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  • Subdirector-geral da Saúde quer tribunais nacionais incompetentes para julgar contratos de vacinas

    Subdirector-geral da Saúde quer tribunais nacionais incompetentes para julgar contratos de vacinas

    Esteve um ano a liderar a informação da Direcção-Geral da Saúde, abandonou o serviço em meados de 2021 para concluir o doutoramento e regressou este mês, como subdirector em regime de substituição, para ganhar currículo e tentar apanhar o lugar de Graça Freitas, cujo concurso decorre. André Peralta-Santos amealhou, entretanto, uns trocos com a Pfizer, enquanto concluía um doutoramento num centro da Universidade de Washington que tem a Organização Mundial de Saúde e a Fundação Bill Gates como clientes. E já está a mostrar serviço: num ofício de anteontem, a pretexto da intimação do PÁGINA UM para acesso aos contratos das vacinas contra a covid-19, que Manuel Pizarro quer manter secretos, Peralta-Santos defendeu que se deve convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa a considerar-se incompetente para analisar o processo, por haver cláusulas de confidencialidade nos acordos globais estabelecidos pela Comissão von der Leyen e as farmacêuticas. Se a tese pegar, o acesso a documentos de interesse nacional podem deixar de ser conhecidos se tudo for tratado nas sombras dos gabinetes da Comissão Europeia.


    O novo subdirector-geral da Saúde, André Peralta-Santos – um dos principais candidatos a substituir Graça Freitas como Autoridade de Saúde Nacional –, que colaborou no ano passado por quatro vezes com a farmacêutica Pfizer, defendeu ontem que o Ministério da Saúde deveria, “para efeitos de contestação” à intimação do PÁGINA UM para acesso aos contratos de compras de vacinas e outros documentos associado às aquisições, “questionar, mesmo nesta fase do processo, se os Tribunais nacionais serão os competentes para julgar esta matéria”. A Pfizer foi a empresa farmacêutica que mais vendas terá efectuado a Portugal.

    A posição de Peralta-Santos – que substituiu este mês Rui Portugal, que se demitiu repentinamente em final de Maio – consta de um ofício entregue ao Tribunal Administrativo de Lisboa, onde a Direcção-Geral da Saúde (DGS) tenta justificar a razão de quatro contratos de aquisição de vacinas contra a covid-19 terem estado durante meses no Portal Base e depois terem sido retirados aquando da intimação do PÁGINA UM para conhecer a totalidade dos contratos, bem como as guias de remessa e a correspondência entre entidades do Ministério da Saúde e as farmacêuticas.

    André Peralta-Santos, actual subdirector-geral da Saúde.

    O Ministério da Saúde insiste em não facultar os contratos de aquisição de vacinas com as farmacêuticas, solicitados pelo PÁGINA UM em Novembro do ano passado, desconhecendo-se assim as quantidades adquiridas, os compromissos de compras futuras, os montantes pagos e a pagar, os preços unitários dos diversos lotes ao longo do tempo ou mesmo eventuais comissões.

    No ofício assinado por André Peralta-Santos – que esteve afastado da DGS durante alguns meses, aproveitando para, entre outras actividades (incluindo a conclusão do doutoramento), desenvolver actividades pagas pela Pfizer –, advoga que os acordos assinados entre a Comissão von der Leyen e as farmacêuticas “contêm cláusulas de confidencialidade que obrigam todos os intervenientes, donde, os contratos nacionais subordinados a elementos legalmente considerados essenciais do contrato, como quantidades e preços, estipulados nos Acordos/Protocolos/Contratos-Quadro, ficam sujeitos às mesmas regras de confidencialidade, porquanto, devem ser considerados como contratos (parciais) integrantes dos Acordos assinados pela Comissão Europeia em representação dos Estados-Membros, que foram interesados [sic], como foi o caso de Portugal”.

    Nesta sua temerária interpretação – que advoga que os Estados democráticos perdem o exercício de Justiça independente interna em caso de acordos comerciais por entidades externas e supranacionais não-eleitas (Comissão Europeia) –, o subdirector-geral da Saúde defende ainda que o Vaccine Order Form – cujos primeiros quatro documentos estiveram no Portal Base, para serem depois sonegados pelo Ministério da Saúde – “não se trata, assim, de um qualquer contrato celebrado pelo Estado português, através da Direcção-Geral da Saúde”, mas “apenas da formalização necessária para operacionalização do APA/PA [acordos entre a Comissão Europeia e as farmacêuticas] em território nacional com o pedido de entrega das vacinas respetivas”.

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    Curiosamente, apesar de o Ministério da Saúde continuar a insistir junto do Tribunal Administrativo de Lisboa, que não tinha autonomia para a aquisição de vacinas contra a covid-19, e que tudo foi tratado pela Comissão Europeia, os factos públicos desmentem-no. Por exemplo, em 21 de Janeiro de 2021, o Governo fez um comunicado em que esclarecia o processo de compra das vacinas contra a covid-19, numa altura de escassez de doses. Nesse comunicado, referia-se que, “para além dos contratos iniciais, Portugal adquiriu ainda quantidades adicionais de outras vacinas, nomeadamente da BioNTech-Pfizer e da Moderna, prevendo também adquirir doses adicionais ao contrato inicial com a AstraZeneca.”

    E denunciava o Governo também a sua autonomia de escolha, acrescentando que “relativamente à compra de doses adicionais, a opção de Portugal foi a de escolher as doses adicionais em função dos prazos de entrega, ou seja, escolhendo aquelas que chegariam mais cedo.”

    Também no mês passado, o Ministério da Saúde adiantava ao jornal Público, de forma surpreendente, que “Portugal celebrou 14 contratos com seis fornecedores de vacinas e que foram entregues cerca de 40 milhões de um total de 61,7 milhões de doses encomendadas e adquiridas para o período até 2023.”

    Manuel Pizarro, ministro da Saúde, tudo tem feito para se furtar a mostrar os documentos relacionados com as compras de vacinas contra a covid-19.

    O PÁGINA UM revelou já que, calculando a despesa autorizada por Resoluções do Conselho de Ministros, Portugal gastou 877 milhões de euros em vacinas e consumíveis associados até ao final do ano passado, mas a conta nem sequer terá chegado a metade. Calculando as compras globais estabelecidas pela Comissão estima-se que, no total, Portugal terá de comprar cerca de 106 milhões de doses, o que pode vir a resultar em centenas de milhões de euros pagos às farmacêuticas sem qualquer utilidade, face ao forte decréscimo da adesão aos boosters.

    Saliente-se também que a legislação nacional, mormente a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, não condiciona o acesso a documentos na posse de entidades públicas do Estado português por conterem eventualmente cláusulas de confidencialidade.

    Além disso, o PÁGINA UM requereu ao Tribunal Administrativo de Lisboa, em 31 de Dezembro do ano passado, que obrigasse o Ministério da Saúde a facultar não apenas os “contratos integrais (incluindo anexos e cadernos de encargos) assinados entre a Direcção-Geral da Saúde (ou outras entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde] e as farmacêuticas que comercializam as vacinas contra a covid-19, desde 2020 até à data”, mas também os “documentos de entrega (guias de transporte), bem como toda a documentação (troca de correspondências) entre as entidades adjudicantes e adjudicatárias ao longo deste período”.

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    André Peralta-Santos é, aos 38 anos, médico especialista em Saúde Pública desde 2015, ocupou o cargo de director de serviços de Informação e Análise da DGS durante um ano da pandemia, entre Setembro de 2020 e Setembro de 2021. De acordo com o despacho do ministro da Saúde publicado na semana passada em Diário da República, terá concluído o doutoramento este ano em Saúde Global na Universidade de Washington. O centro onde Peralta-Santos estudou tem como clientes diversas farmacêuticas, a Organização Mundial de Saúde e a Fundação Bill & Melinda Gates.

    De acordo com a descrição constante na base de dados da Transparência e Publicidade do Infarmed – que há vários anos não faz qualquer fiscalização nos procedimentos de transparência entre farmacêuticas e profissionais de saúde –, André Peralta foi, ao longo de 2022, consultor da Pfizer numa reunião sobre abordagem terapêutica da covid-19, e participou ainda em três palestras financiadas por aquela farmacêutica norte-americana. Sempre, invariavelmente, sobre a pandemia da covid-19.

    Por exemplo, num seminário sobre sepsis e infecções, organizado no Porto no início de Junho do ano passado, André Peralta ganhou 1.200 euros por compartilhar as suas opiniões sobre objectivos terapêuticos associados à covid-19 durante 40 minutos acompanhado de um médico espanhol (Alex Soriano). Depois, houve um almoço. No total, terá recebido 4.800 euros, mas a Plataforma da Transparência e Publicidade é, objectivamente, uma base de dados que não está sujeita à verificação regular da veracidade por parte do Infarmed. O PÁGINA UM tem detactado sistemáticas falhas na introdução de registos.

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    Em Janeiro deste ano, aquando de uma notícia sobre as relações de antigos dirigentes da DGS com o sector farmacêutico, o PÁGINA UM contactou André Peralta-Santos por e-mail, mas não obteve quaisquer comentários sobre se, atendíveis as suas anteriores funções, considerava éticas estas relações com uma das farmacêuticas que mais facturou durante a pandemia, sobretudo com a venda de vacinas.

    Na semana passada, a candidatura de Peralta-Santos ao cargo de director-geral da Saúde – num concurso-relâmpago em curso, com as candidaturas já encerradas, que nem admite audiência de interessados nem efeito suspensivo em caso de recurso administrativo – foi anunciada largamente na comunicação social (Público, TVI, O Novo, Sábado, ECO, Observador, TSF e Expresso). No jornal do Grupo Impresa, a jornalista Vera Lúcia Arreigoso escreveu mesmo, sem citar ninguém (ou seja, com fontes anónimas, de existência questionável), que “médicos do setor afirmam que André Peralta Santos é o candidato melhor posicionado para a nomeação para liderar a Direcção-Geral da Saúde”.

  • Governo ameaça retirar utilidade pública à Associação Sara Carreira

    Governo ameaça retirar utilidade pública à Associação Sara Carreira

    A Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros confirma que a Associação Sara Carreira não tem as contas e relatórios de actividades no seu site, mas garante que analisou os documentos de 2021 (que, a ser verdade, terão então entretanto desaparecido) e coloca agora como hipótese a revogação do estatuto de utilidade pública, que lhe foi atribuído, em tempo recorde, em Dezembro do ano passado. Benefícios fiscais obtidos podem ser avultados e abrem portas a transferências de património e activos da esfera da família de Tony Carreira, uma vez que a associação tem estatutos blindados e a manutenção do secretismo nas contas eliminará questões éticas publicamente delicadas.


