobre a perseguição de luso-descendentes em Myanmar, antiga Birmânia. Os bayingyis são uma comunidade que está a ser massacrada nos últimos meses perante a passividade das autoridades portuguesas e da imprensa mainstream. Com excepção da primeira, todas as fotografias foram tiradas por habitantes locais das aldeias de Chaung Yoe e Chan-tha-ywa, a norte de Mandalay, após ataques perpetrados por militares birmaneses em Fevereiro e Maio deste ano. A veracidade das fotos foi confirmada ao PÁGINA UM por Joaquim Magalhães de Castro.


    Enquanto a guerra na Ucrânia domina as atenções dos media e das organizações internacionais, prossegue impune a repressão da Junta Militar do Myanmar em relação a todos os que se opõem ao seu tirânico regime.

    Entre eles estão os membros de uma comunidade luso-descendente com quase 450 anos de existência, gente rural, conhecidos localmente como bayingyis.

    Várias das suas aldeias foram já inteiramente queimadas, os seus bens destruídos e houve até quem fosse assassinado a sangue-frio. Aterrorizados pela acção da soldadesca e dos tiros da artilharia, os aldeões fugiram e encontram-se agora refugiados nas instalações da diocese em Mandalay, a segunda cidade do país.

    Rosto de um habitante da comunidade bayingyi, que mantém um apelido bem luso (Abreu). Foto: ©Joaquim Magalhães de Castro

    Desabafo de um dos seus residentes, chamemos-lhe Paulo: “temos imenso orgulho das nossas raízes portuguesas, mas Portugal não quer saber de nós!”. Diz isto, pois desde o final do ano passado tem estado em contacto comigo fornecendo-me provas das atrocidades cometidas, provas essas que em vão tentei fazer chegar a alguns dos principais órgãos de comunicação social.

    Não demonstraram qualquer interesse pela matéria até há umas semanas, quando lhes fiz chegar a mensagem que recebera do Paulo, logo pela manhã: “Ontem, um contingente militar de 150 soldados entrou em Chan-thar-ywa, uma grande aldeia bayingyi na região de Sagaing, disparando mais de três tiros de artilharia. Às 15 horas começaram a queimar a aldeia. A minha casa e muitas outras foram incendiadas… O pároco, as religiosas e os aldeões estão agora em fuga, deixando para trás todos os seus bens. Avistamos muito fumo do local onde nos escondemos”.

    Dias depois, já na capital Yangon, Paulo informava-me que a Junta Militar cortara a Internet e as comunicações de rede móvel na região onde se situam as aldeias dos luso-descendentes. Ou seja, a partir de então essa gente ficou ainda mais isolada.

    As imagens que o Paulo me fez chegar mexeram comigo, tocaram-me no fundo da alma, entristeceram-me profundamente.

    Conheci bem aquelas aldeias, dormi naquelas casas de teca e recebi da gente que as habitava toda a hospitalidade do mundo e arredores. Eu representava o Portugal mítico que, durante séculos, os bayingyis transportaram (e transportam ainda) consigo, apesar da maior parte deles ser incapaz de indicar num mapa onde fica Portugal.

    O Paulo era miúdo ainda quando pela primeira vez visitei essas aldeias, em 1993… Mais tarde, teve oportunidade de viajar e, numa passagem por Macau, veio à minha procura. “Lembro-me bem de si. Era criança ainda”, disse ele quando nos sentámos para beber um café e evocar recordações antigas.

    Na verdade, ando desde meados da década de 1990 a falar da comunidade bayingyi, a mais reputada das comunidades luso-descendentes do Myanmar. Dei a conhecer a sua existência e os seus anseios com artigos nos jornais e revistas, exposições fotográficas, dois livros, um documentário, depoimentos nas rádios e televisões e nas inúmeras conversas com amigos e desconhecidos.

    Em Macau, Portugal e onde foi possível chegar no Mundo. Mesmo assim, ainda há quem teime em ignorar a sua existência e as suas justas reivindicações históricas. É o caso da maioria dos media (sobretudo das televisões) e das nossas autoridades, ao mais alto nível, todas elas ao corrente da situação. Presidência da República, Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), Assembleia da República: um ensurdecedor silêncio; prova provada de que Portugal abdicou da sua política externa.

    Depois de registar o meu testemunho sobre o processo em curso, que visa, no mínimo, a desagregação e desenraizamento dessa comunidade orgulhosamente distinta das restantes (ou até, porventura, a sua aniquilação completa), uma jornalista da Lusa foi ouvir o que tinha a dizer o nosso MNE: “Questionado pela agência Lusa, o Ministério dos Negócios Estrangeiros recordou que, desde o primeiro instante, Portugal condenou o golpe militar de 1 de Fevereiro de 2021, praticado pelas autoridades militares do Myanmar, uma violação flagrante da vontade da população, expressa nas eleições gerais de 8 de Novembro de 2020”.

    E prossegue a nota do Palácio das Necessidades: “A violência por motivos étnico-religiosos ou a violação da liberdade religiosa é injustificável e inaceitável, em todas as suas formas. Myanmar está no topo da agenda da União Europeia e Portugal continuará a participar activamente no esforço colectivo da comunidade internacional para pôr termo a este conflito e auxiliar as populações vulneráveis”.

    Ou seja, sobre a comunidade bayingyi – que mantém a chama da portugalidade há mais de 400 anos, e que agora perdeu tudo o que tinha (casas, bens, animais, colheitas e, alguns, familiares também) – nem uma palavra!

    E tudo indica que razão desse silêncio se deve a rumores que nas Necessidades disseminaram a disparatada ideia de que a assumida origem lusitana dos bayingyis não tinha razão de ser e que tudo não passava de uma invenção de “alguns oportunistas”, daí que os nossos governantes optassem por não individualizar a questão, preferindo diluí-la no protesto comum da União Europeia pela continuada repressão às minorias éticas.

    Face a este delírio, só me ocorre dizer o seguinte: ou estamos perante alguém com uma enorme má-fé (inclino-me para esta hipótese) ou então com sérios problemas cognitivos.

    É sabido que a gente mesquinha e torpe, por norma não lê, não estuda, não conhece, e tem raiva de quem lê, estuda e conhece. Daí a sua tendência para a má-língua e a difamação. Pois bem, a origem portuguesa dos bayingyis (e de outras comunidades luso-descendentes do Myanmar, nomeadamente a de Arracão, que também conheço bem) está mais do que comprovada.

    Basta ler, por exemplo, alguns dos capítulos da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto ou a nossa contemporânea investigadora Maria Ana Marques Guedes, especialista da relação histórica entre Portugal e a Birmânia. Está lá tudo explicadinho.

    Entretanto, e para os mais preguiçosos, deixo aqui, em jeito de introito histórico, uma breve resenha que, espero, ajudará a contextualizar sobre quem são exactamente os bayingyis. E como surgiram.

    A Ilha dos Portugueses

    – Se vai ao meu país, não se esqueça de visitar a ilha dos portugueses. – Foi com estas palavras que se despediu de mim o jovem secretário da embaixada de Myanmar em Pequim quando, no início da década de 1990, aí fui solicitar um visto de turista.

    Dessa vez, não chegaria a utilizá-lo, mas aquilo da “ilha dos portugueses” ficou-me na ideia durante algum tempo.

