Etiqueta: Política

  • IGAS ‘protege’ Gouveia e Melo, deputado Miguel Guimarães e ministra Ana Paula Martins

    IGAS ‘protege’ Gouveia e Melo, deputado Miguel Guimarães e ministra Ana Paula Martins

    Em Janeiro do ano passado, a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) abriu formalmente um “processo de esclarecimento” sobre a vacinação contra a covid-19 de quase quatro mil médicos não-prioritários em Fevereiro de 2021, no decurso de uma combinação, ao arrepio das normas da Direcção-Geral da Saúde, entre o almirante Gouveia e Melo e o então bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães. O acordo envolveu também um pagamento de mais de 27 mil euros ao Hospital das Forças Armadas, mas apesar da factura ter sido emitida em nome da Ordem dos Médicos, o pagamento saiu de uma conta pessoal co-titulada por Miguel Guimarães e Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde, que geriram, numa contabilidade paralela e pejada de ilegalidades, cerca de 1,4 milhões de euros doados sobretudo de farmacêuticas. Catorze meses depois do início do “processo de esclarecimento”, aproximando-se uma prescrição, e face ao silêncio do inspector-geral Carlos Carapeto, o PÁGINA UM entrou com uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa para saber que ‘investigação’ a IGAS andou a fazer. Ou a não fazer.


    A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) está a esconder as conclusões de um “processo de esclarecimento”, aberto há 14 meses, sobre a forma pouco ortodoxa como Miguel Guimarães – antigo bastonário da Ordem dos Médicos e actual deputado do PSD – e o agora almirante Gouveia e Melo – antigo líder da task force durante a pandemia e actual Chefe de Estado-Maior da Armada – combinaram a vacinação contra a covid-19 de médicos não-prioritários desrespeitando as normas em vigor da Direcção-Geral da Saúde. E o caso também envolve indirectamente a actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, uma vez que foi ela que, no âmbito de uma campanha de solidariedade, concedeu autorização para um pagamento às Forças Armadas para compensar pela ajuda na administração das vacinas fora dos procedimentos legais.

    O processo de esclarecimento é uma das quatro tipologias inspectivas da IGAS, sendo a fase prévia que pode avançar, consoante os casos, para processo disciplinar, processo de inquérito ou processo de inspecção. No ano passado, segundo o mais recente relatório da IGAS, foram abertos 28 processos de esclarecimentos, que têm um prazo de 18 meses para conclusão, de contrário beneficiam de uma prescrição automática. Deste modo, o processo de esclarecimento às vacinas prescreverá, se não for arquivado ou avançar para outra fase, no próximo mês de Julho.

    Gouveia e Melo, actual Chefe do Estado-Maior da Armada, foi coordenador da task force e permitiu vacinações em Fevereiro de 2021 ao arrepio de uma norma da DGS. O Hospital das Forças Armadas beneficiou do esquema.

    O desbloqueio de mais uma obstrução à transparência por parte da IGAS está agora nas mãos do Tribunal Administrativo de Lisboa, por via de uma nova intimação do PÁGINA UM com vista a obrigar o inspector-geral Carlos Carapeto a libertar todos os documentos produzidos sobre esta matéria desde 15 de Janeiro do ano passado, data em que “foi determinada a abertura de um processo de esclarecimento, com o objectivo de avaliar se existe matéria que deva e possa ser avaliada”. Saliente-se que é a terceira vez que o PÁGINA UM tem de recorrer ao Tribunal Administrativo de Lisboa para que a IGAS faculte documentos administrativos em assuntos politicamente comprometedores.

    De acordo com a lei, mesmo em processos não concluídos, como será este o caso, o acesso por terceiros ” acesso aos documentos administrativos preparatórios de uma decisão ou constantes de processos não concluídos “pode ser diferido até à tomada de decisão, ao arquivamento do processo ou ao decurso de um ano após a sua elaboração, consoante o evento que ocorra em primeiro lugar”. Ora, muitas das diligências já terão mais de um ano, se é que foram feitas.

    O anúncio em Janeiro do ano passado deste processo de esclarecimento por parte da IGAS surgiu após a investigação do PÁGINA UM à gestão de uma campanha de solidariedade publicamente dinamizada pelas Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos, mas minada de ilegalidades, que envolveu cerca de 1,4 milhões de euros da indústria farmacêutica, sendo a contabilidade feita de forma paralela, com facturas falsas e outras ilegalidades fiscais, através de uma conta pessoal co-detida por Miguel Guimarães e Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde. Foi no decurso dessa investigação que o PÁGINA UM detectou na documentação – cuja consulta foi possível somente após uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa – que, em Fevereiro de 2021, Miguel Guimarães e Gouveia e Melo reuniram e conversaram várias vezes para contornar a Norma 002/2021 da Direcção-Geral da Saúde (DGS).

    Ana Paula Martins e Miguel Guimarães foram os co-titulares de uma conta pessoal que geriu 1,4 milhões de euros de uma campanha de solidariedade pejada de irregularidades e ilegalidades, incluindo facturas falsas e fuga ao Fisco. Também serviu para pagar ao Hospital das Forças Armadas uma factura passada em nome da Ordem dos Médicos pelo serviço de vacinação.

    Esta norma, publicada em 30 de Janeiro de 2021, determinava então que na Fase 1 deveriam ser vacinados apenas os “profissionais de saúde diretamente envolvidos na prestação de cuidados a doentes”, os profissionais de lares (ERPI) ou de instituições similares e da rede de cuidados continuados, as pessoas com 80 ou mais anos, as pessoas de mais de 50 anos com determinadas comorbilidades e ainda “os profissionais das forças armadas, forças de segurança, serviços críticos e titulares de órgãos de soberania e altas entidades públicas”. Para a Fase 2, que então não estava ainda a decorrer em Fevereiro de 2021, estava prevista a vacinação do grupo etário dos 65 aos 79 anos e pessoas dos 50 aos 64 anos com determinadas comorbilidades. Somente no final da Primavera de 2021 começaram a ser vacinados os menores de 50 anos, quando já não se colocavam problemas de escassez de doses. Essa ‘hierarquia’ não agradava ao actual deputado do PSD que, não conseguindo como bastonário convencer a DGS a alterar a norma, encontrou em Gouveia e Melo, que geria a disponibilização das vacinas, alguém mais prestimoso. Aliás, meses mais tarde, Gouveia e Melo seria homenageado pela Ordem dos Médicos pelo “novo fôlego” que deu à campanha de vacinação que, obviamente, incluiu a violação da norma da DGS para benefício dos médicos não-prioritários.

    Assim, no seguimento dessas conversações em Fevereiro de 2021 – para as quais Gouveia e Melo não detinha então sequer competências para as fazer – , acabou por se acordar a disponibilização de vacinas (entregues por ordem do agora almirante) e a sua administração em instalações militares para cerca de quatro mil médicos não-prioritárias, dos quais 1.382 no pólo do Porto do Hospital das Forças Armadas, 2.004 no de Lisboa, 623 no Centro de Saúde Militar de Coimbra e 189 no centro hospitalar do Algarve. Em vésperas do processo de vacinação destes médicos não-prioritários – e que deveriam aguardar pela vacina em função da idade –, Miguel Guimarães até quis que a comunicação social acompanhasse toda a operação, mas esta acabou por se realizar de forma discreta. Foram vacinados quase 3.700 médicos. Obviamente, as vacinas tiveram de ser “desviadas” do circuito oficial num período então de grande escassez.

    Este processo paralelo, e perfeitamente irregular – uma repetição de situações ocorridas no Hospital da Cruz Vermelha, que causara a demissão de Francisco Ramos, substituído em Gouveia e Melo –, teve ainda contrapartidas financeiras que beneficiaram as Forças Armadas. Apesar das vacinas serem gratuitas, e a sua administração ser assegurada pelo Serviço Nacional de Saúde, somente foram disponibilizadas contra a cobrança unitária de 3,7 euros para supostamente suportar custos do Hospital das Forças Armadas. No Portal Base não consta que esta entidade tenha contratado quaisquer serviços externos para vacinar os médicos. Recorde-se que, apesar de liderar a task force, Gouveia e Melo continuava com altas funções na hierarquia das Forças Armadas – e não na Marinha, de onde provinha –, uma vez que acumulava então as funções de Adjunto para o Planeamento e Coordenação do Estado -Maior-General das Forças Armadas, mostrando-se tecnicamente improvável desconhecer as contrapartidas financeiras envolvidas nesta vacinação à margem das normas da DGS.  

    Carlos Carapeto, inspector-geral das Actividades em Saúde. Pela terceira vez, o PÁGINA UM recorre ao Tribunal Administrativo para consultar documentação.

    A factura do Hospital das Forças Armadas, num total de 27.365 euros – pela administração de 7.396 doses – foi emitida em 18 de Julho do ano passado para pagamento pela Ordem dos Médicos, e a forma como este pagamento foi processado e pago tem contornos de ilegalidade, neste caso envolvendo mesmo a actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins. De facto, a Ordem dos Médicos quis ficar com os louros de vacinar associados não-prioritários, mas também com o dinheiro nos seus cofres. E assim, em 26 de Abril de 2021, a tesoureira do Conselho Nacional, Susana Garcia de Vargas, escreveu um ofício aos gestores do fundo e titulares da conta bancária (Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves) pedindo-lhes 30.000 euros para custear o processo de vacinação aos médicos não-prioritários. Era expectável que o pedido fosse aceite – por via do próprio bastonário da entidade que pedia apoio ser uma das três pessoas que decidia se era concedido –, e assim sucedeu.