    A Presidência do Conselho de Ministros ameaça retirar o estatuto de utilidade pública à Associação Sara Carreira, criada em Março de 2021 pela família do cantor Tony Carreira, por esta não revelar publicamente as contas e os relatórios de actividades no seu site.

    A hipótese foi esta tarde confirmada ao PÁGINA UM pelo gabinete do Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, André Moz Caldas, que em Dezembro do ano passado concedeu o estatuto de utilidade pública, em tempo recorde, à associação fundada em memória da malograda filha de um dos mais populares cantores portugueses. Apesar da lei-quadro determinar ser necessário uma actividade efectiva de três anos para requerer aquele estatuto, Moz Caldas aceitou dispensar esse prazo mínimo por a Associação Sara Carreira “desenvolver actividades de âmbito nacional, e evidenciar, face às razões da sua existência e aos fins que visa prosseguir, manifesta relevância social”.

    Moz Caldas, secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, coloca hipótese de revogar estatuto de utilidade pública à Associação Sara Carreira.

    Mas, além desse requisito, havia outros – e ainda mais relevantes, até para evitar aproveitamentos ilegítimos face às enormes vantagens fiscais de que beneficiam as associações de utilidade, nomeadamente isenções de IRC, IMI e IMT, de pagamento de taxas para espectáculos e possibilidade de receberem donativos através da consignação de 0,5% do IRS.

    Com efeito, a lei é bastante clara sobre a exigência de transparência, salientando que as associações que solicitem o estatuto devem ter “uma página pública na Internet, acessível de forma irrestrita, onde sejam disponibilizados os relatórios de atividades e de contas dos últimos cinco anos, a lista atualizada dos titulares dos órgãos sociais e os textos atualizados dos estatutos e dos regulamentos internos”.

    Na verdade, quando foi analisado o processo da Associação Sara Carreira, ao longo de 2022, visto que obteve o estatuto em Dezembro passado, apenas existiria um ano de exercício (2021), e mesmo assim incompleto (10 meses) – e não os cinco anos explicitados pela lei-quadro.

    Tony Carreira fundou com a família a associação para homenagear a memória da sua malograda filha. Conseguiu estatuto de utilidade pública que exige transparência, que não existe.

    O gabinete de Moz Caldas garante, sem divulgar ao PÁGINA UM os documentos do processo que o atestam, que a Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros (SGPCM) “analisou as contas da Associação e concluiu que a mesma tinha contabilidade organizada e parecia ‘dispor de pessoal, infraestruturas, instalações e equipamentos, necessários para assegurar a prossecução dos seus fins e para as atividades que se propõe realizar, como revela a análise dos elementos instrutórios’.”

    Certo é que o gabinete de Moz Caldas acaba por admitir aquilo que o PÁGINA UM revelou na passada semana: as contas de 2021 (e agora também de 2022) e os respectivos relatórios de actividades não estão no site da Associação Sara Carreira. E nem foram enviados ao PÁGINA UM, conforme pedido por duas vezes à direcção da Associação Sara Carreira – que integra, além da mãe da malograda cantora, o próprio Tony Carreira e os filhos Mickael e David Carreira.

    Aliás, a ser verdade aquilo que garante agora o Governo – em tempos, o relatório de contas e de actividades do ano de 2021 esteve no site –, mais se adensa a falta de transparência de uma associação com estatuto de utilidade pública, pois assim significa que esses documentos teriam sido retirados.

    Associação Sara Carreira já começou, este ano, a capitalizar o estatuto de utilidade pública, através da possibilidade de se consignar 0,5% do IRS como donativo. Ignora-se outros benefícios já obtidos por as contas serem escondidas.

    O gabinete do secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros diz, sobre esta matéria, que, “atenta a situação reportada, de falta de publicitação, atualmente, dos elementos de atividades e contas no sítio na Internet da Associação, bem como as dúvidas relativas à autonomia financeira da Associação”, a SGPCM está a analisar a situação “para aferir se são necessárias diligências adicionais”.

    E colocam-se duas hipóteses: “em última instância, o incumprimento de deveres legais pode fundamentar a revogação do estatuto de utilidade pública (…) ou a sua não renovação”, salienta o gabinete de Moz Caldas.

    Saliente-se que, conforme o PÁGINA UM já revelou, existem ligações demasiado íntimas entre a Associação Sara Carreira e a empresa Regibusiness, a sociedade anónima da família de Tony Carreira, e que, perante as benesses de um estatuto de utilidade pública para a associação, abrem a hipótese a esquemas fiscais menos ortodoxos.

    Tony Carreira e os seus filhos David e Mickael durante um concerto de homenagem a Sara Carreira.

    Apesar da Associação Sara Carreira ter mantido silêncio às perguntas do PÁGINA UM sobre eventuais transferências de verbas ou património da Regibusiness para a Associação Sara Carreira, mostra-se evidente que os benefícios fiscais são tentadores.

    A Regibusiness – que tem uma saúde financeira robusta (com mais de 9 milhões de lucros acumulados) e opta por fazer empréstimos aos seus associados (família de Tony Carreira), em vez de fazer distribuição de dividendos (que pagaria taxa liberatória de 28%) – poderá sempre fazer doações ou donativos milionários para a associação de utilidade pública, obtendo até majorações em despesas, diminuindo assim a tributação de lucros.

    Como a família de Tony Carreira controla de forma absoluta a associação, por causa de estatutos blindados, poderia assim despender livremente desses donativos e doações, sobretudo se conseguir manter as contas e relatórios de actividades afastados de olhares indiscretos.

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    No limite, a Associação Sara Carreira que pode evoluir facilmente para fundação, sobretudo se passar a deter património relevante, através de passagem de activos da Regibusiness, o que tornaria tudo ainda mais apetecível fiscalmente. Aquisições ou vendas de património beneficiariam de isenções, e os lucros não seriam taxados. O único óbice seria a impossibilidade de distribuir os lucros pelos sócios, mas nada impede que a associação suporte despesas dos seus dirigentes e/ ou lhe pague salários e outros benefícios.

    Obviamente, se as contas forem públicas – como exige a lei-quadro do estatuto de utilidade pública –, uma parte considerável desses expedientes (legais, mas eticamente questionáveis) seriam facilmente detectados. Esse, aliás, é o motivo principal por a legislação determinar a máxima transparência nas associações de utilidade pública. Algo que, por agora, a Associação Sara Carreira não cultiva, uma vez que nem sequer se aprestou a responder às questões e pedidos do PÁGINA UM, a que acresce a falta quase generalizada de informação financeira sobre as suas actividades. Por exemplo, ignora-se até quais os montantes das bolsas que a associações tem estado a atribuir a jovens carenciados.

  • Associação Sara Carreira não diz se empresa (bem) lucrativa de Tony Carreira é mecenas e se transferiu património para benefícios fiscais

    Associação Sara Carreira não diz se empresa (bem) lucrativa de Tony Carreira é mecenas e se transferiu património para benefícios fiscais

    Para evitar promiscuidades e uso indevido de associações para fuga a impostos, a Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública exige que haja a máxima transparência, independentemente das causas nobres que defendam. Mas para a Associação Sara Carreira, criada em memória da malograda filha de Tony Carreira, o Governo não exigiu sequer o tempo mínimo de actividade previsto na lei (três anos) nem a divulgação de contas. Assim, fica-se sem saber se a empresa familiar Regibusiness, presidida pelo próprio Tony Carreira, e que registava em finais de 2021 lucros acumulados em capital próprio de mais de 9 milhões de euros, fez alguma transferência patrimonial para a Associação Sara Carreira, de modo a beneficiar de isenções fiscais por via do estatuto de utilidade pública. Até porque, na verdade, está tudo em família: os três administradores da Regibusiness (Tony Carreira, a sua ex-mulher Fernanda Antunes, e o filho Mickael Carreira) controlam também a Associação Sara Carreira.


    A sociedade anónima controlada e presidida por Tony Carreira, a Regibusiness – Investimentos Imobiliários, obteve um lucro líquido superior a 2,2 milhões de euros entre 2019 e 2021, mas a Associação Sara Carreira recusa-se divulgar se já alguma vez recebeu qualquer donativo ou procedeu a qualquer transferência patrimonial proveniente dessa empresa.

    A Regibusiness foi criada em 2006 por Tony Carreira e a então sua mulher, Fernanda Antunes, e é formalmente uma sociedade anónima, embora detida pela família deste popular cantor. E embora tenha como objecto a gestão imobiliária, controla também a empresa de espectáculos de Tony Carreira, a Regi-Concerto, detendo 98% do capital social. A posse dos restantes 2% é de Fernanda Antunes.

    A gestão da Regibusiness e a Associação Sara Carreira é comum. Os administradores da Regibusiness são, actualmente, Tony Carreira, que preside, a sua ex-mulher, Fernanda Antunes, como administradora-delegada, e o seu filho e também cantor Mickael Carreira. Todos os três são fundadores e dirigentes da Associação Sara Carreira, integrando a sua direcção. O também cantor David Carreira é um outro dos dirigentes da Associação Sara Carreira, embora não participe na gestão da Regibusiness.

    Por via da obtenção do estatuto de utilidade pública em Dezembro do ano passado, em tempo recorde, e sem sequer necessitar de divulgar contas e relatório de actividades – algo que impediria, só por si, a possibilidade de requerer aquele estatuto –, a Associação Sara Carreira passou a usufruir de um vasto conjunto de isenções, não pagando imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) e imposto municipal sobre imóveis (IMI), impostos sobre o rendimento de pessoas colectivas (IRC) e até isenção de taxas associadas a espectáculos e eventos públicos. E também obter os proveitos da consignação de 0,5% do IRS.

    A recusa da Associação Sara Carreira em esclarecer se existem relações patrimoniais entre si e a empresa Regibusiness (ou a Regi-Concerto) não é legalmente aceitável, nem pugna pela transparência exigível para uma entidade que desenvolve causas nobres, e ademais sabendo-se estar intimamente ligada a um evento trágico.

    Tony Carreira e os dois filhos, David e Mickael Carreira. Os três são, com Fernanda Antunes, dirigentes da Associação Sara Carreira. E, com excepção de David são também administradores da lucrativa empresa familiar Regibusiness.