    Quando, poucos anos depois, visitei pela primeira vez essa nação que já se chamou Birmânia, e que um punhado de generais teimava em considerar feudo seu, levava a lição minimamente estudada, graças à informação que em Macau me fora fornecida por um amigo entusiasta dessas coisas das miscigenações.

    Quem primeiro nos relata o pioneirismo dos portugueses na Birmânia é o cronista Duarte Barbosa, que em 1501 ruma à Índia com uma frota de várias dezenas de navios, só regressando a Portugal quinze anos depois.

    No decorrer da sua viagem pelo subcontinente e pelo Sudeste asiático refere-se, por diversas ocasiões, ao reino da Birmânia, com “os seus habitantes de pele escura que andam nus da cintura para cima”, e aos «mouros e pagãos» (entre estes últimos estavam incluídos os chineses), os grandes comerciantes da época, rivais dos portugueses.

    Barbosa é, provavelmente, o primeiro europeu a mencionar a existência da Birmânia, na altura, o nome dado ao principado de Tangu, que, juntamente com Ava, Pegu e Arracão, era um dos mais importantes reinos da região que hoje constitui o estado de Myanmar.

    Em 1511, os mon (uma das muitas etnias da região) estabeleceriam um tratado comercial e de amizade com Afonso de Albuquerque, que lhes enviou um mensageiro chamado Rui Nunes, procurando, com isso, o apoio dos gentios contra o inimigo comum: os muçulmanos. Pegu, reino budista, era um aliado precioso.

    Em Agosto de 1512, Pêro Pais e Jorge Álvares rumam ao Pegu a bordo do junco São João. Estava assim iniciada uma prática corrente de compra de juncos para Malaca, que daria origem a uma rota de duas semanas, com escala, para carregamento de pimenta no porto de Pacém, ilha de Samatra.

    Passaram a ser construídas em Martavão, a partir de então, inúmeras dessas embarcações que seriam escoadas para Malaca, de maneira que esta pudesse responder de forma eficiente às intensas relações marítimas que mantinha com vários portos da Ásia e da Insulíndia. Por vezes, eram os malaqueiros que rumavam a Pegu em busca de juncos; outras, eram os pegus que se dirigiam para Malaca, onde os vendiam depois de saldado o trato.

    Na sua Peregrinação, Fernão Mendes Pinto refere-nos as riquezas da Birmânia, chamariz para mercadores portugueses, que ali demandavam a partir de Malaca, em busca das afamadas madeiras, cereais, laca e pedras preciosas, como os rubis ou as safiras, entre tantos outros produtos, e visitavam no processo o arquipélago de Mergui, as cidades de Tavoy, Sirião, Cosmim, Akyab, tornando-se aliados do rei de Pegu. Chegaram acompanhados pelos respectivos capelões, e assim se foi instalando o cristianismo na região.

    Estabelecido em Martavão, o feitor português Duarte Peçanha de Alenquer acabaria por bater em retirada, após escaramuças com a população local e os portugueses aí residentes. Eram as primeiras manifestações do poder dos lançados ou homiziados, que em toda aquela região comerciavam por conta própria e que desde sempre ofereceram resistência à tentativa monopolizadora do Estado da Índia.

    Fossem eles mercadores ou soldados, teriam um papel fundamental na formação política da Birmânia, nomeadamente na conquista de Pegu, em 1598, pelas forças aliadas birmanesas dos reinos de Tangu e de Arracão.

    Em 1519, na sequência de um novo tratado de paz e comércio, assinado por António Correia, representante do rei português, e o soberano de Pegu, as trocas intensificar-se-iam ainda mais. De acordo com os relatos de Faria de Sousa, na sua Ásia Portuguesa, as relações comerciais entre Portugal e os reinos de Ava e Pegu expandiram-se de tal maneira que, por volta de 1556, se encontravam já “ao serviço do rei Bayinnaung mais de um milhar de soldados e marinheiros portugueses sob as ordens de António Ferreira de Braganza”.

    Em alguns dos capítulos da Peregrinação, Mendes Pinto relata-nos vários episódios envolvendo estes mercenários e cita até o nome de muitos deles. Ele próprio exercia na altura a função de mercenário e, ao chegar ao porto de Cosmim, após uma atribulada travessia do país, deparou com uma pequena colónia de católicos, precisamente o resultado dos casamentos inter-raciais, entretanto efectuados pelos soldados e mercadores portugueses ali estabelecidos.

    Curiosamente, o primeiro religioso a pregar entre os birmaneses era um franciscano francês, Pierre Bonfer, capelão dos marinheiros e comerciantes lusos, de 1554 a 1557, em Sirião, à época, o principal porto da região. Escusado será dizer que as pioneiras tentativas de missionação caíram em saco roto.

    Esse porto, na embocadura do rio Irrauadi, frente a Yangon, ficaria para sempre ligado ao nome de Portugal e dos portugueses, graças ao controverso desempenho de um aventureiro chamado Filipe de Brito, que, de 1600 a 1613, fez o que muito bem lhe apeteceu em Sirião e na vizinha zona costeira. Brito tinha absoluto poder sobre a região e seus habitantes, tendo sido sob a sua protecção e auspícios que os capelões jesuítas puderam dar início ao processo de “evangelização entre os gentios”, como se dizia então.

    Filipe de Brito não foi o único, mas tratou-se seguramente do mais famoso dos lusos aventureiros que pululavam naquela e noutras regiões da Ásia.

    Os descendentes desses soldados portugueses, que na época de seiscentos lutaram ao lado dos soberanos de Ava e do Pegu, ou que faziam parte do pequeno exército de Filipe de Brito, ou do seu companheiro de armas, Salvador Ribeiro de Sousa, senhores feudais em terras do Oriente, ambos empossados com o título de «rei do Pegu», são hoje conhecidos em Myanmar como bayingyis.

    O legado de Filipe de Brito

    Gerir os destinos da feitoria do Sirião foi a recompensa obtida pela participação de Brito (ao serviço do soberano de Arracão, reino situado na costa do golfo de Bengala) na conquista do Pegu, facto histórico que viria a ser retratado num mural de um relicário contíguo ao templo Ananda, na cidade de Bagan, e que nos mostra Brito e companheiros a bordo de juncos.

    No entanto, o militar português, insatisfeito com o seu quinhão, da feitoria fez fortaleza – “começando no ano de 1599 por uma tranqueira de madeira, no ano de 1602 o fez de pedra e com muita artilharia e munições a pôs em estado para se poder defender de todos os inimigos”, como escreve o cronista Bocarro – e, em revolta aberta contra Arracão, não só se assenhorou da zona do delta e da sua população, como tentou apoderar-se dos portos de mar de Cosmim e Martavão, locais onde projectara erguer fortalezas.

    Assegurar a posse dessa zona estratégica equivalia à possibilidade de controlar toda a região, como, de facto, o fizeram os portugueses. Filipe de Brito soube conquistar também a simpatia dos soberanos de etnia mon; preocupando-se em povoar as terras ermas, ofereceu-as depois, isentas de impostos, aos habitantes.

    Assim, em redor da fortaleza foi crescendo a povoação. Em Outubro de 1602, haveria no Sirião, sob guarida portuguesa, entre catorze a quinze mil pessoas.