    Porém, como a factura passada pelo Hospital das Forças Armadas pelas operações de administração estava em nome da Ordem dos Médicos, deveria ter sido esta entidade a proceder ao pagamento, e depois receber o donativo de 30.000 euros da conta solidária. Porém, não foi isso que sucedeu.

    Na verdade, apesar de a factura se manter na Ordem dos Médicos, e em seu nome, o pagamento ao Hospital das Forças Armadas proveio do fundo “Todos por Quem Cuida”, de acordo com o pedido de operação bancária assinado em 4 de Agosto do ano passado pela actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e por Eurico Castro Alves, como co-titulares da conta pessoal (e não institucional). Mais tarde, a Ordem dos Médicos tratou de passar declarações a quatro farmacêuticas, entre as quais a Gilead – onde então já trabalhava Ana Paula Martins – como se estas tivessem feito donativos directos para a vacinação. Estas declarações são absolutamente falsas, porque nunca houve qualquer transferência bancária das quatro farmacêuticas para uma conta titulada pela Ordem dos Médicos.

    Uma vez que ao fim de mais de 14 meses desde o anúncio do início do processo de esclarecimento, a IGAS nada comunicou ao PÁGINA UM – e ignorou um pedido formal no mês passado –, a intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa visa a libertação dos documentos para conhecer as diligências tomadas por esta entidade agora tutelada por Ana Paula Martins. Tal como sucedeu com um processo disciplinar ao pneumologista Filipe Froes – que acabou arquivado em vésperas de prescrição, com diligência medíocres ao longo de quase ano e meio –, a probabilidade de este “processo de esclarecimento” ter ficado em ‘banho-maria’ desde Janeiro de 2023 é bastante elevada.

    Na verdade, o incómodo político e judicial sobre esta matéria tem-se mostrado patente também no facto de, ao longo de mais de um ano, a Procuradoria-Geral da República não ter jamais respondido às solicitações do PÁGINA UM sobre esta matéria e sobretudo sobre a gestão da campanha ‘Todos por uma Causa’, pejada de facturas falsas, fuga ao fisco, abuso de benefícios fiscais e contabilidade paralela.  


    N.D. Amanhã comemora-se os 50 anos da Revolução dos Cravos, que concedeu, antes de mais, a Liberdade e, por consequência, a liberdade de imprensa (e de expressão), ao qual estaria também associado o acesso à informação. Pode-se comemorar uma efeméride, em números redondos ou quadrados, ou de outra configuração geométrica, mas não existem muitos motivos para festejar uma efectiva liberdade de acesso à informação quando um jornal tem, para aceder a documentos detidos por entidades públicas, de recorrer mais de duas dezenas de vezes nos últimos dois anos ao Tribunal Administrativo, que ainda por cima é lento nas decisões. O caso da IGAS é um paradigma: é a terceira vez que o PÁGINA UM apresenta uma intimação para obter documentos. Não é admissível que tal suceda numa democracia. Talvez o objectivo seja cansar o PÁGINA UM (que é o único órgão de comunicação social que recorre por sistema aos tribunais face a uma recusa no acesso à informação), mas não nos cansaremos enquanto, do lado dos nossos leitores, nos derem força e apoios financeiros através do FUNDO JURÍDICO.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Debate sobre Tratado Pandémico fez subir a temperatura no Parlamento

    Debate sobre Tratado Pandémico fez subir a temperatura no Parlamento

    Os ânimos exaltaram-se, ontem, no Parlamento, durante um debate sobre o plano de preparação para pandemias que está a ser negociado pelos países no âmbito da Organização Mundial de Saúde (OMS). Acusações de “negacionismo” e discussões entre bancadas dos partidos, evitou um debate profundo sobre o Tratado. O tema chegou ao Parlamento por força de uma petição e também de um Projecto de Resolução do Chega, que defendia a não adesão de Portugal ao Tratado, mas que teve apenas o apoio da Iniciativa Liberal. Já os partidos da esquerda acusaram os peticionários de serem negacionistas – um dos insultos que foi muito usado durante a pandemia de covid-19. A autora da petição, a médica dentista Marta Gameiro, lamentou os insultos aos peticionários, mas disse estar “contente” porque a iniciativa “foi um sucesso”, já que forçou os partidos a debater o plano pandémico da OMS, que sofreu profundas alterações últimos dois meses. Afinal, os direitos humanos e as liberdades fundamentais já não vão ser ‘riscados’ do plano pandémico, o qual poderá ser adoptado pelos países já no final de Maio, se não houver um adiamento.


    Muita parra e pouca uva. Ainda não foi desta que houve no Parlamento um debate profundo sobre o plano de preparação para pandemias que está a ser negociado no âmbito da Organização Mundial de Saúde (OMS). O debate agendado para ontem descambou em insultos e altercações, com o presidente da Assembleia da República a ter de dar vários ‘puxões de orelhas’ aos deputados.

    Os deputados foram ontem obrigados a debater o chamado Tratado Pandémico da OMS por força de uma petição, da autoria da médica dentista Marta Gameiro, que pedia um referendo para decidir a adesão de Portugal ao plano. Também foi debatido um Projecto de Resolução do partido Chega que recomendava ao Governo a não adesão ao Tratado e que só mereceu o apoio da Iniciativa Liberal.

    Num clima aceso e intenso, geraram-se discussões cruzadas entre deputados de diferentes bancadas, mostrando que está hoje ainda bem viva a polarização observada na pandemia de covid-19, cuja gestão acabou por ser politizada, nem sempre com a imposição de medidas fundamentadas em pressupostos científicos. O ruído e desordem obrigaram à intervenção do presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, que teve de impor ‘ordem na casa’, chegando mesmo a levantar o tom de voz para conseguir acalmar os ânimos, que estavam exaltados.

    O presidente da AR (ao centro), num dos momentos em que se viu forçado a intervir para impor ‘ordem’ no Parlamento. (Foto: Captura de imagem do Canal Parlamento)

    “Senhores deputados: apelo ao sentido de autodisciplina e de auto-responsabilidade para que não tenha de ser o presidente da Assembleia da República a ter que fazer o condicionamento do uso da palavra, que eu não desejo, não gosto e não sou assim”, afirmou Aguiar-Branco após uma das altercações entre bancadas.

    “Mas, se vossas excelências me obrigarem a isso, eu tenho que ir para outro tipo de intervenção que é aquela que vai ao encontro sequer da minha personalidade para que nesta Assembleia possamos fazer um debate democrático e fazer um debate democrático tem como pressuposto ouvir os outros”, salientou.

    Mas, afinal, para quê tanta celeuma em torno do chamado Tratado Pandémico? Em causa está um plano da OMS que tem vindo a ser negociado pelos diversos países e envolve duas partes – alterações ao Regulamento Sanitário Internacional e a criação de um Tratado para pandemias. As últimas versões do plano já excluem as propostas mais extremistas e polémicas, como a eliminação do conceito de direitos humanos e das liberdades fundamentais do Regulamento, tal como o PÁGINA UM noticiou na segunda-feira.

    A petição de Marta Gameiro, que foi assinada por cerca de 7.500 pessoas e já tinha sido debatida em sede de comissão da Saúde, foi criada antes das alterações recentes ao plano da OMS.

    Os apoiantes da petição que pedia um referendo sobre a adesão de Portugal ao Tratado Pandémico preencheram simbolicamente de ‘branco’ as galerias da Assembleia da República durante o debate. (Foto: Captura de imagem do Canal Parlamento)

    O debate começou com a deputada Rita Matias do Chega a apresentar a proposta do seu partido. A deputada aproveitou para criticar a gestão da pandemia de covid-19 em Portugal, dizendo, nomeadamente, que “falta fiscalizar, falta apurar, falta escrutinar a má gestão da pandemia, o excesso de mortalidade”. “Acima de tudo, falta julgar a passadeira vermelha para a corrupção e para o tráfego de influências que foi estendida durante a pandemia”, disse na sua intervenção.

    A Iniciativa Liberal indicou que votaria favoravelmente a proposta do Chega, mas foi o único partido a fazê-lo.

    Dos partidos que formam o actual Governo, do lado PSD, o deputado Miguel Guimarães, antigo bastonário da Ordem dos Médicos, evitou o tema em concreto do debate, preferindo promover o plano “One Health” da União Europeia, que visa uma abordagem mais abrangente do que é a saúde humana.

    O deputado do CDS-PP foi a voz da moderação. João Pinho de Almeida defendeu que “temos que estar preparados” para uma pandemia e que “a discussão sobre isso deve ser feita com um princípio fundamental que é o princípio do bom senso, não extremarmos posições, não negarmos evidências e não enfiarmos a cabeça na areia para não assumirmos responsabilidades”.

    white and black printer paper
    A gestão da pandemia na maioria dos países – com excepção da Suécia – causou graves danos na população, incluindo um enorme excesso de mortalidade, e também na economia e muitas das políticas não tinham fundamentação na evidência científica. Além disso, foi censurada informação verdadeira, nomeadamente em torno de temas como imunidade natural, máscaras e vacinas contra a covid-19.