    Com efeito, sendo agora uma associação com o estatuto de utilidade pública, tal implicaria obrigações de transparência, nomeadamente a divulgação de contas, algo que nunca sucedeu – e tendo em consideração as vantagens que a Associação Sara Carreira detém neste momento, eventuais transferências patrimoniais a partir da Regibusiness ou da Regi-Concerto podem ser extremamente apetecíveis para obtenção de benefícios fiscais.  

    Certo é que, pela consulta dos registos oficiais, a sede da Associação Sara Carreira coincide com a da Regi-Concerto, o número 5-A da Rua Hernâni Cidade, na Charneca da Caparica. Saber se se trata de mera cedência da Regi-Concerto à associação, ou se houve transferência de propriedade não é apenas uma curiosidade jornalística.

    Se houve ou houver transferência patrimonial da esfera da Regibusiness para a da Associação Sara Carreira agora com um estatuto de utilidade pública mas estatutos blindados – um acto pacífico por ambas serem completamente controladas pela família de Tony Carreira –, as vantagens fiscais seriam avultadas. Em hipótese, passando activos da empresa para uma associação de utilidade pública, os rendimentos decorrentes desses activos passariam a estar isentos de impostos e taxas. Por exemplo, os edifícios detidos ou comprados deixavam de pagar IMI e IMT, e não haveria lugar a pagamento de IRC. Aumentando o património, o passo seguinte seria a criação de uma fundação, com ainda maiores vantagens fiscais.

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    Saliente-se que, mesmo tendo a pandemia afectado a actividade de Tony Carreira, a sua empresa familiar regista uma excelente saúde financeira, com lucros de quase 1,3 milhões de euros em 2019, de 383 mil euros em 2020 e de 600 mil euros em 2021. Ainda não estão disponíveis as contas de 2022, mas será expectável que se aproximem dos valores pré-pandemia.

    Consultando as demonstrações financeiras de 2021, a Regibusiness detinha então um capital próprio de 9,64 milhões de euros, dos quais 1,6 milhões de reservas e 5,8 milhões de resultados transitados. Ou seja, lucros acumulados que os sócios – Tony Carreira e sua família – decidiram não distribuir.

    Isto não significa que os sócios tenham prescindido de obter outro tipo de dividendos perante os bons ventos financeiros da Regibusiness. Segundo se observa pelo balanço e demonstração de resultados, usaram um esquema que, sendo legal, só se mostra exequível em sociedades onde existe confiança absoluta entre os sócios ou accionistas.

    Com efeito, estão contabilizados 1,12 milhões de euros que a Regibusiness emprestou aos seus associados, ou seja, aos membros da família de Tony Carreira. em condições e prazos que apenas dizem respeito à gestão da empresa. Em todo o caso, verifica-se que os empréstimos foram realizados sem aplicação de juros. Este expediente evita, de imediato, qualquer tipo de tributação em sede de IRS, o que sucederia se Tony Carreira e seus familiares optassem pela distribuição de dividendos.

    Além disto, a Regibusiness terminou o ano de 2021 com depósitos bancários de quase 760 mil euros, não havendo também indicação de que tenha havido qualquer transferência em dinheiro para a Associação Sara Carreira.

    Aliás, como ontem o PÁGINA UM divulgou, as contas da Associação Sara Carreira são desconhecidas, e há uma quase completa ausência de referências sobre os montantes das suas campanhas de beneficência assim como dos recebimentos dos mecenas e apoiantes. No caso das bolsas atribuídas pela associação a jovens carenciados – numa parceria com a SIC –, ignora-se qual o montante de apoio efectivo. Quanto aos mecenas, apenas se conhece o valor do donativo (100 mil euros) concedido em Fevereiro deste ano pelo Grupo DS.

    Além desta empresa, mas com montantes desconhecidos, são considerados mecenas a Missão Continente, a Altice, a Fundação Santander e a SIC, sendo também elencadas outras 12 empresas como apoiantes e seis como parceiras. A Associação Sara Carreira tem também, na realização de uma gala anual transmitida pela SIC, e num tour solidário do próprio Tony Carreira, em parceria com a Missão Continente, outras fontes relevantes de receitas.

    Quanto tudo isto envolve? Não se sabe, mesmo se a lei diz que teria de se saber, uma vez que a Associação Sara Carreira quis ter o estatuto de utilidade pública, para benefício próprio.

  • Associação Sara Carreira: sem sequer mostrar contas, Tony Carreira saca estatuto de utilidade pública em três tempos

    Associação Sara Carreira: sem sequer mostrar contas, Tony Carreira saca estatuto de utilidade pública em três tempos

    Por regra, exige-se, no mínimo, três anos de actividade efectiva e a máxima transparência financeira para uma associação obter estatuto de utilidade pública. Não é apenas por reconhecimento que todos o almejam. Na verdade, por detrás, há um vasto leque de isenções fiscais, desde IMT e IMI até IRC, passando pelo não pagamento de diversas taxas. Por isso, a lei exige, entre outros requisitos prévios, que sejam públicas as contas e os relatórios de actividade. Mas com estatutos blindados, a Associação Sara Carreira não precisou disso: conseguiu o ambicionado estatuto em menos de dois anos e sem mostrar contas, contrariando a Lei-Quadro. Assim, no meio de cantorias em prol de uma causa nobre, não se conhece o seu património (e eventuais transferências para benefícios fiscais), nem sequer as receitas nem os gastos nas acções de beneficência. Tudo é feito na base da confiança. E quando o PÁGINA UM pediu contas e esclarecimentos, não houve sequer um acorde.


    A Associação Sara Carreira – criada em Março de 2021, em memória da filha do cantor Tony Carreira, três meses após o seu trágico acidente mortal – viu o Governo conceder-lhe o estatuto de utilidade pública em tempo recorde, mesmo mantendo as suas contas secretas, o que contraria a lei. Além disso, os estatutos, entretanto alterados em Maio do ano passado, estão blindados, condicionando, de forma discricionária, a admissão de associados em função de donativos relevantes que nem sequer são definidos.

    Além do reconhecimento, a obtenção de estatuto de utilidade pública – uma meta que qualquer associação almeja – concede um vasto conjunto de isenções fiscais, designadamente do pagamento de imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) e imposto municipal sobre imóveis (IMI), impostos sobre o rendimento de pessoas colectivas (IRC) e, no caso concreto da Associação Sara Carreira – que desenvolve a sua actividade de angariação de fundos da realização de espectáculos –, isenção de taxas associadas a espectáculos e eventos públicos.

    Tony Carreira

    Embora a lei determine que, regra geral, como requisitos para a atribuição daquele estatuto, seja necessário um período mínimo de três anos de actividade efectiva, o secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, André Moz Caldas, achou que se poderia dispensar esse prazo por a Associação Sara Carreira “desenvolver actividades de âmbito nacional, e evidenciar, face às razões da sua existência e aos fins que visa prosseguir, manifesta relevância social”. E, assim sendo, fez um despacho em 21 de Dezembro do ano passado concedendo o estatuto – ou seja, quando faltava ainda um ano e três meses para perfazer o período normal.

    A favor desta aceleração do processo estiveram também os pareceres das autarquias de Almada, onde se localiza a sede da associação, e de Pampilhosa da Serra, concelho de onde é natural Tony Carreira, de seu nome verdadeiro António Manuel Mateus Antunes.

    Porém, todos fecharam os olhos a aspectos relevantes que, mais do que constituírem requisitos legais, consubstanciam uma postura de transparência perante a sociedade que concede benefícios fiscais que podem assumir valores consideráveis.

    Tony Carreira, com os seus filhos David e Mickael. Juntamente com a ex-mulher Fernanda Antunes, criaram a Associação Sara Carreira em Março de 2021, com estatutos blindados.

    Com efeito, entre os requisitos prévios, a Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública obriga que as associações que o solicitem “tenham uma página pública na Internet, acessível de forma irrestrita, onde sejam disponibilizados os relatórios de atividades e de contas dos últimos cinco anos, a lista atualizada dos titulares dos órgãos sociais e os textos atualizados dos estatutos e dos regulamentos internos”.

    Ora, mas além do facto de a Associação Sara Carreira não ter ainda cinco anos de existência, nunca foi publicado relatório de actividade e de contas, com as demonstrações financeiras, incluindo o balanço e as demonstrações de resultados, mesmo se os estatutos até já determinam expressamente essa tarefa. Nunca houve assim qualquer sinal dos rendimentos nem das despesas, nem se conhece se algumas das actividades empresariais dos sócios fundadores (Tony Carreira e sua ex-mulher, Fernanda Antunes, que preside, e os seus filhos David Carreira e Mickael Carreira) foram ali integradas para beneficiar de isenções fiscais.

    Certo é que, consultando o site da Associação Sara Carreira, observa-se uma forte componente comercial, com uma ligação directa para uma loja de merchandising e para o catálogo de roupa Éssê by Sara Carreira, que a malograda artista lançara em Outubro de 2021.

    No site da Associação Sara Carreira sabe-se quanto custa umas cozy white sweatpants, mas nada se sabe sobre as contas como exige a lei para a atribuição do estatuto de utilidade pública.

    Até as actividades de carácter mais benemérito estão envoltas em grande secretismo quanto à parte económica e financeira, mesmo contando com a Missão Continente, a Altice, a Fundação Santander, a SIC e o Grupo DS, além de apoios de 12 empresas e parcerias com outras seis, entre as quais, ironicamente, a PWC, que presta serviços profissionais de auditoria, fiscalidade e assessoria de gestão. Com efeito, mesmo no projecto mais conhecido publicamente desta associação – as Bolsas de Estudo Sara Carreira – ignora-se os montantes efectivamente distribuídos.

    Embora a associação, no seu site, refira que nas duas primeiras edições houve 35 jovens beneficiados, estando a decorrer a análise das candidaturas à terceira edição, nunca houve a mínima referência sobre os montantes atribuídos. No regulamento apenas se refere que “o valor atribuído a cada jovem bolseiro(a) será definido pela Direção da Associação [Sara Carreira], em função das necessidades do(a) mesmo(a)”, adiantando ainda que “os critérios e entrega dos valores, variam em função das especificidades e necessidades de cada candidato(a)”.

    Por fim, acrescenta-se que “os valores atribuídos serão entregues diretamente às instituições de ensino ou a outras entidades a definir pela Direção, atendendo à especificidade da formação e necessidades.” Em suma, nenhuma menção a valores concretos.

    André Moz Caldas, secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, concedeu despacho de atribuição de estatuto de utilidade pública sem exigir transparência à Associação Sara Carreira.