    Originários de uma região que se estende ao longo do golfo de Martavão, delimitada a leste por uma cadeia montanhosa, os mon acabariam, ao longo da sua história, por ser absorvidos pelos povos vizinhos, fossem eles birmanes ou siameses.

    Porém, curiosamente, não só a cultura mon sobreviveria a toda essa absorção, como acabaria por moldar a dos povos invasores. Foi de Thaton, antiga capital mon, que partiu o budismo para, em Bagan, se tornar a religião do império.

    Fiel a uma estratégia previamente delineada, e uma vez assegurada a aliança com os mon, Filipe de Brito de Nicote tratou logo de estabelecer parceria com Nat shin Naung, rei do Tangu, familiar e rival do de Ava, pois pretendia utilizar esse reino como trampolim para o interior, de onde sabia virem as riquezas que se comerciavam nos portos do Pegu, em Arracão e na costa sul.

    Situado na zona limítrofe entre a Baixa e a Alta Birmânia, o reino de Tangu constituía um empecilho aos desejos de domínio do rei de Ava, que tencionava avançar também sobre o Sirião. A relação de Brito com Nat Shin Naung era de tal forma próxima que, alegadamente, este ter-se-ia convertido ao cristianismo, chegando mesmo a receber o baptismo.

    Uns consideravam-nos “irmãos de sangue”; outros, simples cunhados, pois Brito de Nicote viria a casar-se com a irmã do birmanês, que, depois de convertida, adoptaria o nome de dona Maria de Saldanha.

    Verdadeiro “lançado”, senhor do seu destino, Filipe de Brito sonhava com a criação de um estado equivalente ao Estado da Índia, mas no Sudeste asiático. O reino de Ava, porém, antecipou-se, ocupando Tangu em 1609.

    Por solicitação do cunhado destronado, Brito marchou sobre a cidade, resgatou Nat Shin Naung, fez o devido saque e refugiou-se em Sirião. Furibundo, Anauk-hpet-lung, rei de Ava, retaliaria, conquistando, após prolongado cerco, o estabelecimento português em 1613 e pondo assim fim ao reinado do capitão.

    Acusados de corruptores da religião, os dois amigos morreriam por ordem de Anauk-hpet-lung nesse mesmo ano. A Nat Shin Naung, abriram-lhe o peito; ao português coube a cruel morte por empalação, tendo passado “três dias em agonia antes de perecer”, como relatam as crónicas da época.

    Faria de Sousa conta-nos que não era intenção inicial do monarca avanês poupar a vida aos habitantes de sirião, mas que, “depois de acalmado, decidiu enviá-los para norte, para Ava, como escravos”. Um trajecto de mais de setecentos quilómetros, percorrido a pé pelos seguidores de Filipe de Brito, que, nas palavras do cronista, “eram constituídos por portugueses, euro-asiáticos, negros e malabares”. Totalizavam alguns milhares, entre os quais apenas quatrocentos seriam inteiramente portugueses.

    Este quantitativo é, no entanto, fortemente contestado por quem se debruça com mais atenção sobre o tema em causa. Ao que consta, o número de portugueses seria bem mais elevado, sendo que, nessa sua penosa jornada, tiveram o apoio moral e a companhia dos franciscanos Gonçalo Machado e Manuel da Fonseca. este último terá enviado uma carta, datada de 26 de Dezembro de 1616, ao vice-rei de Goa, relatando as dificuldades pelas quais passaram os prisioneiros nessa jornada.

    Em 1635, partiria para Ava o dominicano e lisboeta Agostinho de Jesus, ao saber que ali se encontravam quatro mil cativos, desprovidos de qualquer assistência espiritual.

    A esse respeito, relatam as crónicas o seguinte: “Se pôs a caminho daquela cidade, em que gastou três meses pela Ganga acima, sujeitando-se ao rigor da mesma prisão por acompanhar os cristãos nos seus trabalhos, administrar-lhes a consolação de que careciam, e com eles esteve cumprindo no mesmo trabalho muitos anos, nos que ia também tirou da sua cegueira a muitos gentios, e conseguida a liberdade passou aos reinos de Bengala.”

    A comunidade cristã ter-se-ia, entretanto, multiplicado. Para prevenir uma proliferação excessiva, o rei Tahlun Min, irmão de Anauk-hpet-lung, entretanto assassinado pelo próprio filho, seleccionara os mais dotados na arte bélica e integrara-os na sua guarda pessoal, exilando os restantes para a povoação de Preinma, na margem leste do rio Chindwin, afluente do Irrauadi.

    Daí, seriam enviados para o vale do Mu, onde fundaram oito aldeias, sendo autorizados a praticar livremente o seu culto. Trabalhavam as terras livres de impostos, sendo requisitados para o exército em tempo de guerra.

    O cronista António Bocarro refere, a propósito, que “ficaram cativos d’el rei e foram postos em aldeias ou espalhados pelo reino. Como cativos eram invioláveis, padecendo o único mal de não poderem sair do país”. Incorporados em unidades militares hereditárias de elite, constituíram até ao fim do século XVII a base da artilharia do II império Tangu.

    Mas Agostinho de Jesus e Gonçalo Machado foram excepção à regra, pois o Estado da Índia ignorou sempre os insistentes apelos no sentido de serem enviados padres para o interior, ficando a comunidade irremediavelmente abandonada à sua sorte durante quase meio século.

    Seriam os padres barnabitas italianos quem colmataria a lacuna e estruturaria o catolicismo, fundando escolas, onde se ensinava, para além do português, o latim e o italiano. No processo, criaram tipografias, onde eram impressas gramáticas, compêndios de história e dicionários, entre os quais um dicionário de latim-português-birmanês, ao mesmo tempo que faziam constantes pedidos para que da Europa lhes enviassem livros em português.

    Graças aos barnabitas, a nossa língua foi uma realidade na Birmânia até ao final do século XIX, tendo, a partir de então, caído no total esquecimento. Sabe-se também que os portugueses continuaram a gozar de um estatuto privilegiado junto da corte de Ava, graças a relatos de enviados europeus, que, por exemplo, mencionavam a presença do armador Simão de Vargas, “que falava fluentemente o birmanês e o siamês”, e de António Camarata, chefe da guarda-real, que “tinha autorização para andar armado na presença do rei”.

    Fruto do trabalho dos barnabitas, são recordados ainda hoje ilustres filhos da terra, como Ambrósio de Rosário, que em Roma foi cirurgião reputado; ou o padre George d’Cruz, responsável pela construção de um colégio e uma tipografia em Cosmim; ou ainda Inácio de Brito, o primeiro barnabita birmanês, poliglota, médico, escritor e, sobretudo, músico. Foram inúmeros os hinos religiosos que compôs e que até muito recentemente se cantavam, em português, nas igrejas de todo o país.

    Figura quase mítica, Filipe de Brito passaria para os anais portugueses e birmaneses (onde surge sob a designação Nga Zinga ou Kala), ora como herói, ora como traidor. O retrato pela negativa deve-se, quase sempre, ao seu procedimento hostil em relação ao culto oficial do império birmane.