    Lembrou que na covid-19 “vivemos limitações à liberdade que nunca imaginámos viver e mal é que não questionemos sobre a pertinência e a adequação das mesmas”, salientando que “ninguém no seu perfeito bom senso pode dizer que todas as limitações foram perfeitamente justificadas e que não temos que debater nada sobre isso”.

    Recordou que “houve muita gente prejudicada, houve muitas empresas prejudicadas, houve muitas famílias desfeitas, houve pessoas que não se puderam despedir dos seus familiares que morreram nesse período” e questionou: “nós não nos questionamos sobre essas limitações à liberdade? Claro que temos de questionar”. Defendeu que “quando discutirmos soluções para eventualmente lidarmos com estas situações no futuro nós temos que estar preparados para saber o que é mais ou menos adequado”, tendo sempre “o princípio da liberdade” presente.

    Na conclusão da sua intervenção, o deputado centrista lembrou que o Tratado Pandémico não está aprovado na OMS mas, “se disser aquilo que é dito na petição e se disser aquilo que vem no projecto do Chega, vai muito para além daquilo que á aceitável do ponto de vista da soberania nacional”. Disse que “o que temos de fazer é manter o bom senso e pronunciarmo-nos no momento próprio e, sobretudo, não entrarmos em limitações de liberdade nem limitação do escrutínio, sem ter a responsabilidade e sem se ser avaliado”.

    Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS, tem pressionado para que o plano pandémico seja assinado pelos países mas as dúvidas têm vindo a crescer e nos últimos dois meses as propostas mais polémicas acabaram por cair, incluindo a tentativa de eliminação dos direitos humanos e liberdades fundamentais do Regulamento Sanitário Internacional. (Foto: D.R.)

    A postura moderada do deputado do CDS-PP contrastou com a de outros partidos e o clima tenso. Os partidos da esquerda foram unânimes no uso do ‘chavão’ habitual na pandemia de covid-19, acusando de “negacionismo” os peticionários. Sentada na galeria, Marta Gameiro teve ainda de ouvir a deputada Isabel Pires do Bloco de Esquerda a tentar ‘colar’ os peticionários a movimentos ‘anti-vacinas’. A deputada bloquista dedicou boa parte do seu discurso a enumerar a evolução da aplicação de vacinas em Portugal, sem, contudo, endereçar os aspectos concretos em causa na negociação do plano pandémico da OMS.

    A deputada do Bloco acabou por lançar ‘farpas’ ao Chega, dizendo tratar-se de um debate de “mentiras e hipocrisia” e acusou o partido de André Ventura de ter ficado do lado das farmacêuticas na covid-19, por ter chumbado uma iniciativa do Bloco que propunha ‘levantar’ as patentes das vacinas. Isabel Pires defendeu que “as vacinas não deviam ser um negócio milionário”, que a “saúde não devia ser um negócio milionário” e que a “Pfizer não devia ter lucros de 22 mil milhões de euros à custa da vacina”.

    O deputado único do Livre, Rui Tavares, também mencionou o tema das vacinas e não fez referências específicas ao que está na mesa de negociações na OMS.

    Marta Gameiro, médica dentista, defensora da medicina baseada na evidência científica e autora da petição, esteve na comissão de Saúde a defender a petição. A médica organizou já dois congressos internacionais, em 2022 e 2023, um sobre a gestão da pandemia e outro sobre saúde mental e propaganda durante a covid-19.
    (Foto: Captura de imagem do Canal Parlamento)

    O deputado socialista João Paulo Correia elogiou a gestão da pandemia que foi feita pelo seu partido quando era governo e criticou a petição e a proposta do Chega.

    Outros deputados recorreram ao termo pejorativo “negacionismo”, incluindo o deputado do PCP António Filipe e a deputada única do PAN, Inês Sousa Real. “De facto, o negacionismo e o populismo têm alguns aspectos curiosos, é que negam as evidências científicas”, disse Sousa Real no início da sua intervenção, sem, contudo endereçar o conteúdo concreto da petição ou as propostas que estão na mesa na elaboração do plano da OMS.

    No final do debate, foi a vez de André Ventura, presidente do Chega, reagiu às críticas e insultos de alguns deputados. “Se fosse transparência, senhor deputado Rui Tavares, nós hoje sabíamos onde estão aquelas vacinas encomendadas e pagas pelo Estado português, (…) sabíamos onde foram parar os ventiladores que pagaram com o dinheiro dos contribuintes e nunca aqui puseram em Portugal, (…) sabíamos porque é que a presidente da Comissão Europeia não dá à polícia as mensagens sobre a compra de vacinas em toda a União Europeia, como lhe foi pedido”.

    Dirigindo-se ao deputado socialista, Ventura afirmou que “não deixa de ser caricato que o PS termine a sua intervenção dizendo o mundo precisa “deste Tratado Pandémico”. “Senhor deputado, tenho uma grande novidade para si, olhos nos olhos: não é o mundo que precisa de um Tratado Pandémico, são os grandes grupos económicos que dominam o mundo, que querem encher as carteiras à custa da liberdade dos cidadãos”, concluiu.

    white apple watch box on brown wooden table
    Marta Gameiro alertou que está a ser criada uma “indústria de pandemias” focada na venda de produtos e medicamentos a nível global. (Foto: D.R.)

    O debate terminou com algumas manifestações por parte de pessoas presentes nas galerias, o que gerou mais um aviso de José Pedro Aguiar-Branco, que também acabou por ser um recado para os deputados: “as galerias não se podem manifestar e se nós, enquanto deputados, dermos o exemplo disso, seguramente não se manifestarão”.

    Apesar de ter de assistir aos insultos contra os peticionários, Marta Gameiro mostrou-se satisfeita com o resultado alcançado. “Estou contente. A petição acabou por ser um sucesso porque teve de haver um debate”, afirmou ao PÁGINA UM, após o debate. Lamentou os insultos e que não se tivesse antes discutido em concreto o que está em causa no plano da OMS. Respondendo à deputada do Bloco, disse que o que fez foi “extrapolar” e usar referências a vacinas que constam da petição para “atacar injustamente o mensageiro” em vez de debater o plano pandémico.

    Questionada sobre como vê os insultos e o uso da palavra “negacionismo”, Marta Gameiro disse que “de certa forma, já estava à espera”. Mas “esperava também ouvir dos deputados argumentos mais baseados em evidências”. Acusou alguns deputados de viveram “numa bolha” e não entenderem que hoje, a OMS “está focada em vender produtos, como testes, medicamentos, vacinas, apps de rastreio”. Disse ainda que não é “contra tratados internacionais”, mas criticou “a urgência” que está a haver para adopção do plano pandémico da OMS. “O que está a ser criada é uma indústria de pandemias”, afirmou.

    Na sua ida ao Parlamento, Marta Gameiro foi acompanhada de apoiantes da petição, vestidos de branco, incluindo Joana Amaral Dias, psicóloga e candidata às eleições europeias pelo partido ADN, bem como Bruno Fialho, presidente deste partido que foi uma das surpresas das últimas legislativas.

    Os países irão decidir na 77ª Assembleia Mundial da Saúde, que começa no dia 27 de Maio, se adoptam ou não o texto do ‘Tratado Pandémico’, bem como as emendas ao Regulamento Sanitário Internacional. Contudo, crescem os apelos para que a decisão sobre os dois textos seja adiada, para que os países possam ter tempo para rever as propostas que estão na mesa e construir textos mais sólidos.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • A Liberdade não tem preço, mas comemorá-la em Portugal não sai barato

    A Liberdade não tem preço, mas comemorá-la em Portugal não sai barato

    Poucas autarquias quiseram ficar arredadas das comemorações dos 50 anos da Revolução dos Cravos, e por isso houve uma ‘corrida’ aos ‘músicos de intervenção’ ainda no activo, como Paulo de Carvalho, Sérgio Godinho, Fernando Tordo, Vitorino, Janita Salomé e Brigada Vitor Jara. Mas, visto em detalhe mais de uma centena de contratos, constata-se que quem recebe os maiores cachets são os ‘do costume’. O PÁGINA UM decidiu percorrer mais de uma centena de contratações já celebradas e inseridas no Portal Base associadas aos espectáculos que marcam os 50 anos de uma revolução que nos concedeu a Liberdade, hoje algo limitada. E mostra que, apesar de todos os eventos promovidos por autarquias serem ‘vendidos’ como gratuitos, a conta pública já está acima dos 2,4 milhões de euros. E ainda só lá cantam alguns dos contratos de 72 municípios e de três juntas de freguesia.


    Além das comemorações de Estado, protagonizadas por uma comissão específica, quase não vai haver autarca que queira passar à margem das festividades do meio centenário do 25 de Abril de 1974. Em cada município, pelas redes sociais, pela imprensa, de norte a sul, de este a oeste, surgem apetitosas agendas culturais com debates, exposições, teatro, música e pirotecnia. Praticamente todo oferecido aos cidadãos para lembrá-los que a Liberdade não tem preço, e deve ser mantida como o mais valioso dos bens pessoais e colectivos.

    Porém, em abono da verdade, tal como nunca há almoços de borla, também não há comemorações sem custos – neste caso, monetários. E beneficiários – neste caso, os músicos, embora alguns, admita-se, ate o sejam muitos justamente.