    Além de tudo isto, e atendendo aos benefícios do estatuto de utilidade pública, mas perante o secretismo (ilegal) das contas da Associação, também se desconhece quais são actualmente os activos da associação, incluindo património financeiro e imobiliário eventualmente transferido da família de Tony Carreira. Como existe um controlo absoluto na entrada de associados por parte da família Antunes (que tem esmagadora maioria na direcção), a Associação – que pode vir a evoluir para fundação – pode estar a ser um veículo para benefício de isenções fiscais relevantes, sobretudo se se mantiver o seu estatuto de utilidade pública sem exigência de apresentação pública de relatórios de contas.

    O PÁGINA UM contactou por duas vezes a Associação Sara Carreira, colocando um conjunto de questões relacionadas com estes assuntos, mas não obteve qualquer reacção. O mesmo sucedeu com um pedido de esclarecimento endereçado ao secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, André Moz Caldas. Foi, aliás, pedido ao governante que indicasse outras associações que tivessem conseguido obter o estatuto de utilidade pública em menos de três anos, um feito que Tony Carreira conseguiu para a associação em memória da filha, sacando assim apetecíveis benefícios fiscais.

  • Governo quer que todos os documentos feitos e trocados entre os seus membros sejam secretos

    Governo quer que todos os documentos feitos e trocados entre os seus membros sejam secretos

    O secretismo da actividade do actual Governo, que festejará no próximo ano, o cinquentenário da Democracia, está a intensificar-se. Numa contra-alegação de um processo de intimação do PÁGINA UM, através do seu FUNDO JURÍDICO, intentado no Tribunal Central Administrativo Sul, a Presidência do Conselho de Ministros defende que todos os documentos elaborados pelos seus serviços e a troca de documentação entre membros do Governo, e também com o Presidente da República, devem ser considerados documentos de natureza política. Desse modo, pretendem que fiquem excluídos das obrigações da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos.


    O Centro de Competências Jurídicas do Estado – um “gabinete jurídico de luxo” da Presidência do Conselho de Ministros – considera que “os ofícios, cartas e outros documentos trocados e elaborados no seio do Governo ou entre o Primeiro-Ministro e o Presidente da República e os respetivos Gabinete e Casa Civil não são passíveis de acesso ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos”.

    Esta interpretação – que pode significar dificuldades acrescidas de acesso a documentos governamentais – consta das contra-alegações do Governo apresentadas no Tribunal Central Administrativo Sul no decurso de uma intimação do PÁGINA UM para aceder ao inquérito preenchido por Gonçalo Rodrigues. O PÁGINA UM foi o único órgão de comunicação social que estranhou que um inquérito apresentado como um sinal de “transparência do Governo” sobre os seus membros, após um conjunto de escândalos, fosse classificado como “secreto”.

    Este professor do Instituto Superior de Agronomia foi a primeira (e até agora única) pessoa a ser abrangida por uma Resolução de Conselho de Ministros de Janeiro deste ano, que passou a exigir a entrega de resposta a um conjunto de 36 quesitos. Sem essa entrega, a pessoa convidada não poderá ser aceite como membro de Governo, mas o diploma legal – que vincula um particular, que tem assim de cumprir uma norma – considera que a informação é classificada como “Nacional Secreto”, invocando legislação que se aplica a casos de segurança de Estado ou de aliados.

    Ironicamente, o inquérito que o Governo não quer ceder ao PÁGINA UM resulta de uma Resolução do Conselho de Ministros que, logo no preâmbulo, relembra que “o Programa do XXIII Governo Constitucional realça a importância de assegurar a transparência e o controlo da integridade do sistema democrático“. E acrescenta, a seguir que “tal aconselha que o escrutínio a que aqueles titulares devem ser sujeitos para integrarem o Governo, no âmbito do processo de avaliação política que precede a respetiva nomeação, seja reforçado.” Só que o reforço é falacioso. Não só o Governo esconde os inquéritos como garante a sua destruição se o governante foi destituído ou se não tomar posse.

    Trecho da contra-alegação do Governo em defesa do obscurantismo. Tribunal Central Administrativo Sul determinará se esta tese, em vésperas do 50º aniversário da democracia, vence.

    Em sede de primeira instância, o Governo conseguiu que uma juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa considerasse que os documentos associados, mesmo se indirectamente, à constituição do Governo eram apenas documentos políticos, e não documentos administrativos contendo decisões políticas, concluindo que assim o Governo não teria de ceder o acesso ao documento por este não estar abrangido pela Lei do Acesso aos Documentos Administrativos. O PÁGINA UM contestou essa interpretação por considerar que um acto político, que é conceito muito abrangente, assume também um acto administrativo se efectivado em documento físico ou suporte análogo em cumprimento de uma norma legislativa.

    Mas agora, em sede de recurso, o Governo aparenta querer ir ainda mais longe – e até porventura criar jurisprudência –, ao defender que todos os documentos elaborados no seio do Governo, incluindo correspondência entre ministros, secretários de Estado e até Presidente da República fiquem no segredo dos deuses. No limite, o acesso a qualquer relatório técnico, contendo matérias politicamente sensíveis, poderia passar a ser negado pelo Governo invocando que se trataria de um documento político.

    Recorde-se que a lei considera que um documento administrativo é “qualquer conteúdo, ou parte desse conteúdo, que esteja na posse ou seja detida em nome dos órgãos e entidades” públicas, incluindo Governo, “seja o suporte de informação sob forma escrita, visual, sonora, eletrónica ou outra forma material”, não fazendo referência ao tipo de decisão ou matérias que contenha.

    Existe apenas um artigo que exclui determinados documentos da esfera públicas, em concreto “as notas pessoais, esboços, apontamentos, comunicações eletrónicas pessoais e outros registos de natureza semelhante, qualquer que seja o seu suporte” – daí que, por exemplo, as famosas notas de Frederico Pinheiro não são documentos administrativos, pelo que o acesso público pode ser vedado –, “os documentos cuja elaboração não releve da atividade administrativa, designadamente aqueles referentes à reunião do Conselho de Ministros e ou à reunião de Secretários de Estado, bem como à sua preparação” e ainda “os documentos produzidos no âmbito das relações diplomáticas do Estado português.”

    Não parece ser esse o caso de um inquérito preenchido por Gonçalo Rodrigues, ainda mais sabendo-se que, no momento em que o actual secretário de Estado o entregou, era ainda um simples cidadão sem cargo político, e que estava apenas a cumprir o estatuído num diploma legal, criado por… uma decisão política em prol da transparência.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 19 processos de intimação intentados desde Abril do ano passado, além de outras diligências, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.

  • Polígrafo faltou ao rigor e isenção por classificar PCP, Bloco de Esquerda e MAS como extrema-esquerda

    Polígrafo faltou ao rigor e isenção por classificar PCP, Bloco de Esquerda e MAS como extrema-esquerda

    Por causa do seu protagonismo na contestação às políticas de Educação, a imprensa tem escrutinado o passado do líder do STOP, André Pestana, colocando-o como de “extrema-esquerda” e com alusões nada abonatórios. Ainda na passada semana, a ex-eurodeputada socialista Ana Gomes afirmou que “André do STOP está ao nível do outro André da extrema-direita”. Para pôr tudo em pratos limpos, o Polígrafo meteu-se na querela, compondo um fact checking. Saiu “chamuscado” na tarefa: a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) concluiu que, afinal, a análise não foi nem rigorosa nem isenta nem fundamentada. Em artigos académicos, estes partidos são classificados, na verdade, como esquerda radical, no sentido de ruptura política, sem qualquer conotação depreciativa.


    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) concluiu que o verificador de factos Polígrafo “não cumprir as exigências de rigor informativo” numa análise feita em 6 de Fevereiro deste ano ao passado político de André Pestana, o líder do Sindicato de Todos os Profissionais da Educação (STOP). No artigo, assinado pelo jornalista Carlos Gonçalo Morais, o mote em questão centrava-se sobretudo no alegado ponto de diferenciação deste sindicato face aos restantes: a sua independência face a um directório político partidário, algo que acabava por nem sequer ser abordado.

    No mesmo dia, no programa SIC Polígrafo, apresentado por Bernardo Ferrão, director-adjunto de informação do canal televisão do Grupo Impresa, foi emitida uma peça similar, que considerava como “Verdadeiro” que “o professor que coordena o STOP tem passado na extrema-esquerda”. Em concreto, concluía-se que “o currículo de André Pestana é vasto em experiência politico-partidária, especificamente ligada a movimentos de extrema-esquerda”.

    André Pestana, líder do STOP.

    Note-se, contudo, que em órgãos de comunicação generalistas, a tentativa de colagem do STOP a movimentos denominados de extrema-esquerda foi frequente na imprensa generalista, como se pode observar em notícias do Diário de Notícias, da Sábado e do Observador. Aliás, neste último periódico, mostra-se evidente o sentido depreciativo do uso do termo, quando a jornalista Ana Kotowicz cita “um dirigente sindical [que não identifica, pelo que pode ser inventado] que tem acompanhado o STOP nas reuniões com o ministro da Educação, onde considera que as suas atitudes são sempre muito extremadas”.

    Nessa notícia do Observador é colocada na boca desse ignoto sindicalista, sem nome nem filiação, a seguinte afirmação: “Além da extrema-direita do André Ventura ficávamos com a extrema esquerda do André Pestana”, sobre uma possível candidatura à autarquia de Lisboa.

    Até nos sectores ideologicamente mais à esquerda do Governo, o protagonismo de André Pestana e do seu STOP na contestação dos professores tem sido cada vez mais criticado, sobretudo por estar fora da esfera de influência política dos sindicatos tradicionais. E não se perde oportunidade para o atacar. Ainda na passada semana, a ex-eurodeputada socialista Ana Gomes afirmou categoricamente que “André do STOP está ao nível do outro André da extrema-direita”, aludindo ao caso dos cartazes contra o primeiro-ministro António Costa, mesmo se o seu autor é professor afiliado na FENPROF.

    Porém, na deliberação hoje divulgada no seu site – que apenas é incidente no Polígrafo, em reacção a uma queixa não identificada –, a ERC considera que, apesar de se comprovar que André Pestana foi (mas já não é) militante da Juventude Comunista (JCP), Bloco de Esquerda (BE) e Movimento Alternativa Socialista (MAS), a análise do Polígrafo “não cuida de fundamentar a razão pela qual tais partidos pertencem a um espectro ideológico-partidário de extrema-esquerda”, mais grave por se estar perante um fact checking.