    No pagode de Maha Kalyani, na cidade de Bago (antiga Pegu), por exemplo, existe ainda uma sala de ordenação construída em 1476 e que, em 1599, durante o ataque à cidade, o capitão português mandou queimar. Esta foi a primeira de outras quatro centenas de salas de ordenação similares disseminadas por todo o país, com base em cópias de plantas trazidas do Ceilão.

    Se era conflituosa a relação de Brito com a hierarquia budista, com a cristã revelou-se cordialíssima, representada aqui pela Companhia de Jesus, junto da qual o renegado gozava de grande prestígio, pois dera aos religiosos terra numa das ilhas do delta. Chegariam posteriormente dominicanos, agostinhos e franciscanos.

    O comportamento de ambas as partes – capitão e missionários – interferiria irremediavelmente na vida da região, do país e até na política seguida pelo Estado da Índia, de modo que este não só reconheceu os feitos do capitão, como encorajou pobres, renegados e aventureiros a procurarem refúgio em sirião.

    Nesse contexto, Filipe de Brito mandou erguer no interior da fortaleza a igreja de Nossa Senhora do Monte, acerca da qual existem raros registos, mas que se sabe ter sido incendiada pelos exércitos conjuntos de Arracão e de Tangu, a 11 de Abril de 1607.

    Com a derrocada do feudo do português, o catolicismo sofreu um enorme revés, tendo a perpetuação do culto ficado entregue a religiosos goeses, que não sabiam birmanês e apenas pregavam em português-patuá, facto que só os hostilizava junto da população.

    Os primeiros missionários europeus que regressaram ao Sirião – dois franceses, em 1689 – ainda chegaram a abrir um dispensário, mas, acusados de espionagem, foram afogados no Irrauadi. A imagem dos representantes do clero que entretanto ali se mantinham, sob a supervisão da diocese de Madras, na Índia, não era a melhor, pelo menos se dermos credibilidade a relatos como o que se segue, feito por um navegador inglês do início do século XVIII eivado do puritanismo que caracterizava esse povo: “Há aqui cristãos de origem portuguesa e alguns arménios. Os portugueses possuem uma igreja, mas as vidas escandalosas que os padres levam tornam-nos desprezíveis aos olhos do povo.”

    Conclusão

    Os bayingyis de hoje constituem uma das várias comunidades católicas minoritárias (a maioria delas de origem portuguesa) que podemos encontrar do norte ao sul, do leste ao oeste desse enorme país maioritariamente budista que é o Myanmar, a antiga Birmânia.

    Os bayingyis habitam treze aldeias no norte do país, disseminadas por uma vasta planície entre os rios Chindwin e Mu, e subsistem sobretudo da agricultura. Distinguem-se dos restantes birmaneses pelos seus óbvios traços caucasianos – narizes proeminentes, olhos claros e profundos, maior pelugem no corpo, etc. –, muito embora o português tenha caído em desuso e os seus nomes e apelidos foram esquecidos (subsistem, estes últimos, nas placas funerárias e nos registos paroquiais).

    A prática do catolicismo é, sem dúvida, o traço mais distintivo dos bayingyis. Seguem o calendário litúrgico, praticam muitas das nossas tradições e mantêm aceso um enorme orgulho das suas raízes portuguesas.  

    De facto, como se comprova pelo cobarde silêncio que por aí paira, não os merecemos.

  • Partido Socialista está em falência técnica desde 2013

    Partido Socialista está em falência técnica desde 2013

    Mesmo tendo recebido 52 milhões de euros de subvenção pública nos últimos 10 anos, o Partido Socialista está com os seus capitais próprios negativos há nove ininterruptos anos. Desde que António Costa assumiu a liderança do país, a situação financeira do seu partido tem melhorado – como sempre que o PS está no Governo –, mas mesmo assim vai precisar de mais seis anos no poder para o partido da rosa sair do vermelho.


    O Partido Socialista (PS) – que governa ininterruptamente Portugal desde Novembro de 2015 – apresenta capitais próprios negativos desde 2013, apesar de ter recebido mais de 52 milhões de euros na última década de subvenção pública do Estado, que constitui actualmente cerca de três quartos das suas receitas.

    Esta é a principal conclusão de uma análise financeira do PÁGINA UM às contas dos partidos políticos desde 2003, que se encontram arquivadas na Entidade das Contas e Financiamentos Políticos. Nas próximas semanas serão apresentadas análises similares sobre os principais partidos políticos.

    António Costa, secretário-geral do Partido Socialista e primeiro-ministro de Portugal.

    Em termos práticos, esta situação financeira do partido cujo secretário-geral é o primeiro-ministro português significa que se encontra em falência técnica há já nove anos, porquanto o valor do passivo é superior aos activos desde 2013.

    Numa acepção economico-financeira não significa que esteja em via de ficar insolvente, ou de falir, até porque desde 2016 os seus resultados positivos têm sido positivos, embora ainda muito insuficientes para tapar o “buraco” onde ainda se encontra. De facto, o PS só não abre falência por via dos contínuos financiamentos externos, de instituições bancárias, e do protelamento de pagamentos.

    Na verdade, pese embora os lucros dos últimos anos, desde 2013 o passivo do PS tem estado quase sempre a rondar os 20 milhões de euros. Esta é sobretudo ainda uma herança de 2013. Então na oposição ao Governo de Pedro Passos Coelho, o PS ficou endividado de forma repentina, tendo o seu passivo pulado de cerca de 8,6 milhões de euros para 29 milhões, sobretudo por causa da degradação da rubrica relativa às estruturas partidárias e campanhas eleitorais. Nunca mais recuperou a situação anterior, contrariando o que sucedera em 2009. Então em pleno mandato de José Sócrates, o PS subiu o seu passivo de 3,8 milhões de euros em 2008 para os 35,8 milhões em 2009, mas desceria depois, no ano seguinte para os 7,1 milhões.

    Capital próprio (em euros) do Partido Socialista desde 2003. Fonte: Entidade das Contas e Financiamentos Políticos.

    Com variações ao longo dos últimos nove anos, o seu passivo nunca baixou dos 18 milhões de euros, situando-se no final de 2021 em quase 22,9 milhões, quase mais 3 milhões do que em 2020.

    Uma parte considerável da degradação das contas, vem assim directamente do elevado passivo, devido ao pagamento de juros. Por exemplo, no ano de 2012 – antes do endividamento de 2013 – o PS gastou um pouco menos de 220 mil euros em juros e gastos similares. No ano passado chegou aos 410 mil euros.

    No entanto, a situação financeira até tem estado em recuperação desde que o PS retomou as rédeas do poder, estando agora com menores custos com pessoal do que quando estava na oposição, o que se compreende por ser habitual as estruturas partidárias se encaixarem no aparelho do Estado. Por exemplo, em 2013, na oposição, os gastos com pessoal foi de quase 2,5 milhões de euros, enquanto no ano passado (no poder) se cifraram apenas nos 1,8 milhões de euros.

    Estar no Governo tem sido, aliás, a tábua de salvação das contas do PS. Além da redução nos custos de pessoal, também os fornecimentos e serviços externos diminuíram. Em 2012 e 2013 – em pleno mandato de Passos Coelho –, o PS gastou, em cada um desses anos, cerca de 4,3 milhões de euros nessa rubrica. Nos dois mais recentes anos, no poder, as contas para essa rubrica situam-se em redor dos 3 milhões de euros.