    A Revolução dos Cravos está intimamente associada à música – e, em especial, nas fases posteriores à música de intervenção. Zeca Afonso a e a sua (nossa) ‘Grândola Vila Morena’ tornou-se um Hino da Liberdade, mesmo mais do que “E depois do adeus’, de Paulo de Carvalho, que serviu de primeira senha para o início do golpe que fez cair a ditadura do Estado Novo.

    Não surpreende assim que abundem agora os concertos ‘saudosistas’ (no bom sentido do termo) – e, felizmente, com uma parte daqueles que foram intervenientes nessa esperançosa fase em que se cantavam os amanhãs – ou que os amanhãs cantavam. Os portugueses já há muito não contam com a presença de Zeca Afonso, que partiu em 1987, cinco anos depois de Adriano Correia de Oliveira. Também a pena de Ary dos Santos se perdeu cedo, e já não está entre nós um dos ‘príncipes da canção de intervenção’, José Mário Branco, falecido em 2019.

    Mas ainda estão no activo, e bem no activo, um bom punhado de cantores de intervenção, já todos septuagenários – e talvez já algo acomodados, diga-se. Aos 76 anos, Paulo de Carvalho é um deles. No próximo dia 26 dará um concerto em Vizela, com músicos convidados, pelo qual o município pagará 21 mil euros, mas tem estado particularmente activo este ano com espectáculos associados ao 25 de Abril contratados por autarquias, nomeadamente as de Gondomar (21.702 euros), de Grândola (109.705 euros, neste caso também por causa do cachet do seu filho Agir), de Loures (63.850 euros) e de São João da Madeira (7.000 euros).

    Paulo de Carvalho, em 1974, cantando ‘E depois do adeus’, que se transformaria na primeira senha para o avanço da Revolução dos Cravos.

    Fernando Tordo – autor de ‘Tourada’ e ‘Adeus tristeza’ – , com a mesma idade de Paulo de Carvalho, ainda aparenta estar mais activo, embora com cachets mais baixos. Não vai parar de amanhã até sábado em concertos, um por dia. Primeiro na Sertã (8.500 euros), segue-se Moimenta da Beira (10.420 euros), depois Coruche (9.465 euros) e finaliza na Azambuja (7.00 euros). O cantor parece ter recuperado nos últimos anos um certo élan – desde o início de 2023 conta 12 contratos públicos no Portal Base com autarquia que já ultrapassam os 100 mil euros –, tendo chegado a emigrar para o Brasil em 2014 durante o Governo de Passos Coelho. Regressou poucos anos depois, mas em 2022 ameaçou sair de novo se a direito ganhasse as eleições. Não aconteceu nesse ano, sucedeu agora.

    O ‘decano’ Vitorino (81 anos) e o seu irmão Janita Salomé (76 anos), em registo com raízes alentejanas, também cantarão Abril nos próximos dias, sobretudo o primeiro e, pelo menos numa ocasião, em conjunto. Amanhã, no Teatro José Lúcio da Silva, na cidade de Leiria, o concerto dois irmãos, acompanhados de Filipe Raposo e pela Orquestra Filarmónica das Beiras, vai custar ao erário público 25 mil euros. No sábado passado, os dois irmãos estiveram na Marinha Grande num concerto de antecipação ao 25 de Abril, pelo qual a autarquia não pagou muito: apenas 5.950 euros, ainda por cima por incluir orquestra. Aliás, segundo os contratos já inseridos no Portal Base, Vitorino vai dar mais dois concertos nos próximos dias com cachets mais apreciáveis: na Sertã (amanhã) por 12 mil euros e no dia 26 em Castelo de Paiva por 23 mil euros.

    Quem também se mostra imparável nesta fase é Sérgio Godinho que, aos 78 anos, tem estado na estrada com o seu projecto musical Liberdade 25, que já o levou duas noites em Março passado ao Coliseu de Lisboa, estando agora a aproveitar o interesse de muitos municípios para abrilhantar as comemorações do meio centenário do 25 de Abril. Amanhã, o autor do célebre ‘Liberdade’ e ‘Com um brilhozinho nos olhos’ vai estar na eborense Praça do Giraldo num concerto com “entrada livre”, porque a Câmara Municipal de Évora desembolsou 18.200 euros. No dia 25 vai estar em Loulé e depois no Auditório Municipal de Lousada no sábado, regressando a Lisboa no domingo. Estes três últimos concertos, que terão sido pagos por municípios, deverão ter custado valores entre os 10 mil e os 18 mil euros, intervalo que, por regra, o músico pratica, o que nem se pode considerar demasiado elevado tendo em conta os músicos que o acompanham.

    Sérgio Godinho continua a ser um dos músicos mais associados ao 25 de Abril.

    Aliás, ao nível dos cachets, os músicos e grupos associados directamente ao 25 de Abril até se mostram como os mais baratos. Por exemplo, os Brigada Vítor Jara levam á autarquia local pelo concerto de amanhã na Marinha Grande menos de 32 mil euros – e convém referir que este histórico grupo fundado em 1975 tem nove membros. Talvez por serem de Coimbra, fizeram um preço mais em conta para o concerto no próprio dia 25 de Abril, cobrando apenas 7.100 euros ao município.

    Também Carlos Alberto Moniz não cobra em demasia. Os dois contratos associados ao 25 de Abril, na Chamusca (amanhã) em Castelo Branco (na quinta-feira) custaram, respectivamente, 6.175 e 7.000 euros aos municípios, de acordo com os contratos publicitados no Portal Base. Um outro histórico, Jorge Palma, que vai estar em Pombal no próximo sábado, irá cobrar, por sua vez, 12 mil euros.

    Na verdade, independentemente de ainda estarem no activo muitos dos músicos e cantores que vivenciaram a passagem da Ditadura para a Liberdade, os tempos são como são, e quem tem os maiores cachets são aqueles com maior popularidade actual.

    De acordo com a pesquisa feita hoje pelo PÁGINA UM aos contratos já celebrados e inseridos no Portal Base – e nos últimos dias têm-se somado muitos –, o espectáculo com o maior orçamento realizar-se-á em Lisboa e tem como cabeça de cartaz Rodrigo Leão, embora de forma virtual. Produzido pela empresa Idade das Ideias, e tendo como adjudicante a empresa municipal EGEAC, a Praça do Comércio será o palco para a Orquestra Sinfonietta de Lisboa, o Coro de Santo Amaro de Oeiras, o Coro da Escola Artística do Instituto Gregoriano de Lisboa e vários solistas interpretarem canções de José Afonso, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Fausto, Adriano Correia de Oliveira, Fernando Lopes Graça e Carlos Paredes. Além de um videomapping composto por fotografias de Alfredo Cunha e música de Rodrigo Leão, haverá ainda um espectáculo piromusical. Tudo gratuito, apesar de a empresa do município liderado por Carlos Moedas ter de pagar, com dinheiros públicos, um total de 271 mil euros.

    people walking on street near white concrete building during daytime
    Praça do Comércio onde esta quarta-feira se pagará a maior factura por uma noite de comemorações.

    Sem especificar em concreto os gastos de forma discriminada, a factura das comemorações em Almada também não fica barata: 146 mil euros para um conjunto de eventos culturais que tem o apogeu amanhã à noite com um concerto de Dino d’Santiago. O músico algarvio de ascendência cabo-verdiana levará, porém, uma pequena parte deste montante, uma vez que os seus cachets em concertos individuais situam-se entre os nove mil e 13 mil euros.

    Bem mais elevados são os cachets de Rodrigo Leão, que amanhã se apresentará ao vivo num concerto em Matosinhos. A autarquia socialista fez dois contratos para este espectáculo: um para pagar directamente a actuação do ex-membro dos Madredeus, no valor de 51.297 euros, e outro para pagar um espectáculo multimédia em si mesmo, no valor de 66 mil euros. Ou seja, uma noite de comemorações em Matosinhos a custar mais de 117 mil euros. Se somarmos o concerto no dia 26 de Salvador Sobral com a Orquestra Jazz de Matosinhos, a conta pública alimenta mais 47.614 euros.

    Em todo o caso, e talvez sem surpresa, os nomes grandes da música portuguesa levam os maiores cachets, independentemente de se tratar de comemorações em redor da liberdade ou não. Na lista de concertos nos próximos dias, os Xutos & Pontapés são reis & senhores na hora de desembolsar dinheiros públicos. Para o seu concerto de amanhã em Santiago do Cacém cobram 57.650 euros; no dia seguinte, descendo para a vizinha Odemira, levam um pouco menos: 42.385 euros. O município de Odemira, apesar de contar menos de 30 mil habitantes, ainda vai pagar 28 mil euros pelo concerto de amanhã de Richie Campbell, e mais 25.500 euros à banda de hip hop Wet Bed Gang, que foi escolhida em votação pela população local, e 12.500 euros aos Capitão Fausto.

    Xutos & Pontapés: são os mais bem pagos, sempre.

    Por sua vez, Pedro Abrunhosa também não se pode queixar de Abril. Nem de Isaltino de Morais. A autarquia de Oeiras já celebrou o contrato de 40 mil euros para o seu concerto da noite desta quinta-feira. Também aqui o concerto é considerado “gratuito”. Para contratar Mariza Liz, António Zambujo e os Wet Bed Gang a autarquia de Setúbal teve de desembolar, em pacote, cerca de 104 mil euros.