    Polígrafo (e SIC Polígrafo) fizeram fact checking sobre passado de André Pestana, e não tiveram dúvidas em classificar Partido Comunista, Bloco de Esquerda e Movimento Alternativa Socialista como partidos de extrema esquerda. Sem rigor nem fundamentação, concluiu ERC.

    Mesmo dizendo que não cabe a si catalogar os partidos referidos num espectro político, o regulador dos media conclui que “a notícia do Polígrafo aqui visada não logrou comprovar o que sustenta a classificação daqueles partidos políticos [JCP, BE e MAS] como sendo de extrema-esquerda, inexistindo factos no texto que sustentem tal conclusão”, lê-se na deliberação, acrescentando ainda que “ao invés, a total ausência de fundamentação padece não só de rigor informativo, como também parece resultar de uma avaliação subjetiva de quem escreve a notícia e, portanto, não cuidando de demarcar os factos da opinião”.

    O jornal dirigido por Fernando Esteves – que, curiosamente, proíbe os seus colaboradores de serem militantes de partidos e assume não possuir “uma agenda político-ideológica” – ainda argumentou que aquela denominação “não é uma originalidade do Polígrafo”, acrescentando que “há várias esquerdas e que nem sempre é fácil categorizá-las com rigor quase científico”, e defendendo ainda que “não é esse o papel dos jornais”.

    A ERC, contudo, não concordou com essa argumentação, criticando mesmo o Polígrafo por este fact-checker – que tem um poder quase ilimitado no Facebook para tachar publicações como fake news, com repercussões gravosas para os seus autores – promover a simplificação. “A simplificação no discurso, embora atendível em certa medida, não pode fazer perigar o rigor jornalístico, muito menos em trabalhos jornalísticos que se apresentam como verificadores de factos, que, enquanto tal, criam a expetativa de um cumprimento acrescido do dever de rigor”, salienta-se na deliberação do regulador.

    Incómodo com acções do STOP, fora das estruturas sindicais tradicionais, associadas à CGTP e à UGT, são evidente, mesmo no espectro político de esquerda. A ex-eurodeputada socialista Ana Gomes, na sua coluna de opinião na SIC, já “colou” André Pestana a André Ventura, líder do Chega.

    Refira-se que, como facilmente se pode encontrar em trabalhos académicos – que devem ser usados como fonte na verificação de factos –, os partidos de esquerda em Portugal como o PCP, BE e o MAS são classificados como “esquerda radical”, no sentido de ruptura, e não de violência.

    Por exemplo, num artigo científico publicado em 2016 por José Santana Pereira, investigador do Instituto de Ciências Sociais, sobre a esquerda radical no período pós-2009, considera-se a existência de três grupos de partidos de esquerda radical: um formado por PCP e BE, já com décadas de presença no parlamento nacional e europeu; outro formado pelos “novos partidos, criados após a crise das dívidas soberanas (MAS e Livre)”; e um terceiro por “micropartidos de esquerda radical, com décadas de existência e incapacidade reiterada de obter representação”, exemplificando com o maoista PCTP-MRPP, mesmo usando slogans mais virulentos. O uso por académicos de termos como “extrema-esquerda” quase sempre se aplicam em ambientes políticos de violência ou de atitudes não-democráticas.

    Esta é a quarta vez que a ERC considera que o mais conhecido verificador de factos português, o Polígrafo, falha no rigor das suas análises. Nesta deliberação, hoje publicada, o regulador destaca a gravidade da actuação do Polígrafo “por se tratar de conduta reincidente”, remetendo para a deliberação ERC/2021/362 e a deliberação ERC/2021/151.

    Contudo, além destes dois casos, a ERC também já este ano relembrou ao Polígrafo – e, neste caso, também à sua parceira SIC, com quem tem um programa televisivo (Polígrafo SIC) –, “o dever de informar com rigor e isenção”, uma obrigação “ainda mais premente nos conteúdos jornalísticos que têm como missão a verificação dos factos (fact check)”, após queixas dos secretários de Estado da Natureza e Florestas e das Pescas.

    Mas além destes casos, há três anos, por causa da emissão de imagens chocantes sem aviso prévio no Polígrafo SIC, a ERC aplicou mesmo uma multa de 30.000 euros à Impresa. A parte irónica desta coima está no facto de a emissão dessas imagens, ao longo de um minuto e 20 segundos de corpos a boiar, ter servido para corrigir um erro de fact checking: ao contrário do que SIC e Polígrafo tinham dito em programa anterior, aquelas imagens não eram da passagem por Moçambique do furacão Idai em Março de 2019, mas sim de uma outra tragédia ocorrida no Paquistão em 2017.

  • Supremo Tribunal Administrativo dá terceira “nega” ao Ministério da Saúde: PÁGINA UM tem direito de acesso a base de dados sobre internamentos hospitalares

    Supremo Tribunal Administrativo dá terceira “nega” ao Ministério da Saúde: PÁGINA UM tem direito de acesso a base de dados sobre internamentos hospitalares

    Não há uma sem duas, e não houve duas sem três: depois de sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa e de um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, três juízes conselheiros do Supremo Tribunal Administrativo só precisaram de três páginas para recusar as pretensões da Administração Central do Sistema de Saúde para que fosse negado o acesso ao PÁGINA UM de uma das mais importantes bases de dados de saúde do país, que permite avaliar, de uma forma independente, o desempenho do Serviço Nacional de Saúde e identificar anomalias graves nos hospitais. A luta judicial dura há mais de um ano, entre um “David” e um “Golias” que não se importou, durante o processo, em usar mentiras e argumentos falaciosos. A ACSS começou por alegar a impossibilidade de anonimização de dados, mas quando foi demonstrada a mentira, adiantou que, afinal, o pedido era “manifestamente abusivo” porque demoraria muito tempo a retirar dados nominativos dos registos, apesar de estarmos no século XXI e de um sistema informático fazer essa operação enquanto o diabo esfrega um olho. Esta acção do PÁGINA UM (que só em taxas de justiça já ultrapassou mais de 1.000 euros) foi financiada pelos seus leitores através do FUNDO JURÍDICO. A defesa da ACSS, a cargo da sociedade BAS (que costuma cobrar 60 euros por hora), foi financiada através do Orçamento do Estado.


    Derrota no Tribunal Administrativo de Lisboa. Derrota no Tribunal Central Administrativo Sul. E, mesmo alegando ser “manifestamente abusivo” o pedido de acesso por parte do PÁGINA UM à base de dados anonimizados dos internamentos – que permitirá uma avaliação verdadeiramente independente do desempenho do Serviço Nacional de Saúde ao longo dos últimos anos –, a Administração Central do Sistema de Saúde recebeu terceira derrota, desta vez do Supremo Tribunal Administrativo.

    O Ministério da Saúde, através das entidades tuteladas por Manuel Pizarro, vai ter mesmo de disponibilizar o acesso ao PÁGINA UM da base de dados dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos. O acórdão, com data de 1 de Junho, assinada por três conselheiros, com José Veloso como relator, é muito claro e taxativo na análise ao “recurso de revista” apresentado pela ACSS. Em apenas três páginas, os conselheiros do Supremo Tribunal Administrativo decidem “não admitir a revista” das decisões dos outros tribunais.

    Supremo Tribunal Administrativo: em três páginas “concede” terceira derrota ao obscurantismo do Ministério da Saúde.

    “Constatamos desde logo a ‘unanimidade de decisão dos tribunais de instância’, o que não sendo só por si garantia de acerto não deixa de constituir um relevante sinal de bom direito”, salientam os conselheiros do Supremo, acrescentando que “também se constata que tais ‘decisões’ – mormente a consubstanciada no acórdão recorrido – embora abordem matéria de algum melindre, face à dimensão e à relevância dos direitos com que contende, não se mostra, no caso, de tratamento particularmente complexo, e foi apreciada e decidida pelos tribunais de instância de forma suficientemente consistente, e aparentemente correcta, não se vislumbrando nelas a ocorrência de erros manifestos que imponham a revista em nome da clara necessidade de melhor aplicação do direito”.

    Além de tudo isto, seguindo o texto do acórdão exarado pelo conselheiro José Veloso, as alegações da ACSS não imputam qualquer “erro de julgamento de direito”, mas sobretudo “a dificuldade de execução da intimação, mormente no que respeita à concretização dos dados pessoais que devem ser expurgados, facilitando, e esclarecendo, a fase executiva que lhe compete”.

    Mas essa alegada dificuldade – uma completa falácia porque a anonimização de dados, num sistema informático do século XXI, é um procedimento que exige ordens muito simples e seguras –, acrescenta o acórdão do Supremo, concordando com o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, “não deverá ser desvirtuado o reconhecimento do direito na fase declarativa mediante a antecipação das dificuldades da fase executiva.”

    Em suma, a ACSS – que já defendia, em desespero, que o pedido do PÁGINA UM (um órgão de comunicação social, cujo acesso à informação constitui um direito consignado na Constituição da República) deveria ser recusado por ser “manifestamente abusivo” – terá 10 dias para fornecer finalmente o acesso e cópia digital da BD-GDH

    A importância da informação contida nesta base de dados é enorme, podendo revelar mesmo informação com consequências políticas significativas, quer durante a pandemia, quer antes, quer depois.

    Esta base de dados (BD-GDH), gerida sem influência governamental, integra todos os doentes internados nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde, identificando o diagnóstico principal (aquele que, após o estudo do doente, revelou ser o responsável pela sua admissão no hospital), os diagnósticos secundários (todos os restantes diagnósticos associados à condição clínica do doente, podendo gerar a existência de complicações ou de comorbilidades), os procedimentos realizados, destino após a alta (transferido, saído contra parecer médico, falecido) e, no caso de recém-nascidos, o peso à nascença.

    Embora também constem dados de identificação (nome, idade e sexo), o sistema informático possibilita o expurgo dessa informação – neste caso, como se tratam de milhões de registos, basta substituir o nome do doente por um código – a base de dados é perfeitamente anonimizável.

    Em todo o processo judicial, iniciado a 21 de Julho do ano passado, a ACSS – ainda presidida por Victor Herdeiro, um amigo próximo da ex-ministra Marta Temido –, esteve sempre em discussão se a base de dados continha ou não informação nominativa, como defendia o Ministério da Saúde, que é aliás argumento recorrente da estratégia de obscurantismo do Governo em matérias sensíveis politicamente.