    Passivo (em euros) do Partido Socialista desde 2002. Fonte: Entidade das Contas e Financiamentos Políticos.

    Mesmo se os actos eleitorais – que coincidem sempre com um aumento significativo de donativos mas também de custos – não são necessariamente um bom negócio para os partidos, o day after tem sido importante no caso do PS: poder significa desafogo financeiro; oposição resulta em consequente aflição financeira nos anos seguintes. Até porque as subvenções estatais estão associadas a esta relevante variável.

    Com efeito, analisando os resultados líquidos desde 2003, observa-se que nos 15 anos em que o PS esteve no poder em grande parte ou na totalidade do ano económico (entre 2005 e 2010, e desde 2016), apenas em 2009 registou prejuízo (quase 2,2 milhões de euros). Nos outros, os lucros variaram entre os 264 mil euros (em 2018) e os 2,3 milhões (em 2006).

    Em todo o caso, os seis anos económicos completos de José Sócrates na liderança do PS foram em média melhores do que os seis anos de António Costa: 1,1 milhões de euros contra 468 mil euros. No entanto, Sócrates teve um ano económico completo de prejuízo (2006) e deixou uma herança pesada quando em Junho de 2011 “entregou” o poder ao PSD. Nesse ano, o PS registou um prejuízo de quase 3,2 milhões de euros – mesmo assim menor do que os de 2012 e 2014, quando António José Seguro foi líder.

    Resultados líquidos (em euros) do Partido Socialista desde 2002. Fonte: Entidade das Contas e Financiamentos Políticos.

    Em contraste, nos anos económicos (ou na maior parte dos meses) em que o PS se encontrava no estatuto de oposição, os resultados financeiros foram, geralmente um desastre: apenas em 2012 não ficaram no vermelho – com um lucro de quase 590 mil euros – mas depois do “desastre” de 3,1 milhões de euros de prejuízo no ano anterior, que obrigou, em consequência, a um corte para quase metade nas despesas com fornecimentos e serviços externos.

    Mesmo assim, ao ritmo em que os lucros dos últimos seis anos – uma média anual de 469 mil euros –, o PS vai precisar de mais seis anos para que os capitais próprios fiquem novamente positivos. Mas têm de ser sempre seis anos de poder, porque na oposição a situação tende a piorar, como mostra a sua História.

  • Iniciativa da Comissão Europeia causa maior polémica de sempre, mas em Portugal é ignorada pelos partidos e imprensa mainstream

    Iniciativa da Comissão Europeia causa maior polémica de sempre, mas em Portugal é ignorada pelos partidos e imprensa mainstream

    Consulta pública para renovar por mais um ano a vigência do certificado digital está a merecer uma contestação nunca vista. Em situações normais, regulamentos em dicussão recebem poucas dezenas ou centenas de comentários antes da sua aprovação, mas o prolongamento do documento que é a imagem da discriminação a quem recusa vacinar-se, em muitos casos por ter imunidade natural, já conta com mais de 136 mil comentários de cidadãos e entidades sobretudo da Itália, Holanda, Alemanha, Bélgica e Eslováquia. Em Portugal, porém, no pasa nada. A imprensa mainstream ignora o assunto. E de todos os partidos políticos, apenas o PCP quis falar ao PÁGINA UM.


    Manter ou não manter por mais um ano o certificado digital de vacinação como forma de discriminar os não-vacinados contra a covid-19 no controlo transfrointeiriço ou locais públicos e privados: eis a magna questão.

    Falta menos de uma semana para terminar a mais concorrida e polémica iniciativa legislativa da Comissão Europeia, e quase todos os principais partidos políticos portugueses ignoram este assunto. E nem se mostram interessados em o debater. A imprensa mainstream também nada noticia sobre a intenção da Comissão von der Leyen, que tomará uma decisão após a consulta pública que termina na próxima sexta-feira, dia 8.

    A fase de consulta pública do projecto de regulamentação da Comissão von der Leyen em prolongar a vigência do certificado digital até Junho de 2023 – declaradamente para incentivar a vacinação contra a covid-19 está a sofrer uma contestação nunca vista.

    man in black jacket standing beside white van during daytime

    De acordo com os registos no site da Comissão Europeia foram contabilizadas, até às 19:30 horas de hoje, um total de 136.039 comentários e apreciações à proposta de uso do certificado digital, praticamente todas contra.

    Em pouco mais de um mês, os comentários mais do que duplicaram. Em 24 de Fevereiro, num levantamento do PÁGINA UM, estavam então registados 61.532 comentários.

    A Itália – país onde o uso do certificado digital para uso interno se aplicou de forma radical, condicionando mesmo o acesso ao emprego, transportes públicos e a bens essenciais – lidera as estatísticas, com 24.413 comentários de cidadãos e entidades.

    Segue-se a Holanda e a Alemanha a pouca distância uma da outra, com 22.631 e 22.592 comentários, respectivamente. A França conta já com 17.282, e Bélgica e Eslováquia contam, cada, com mais de cinco mil.

    Portugal é apenas o 13º país com mais comentários, com um total de 1.257,o que se deverá, em grande medida, à falta de eco sobre a consulta pública, quase um boicote, pela imprensa mainstream.

    Para obter uma reacção sobre a necessidade de prolongamento do certificado digital – que cientificamente não garante a não transmissibilidade da covid-19 nem tão-pouco de mecanismo de controlo da pandemia –, o PÁGINA UM contactou durante a passada semana todos os partidos políticos com assento na Assembleia da República e/ou no Parlamento Europeu sobre esta matéria, a saber: Partido Socialista, Partido Social Democrata, Chega, Iniciativa Liberal, CDS, PAN, Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português (PCP).

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    Apesar de terem sido feitos dois contactos, apenas o PCP reagiu. Referindo que “quando da discussão e aprovação do ‘certificado digital’ no Parlamento Europeu”, discordou e repudiou “um regulamento que permitia aos Estados Membros imporem restrições à circulação de pessoas”, incluindo o acesso ao emprego, os comunistas dizem “não ver nenhuma razão para alterar a nossa posição”.

    E relembram ainda que “a Organização Mundial de Saúde, não só desaconselhou que tal decisão fosse tomada, como chamou a atenção para o facto de se estar a fazer tábua rasa do Regulamento Sanitário Internacional, subscrito por 196 países, que aponta soluções mais eficazes.”

    Para o PCP, que defende ser a vacinação eficaz no combate à covid-19, não é com o certificado digital, “com este tipo de imposições”, que se consegue convencer os mais reticentes, mas sim “através de outras medidas mais eficazes”. No entanto, para este partido político “não se justifica a introdução da obrigatoriedade.”

    O Governo português, por seu turno, aparenta querer manter a sua vigência, tanto mais que tomou a decisão deixar cair o prazo de validade dos certificados dos menores. Significa assim que os maiores de 18 anos terão de tomar reforços da vacina contra a covid-19 de 9 em 9 meses, independentemente do seu grau de imunidade, caso pretendam renovar o seu “passe sanitário administrativo”.

    Recorde-se que o regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho, ainda em vigor, que criou, em Junho do ano passado, “um regime para a emissão, verificação e aceitação de certificados interoperáveis de vacinação, teste e recuperação da COVID-19 (Certificado Digital COVID da UE)” pretendia “facilitar a livre circulação de pessoas durante a pandemia”. Mas era temporário, com o prazo de um ano e apenas para controlo transfronteiriço.