    Na lista entretanto inventariada pelo PÁGINA UM constam mais nomes de peso com cachets relevantes, destacando-se Rui Veloso (32 mil euros pelo concerto de amanhã em Alcácer do Sal) e José Cid (30.100 euros pelo concerto de amanhã no Portimão Arena). Abaixo dos 30 mil euros, D.A.M.A. e Bandidos do Cante repartem os 28.250 euros que a Câmara de Beja vai gastar num concerto na noite de quinta-feira, enquanto Luís Represas, que se notabilizou nos finais do século passado como vocalista dos Trovante, vai receber 23.250 euros por um concerto na Moita, um pouco mais do que os 18.675 euros que cobrará por similar apresentação em Moura. Pelo concerto em Arronches, no próximo sábado, Represas receberá um cachet de um pouco menos de 16 mil euros. Por sua vez, os Anjos levam para casa 20 mil euros depois de actuarem em Aljustrel na noite de amanhã.

    Já abaixo da fasquia dos 20 mil euros estão outros músicos ou grupos conhecidos como os GNR (concerto em Odivelas por 19.500 euros), The Gift (concerto em Alcochete por 18 mil euros), Quinta do Bill (concerto na alentejana vila de Cuba por 17 mil euros), Carminho (concerto em Sernacelhe por 16 mil euros), David Fonseca (concerto em Leiria por 13.250 euros). Gisela João (concerto em Amarante por 12.500 euros), João Gil (concerto em Carnide por 12.425 euros), Ana Bacalhau (concerto em Silves por 12.000 euros), Sofia Escobar (concerto em Montalegre por 11.900 euros. em parceria com o cantor FF), Cristina Branco (concerto na Póvoa de Varzim por 11.500 euros, a que acresce outro, no valor de 10 mil euros, na Covilhã), Camané (concerto em Castro Verde por 11.000 euros) e os históricos Taxi (concerto nos Olivais por 10.500 euros, a que acresce outro, no valor de 9.250 euros, em Castelo Branco).

    round black vinyl disc on vinyl player

    Além destes espectáculos musicais, o PÁGINA UM detectou outros eventos culturais – onde se destaca uma estranha ópera para jovens escrita pelo humorista Diogo Faro, pela qual a autarquia de Palmela pagou quase 37 mil euros – e também um vasto conjunto de contratos para serviços exclusivamente de pirotecnia, isto é, fogo de artifício. Para já, são oito – Setúbal, Almada, Oeiras, Moura, Beja, Castro Verde, Cuba, Vila Viçosa – que totalizam quase 185 mil euros. Na parte da logística são, por agora, uma dezena, que chegam aos 116 mil euros.

    Assim, estando ainda a procissão no adro – ou seja, ainda haverá muitos contratos em falta no Portal Base –, a conta das comemorações apurada até hoje á noite pelo PÁGINA UM para eventos sobretudo musicais das comemorações do meio centenário da Revolução dos Cravos ultrapassa os 2,4 milhões de euros, estando apenas contabilizadas despesas de 72 municípios e de três juntas de freguesia.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Tribunal Administrativo ‘mostra’ ao Governo como fugir à transparência

    Tribunal Administrativo ‘mostra’ ao Governo como fugir à transparência

    Se um Governo quiser impedir o acesso a documentos da sua função político-administrativa tem agora um bom argumento ‘fornecido’ por um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS): basta que diga que possuem natureza política. No decurso de uma intimação do PÁGINA UM para acesso ao inquérito sobre incompatibilidades preenchido por Caleia Rodrigues antes de assumir funções de secretário de Estado da Agricultura em Fevereiro do ano passado – o único que o fez ainda durante o Governo Costa –, três desembargadores do TCAS, entre os quais um ex-inspector-geral da Administração Interna, vieram agora confirmar uma sentença de há um ano do Tribunal Administrativo de Lisboa. Para os desembargadores, aqueles inquéritos – que terão sido agora também preenchidos pelos membros do Governo Montenegro – são de natureza política, o que implica o seu imediato secretismo. Como a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, criada em 1993, se mostra ambígua sobre os documentos que não são administrativos, significa que esta tese do TCAS, a fazer jurisprudência, concede o direito a qualquer membro do Governo alegar que todos os ofícios, estudos, relatórios e pareceres têm um cunho político, evitando assim a sua divugação. E mesmo o acesso a jornalistas.


    Um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), aprovado no final do mês passado, concede, de forma indirecta, a receita para qualquer Governo, no contexto da actual Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), fugir à transparência: alegar que relatórios, inquéritos ou outras quaisquer decisões escritas ou em formato digital são documentos políticos. Esse ‘truque’ transforma-os em documentos secretos, independentemente de qualquer classificação.

    Em causa estava um processo de intimação do PÁGINA UM para o acesso aos inquéritos dos convidados a integrarem os Governos, designadamente ministros e secretários de Estado, uma prática introduzida por uma Resolução de Conselho de Ministros no início do ano passado, mas que foi apenas usada no Governo de António Costa uma única vez. Gonçalo Caleia Rodrigues, antes de assumir funções de secretário de Estado da Agricultura em 15 de Fevereiro de 2023, foi o único que preencheu o inquérito, ao qual o PÁGINA UM pedira o acesso, que foi recusado pelo Governo de António Costa. Com a entrada em funções dos novos ministros e secretários de Estado do Governo de Luís Montenegro, terão sido, eventualmente, preenchidos novos inquéritos, embora com este acórdão não seja possível sequer conseguir confirmar documentalmente a sua existência.

    a black and white photo of a black surface

    Aprovado por unanimidade, o acórdão do TCAS assinado por três desembargadores, o primeiro dos quais é Pedro Figueiredo, inspector-geral da Administração Interna entre 2015 e 2019, tendo recebido um louvor do então ministro Eduardo Cabrita aquando da sua saída daquelas funções. Os outros dois desembargadores foram Marcelo Mendonça e Carlos Araújo.

    A decisão do tribunal é muito lacónica e nem se perde sequer em grandes considerações. Ocupa pouco mais de duas páginas e confirma uma sentença de Abril do ano passado do Tribunal Administrativo de Lisboa com 10 páginas. O PÁGINA UM alegara que, embora se estivesse perante acto preparatório de uma decisão política – a posterior nomeação de governantes –, o inquérito (o documento em si) constituía o cumprimento de um requisito administrativo, emanado de uma lei, tanto mais que era preenchido por alguém que não exercia ainda funções governativas, sendo antes um pré-requisito de um cidadão para ser nomeado pelo primeiro-ministro ou por um ministro. Além disso, o PÁGINA UM salientava que, tendo a dita Resolução do Conselho de Ministros, justificado o inquérito pela “importância de assegurar a transparência e o controlo da integridade do sistema democrático”, o secretismo em redor do seu conteúdo era incongruente para esse propósito.

    Recorde-se que a Resolução do Conselho de Ministros estipula que “uma vez preenchido, o questionário [pelos candidatos a membros do Governo] tem a classificação de Nacional Secreto”, e que haverá lugar à sua destruição “caso a personalidade que o preencheu não seja nomeado membro do Governo ou no momento em que cesse funções.” A classificação especial de documentos administrativos – que são todos aqueles que caem na esfera da Administração Pública – carece, na maioria dos casos, de leis da Assembleia da República, além de que a restrição de acesso a estes inquéritos, colocando-os como “Nacional Secreto”, se mostra completamente abusiva, porque os equipara a “segredo de Estado”.

    a black and white photo of a black surface

    Contudo, de acordo com a Lei Orgânica nº 2/2014, o regime do segredo de Estado abrange somente “os documentos e as informações cujo conhecimento por pessoas não autorizadas é suscetível de pôr em risco interesses fundamentais do Estado”, sendo que esses se encontram explicitamente explanados, a saber: “interesses fundamentais do Estado os relativos à independência nacional, à unidade e à integridade do Estado ou à sua segurança interna ou externa, à preservação das instituições constitucionais, bem como os recursos afetos à defesa e à diplomacia, à salvaguarda da população em território nacional, à preservação e segurança dos recursos económicos e energéticos estratégicos e à preservação do potencial científico nacional.”

    Na mesma linha seguem também até as instruções para a segurança nacional, a salvaguarda e a defesa das matérias classificadas, designadamente as credenciações do Gabinete Nacional de Segurança, onde melhor se explicita que a classificação de Nacional Secreto abrange apenas “as informações, documentos e materiais cuja divulgação ou conhecimento por pessoas não autorizadas possa ter consequências graves para a Nação ou nações aliadas ou para qualquer organização de que Portugal faça parte”.

    Em concreto, diz-se que essa classificação de Nacional Secreto – que implica fortes restrições de acesso – só se verificam se fizerem “perigar a concretização de empreendimentos importantes para a Nação ou nações aliadas ou para organizações de que Portugal faça parte”, ou ainda se “comprometerem a segurança de planos civis e militares e de melhoramentos científicos ou técnicos de importância para o País ou seus aliados ou para organizações de que Portugal faça parte”, ou ainda se “revelarem procedimentos em curso relacionados com assuntos civis e militares de alta importância.”

    a black and white photo of a black surface

    Em todo o caso, esta justificação nem sequer seria necessária, na interpretação dos juízes e desembargadores do Tribunal Administrativo. No acórdão, que confirma a linha de uma primeira sentença, conclui-se que “o preenchimento do dito ‘questionário de apreciação prévia’ insere-se no processo de escolha dos membros do Governo, pelo Primeiro-Ministro, tal actividade é política, não administrativa e visará salvaguardar o prestígio do Governo”. E dizem ainda os desembargadores que “as restantes preocupações referidas pelo recorrente [PÁGINA UM], nomeadamente o desejo de averiguar se o Governo deu cumprimento à Resolução Fundamentada referida nos autos, não são susceptíveis de alterar o decidido, porquanto a LADA [Lei do Acesso aos Documentos Administrativos] não o permite”.