    Victor Herdeiro, presidente da Administração Central do Sistema de Saúde (quarto a contar da esquerda, ao lado da ex-ministra da Saúde): há quase um ano a tudo fazer para esconder uma base de dados politicamente sensível. O Supremo Tribunal Administrativo é a terceira instituição judicial a dar razão ao PÁGINA UM sobre o direito de acesso a informação anonimizável.

    No entanto, no caso da BD-GDH, a falácia dos dados nominativos facilmente caiu por terra e nem os diversos magistrados que tiveram o processo de intimação em mãos – desde a primeira juíza do Tribunal Administrativo até aos três conselheiros do Supremo Tribunal Administrativo, passando pelos três conselheiros do Tribunal Central Administrativo Sul – foram insensíveis às alegações capciosas dos advogados da ACSS, pertencentes à sociedade BAS, que chegaram a afirmar ser tecnicamente impossível a anonimização.

    Porém, a mentira tinha a perna curta. A anonimização da BD-GDH é um procedimento corriqueiro e bem conhecido da ACSS, tanto assim que esse expediente administrativo costuma estar expressamente delegado num dos vice-presidentes para conceder acessos a investigadores. Por exemplo, no presente conselho directivo da ACSS, Victor Herdeiro delegou na sua vice-presidente Sandra Brás a competência “para autorizar o fornecimento de dados anonimizados provenientes da Base de Dados Nacional de Grupos de Diagnósticos Homogéneos (BD-GDH)”, através da Deliberação 835/2021 publicado em Diário da República em 9 de Agosto de 2021.

    Na verdade, o receio do Ministério da Saúde passa pela possibilidade de se fazer uma análise independente a uma das bases de dados fundamentais de avaliação do desempenho do Serviço Nacional de Saúde, que permitirá detectar situações anómalas nos hospitais, escondidas aos cidadãos e até aos próprios doentes e familiares.

    a woman laying in a hospital bed with an iv in her hand
    PÁGINA UM quer saber o que se passa nos hospitais públicos. O Ministério da Saúde não quer que o PÁGINA UM tenha acesso a uma base de dados que revela o que se passa nos hospitais públicos.

    Por exemplo, através da BD-GDH conseguir-se-á avaliar, por indicadores de internamento, a evolução de doenças e outras afecções, como enfartes ou tumores, ou mesmo a ocorrência de acidentes ou outras falhas médicas em unidades de saúde, uma vez que se mostra possível comparações cronológicas e por hospital. Conseguir-se-á também, por exemplo, esclarecer afinal se a incidência de internamentos durante a pandemia por covid-19 ou com covid-19, e mesmo a sua prevalência como infecção nosocomial (ou seja, “apanhada” durante um internamento por outra causa). Por isso, esta base de dados é politicamente sensível, mas de fundamental acesso para uma sociedade de princípios democráticos.

    Aliás, no ano passado, antes de o PÁGINA UM ter solicitado acesso à BD-GDH, a informação tratada e acessível no Portal da Transparência do SNS permitira a revelação de um conjunto de situações escamoteadas pelo Ministério da Saúde durante a pandemia. Com efeito, usando a então base de dados da Morbilidade e Mortalidade – uma simplificação da BD-GDH –, o PÁGINA UM revelara que, até Janeiro de 2022, houvera menos 51 mil hospitalizações de crianças durante a pandemia por todas as doenças; apurara que a variante Ómicron tinha indicadores de letalidade inferiores aos da gripe; identificara problemas graves (com aumento de taxas de letalidade mesmo em alas não-covid); determinara que a taxa de mortalidade da covid-19 foi evoluindo ao longo da pandemia e em função dos hospitais, sendo 30% superior à das doenças respiratórias; desmistificara a alegada elevada pressão durante a pandemia, até porque houve menos 280 mil doentes por outras causas não-covid; e também identificara estranhas descidas na mortalidade por cancros e outras doenças, bem como colocara dúvidas sobre a mortalidade por covid-19 nos hospitais.

    brown and white cat on brown wooden shelf

    No decurso dessa investigação, Victor Herdeiro terá ordenado a suspensão da divulgação daquela base de dados, para a “análise interna”, restaurando passado algumas semanas, mas completamente mutilada. Apenas a repôs depois do PÁGINA UM ter decidido, face às evidentes manipulações, solicitar formalmente o acesso à BD-GDH, a base de dados primitiva, que também serve para determinar os financiamentos a receber pelos hospitais públicos.

    Contudo, a prioridade do PÁGINA UM passou a ser o acesso à BD-GDH por ser uma base de dados com  elementos em bruto, e que a serem manipulados politicamente já configuram actos criminosos, uma vez que a informação ali constante tem relevância financeira, uma vez que parte do financiamento dos hospitais públicos provêm desses registos.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 18 processos em curso, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.

  • Ministro Duarte Cordeiro com entrevista na TSF paga por agência de energia que controla

    Ministro Duarte Cordeiro com entrevista na TSF paga por agência de energia que controla

    A ADENE, uma agência de energia controlada por entidades tuteladas pelo Ministério do Ambiente, pagou à TSF a emissão de 12 podcasts em ajuste directo por 19.995 euros. O contrato foi assinado por Nélson Lage, antigo adjunto de João Galamba na Secretaria de Estado da Energia, e por Bruno Veloso, ex-deputado socialista. O primeiro convidado foi o próprio ministro Duarte Cordeiro, que esta terça-feira teve um “direito de antena” de 35 minutos na TSF para promover o seu trabalho. A entrevista foi conduzida por Paulo Tavares, que apesar de ser apresentado pela ADENE (e por si próprio) como jornalista, não tem carteira válida por ser proprietário de uma empresa de consultoria política e assessoria de imprensa. Este é mais um lamentável episódio das promiscuidades e atropelos legais e deontológicos na imprensa mainstream, sob a cúmplice apatia da ERC, CCPJ e Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.


    “Obrigado por ter aceitado o nosso convite” – foi assim que o entrevistador Paulo Tavares, presumido jornalista, agradeceu ao ministro do Ambiente e da Acção Climática, Duarte Cordeiro, a concessão de uma entrevista à TSF, emitida esta terça-feira, integrada num conjunto de podcasts desta rádio da Global Media, e apresentada como uma parceria com a ADENE.

    Tudo fake. De facto, a entrevista, ou melhor, uma conversa descontraída com palco para exposição das políticas ministeriais, não foi conduzida por um jornalista acreditado. Não houve também propriamente um convite, porque a “parceira” do podcast da TSF, a ADENE é indirectamente tutelada por Duarte Cordeiro. E chamar “parceria” é abusivo, porquanto a relação entre a TSF e a ADENE é similar à aquisição de um serviço de relações públicas: a ADENE apenas deu dinheiro para, em contrapartida, ser-lhe feitos e emitidos os podcasts que desejava.    

    Verdadeiro, assim, apenas uma conversa de promoção das políticas do Ministério do Ambiente e da Acção Climática, mesmo se, aos ouvidos dos ouvintes, possa ter parecido que se tratou de uma entrevista com liberdade editorial – um pleonasmo, porque entrevista pressupõe a existência de liberdade editorial.

    Mas comecemos por saber quem é a ADENE, suposta parceira da TSF.

    Embora seja uma associação – que integra como sócios, por exemplo, a Galp e a EDP –, esta agência de energia é um dos braços da política energética do Governo, tendo como sócios principais a Direcção-Geral de Energia e Geologia (25,1% de participação), o Laboratório Nacional de Energia e Geologia (24,71%), a Agência Portuguesa do Ambiente (11,67%) – todas tuteladas pelo Ministério de Duarte Cordeiro – e as suas contas estão integradas no perímetro do Orçamento do Estado. Ou seja, apenas por entidades por si tuteladas, Duarte Cordeiro “controla” mais de 60%. Acrescentando a participação da Direcção-Geral das Actividades Económicas (11,67%) tem o Governo um controlo acima de 70%.

    photo of truss towers

    A ADENE é também responsável pela gestão do Sistema de Certificação Energética dos Edifícios (SCE) e ainda a entidade gestora operacional do Sistema de Gestão dos Consumos Intensivos de Energia. Além disso, “exerce a atividade de Operador Logístico de Mudança de Comercializador no âmbito do Sistema Elétrico Nacional e do Sistema Nacional de Gás”. Esta entidade assegura ainda o apoio operacional à execução do Programa de Eficiência de Recursos na Administração Pública (ECO.AP) para o período até 2030, em articulação com as entidades coordenadoras – a Direcção-Geral de Energia e Geologia e a Agência Portuguesa do Ambiente – organismos tutelados por Duarte Cordeiro.

    A ADENE assegura ainda a gestão da Academia ADENE, que “promove formação especializada na certificação energética de edifícios e reforço de competências nos domínios da eficiência energética, das energias renováveis, da eficiência hídrica e da mobilidade eficiente”.

    Mas, na verdade, aquilo que poderá ter parecido, aos ouvintes, um conteúdo editorial independente, até porque a ADENE refere ser apresentado por um jornalista, é afinal mais um programa de conteúdos pagos.

    Nélson Lage, presidente da ADENE, foi adjunto de João Galamba, quando o actual ministro das Infraestruturas era secretário de Estado da Energia. Transitou para a agência de energia, nomeado pela tutela, em Agosto de 2020.

    Com efeito, em 18 de Abril, o actual presidente da ADENE, Nelson Lage – licenciado em Ciências Políticas e antigo adjunto de João Galamba, na secretaria de Estado da Energia – e o seu vice Bruno Veloso – ex-deputado socialista – assinaram um contrato com Marco Galinha, administrador da Global Media, no valor de 19.995 euros para a “aquisição de serviços associados ao desenvolvimento, produção e dinamização do ‘Podcast ADENE, Toda a Energia”. Acrescente-se que o valor de 19.995 euros não é um acaso: a partir de 20.000 euros os contratos deste género não podem ser feitos por ajuste directo.

    Apesar do caderno de encargos não constar, como deveria, no Portal Base, em comunicado ontem divulgado a ADENE refere que serão transmitidas “12 emissões, cada uma com cerca de 15 minutos”, sob o comando do “jornalista Paulo Tavares”. Ou seja, 1.666 euros pagos por cada episódio.

    Nesse comunicado era logo transmitido que o ministro Duarte Cordeiro seria o primeiro participante, no qual se abordaria “o significado da Política Energética, as suas diversas dimensões e a importância para o desenvolvimento do país”, acrescentando-se ainda que “ser[ia] explicado como os cidadãos podem contribuir para o sucesso e implementação da política energética.​” O episódio foi, efectivamente já emitido ontem, tendo o ministro um bónus: a conversa ocupou um espaço de antena de 35 minutos e 34 segundos.