    Porém, estes certificados foram depois abusivamente aproveitados por diversos Estados-membros, incluindo Portugal, para discriminarem não-vacinados (mesmo se recuperados há mais de seis meses) no acesso a determinados espaços.

    Em todo o caso, de acordo com um levantamento ontem apresentado pelo jornal ECO, há 15 países que já decidiram terminar com as restrições nas viagens para os cidadãos da União Europeia ou do Espaço Schengen, a saber: Dinamarca, Eslovénia, Finlândia, Hungria, Irlanda, Islândia, Lituânia, Luxemburgo, Noruega, Países Baixos, República Checa, Roménia, Suécia, Suíça e Liechtenstein.

  • Desde a II Guerra Mundial já morreram em conflitos armados mais pessoas do que a população portuguesa. E como está a ser este ano?

    Desde a II Guerra Mundial já morreram em conflitos armados mais pessoas do que a população portuguesa. E como está a ser este ano?

    O PÁGINA UM foi ver como anda o Mundo em mavorcismos desde 1946, um ano após o fim da II Guerra Mundial. O saldo não é nada favorável: 10.477.718 vítimas mortais. Em 2020, segundo as Nações Unidas e o site Our World in Data, ficaram acima de 49 mil. Mas há mais base de dados relevantes que mostram que nem só com guerras formais e televisionadas se mata e morre. O PÁGINA UM foi à procura de informação, e apresenta uma análise, não para relativizar a tragédia da Ucrânia, mas sim para relembrar que o Mundo não pode esquecer outros mundos em contínua, trágica e flagelante sangria de vidas.


    Trinta e um são os dias daquela que é conhecida por Guerra da Ucrânia. Foram percorridos, todos estes dias, por incessantes notícias de bombardeamentos, baixas, refugiados, que já são mais de 3,5 milhões, manifestações, sanções sem fim.

    Estão a ser feitas recolhas de alimentos, campanhas de ajuda financeira e de acolhimento temporário um pouco por todo o Ocidente, incluindo também, massivamente, em Portugal.

    Se a perspectivarmos através dos relatos da imprensa, esta Guerra parece só agora se ter iniciado naquela região, e que em redor, no Mundo, nada mais existe do que paz, uma serena paz.

    Infelizmente, nada estará mais longe da verdade. Os “deuses” da Guerra não pararam, nem foram todos agora a caminho da Ucrânia.

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    Andam por aí, como sempre andaram por todo o lado. Quem acha que nunca se viu coisa assim, tem andado distraído. Nunca pararam desde a denominada II Guerra dita Mundial. E isso de ter havido uma I e uma II é convenção: conflitos envolvendo vários países, nos diversos continentes, ocorreram antes do século XX, por vezes durante décadas.

    E mundiais foram, certamente, apesar de usarem tecnologia que não matava tanto em massa como os conflitos em tempos modernos. Outras histórias.

    Enfim, certo sim é que, desde 1946 até 2020, segundo dados compilados pelo Our World in Data e validados pelas Nações Unidas, foram mortas 10.477.717 pessoas em conflitos armados, mais do que toda a actual população portuguesa, que contou, nos Censos do ano passado, 10.344.802 vidas.

    Embora a mortandade causada pelos diversos conflitos regionais tenham apresentado uma tendência decrescente na década de 50 do século passado – entre 1946 e 1950 ainda morreram mais de 2,2 milhões de pessoas em cenário de guerra –, os anos de 60, 70 e 80 registaram um crescimento no número de vítimas, muito por via das guerras no continente asiático e no Médio Oriente, com particular destaque para a Guerra Irão-Iraque.

    Evolução das mortes em guerras no Mundo desde 1946. Fonte: Our World in Data.

    A década de 90 foi a mais pacífica a nível mundial na segunda metade do século XX – “apenas” 483.845 vítimas mortais –, embora tenha sido a mais sangrenta na Europa, com 55.422 mortes, quase todas no decurso do desmembramento da antiga Jugoslávia. Só em 1991 caíram às mãos da guerra 20.337 europeus, o valor anual mais elevado desde 1950.

    No entanto, se se descontar (e nem se devia) os conflitos nos países formados pelas antigas repúblicas soviéticas, sobretudo a Ucrânia, a Europa tem estado imune a guerras no presente milénio. E se consideramos a Europa Ocidental, e não havendo aí disputas bélicas desde a II Guerra Mundial, pode-se dizer, com segurança, que se está a viver o período mais longo de paz contínua da sua longa História.

    Evolução das mortes em guerras na Europa desde 1946. Fonte: Our World in Data.

    A primeira década do século XXI parecia ser de esperança para uma Humanidade finalmente mais fraterna, pois mostrou-se a menos mortífera em cenários de guerras a nível mundial desde 1949. Mesmo assim foram assassinadas 218.831 pessoas em conflitos armados.

    Foi sol de pouca dura. Quem julgasse que o novo milénio seria de clarividência e de harmonia entre povos, desenganou-se com a segunda década. Entre 2011 e 2020 retomaram as guerras, sobretudo no Médio Oriente, e em especial na Síria e Iémen, que mataram mais de 483 mil pessoas.

    A Ásia (excluindo o Médio Oriente e incluindo a Oceânia) tem sido, contudo, o continente mais massacrado por conflitos armados desde o final da II Guerra Mundial: cerca de 6,4 milhões de vítimas mortais. Grande parte foram provenientes de sangrentas guerras entre as décadas de 40 e 80 do século passado, com destaque para as ocorridas na região da Indochina (Camboja e Vietname).

    Evolução das mortes em guerras na Ásia e Oceânia desde 1946. Fonte: Our World in Data.

    Se se acrescentar ao continente asiático o Médio Oriente, são mais 1,65 milhões de vítimas após a II Guerra Mundial.

    A denominada Guerra da Independência de Israel, que levou a um conflito com diversos países árabes em 1948, e a um êxodo de palestinianos, causou mais de 20 mil mortes.

    Este conflito manteve-se omnipresente nesta região a partir daquele ano, mas juntaram-se nos anos 6o as guerras curdo-iraquianas e mais conflitos na região do Iémen do Norte.

    Na década de 70, o conflito entre a Turquia e rebeldes curdos, que pretendiam a autonomia da região do Curdistão em 1977, foi um dos mais sangrentos nesta região.

    Mesmo assim nada parecido, em dimensão com a longa e fratricida guerra entre Irão e Iraque, iniciada em 1980 e apenas terminada oito anos mais tarde, com um saldo superior a um milhão de mortos. Por fim, já no presente milénio, a Primavera Árabe descambaria, a partir de 2010, em sangrentas guerras civis sobretudo no Síria, Iémen e Iraque.

    Evolução das mortes em guerras no Médio Oriente desde 1946. Fonte: Our World in Data.

    A África, um continente tradicionalmente sangrento, muito por via das guerras tribais e da influência por vezes nefasta das potências ocidentais. Algumas fizeram correr sangue antes de perderem as suas antigas colónias. Foi o caso de Portugal. A Guerra Colonial, iniciada em 1961 e terminada apenas em 1975, causou a morte a cerca de 10.500 soldados portugueses e ainda de mais de 45 mil civis e agentes de movimentos independentistas africanos.