    Este acórdão abre, deste modo, uma panóplia de possibilidades a qualquer Governo em considerar político todos os pareceres, relatórios ou mesmo troca de comunicações elaborados para a posterior tomada de uma decisão ministerial ou do Conselho de Ministros, prejudicando assim a transparência tão propagandeada na teoria mas pouco evidente na prática. Aliás, ao contrário do que sucede em diversos países europeus, a legislação portuguesa na transparência nas decisões políticas é pouca.

    Nesse âmbito, a LADA é, intencionalmente ambígua, permitindo interpretações à la carte como as do acórdão do TCAS, na definição do que não é documento administrativo. Nesse diploma, cuja primeira versão tem 31 anos, salienta-se que estão excluído do acesso “as notas pessoais, esboços, apontamentos, comunicações eletrónicas pessoais e outros registos de natureza semelhante, qualquer que seja o seu suporte” – ou seja, não são, em princípios, acessivos mensagem de e-mail ou de WhatsApp –, ainda “os documentos produzidos no âmbito das relações diplomáticas do Estado português” e também “os documentos cuja elaboração não releve da atividade administrativa, designadamente aqueles referentes à reunião do Conselho de Ministros e ou à reunião de Secretários de Estado, bem como à sua preparação”.

    a black and white photo of a black surface

    Ora, este “designadamente” permite ambiguidades, porque não exclui outras actividades para além das que se referem às reuniões formais de governantes. No limite, se um qualquer governante assim desejar pode, a partir de agora, se a interpretação dos desembargadores fizer jurisprudência, alegar que todos os documentos, mesmo que aparentem ser de índole administrativa, constituem actividade política, até porque um Governo tanto administra como exerce funções políticas sendo a fronteiras entre estas funções bastante ténue ou mesmo inexistente.

    Saliente-se que o PÁGINA UM, conhecendo à partida a possibilidade de insucesso desta intimação, avançou mesmo assim para que, em caso de indeferimento – como se confirmou agora –, pelo menos ficasse patente a hipocrisia de uma medida política de evidente populismo: decretou-se um inquérito prévio, em prol da transparência, para averiguar da idoneidade de futuros governantes, mas depois publicamente fica tudo secreto. No limite, pode nem sequer haver inquéritos preenchidos. E mesmo que existam, no fim das funções dos governantes, ou se os candidatos não forem aceites, a Resolução do Conselho de Ministros determina a sua destruição. Nem para os historiadores ficam. Na verdade, existirem ou não existirem os ditos inquéritos é ‘igual ao litro’. Nem servem ‘para inglês ver’.


    As iniciativas do PÁGINA UM junto do Tribunal Administrativo são financiadas pelo FUNDO JURÍDICO, com apoios dos nossos leitores. Em situações como a desta intimação, desfavorável ao PÁGINA UM, os encargos acabam por ser maiores por ser impostas as custas. Para manter a possibilidade de continuar as iniciativas em prol de uma maior transparência administrativa e política, apoie o FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM. Neste momento, está em preparação a entrada de mais três intimações por recusa de documentação administrativa.


    PÁGINA UM – O jornalismo independoente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Secretário de Estado da Presidência ‘meteu’ empresa de media em falência técnica

    Secretário de Estado da Presidência ‘meteu’ empresa de media em falência técnica

    Nos últimos seis anos, além de gestor em empresas do sector têxtil, o vimaranense Rui Armindo Freitas, empossado ontem como secretário de Estado-adjunto e da Presidência, tem estado ligado a empresas de media. Teve mesmo de abandonar agora a administração da Media Capital, dona da TVI. Mas foi na Swipe News, dona do jornal digital ECO, que Rui Freitas pôde mostrar o seus dotes por mais tempo, integrando a administração desde 2018 e a presidência entre 2020 e Setembro de 2023. Não se pode dizer que se saiu bem: a Swipe News nunca teve qualquer ano com lucros e acumula prejuízos que deverão atingir, com as contas de 2023, os cinco milhões de euros. No seu mandato, a empresa passou mesmo a estar em falência técnica, algo que se manterá mesmo com um aumento de capital de 1,3 milhões de euros no mês passado assumido pelas três dezenas de accionistas, onde se destacam o Grupo Mota-Engil e também Mário Ferreira.


    Luís Montenegro estará a partir desta semana, se não estava antes, bastante sensível às dificuldades financeiras dos grupos de media portugueses. O novo secretário de Estado-adjunto e da Presidência, Rui Armindo Freitas tem larga experiência em empresas de media deficitárias.

    Saindo directamente da administração da Media Capital (o seu nome ainda constava ontem à noite no site da empresa liderada por Mário Ferreira), este licenciado em Economia e gestor no secter têxtil esteve também desde 2018 como vogal e desde 2020 até Setembro do ano passado como presidente da administração da Swipe News, a empresa proprietária do jornal ECO e de outras publicações online centradas em branded content, como a Capital Verde, a ECOseguros, a Fundos Europeus, a Local Online, a +M e a Trabalho by ECO.

    Rui Armindo Freitas é o novo secretário de Estado adjunto e da Presidência no ministério liderado por António Leitão Amaro.

    E o ‘melhor’ que Rui Freitas conseguiu foi durante esse triénio foi transformar uma empresa de media que nunca apresentara lucros numa empresa em falência técnica, ou seja, com capitais próprios negativos, que significa que o dinheiro metido pelos accionistas se ‘esfumou’ e quem a sustenta são os bancos ou os ‘calotes’ aos fornecedores. A situação financeira insustentável deixada pela administração presidida por Rui Armindo Freitas – substituído em Setembro do ano passado por Luís Lopes Guimarães –, obrigou os accionistas a injectarem, há duas semanas, 1,3 milhões de euros para suprir necessidades de tesouraria, através de um aumento de capital.

    Criada em 2016, a Swipe News – que lançaria o jornal Eco em meados desse ano – é um daqueles casos paradigmáticos da imprensa portuguesa que faz jus ao adágio popular: “quem nasce torto, tarda ou nunca se endireita” – neste caso aplicando-se à parte económica, ou seja, os prejuízos são a norma, que se acumulam sem que ninguém, aparentemente, questione a sustentabilidade.

    No primeiro ano completo em funcionais, no exercício de 2017 a Swipe News – que tinha Rui Freitas como vogal – apresentava-se com um capital social de 1,2 milhões de euros, mas os prejuízos desse período (mais de 800 mil euros) ‘comeram-lhe’ logo dois terços do investimento inicial dos accionistas. Resultado: em 2018 houve dois aumentos de capital, o primeiro em Abril de 250 mil euros e o segundo em Novembro de 453.750 euros.

    Jornal digital ECO nasceu em meados de 2016, sendo, desde sempre, dirigido por António Costa.

    Nesse ano, contudo, os lucros foram ‘coisa’ arredada desta empresa de media que noticiava sobretudo os sucessos empresariais dos outros. No final de 2018, por mor de resultados líquidos negativos de mais de 691 mil euros, restava como capitais próprios uns meros 91.071 euros (arredondado para cima). Ou seja, um pouco mais de 95% do investimento dos accionistas tinha-se ‘esfumado’ sem se vislumbrar indicadores de sustentabilidade, até porque os activos se cifravam então em 636 mil euros, apenas um terço do investimento.

    Em 2019, um ano antes da passagem de Rui Freitas para a presidência da Swipe News, a empresa até superou, pela primeira vez, a fasquia de um milhão de euros, mas os gastos também dispararam, acabando o ano com um prejuízo de mais de 847 mil euros. Foi esse o último ano com os capitais próprios positivos, de acordo com a informação constante no Portal da Transparência dos Media.

    No primeiro ano da pandemia, com Rui Freitas como presidente do Conselho de Administração, a Swipe News até aumentou a facturação (cerca de 1,22 milhões de euros), mas também os encargos, o que resultou num prejuízo de mais de 656 mil euros. Em resultado, todo o investimento dos accionistas se ‘esfumou’ – os capitais próprios passaram a negativos em 314 mil euros – e o passivo mais do que duplicou, passando de 486 mil euros para 1,14 milhões de euros.

    O segundo ano de presidência de Rui Freitas à frente deste grupo de media não foi melhor: em 2021, a Swipe News registou o mesmo diapasão, com um significativo aumento dos rendimentos (acima de 1,5 milhões de euros), mas com prejuízos de 456 mil euros. Deste modo, os capitais próprios negativos subiram para 893 mil euros e a dívida a terceiros superava então os 1,55 milhões de euros.

    O terceiro ano da presidência de Rui Freitas teve mais do mesmo, agravado pelos capitais próprios negativos a duplicarem, passando a 1,64 milhões de euros, fruto de mais um prejuízo, desta vez de quase 749 mil euros. Nas contas de 2022, analisadas pelo PÁGINA UM, mostra-se notório que a Swipe News ‘vive’ de sucessivas injecões de financiamento bancário sofre de uma falta de liquidez confrangedora. Só em 2022, contabilizou financiamentos externos de quase 800 mil euros, mas toda essa verba foi ‘sugada até ao tutano’ para conseguir suportar pagamentos de salários e a alguns fornecedores. Tanto assim que a caixa (contas bancárias e o ‘mealheiro’ para a redacção apresentava no final desse ano uns míseros 350 euros menos oito cêntimos.