    Duarte Cordeiro é “reincidente” ao beneficiar de cobertura mediática favorável em eventos que, afinal, envolvem prestação de serviços.

    Além do pagamento de quase 20 mil euros por podcasts financiados por uma entidade associada ao Ministério do Ambiente, a entrevista – e depreende-se que a totalidade dos outros episódios – foi assumida por alguém que, na verdade, já não é jornalista, embora publicamente usurpe essas funções.

    Com efeito, apesar da ADENE identificar Paulo Tavares como jornalista – e o próprio também o fazer na rede LinkedIN –, o entrevistador deste podcast não tem carteira profissional activa, tanto mais que exerce agora funções como consultor de comunicação, actividade incompatível de acordo com o Estatuto do Jornalista.

    Apesar disso, Paulo Tavares continua a manter-se ligado à comunicação social de uma forma ambígua (assumindo-se como jornalista), através da sua empresa unipessoal, a PTS (iniciais de Paulo Tavares Sardinha), constituída em Dezembro do ano passado para a “prestação de serviços de consultoria política e assessoria de imprensa, e de consultoria editorial”, bem como “produção, gestão e apresentação de eventos” e ainda “produção e realização de programas de rádio e televisão” e ainda “edição de revistas e outras publicações não periódicas”.

    Paulo Tavares conduziu “entrevista” ao ministro do Ambiente no podcast pago pela ADENE. Apesar de se apresentar como jornalista, não tem carteira válida por ser proprietário de empresa de comunicação, mas continua com ligações ambíguas com a Global Media.

    No ano passado, Paulo Tavares – que foi efectivamente jornalista na TSF entre 1993 e 2016 e, mais tarde, director-adjunto do Diário de Notícias, entre 2016 e 2018 – chegou a exercer uma função ambígua (e inexistente) num evento pago (MobiSummit) por uma empresa municipal de Cascais à Global Media: “curador editorial”, ou seja, responsável pela cobertura mediática pelos órgãos de comunicação social do grupo de Marco Galinha.

    Esta situação ilegal não teve qualquer intervenção conhecida da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.

    Ouvindo a “entrevista” a Duarte Cordeiro, ressalta logo, pelas questões, a abertura de caminho para que o ministro do Ambiente pudesse publicitar e promover, sem quaisquer perguntas incómodas, as políticas em curso.

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    Aliás, não é a primeira vez que Duarte Cordeiro beneficia de entrevistas ou notícias feitas no âmbito de alegadas parcerias de entidades associadas ao Ministério do Ambiente com órgãos de comunicação social, mas que são, na verdade, prestação de serviços envolvendo publicidade travestida de conteúdos noticiosos.

    Em Maio do ano passado, o PÁGINA UM relatou que o Instituto da Conservação da Natureza pagou 19.500 euros para a cobertura de um evento, tendo uma notícia escrita por um jornalista com carteira profissional sido colocada numa ambígua secção (Projetos Expresso), onde empresas públicas e privadas adquirem “serviços de jornalismo”.  

    Uma semana após o primeiro evento, o ministro teve direito a uma entrevista descontraída por três jornalistas do Expresso, onde até posou, sorridente, sentado na escadaria do edifício da Rua do Século.

    Também no MobiSummit, em Setembro do ano passado, Duarte Cordeiro esteve envolto em polémica por recusar prestar declarações a determinados órgãos de comunicação social alegando ter exclusivo com os media partner do evento, os três periódicos do grupo empresarial da Global Media: Diário de Notícias, Jornal de Notícias e Dinheiro Vivo.

    Entidade Reguladora para a Comunicação Social, Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas continuam a “fechar os olhos” a sistemáticas violações da Lei da Imprensa e do Estatuto do Jornalista.

    Também nestes casos não houve intervenção conhecida da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, apesar das evidentes violações da Lei da Imprensa e do Estatuto do Jornalista.

    O PÁGINA UM contactou o gabinete de Duarte Cordeiro questionando se o ministro do Ambiente “já concedeu outras entrevistas pagas a outros órgãos de comunicação social”, e se sim a quais, e também se considerava “esta prática aceitável, ou seja, financiar podcasts ou outros eventos através de entidades públicas tendo como contrapartida entrevistas ou artigos noticiosos favoráveis”. Não obteve ainda resposta.

  • Jornal Público montou um “pronto-a-vestir” para notícias de ambiente

    Jornal Público montou um “pronto-a-vestir” para notícias de ambiente

    Em Abril do ano passado, o Público anunciou uma forte aposta nos temas ambientais, destacando seis jornalistas, numa equipa de 10 pessoas, supervisionados por duas editoras de Ciência, e através de um modelo assente em parcerias ao estilo de mecenato. Assim nascia o Azul. Mas o único contrato que, entretanto, veio a público com um dos parceiros iniciais (Biopollis) é afinal uma prestação de serviços, envolvendo 90 mil euros em seis meses. Entretanto, na semana passada, o Público alargou os serviços do Azul: vai fabricar conteúdos editoriais para organismos estatais. A Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N) é o primeiro cliente e vai pagar 31 mil euros. E ainda trata o Público como “prestador de serviços”, exigindo prévia revisão dos podcasts a produzir.


    Azul – assim se chama o projecto editorial do Público apresentado, em Abril do ano passado, como um modelo de jornalismo independente dedicado em exclusivo ao Ambiente.

    Considerando “a crise climática como a grande causa política das novas gerações”, na verdade o Azul também mostra uma outra crise: a do jornalismo a transformar-se numa plataforma de conteúdos prêt-à-porter, onde se mercadejam “conteúdos comerciais” como informação, e onde até institutos públicos, como a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N), podem garantir, através de pagamentos, a execução de conteúdos controlados com prévia validação.

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    Desde a sua fundação, integrado na edição digital do Público, os responsáveis do Azul diziam, no respectivo estatuto editorial, ser um projecto de jornalismo de causas ambientais – com a biodiversidade, a sustentabilidade e a crise climática como bandeiras –, e que, estando aberto à sociedade civil, contava “com o apoio de parceiros comprometidos com agenda do ambiente para financiar a sua equipa e a sua operação”.

    Na linha da frente, como parceiros, foram então destacadas quatro entidades: a Fundação Calouste Gulbenkian, a Biopolis – um consórcio da Universidade do Porto, da Porto Business School e da Universidade francesa de Montpellier –, a Lipor – a empresa pública de tratamento de resíduos do Grande Porto, cuja central de incineração é um dos focos mais importantes de emissão de dioxinas em Portugal – e a Sociedade Ponto Verde – uma das empresas gestoras de resíduos de embalagem.

    Para garantir a execução do Azul, a direcção editorial do Público – então comandada por Manuel Carvalho – destacou, além de duas experientes jornalistas da área da Ciência, como editoras (Teresa Firmino e Andrea Cunha Freitas), uma equipa de 10 pessoas, das quais seis jornalistas, o que implicaria a impossibilidade de elaboração de conteúdos comerciais ou a subordinação a entidade externas.

    Porém, apesar de o Público ter garantido que o Azul seguiria “um modelo de cooperação e mecenato cada vez mais frequente em projectos jornalísticos na Europa e nos Estados Unidos”, e que “os parceiros e o jornal reconhecem que uma condição crítica para o sucesso” deste projecto editorial “passa[ria] pela transparência e pelo respeito integral das regras profissionais e deontológicas do jornalismo consagradas na lei”, a realidade mostra-se bem diferente.

    Com efeito, embora ainda sejam desconhecidos os protocolos com três dos alegados mecenas conhecidos do Azul – apesar de solicitados pelo PÁGINA UM à direcção editorial do Público –, sabe-se agora que a Biopolis fez afinal um contrato de prestação de serviços com a administração do jornal, pelo menos no período compreendido entre Março e Agosto deste ano.

    Assinado nos primeiros dias de Março passado, este contrato estabelece a entrega pela Biopolis de 90 mil euros, mais IVA, a troco da “aquisição de serviços de divulgação e promoção da cultura científica, através da promoção de conteúdos subordinados aos temas da biosfera, sustentabilidade e crise ambiental”.

    Earth with clouds above the African continent

    A questão polémica nem estará tanto na imposição – como “obrigações gerais do Público”, de acordo com a cláusula 4º do contrato – de o jornal, perante o parceiro (uma entidade externa à linha editorial) ter de identificar temas e elaborar artigos noticiosos temáticos.

    Na verdade, o contrato transcende a Lei da Imprensa – o próprio Estatuto do Jornalista – porque considera, como obrigação, “a publicação de 26 (vinte e seis) artigos editoriais, nos termos e condições definidos no Anexo I ao Caderno de Encargos [que não consta no Portal Base nem foi disponibilizado pelo Público]”.

    O articulado desta obrigação é, aliás, muito sui generis, pois acrescenta que os 26 artigos obrigatórios, devem resultar “de uma escolha independente e sem qualquer condicionalismo ou ingerência por parte da Biopolis”, mas acrescenta a seguir que essa escolha tem de ser feita “entre os projectos científicos disponibilizados por esta [Biopolis], a fim de lhes ser dado o tratamento e enquadramento jornalístico necessário para posterior divulgação ao público” Ou seja, se a Biopolis indicar ao Público apenas 26 temas para artigos, o jornal assume que a sua escolha é completamente independente.

    Mesmo que um editor do Azul até considere que todos os temas propostos pela Biopolis não têm interesse jornalístico, e que seria mais interessante que os jornalistas dedicassem tempo e recursos a outros assuntos, o Público tem sempre a obrigação de pegar em 26 temas indicados pelo consórcio universitário.

    Saliente-se que um dos critérios das avaliações de projectos de investigação nas universidade é o impacte mediático e social. Portanto, a independência editorial do Azul logo aqui aparenta ser uma miragem.

    O contrato ainda acrescenta que os textos publicados no âmbito deste contrato terão como referência o serem “promovidos pela Biopolis”, mas também aqui se usa uma falácia: um pagamento sob a forma de contrato, estipulando um número pré-definido de artigos, jamais pode ser rotulado como conteúdo “promovido” ou “patrocinado”. E, se assim fosse, existem fortes dúvidas de legalidade sobre se poderá ser escrito e assinado por um jornalista, uma vez que lhe estar vedado por lei a possibilidade de contribuir para a execução de contratos comerciais.