    Na segunda metade do século XX, poucos foram os anos em que morreram menos de 20 mil pessoas em África por causa de conflitos armados, havendo dois anos (1960 e 1961) em que se superou a fasquia das 130 mil vítimas. E mais 13 anos a ultrapassarem os 40 mil mortos.

    Evolução das mortes em guerras em África desde 1946. Fonte: Our World in Data.

    A segunda década do presente século foi mais “amena” – se considerarmos o passado –, com valores anuais de vítimas mortais a rondarem as 10 mil.

    Neste continente, e desde 1946, poucos foram os países sem derramamento de sangue por causa de guerras, mas as mais mortíferas ocorreram na Eritreia, Nigéria, Ruanda, Sudão (e, mais tarde, no Sudão do Sul) e Uganda, e mesmo também em Angola e Moçambique.

    Inúmeros são os conflitos ainda activos nos quatros cantos do Mundo, mesmo se nos últimos dois anos, também por força da omnipresença da pandemia nos media, pouco deles se fala.

    Todos os dias morrem pessoas, outras se estropiam, destroem-se infraestruturas, ferem-se povos com marcas que não saram.

    E não é uma opinião subjectiva; é factual. É um relatório das Nações Unidas que o diz, e é de Dezembro passado.

    Evolução das mortes em guerras nas Américas desde 1946. Fonte: Our World in Data.

    Vejamo-las, uma a uma, essas zonas de Guerra, segundo o organismo que tem António Guterres como secretário-geral.

    Na Síria, um conflito armado que dura, há mais de 11 anos, já morreram pelo menos 350 mil pessoas, e não tem um fim à vista, tantos são já os grupos beligerantes.

    Este país do Médio Oriente enfrenta também um colapso económico, por má gestão e práticas corruptas. E os efeitos da pandemia desde 2020 não ajudaram.

    No Médio Oriente, a guerra do Iémen constitui também um dos maiores dramas humanitários numa região pobre onde mais de 14 milhões de habitantes necessitam de ajuda alimentar.

    Com as suas raízes na denominada Primavera árabe, a aparição da Al-Qaeda na região e de movimentos separatistas no sul, além de conflitos entre hutis e sunitas, levaram ao recrudescimento da guerra, com a envolvência da Arábia Saudita.

    Desde 2015, segundo as Nações Unidas, morreram mais de 6.800 civis e ficaram feridos pelo menos 10.700 pessoas. Estes conflitos criaram já mais de três milhões de deslocados e refugiados.

    No Afeganistão, após a retomada do poder pelos talibans e a saída das tropas internacionais no ano passado, os conflitos persistem. Na primeira metade de 2021 morreram 1.659 civis e ficaram feridas cerca de 3.200, um aumento de quase 50% face ao ano anterior.

    As principais vítimas foram as mulheres e as crianças. No entanto, os “rios de sangue” nesta região asiática marcam um trágico quotidiano. Desde 2009, todos os anos o número de vítimas mortais nunca desceu abaixo do milhar, e em vários anos se registam mais de cinco mil feridos.

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    Na Etiópia, a região de Tigray, na parte norte deste país africano, tem sido o centro de confrontos entre as tropas governamentais e as forças regionais da Frente de Libertação do Povo (TPLF) daquela área a norte do país africano.

    De acordo com as Nações Unidas, mais de 350 mil pessoas encontram-se em risco extremo de fome, os valores mais elevados registados na última década num só país. Além disto, ainda há mais 5,5 milhões de pessoas nas regiões vizinhas de Amhara e Afar que enfrentam sérios riscos de insegurança alimentar.

    Em Myanmar, antiga Birmânia, no seguimento de novo golpe de Estado em Fevereiro do ano passado, a perseguição aos dissidentes resultou numa onda de violência que, em conjunto com o impacto da pandemia, aumentou os níveis de pobreza, que já atinge mais de 25 milhões de pessoas. Ou seja, quase metade da população daquele país.

    No Mali, um outro golpe de Estado, este em 2020, tem tido consequências mesmo para os Capacetes Azuis. Segundo as Nações Unidas, no espaço de um ano morreram já mais de duas centenas dos seus “pacificadores”.

    Os conflitos mataram quase 1.500 pessoas só em 2020, e causou já a fuga de mais de 400 mil civis, além da dependência de ajuda humanitária de pelo menos 4,7 milhões de habitantes.

    No presente ano, os conflitos continuam bem activos neste país africano. Mais de uma centena de civis foram mortos nos últimos meses em ataques do exército maliano e de grupos ligados à Al-Qaeda e ao Daesh, de acordo com um relatório da Human Rights Watch da passada semana.

    Esta organização de direitos humanos acusou mesmo soldados governamentais de terem matado pelo menos 71 pessoas desde Dezembro passado.

    Além destes conflitos, as Nações Unidas alertam ainda para a existência de zonas de conflito latente, que pode redundar em sangue derramado a qualquer momento.

    São os casos do Burkina Faso – onde, entre Junho e Agosto do ano passado, morreram 212 pessoas –, dos Camarões – um país com tensão constante entre separatistas e as forças armadas do Estado –, da República Central Africana – que nunca se pacificou desde as eleições em 2020 –, a República Democrata do Congo, o Haiti, o Iraque, o Níger, a Nigéria, a Somália e o Sudão. E, claro, o sempre presente, mas simultaneamente esquecido, conflito entre Israel e Palestina.

    Mas não são apenas os conflitos bélicos “formais” que causam vítimas. De acordo com o Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED), um organismo internacional de investigadores liderado por Clionadh Raleigh, professora da Universidade de Sussex, a Ucrânia está longe de ser o único país pouco seguro na actualidade.

    Desde o início do ano, até 18 de Março, este projecto de recolha de dados sobre diversos géneros de violência (conflitos armados, violência contra civis, explosões e outra violência remota, revoltas e protestos, etc.) reportou 3.281 eventos neste país europeu invadido pela Rússia. E já contabilizou um total de 2.318 vítimas mortais.

    Estes dados serão ainda provisórios e, certamente, sujeitos a actualizações. A Guerra da Ucrânia tem sido também uma “batalha” de informação (e contra-informação) não havendo sequer um balanço suficientemente independente, quer da parte ucraniana quer russa, que garanta fiabilidade das vítimas militares e civis.

    Contudo, seguindo os dados da ACLED, apesar de liderar o número de eventos, a Ucrânia não é o país que que apresenta mais mortes desde o início do ano. Ocupa “apenas” a terceira posição.

    O primeiro lugar, o topo de um lamentável pódio, é de Myanmar, com 4.777 mortes causadas em 3.801 eventos. Segue-se o Iémen com 4.218 mortes em 1.929 eventos contabilizados.

    Com mais de um milhar estão mais cinco países, dois dos quais não se encontram oficialmente em guerra, mas em estado de violência extrema endémica: Brasil e México. No primeiro caso, o ACLED já contabilizou 1.169 mortes resultantes de 2.086 eventos, enquanto no segundo foram reportadas 1.635 vítimas mortais em 3.055 eventos.