    Tudo somado – e numa altura em que ainda não são conhecidos os resultados do ano de 2023, mas que deverão confirmar um prejuízo acima de meio milhão de euros, como tem sucedido –, a Swipe News já acumulou prejuízos de mais de 4,6 milhões de euros. Ou seja, mostra-se expectável que os capitais próprios negativos nas contas de 2023 superem largamente os 2 milhões de euros.

    Por esse motivo, o aumento de capital de 1.302.647 euros determinado no passado dia 21 de Março apenas aliviará um pouco a situação de falência técnica. E desse modo, alegremente, o ano de 2024 perspectiva-se como o quinto sucessivo em falência técnica.

    Tomada de posse dos secretários de Estado do Governo Montenegro decorreu ontem. Foto: Mário Lopes Figueiredo / Presidência da República.

    Tendo 34 accionistas individuais e empresariais – com destaque para a Mota Gestão e Participações (23,4%), a Palopique (13,0%) e a Valens Private Equitity integralmente detida pelo principal accionista da TVI, Mário Ferreira (8,2%) –, a Swipe News encontra-se assim no rol de grupos de media em fortes dificuldades financeiras, das quais se destacam a Global Media, a Trust in News, a Impresa e as rádios do universo de Luís Montez.

    Mas agora, por certo, o Governo social-democrata – que integra Rui Armindo Freitas e também o ministro Pedro Reis (que presidiu o conselho editorial do jornal Eco) e ainda a secretária de Estado da Gestão da Saúde, Cristina Vaz Tomé (que tinha entrado em Janeiro para directora financeira da Swipe News) –, se renovará o debate para eventualmente salvar com dinheiros públicos (leia-se dinheiro dos contribuintes) modelos de negócio de empresas de comunicação social com resultados económicos desastrosos.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Ministra da Saúde geriu em conta pessoal 1,3 milhões de euros dados por farmacêuticas sem pagar imposto de selo

    Ministra da Saúde geriu em conta pessoal 1,3 milhões de euros dados por farmacêuticas sem pagar imposto de selo

    Ana Paula Martins, a nova ministra da Saúde, teve um papel determinante numa campanha solidária durante a pandemia em parceria com a Ordem dos Médicos e o seu bastonário Miguel Guimarães, actual deputado do PSD, que angariou mais de 1,4 milhões de euros; destes cerca de 1,3 milhões vieram de farmacêuticas. Mas apesar das boas intenções, as irregularidades e ilegalidades marcaram a gestão dos dinheiros. Em vez de uma conta institucional, foi criada uma conta pessoal, tendo Ana Paula Martins como um dos três co-titulares, e não foi pago um imposto de selo devido de mais de 125 mil euros. Além disso, embora os pagamentos de géneros se realizassem através dessa conta pessoal, as facturas foram emitidas em nome da Ordem dos Médicos, podendo dar azo a um ‘saco azul’. Para as farmacêuticas terem benefícios fiscais, também foram promovidas centenas de falsas declarações, incluindo até de hospitais e da Associação Nacional de Farmácias e da Liga dos Bombeiros. Esta é uma investigação do PÁGINA UM iniciada ainda em 2022, e ainda não concluída; tal como não concluída parece estar uma auditoria externa prometida há dois anos.


    A nova ministra da Saúde vai entrar em funções com um ‘elefante na sala’ que muitos tentam negar a existência, apesar do seu volume. Durante a pandemia, em colaboração com a Ordem dos Médicos, Ana Paula Martins foi, enquanto bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, co-gestora de uma campanha de solidariedade que amealhou, entre outros pequenos donativos, mais de 1,3 milhões de euros da indústria farmacêuticas, mas a contrário daquilo que seria expectável, a entrada e saída de dinheiro vivo foi feita através de uma conta por si titulada, em nome pessoal, em parceria com Miguel Guimarães – antigo bastonário dos médicos e actual deputado do PSD – e Eurico Castro Alves, ex-secretário de Estado da Saúde no curto segundo mandato de Passos Coelho.

    Apesar da suposta bondade desta campanha – atribuir sobretudo material e equipamentos de protecção contra a covid-19 a instituições de solidariedade social e unidades hospitalares –, de entre as irregularidades e ilegalidades detectadas pelo PÁGINA UM – que investiga a gestão do fundo “Todos por uma causa” desde 2022, estando ainda a aguardar-se o cumprimento de uma sentença do Tribunal Administrativo por parte da Ordem dos Médicos –  incluem-se contabilidade paralela, fuga ao fisco e falsas declarações para obtenção de benefícios fiscais e facturas falsas.

    Ana Paula Martins e Miguel Guimarães foram protagonistas de uma campanha solidária cheia de irregularidades e ilegalidades (D.R./Ordem dos Médicos)

    Criada logo no início da pandemia em Portugal, a campanha “Todos por Quem Cuida” teve por base um protocolo assinado em 26 de Março de 2020 entre as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos e a Apifarma, que apresentava toda a aparência de um fundo solidário com bons propósitos, e que serviria numa primeira fase apenas para canalizar “contributos monetários (…) ou em espécie” de farmacêuticas para “o apoio à aquisição de equipamentos hospitalares, equipamentos de protecção individual e outros materiais necessários aos profissionais de saúde que se encontra[ssem] a trabalhar nas instituições de saúde”.

    Porém, no início do mês de Abril de 2020 – e também por via de um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que alargava a possibilidade de benefícios fiscais por donativos aos hospitais –, as três entidades decidiram alargar o âmbito da campanha para um “fundo solidário” público, nomeando, de acordo com os documentos consultados pelo PÁGINA UM, Manuel Luís Goucha como “embaixador da iniciativa”.

    E foi aqui que começaram as irregularidades. Ao invés da conta solidária ser assumida pelas duas ordens profissionais – ou apenas por aquela com maior protagonismo, a Ordem dos Médicos – foi decidido que a conta com o NIB 003506460001766293021, aberta no balcão da Caixa Geral de Depósitos na Portela de Sacavém seria titulada por três pessoas: José Miguel Castro Guimarães, Ana Paula Martins Silvestre Correia e Eurico Castro Alves.

    Ana Paula Martins, ontem, na tomada de posse como ministra da Saúde.

    A partir daqui as irregularidades surgiram em catadupa. Sendo que a conta não era institucional – mas sim de três pessoas, independentemente dos cargos ocupados –, o pedido de autorização ao Ministério da Administração Interna para a angariação de fundo omite o facto de que o NIB em causa não era das entidades promotoras: a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticas. Aliás, são indicadas no final do pedido duas contas que nunca foram usadas na angariação. Ou seja, os donativos em vez de segurem para uma conta institucional das entidades anunciadas como promotoras destinaram-se afinal para uma conta de três pessoas.

    Por outro lado, o pedido de autorização apenas foi feito em 27 de Julho de 2020, quando a angariação de donativos se iniciou em 6 de Abril daquele ano, ou seja, mais de três meses antes. À data do pedido de autorização ao Ministério da Administração Interna já a conta titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves tinha um saldo de 716.501,51 euros. Por lei, a angariação deve ser precedida da autorização ministerial.

    Por outro lado, nessas circunstâncias jamais se poderia aplicar a lei do mecenato ou outro tipo de benefício na obtenção de donativos, porque em termos formais estava-se perante uma recolha de donativos para uma conta de três pessoas. Nessa medida, Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves deveriam ter pago solidariamente o imposto de selo no valor de 10% de todos os donativos recebidos acima dos 500 euros.

    Pedido de autorização para angariação de donativos omite que a conta solidária não era titulada pela Ordem dos Médicos e Ordem dos Farmacêuticos.

    Ora, face aos montantes das diversas transferências da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma), todas individualmente acima dos 500 euros, a actual ministra da Saúde e os seus parceiros deveriam ter declarado à Autoridade Tributária e Aduaneira o recebimento de 1.2561.251 euros, o que implicaria o pagamento de 125.125,10 euros de imposto de selo. Na documentação consultada pelo PÁGINA UM, nomeadamente extractos bancários, não existe qualquer saída de dinheiro para esse cumprimento fiscal.

    Existiram pelo menos mais 13 transferências bem acima de 500 euros que também não terão sido declaradas às Finanças nem pago o imposto de selo, a saber: ASPAC (35.000 euros), Bial (20.000 euros), Bene (20.000 euros). Ipsen (12.000 euros), Atral (10.000 euros), Falinhas Mansas (10.000 euros), Angelini (10.000 euros), Apormed (5.000 euros), Rial Engenharia (5.000 euros), Medicina G Medeiros Marques (1.500 euros), Forex ACI (1.500 euros), Gin Lovers (1.080 euros) e Multiclínicas Far (1.000 euros).

    Contas feitas, segundo os cálculos do PÁGINA UM com base nos extractos bancários, Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves receberam 41 donativos superiores a 500 euros e deveriam ter pagado 138.333,10 euros de imposto de selo. E nunca o fizeram.

    Confirmação de que a conta solidária tinha como titulares Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, ou seja, não era uma conta institucional.