    Além disso, o contrato da Biopolis estabelece o cumprimento de prazos – ou seja, se o consórcio universitário desejar que saia publicado determinado artigo em certo dia, tal terá de se verificar – e também a obrigação de o Público “prestar as informações e esclarecimentos solicitados pela Biopolis sempre que esta assim o requeira”. Em suma, fica assumida uma linha aberta entre um jornal e quem lhe paga serviços.

    Na semana passada, quando contactada pelo PÁGINA UM, a direcção editorial do Público – então ainda liderada por Manuel Carvalho – garantiu, apesar do exposto, a independência do Azul, acrescentando ainda que a Biopolis é uma rede de cientistas, e que “em causa não está uma empresa vocacionada para finalidades comerciais”. Em todo o caso, saliente-se que a Universidade de Montpellier está associada à Agência Nuclear de Energia – ligada à OCDE – e à Agência Internacional de Energia Atómica, numa altura em que está em crescendo o lobby que apresenta a energia nuclear como “energia limpa” numa perspectiva de descarbonização da Economia.

    Manuel Carvalho assegurou também que “nenhum dos outros contratos” com os outros parceiros “incluem qualquer tipo de obrigação”, embora o PÁGINA UM não tenha conseguido, até agora, ter acesso nem constem no site do Azul.

    David Pontes, director do Público desde 1 de Junho deste ano.

    Mas se este contrato com a Biopolis já é polémico, pior ainda é aquele assinado no passado dia 25 de Maio com a CCDR-N, e detectado na passada sexta-feira pelo PÁGINA UM no Portal Base. Além de ser uma “parceria” com um instituto público sob administração directa do Estado – tutelado pelo Ministério da Coesão Territorial em coordenação com o Ministério da Modernização do Estado –, as cláusulas constantes do caderno de encargos constituem, sem margem para eufemismos, um despudorado atropelo às elementares regras deontológicas e de independência jornalística.

    De facto, a troco de 31.000 euros pagos pela CCDR-N no prazo de 60 dias, o Público obriga-se, de acordo com o caderno de encargos, a “produzir uma série de conteúdos editoriais [leia-se, conteúdos jornalísticos e feitos por jornalistas] relativos à temática do crescimento azul do Programa Espaço Atlântico”, de os publicar “nos websites Azul e Publico.pt e no podcast Azul”, mas com uma condição especial: o Público tem de proceder à entrega prévia dos conteúdos para a “respectiva validação” pela CCDR-N.

    Aliás, na cláusula 5ª do caderno de encargos, a CCDR-N trata o Público como se fosse um mero departamento burocrático de comunicação, uma vez que exige, como “forma de prestação do serviço”, que “para o acompanhamento da execução do contrato, o Prestador de Serviços [o Público] fica obrigado a manter, sempre que solicitado, reuniões de coordenação com os representantes da Entidade Adjudicante [CCDR-N], das quais deve ser lavrada acta a assinar por todos os intervenientes da reunião”.

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    Isto para além de o Público ficar “também obrigado a apresentar” à CCDR-N, “sempre que solicitado, um relatório com a evolução de todas as operações objecto dos serviços e com o cumprimento de todas as obrigações emergentes do contrato”. E até há a nota de que todos os relatórios, registos, comunicações, actas e demais documentos “devem ser integralmente redigidos em português”.

    Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero – que integra o conselho consultivo do Azul, e que, no ano passado, tinha elogiado a independência do projecto do Público, afirmando ser este factor “um elemento a valorizar” – diz-se surpreendido com este tipo de contratos. “Levanta-me dúvidas ver a existência de contrapartidas”, afirma este professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, para quem “se mostra fundamental haver uma clarificação”.

    Por sua vez, Luís Simões, presidente do Sindicato dos Jornalistas, mostra-se estupefacto tanto com a tipologia dos contratos como com os termos usados. “A nossa prestação, como jornalistas, é para os nossos leitores, e não pode ser para entidades externas, através de prestação de serviços”, diz, acrescentando que “o mecenato é um instrumento fundamental no jornalismo, mas não pode é surgir depois sob a forma de contratos em que se exigem contrapartidas”. Para Luís Simões “há uma necessidade de reflexão sobre este tipo de contratos”.

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    O PÁGINA UM tentou, especificamente sobre o contrato do Público com a CCDR-N, ouvir David Pontes, o novo director do jornal do Grupo Sonae, desde o início do presente mês, mas não obteve resposta.

    Também se expôs à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) os contratos assinados pelo Público, no âmbito do projecto editorial Azul, para obtenção de um comentário, mas apenas foi acusada a “boa recepção da sua mensagem”, com a promessa de ser dado “seguimento coma brevidade possível.”

    Recorde-se que em Maio do ano passado, o PÁGINA UM compilou 56 contratos com sinais de promiscuidade e ilegalidades assinados entre grupos de media e entidades públicas mas não existe, até agora, conhecimento da conclusão de diligências.


    Esta notícia foi objecto de um direito de resposta publicado a 24 de Outubro de 2023 por determinação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, cujo texto pode ser lido aqui.


  • Carlos Moedas paga, através da Gebalis, conversa sobre Programa Especial de Realojamento

    Carlos Moedas paga, através da Gebalis, conversa sobre Programa Especial de Realojamento

    Por ajuste directo, a Gebalis pagou 19 mil euros por 12 episódios de um podcast da Rádio Observador. Nas conversas, cuja difusão começa está sexta-feira, Carlos Moedas é o primeiro convidado, e para ser ouvido pelo anfitrião Paulo Ferreira, antigo jornalista e actual comentador e colunista, a empresa municipal de Lisboa responsável pelos bairros sociais desembolsou 1.583 euros por cada episódio. A vereadora da Habitação, Filipa Roseta, e o próprio presidente da Gebalis também já garantiram um lugar para serem ouvidos. Apesar de ser uma evidente prestação de serviços, com contrato no Portal Base, o podcast é apresentado como uma parceria.


    Carlos Moedas será amanhã o primeiro convidado de um podcast comemorativo dos 30 anos do Programa Especial de Realojamento (PER), anunciou esta semana o Observador. O actual presidente da autarquia de Lisboa estreará as conversas conduzidas pelo radialista, comentador e ex-jornalista Paulo Ferreira, mas, por certo, não se abordará a transferência de 19.000 euros da empresa municipal Gebalis para o Observador como contrapartida pela realização de 12 podcasts temáticos, que contará ainda com a presença de antigos e actuais responsáveis políticos da edilidade.

    Com efeito, apesar de a Rádio Observador anunciar que o novo podcast é uma “parceria com a Gebalis”, na verdade trata-se de um simples contrato de prestação de serviços, similar à compra de uma refeição num restaurante: em troca de um prato de lagosta, o cliente paga 100 euros. Neste caso, a “lagosta” são os 12 episódios do podcast, e o pagamento não é de 100 euros, mas sim 19.000 euros. Por ajuste directo, assinado em 23 de março passado.

    Imagem de divulgação do podcast com foto da conversa entre Carlos Moedas e o comentador Paulo Ferreira. Cada episódio custou 1.583 euros à empresa municipal Gebalis.

    Nas cláusulas do contrato salienta-se que “o contrato tem por objecto a produção, promoção e difusão do podcast que contará as histórias e testemunhos de todos os que fazem parte do PER, desde moradores, representantes da Gebalis e figuras de relevo que potenciaram o PER, de acordo com o estipulado no caderno de encargos”.

    Porém, no Portal Base não consta o caderno de encargos – não cumprindo assim com as determinações legais –, embora a empresa municipal lisboeta responsável pela habitação social tenha indicado parte dos convidados dos 12 episódios do podcast.

    Além da conversa com Carlos Moedas, já gravada, pelos episódios do podcast – ao custo de 1.583 euros cada – passarão ainda a vereadora da Habitação, Filipa Roseta, o antigo presidente da autarquia alfacinha, João Soares, e o próprio presidente da Gebalis, Fernando Angleu Teixeira, o homem que pagou a conta e que fechará o ciclo de conversas pagas.

    Fernando Angleu Teixeira, presidente da Gebalis. Multiplica-se o recurso a supostas parcerias, que são apenas contratos de prestação de serviços que incluem entrevistas e cobertura noticiosa de eventos.

    O contrato entre o Observador e a Gebalis foi, porém, assinado por um vogal da empresa municipal. Por parte do Observador, assinaram, como administradores, Rui Ramos e José Manuel Fernandes. O antigo director do Público surge agora na ficha técnica do Observador como publisher – uma designação não reconhecida pela Lei da Imprensa – e apresenta-se ainda como jornalista, apesar de não ter a carteira profissional activa, daí não existir qualquer incompatibilidade por assinar contratos comerciais, ao contrário do que se confirmou recentemente com Domingos de Andrade.

    Em todo o caso, José Manuel Fernandes tem sido o rosto principal da campanha do Observador em prol do apoio ao jornalismo independente, tendo como mote a recusa deste jornal de receber, há três anos, ajuda directa do Estado, algo considerado pelo publisher, no sábado passado, como “um momento de reafirmação do nosso compromisso com os leitores, da nossa determinação de permanecermos um jornal independente, um momento que também evidenciou o inquebrantável apoio da nossa comunidade de leitores e assinantes”.

    Saliente-se que a produção de podcasts – que é uma plataforma ambígua de informação – pelo Observador, geralmente apresentados como “parcerias” (leia-se, contratos de prestação de serviços) já se revestiu de outras formas pouco ortodoxas de financiamento. Por exemplo, em 2021, a farmacêutica Gilead, além dos encargos de produção e difusão, até pagou a participação de dois médicos (Fernando Maltez e Teresa Castelo Branco) pelas conversas.

    José Manuel Fernandes, publisher do Observador, assume-se como jornalista, mas está sem carteira profissional activa. Só assim a sua participação na assinatura do contrato entre Observador e Gebalis não viola o Estatuto do Jornalista.

    Apesar dessa prestação de serviços, Fernando Maltez, presente como presidente de Doenças Infecciosas e Microbiologia Clínica, chegou a agradecer por duas vezes o “convite” – assim como se constata durante a emissão –, mesmo tendo recebido 1.230 euros da farmacêutica por 15 minutos de conversa.  

    Ainda quanto à produção e difusão do podcast sobre os 30 anos do PER, tal insere-se ainda num conjunto de outros eventos, cobertos pelo Observador, um dos quais foi a exposição patente no Palácio Pimenta sobre políticas de habitação em Lisboa desde a Monarquia à Democracia.