    Os outros países acima daquela tenebrosa fasquia são países em guerra: República Democrática do Congo (1.267 mortes em 723 eventos), Síria (1.199 mortes em 1.994 eventos) e Somália (1.047 mortes em 574 eventos).

    woman in white crew neck t-shirt wearing black sunglasses

    Isto apenas em pouco mais de dois meses e meio.

    Mas que sucedeu durante os dois anos da pandemia, em 2020 e 2021? Pois bem, em 24 completos meses, o ACLEAD contabiliza 262 mortos na Ucrânia, resultantes de 15.904 eventos registados sobretudo na região de Donbass.

    E depois regista também oito países com mais de 10 mil mortes de pessoas vitimadas por violência em conflitos, a saber: Afeganistão (73.199), Iémen (38.146), Nigéria (17.671), México (16.704), Síria (14.083), República Democrática do Congo (11.723), Myanmar (11.365) e Brasil (10.528). Em dois anos apenas.

    Um segundo de silêncio por todas estas vidas perdidas.

    A emissão em directo da Ucrânia, 24 horas non stop, segue nos outros 86.399 segundos que ainda restam num dia. E nos seguintes. Segundos, horas e dias.

  • Espanha já ‘fechou a torneira’ no Tejo, e Guadiana está à míngua

    Espanha já ‘fechou a torneira’ no Tejo, e Guadiana está à míngua

    Este ano, a seca na Península Ibérica anuncia-se ainda no Inverno. E Espanha já está a segurar toda a água que pode. Esta semana, o Tejo português esteve já sem caudal, e o Guadiana com quase nenhuma vinda do outro. O acordo ibérico em vigor só vai piorar a situação, porque tem um peculiar regime: Espanha só está obrigada a mandar água para Portugal quando não há seca.


    A Espanha está a fechar o acesso de água a Portugal através dos rios internacionais. E, paradoxalmente, se a situação de seca piorar, mais poderá estancar o fluxo de água ao nosso país, porque deixa de estar em vigor o convénio ibérico dos rios internacionais, assinado em 1998 em Albufeira, e revisto uma década depois.

    Com a perspectiva de um Inverno pouco chuvoso – Janeiro de 2022 foi o segundo mais seco do século –, e num clima mediterrânico que concentra menos de um terço da precipitação entre Março e Setembro –, os rios espanhóis, incluindo os internacionais (Minho, Lima, Douro, Tejo e Guadiana), estão já à míngua.

    As perspectivas para o futuro não são, para já, nada animadoras, sabendo-se que, por regra, nos meses entre Março e Setembro chove relativamente pouco: menos de um terço do total anual, o que significa que mesmo que a precipitação da Primavera e Verão deste ano esteja dentro dos valores médios, a seca será um cenário incontornável.

    A situação actual já é francamente má, e nem sequer tem a ver com a estratégia portuguesa de abandonar a produção de carvão e turbinar mais água. Está sim relacionada com a escassez de água vinda de Espanha.

    white sail boat on sea during foggy weather

    O último boletim hidrológico espanhol, realizado na passada terça-feira pelo Ministério para a Transição Ecológica e Recuperação Demográfica, revela que a estação hidrológica do rio Tejo, na barragem de Cedillo, à entrada de Portugal, estava a zeros, ou seja, 0,00 metros cúbicos por segundo (m3/s). No ano passado, no mesmo dia, o caudal situava-se em 374,70 m3/s.

    Para norte, na bacia do Douro, a situação também era dramática, mas ainda não de seca absoluta. Por exemplo, na barragem espanhola de Saucelle – em pleno troço transfronteiriço, perto de Freixo-de-Espada à Cinta –, os caudais no dia 15 de Fevereiro situaram-se nos 87,85 m3/s, apenas cerca de 9% dos valores registados em 2021.

    No Guadiana, apesar de Espanha ter inactiva a sua estação de Badajoz, já dentro de Portugal, em Monte da Vinha, a estação gerida pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) registava ontem um caudal médio de apenas 2,12 metros cúbicos por segundo, quando no início do ano era cerca de sete vezes superior (15,57 m3/s). No ano passado estava, nesta altura, com um caudal próximo dos 100 m3/s.

    Segundo os termos da denominada Convenção de Albufeira – assim conhecida por ter sido assinada a primeira versão naquela cidade algarvia em 1998 por António Guterres, ladeada pela então ministra do Ambiente, Elisa Ferreira, e José Maria Aznar –, as situações de seca, que remetem para a suspensão dos termos acordados, são determinadas em função das precipitações anuais ou trimestrais para as diferentes bacias hidrográficas.

    Nestas circunstâncias, se Espanha assim desejar, não tem sequer de enviar um pingo de água, porque não está obrigada a cumprir quaisquer caudais mínimos nem volumes. No caso do rio Guadiana, o regime é algo diferente, a excepção ocorre sempre que a precipitação esteja abaixo de um determinado nível e/ou o volume total armazenado em determinadas albufeiras seja inferior a um determinado volume.

    Basicamente a Convenção de Albufeira tem uma regra: quando Portugal está mesmo necessitado de água, Espanha não está obrigado a conceder-lhe. Ou, noutra perspectiva, só quando Espanha tem muita água é que tem o compromisso de enviar alguma para Portugal.

    O Ministério do Ambiente reconhece ao PÁGINA UM que “os regimes de caudais estabelecidos na Convenção não são, nos termos da própria Convenção, exigidos nos períodos de excepção, correspondentes a situações de escassez de água em que a precipitação de referência acumulada na bacia seja inferior à precipitação média acumulada no mesmo período.” E adianta que, mesmo assim, Espanha “tem demonstrado empenho em manter os regimes de caudais das situações da normalidade”, mesmo nas “nas situações em que se verifica o estado de excepção”.

    people walking on brown field near sea during daytime

    Nem sempre tem sido assim, em abono da verdade muito recentemente, no ano hidrológico de 2018-2019, um Inverno também muito seco deixou o país em seca logo em Março, com 40% do território em seca severa ou extrema. E a estação de Monte da Vinha esteve então com caudal nulo, graças aos “represamentos” em Espanha, durante 118 longos dias, entre 14 de Março e 9 de Julho de 2019. E também não incumpriu o convénio, porque estava suspenso por causa da seca.

    Em todo o caso, o Ministério do Ambiente afiança que “os caudais do primeiro trimestre do ano hidrológico em curso [Outubro a Dezembro de 2021], tanto diários, semanais e trimestral foram cumpridos”, acrescentando que “nos meses do segundo trimestre os volumes diários (só definidos para o Guadiana) e semanais (só definidos para o Douro e Tejo) estão a ser cumpridos”. No entanto, quanto ao valor trimestral, “só pode ser apurado no final de Março”, adianta fonte do gabinete de Matos Fernandes.

    O Ministério do Ambiente reitera ainda que a situação é agora “incomparavelmente mais favorável”, porque antes de 1998 “nenhuma obrigação de caudais existia”, o que é efectivamente verdade. Antes da assinatura da Convenção de Albufeira, sobretudo o Guadiana estava sujeito a frequentes cortes de caudal. Em 1995 esteve 212 dias sem caudal vindo de Espanha, e no seguinte mais 122 dias.

    Recorde-se que, na segunda metade dos anos 90 do século passado, Espanha tentou desenvolver um plano hidrológico que previa transvases de água das bacias do Norte para o Sul, através de canais, causando grande polémica tanto naquele país como em Portugal.