    Além desta grave falha fiscal – independentemente dos objectivos da da campanha –, os três titulares da conta solidária deveriam ter declarado no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, por serem profissionais de saúde, todos os donativos de farmacêuticas, incluindo da Apifarma, que ultrapassaram mais de 1,3 milhões de euros. Ana Paula Martins – que, depois de abandonar a liderança da Ordem dos Farmacêuticos, ainda passou vários meses na Gilead –, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves nunca fizeram essa declaração obrigatória. Saliente-se que Ana Paula Martins terá a partir de agora a tutela do Infarmed.

    Além destas irregularidades e incumprimentos fiscais, o uso da conta solidária em nome de três pessoas permitiu uma estranha e ilegal contabilidade paralela de todas as operações de aquisição, designadamente de facturação e pagamentos, dos equipamentos e materiais a serem doados.

    Na consulta à documentação contabilística da campanha “Todos por Quem Cuida”, o PÁGINA UM identificou 34 facturas no valor total de 978.167,15 euros que entraram na contabilidade da Ordem dos Médicos (pela aquisição de equipamento de protecção individual, câmaras de entubamento e ventiladores), mas sem que esta entidade tenha alguma vez feito qualquer pagamento. Na verdade, quem pagou foi a conta titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves. As facturas assumidas pela Ordem dos Médicos, mas que foram afinal pagas com a conta solidária (à margem da Ordem dos Médicos) podem ser consultadas AQUI.

    Uma das ordem de pagamento assinadas por Ana Paula Martins foi para transferir 27.365,20 euros ao Hospital das Forças Armadas como contrapartida pela disponibilização de locais e pessoal de enfermagem para vacinar, contra as regras da Direcção-Geral da Saúde, médicos considerados não-prioritários em Fevereiro de 2021, uma iniciativa pessoal de Miguel. Esta decisão, com a concordância do então coordenador da task force Gouveia e Melo, após diversas reuniões, continua a ser analisada (há mais de um ano) pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS). A factura das Forças Armadas foi, contudo, emitida em nome da Ordem dos Médicos. E a Ordem dos Médicos viria depois a emitir declaração (falsas) de recepção de donativos por parte de quatro farmacêuticas. Uma dessas falsas declarações de donativo, no valor de 3.725,20 foi passada em Março de 2022 à Gilead. Nesta altura, Ana Paula Martins – que terminara o mandato em Fevereiro na Ordem dos Farmacêuticos – já ocupava o cargo de directora dos negócios governamentais desta farmacêutica norte-americana.

    Sendo legal que um terceiro possa proceder ao pagamento de facturas de uma determinada entidade – ou seja, era legítimo que Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves usassem a sua conta solidária para saldar as compras dos géneros a doar –, essa informação teria, porém, de constar na contabilidade da Ordem dos Médicos. Como tal não sucedeu – ou pelo menos, nunca foi apresentado ao PÁGINA UM qualquer documento comprovativo –, na prática significa que a Ordem dos Médicos foi acumulando despesas – até chegar aos 978.167,15 euros – sem ter saído qualquer verba dos seus cofres.

    Esse ‘crédito informal’ criou condições, pelo menos em teoria, para se formar um ‘saco azul, ou mesmo um desvio de verbas. Para tal, bastaria que responsáveis da Ordem dos Médicos com acesso às contas oficiais fossem retirando os valores exactos das facturas que iam recebendo dos fornecedores dos bens comprados no âmbito da campanha “Todos por Quem Cuida”.

    Através da conta pessoal de que era co-titular, Ana Paula Martins assinou uma ordem de transferência bancária ao Hospital das Forças Armadas num acordo com a task force liderada por Gouveia e Melo para pagar a vacinação contra a covid-19 de médicos não-prioritários numa altura de escassez de vacinas. Mas a factura das Forças Armadas foi emitida em nome da Ordem dos Médicos.

    Vejamos um exemplo. A factura nº 551 passada pela Clotheup em 2 de Outubro de 2020 pela aquisição de batas descartáveis no valor de 110.700 euros foi emitida à Ordem dos Médicos. Tendo sido uma aquisição a pronto de pagamento, não houve saída de dinheiro da Ordem dos Médicos, porque quem a pagou foi a conta solidária de Ana Paula Martins e dos outros dois co-titulares. Ora, nesse dia, poderia ter sido “desviada” a verba de 110.700 euros da conta bancária oficial da Ordem dos Médicos, não havendo assim o mínimo sinal de qualquer desfalque, uma vez que existia uma factura a suportar essa saída. Esse expediente pode aplicar-se a qualquer outra das 31 aquisições identificadas pelo PÁGINA UM.

    Houve, porém, mais irregularidades fiscais. Apesar de todos os donativos terem tido como destinatário a conta solidária – titulada, repita-se, por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves –, as farmacêuticas quiseram aproveitar os benefícios fiscais da Lei do Mecenato, que um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais alargou, em Abril de 2020, também para os hospitais públicos.

    Nessa medida, os serviços operacionais da Ordem dos Médicos instruíram as largas dezenas de IPSS e outras entidades – que incluíram mesmo a PSP, a Liga dos Bombeiros, a Associação Nacional de Farmácias e até hospitais públicos e privados – a passarem declarações atestando que, afinal, receberam donativos em géneros das farmacêuticas, que lhe eram especificamente indicadas.

    Deste modo, um dos trabalhos (mais meticulosos) da equipa da Ordem dos Médicos, que Miguel Guimarães colocou na gestão operacional da “sua campanha”, passou por preencher intrincados “puzzles” entre os donativos em dinheiro fornecidos à conta solidária e os valores dos géneros recebidos pelas instituições. Assim, em vez das declarações de recepção dos donativos pelas diversas entidades beneficiadas serem passadas à conta solidária – em termos formais, aos três titulares da conta – ou à Ordem dos Médicos, foram encaminhadas para determinadas farmacêuticas.

    Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde, e Miguel Guimarães, actual deputado do PSD, ganharam protagonismo com a pandemia. A gestão de um ‘bolo’ de 1,4 milhões de euros numa campanha solidária, financiada sobretudo pelas farmacêuticas, deu uma ajuda.

    Logo, a título de exemplo – e é mesmo um só exemplo, porque existem largas centenas de casos, reportados e fotografados pelo PÁGINA UM durante a consulta dos dossiers contabilísticos e operacionais da campanha “Todos por Quem Cuida” –, é falsa a declaração de 23 de Março de 2021 da Liga dos Bombeiros Portugueses, bem como a competente carta de agradecimento do então presidente Jaime Marta Soares, de que foi a farmacêutica Gilead que lhes entregou 4.984 batas cirúrgicas, 1.661 litros de álcool gel, 831 máscaras cirúrgicas, 2.492 óculos reutilizáveis, 664 fatos integrais tamanho M e 664 tamanho L, e ainda 4.153 viseiras, tudo no valor de 103.400,60 euros.

    Neste caso particular – que é extensível a todas as outras farmacêuticas envolvidas nesta campanha –, a Gilead terá sim apenas entregado, através da Apifarma, um donativo de valor desconhecido, para uma campanha solidária, titulada por três pessoas. Formalmente, teriam de ser as três titulares dessa conta (Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves), e não as entidades beneficiadas com os géneros doados, a passar uma declaração de recepção desse donativo à Gilead (e às outras farmacêuticas). Porém, se assim fosse, as farmacêuticas não teriam hipóteses de usufruir de qualquer benefício fiscal, uma vez que o Estatuto do Mecenato não abrange donativos a pessoas singulares – e nem a Ordens profissionais, acrescente-se.

    Outro caso paradigmático passou-se com a Associação Nacional de Farmácias que em 10 de Fevereiro de 2021 declarou que a Merck Sharpe & Dohme lhe doou 107.574 máscaras cirúrgicas no valor total de 50.000 euros. Nada poderia ser mais falso. Aquilo que sucedeu foi a Merck Sharpe & Dohme ter doado 50.000 euros a Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves que, depois aproveitaram para usar esse dinheiro para pagar máscaras a uma empresa – que emitira uma factura à Ordem dos Médicos –, sendo esses equipamentos de protecção individual entregues então à Associação Nacional de Farmácias.

    Documento na posse da Ordem dos Médicos, consultado pelo PÁGINA UM após uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, com a lista de entidade que concederam donativos à conta solidária titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves.

    A emissão de centenas de declarações falsas – trata-se mesmo de centenas, que englobam muitas pequenas IPSS – configura até fraude fiscal, porque as entidades beneficiadas assumiram que os donativos em géneros vieram directamente de farmacêuticas, algo que não é verdade, nem as farmacêuticas conseguirão comprovar qualquer compra através de facturas. Certo é que, com este estratagema, as farmacêuticas conseguiram enquadrar os seus donativos no mecenato social – e, em casos específicos, no mecenato ao Estado – para levar a custos um valor correspondente a 130% ou 140% do valor entregue. Algo que não sucederia se tivesse sido tudo feito como sucedeu: os donativos foram entregues a três pessoas (Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves), foram feitas compras e entregues os géneros às IPSS, associações e unidades hospitalares.

    Assim, com este esquema falso as farmacêuticas terão conseguido declarações num montante total de cerca de 1,3 milhões de euros, e terão acabado por assumir, em termos contabilísticos, custos da ordem dos 1,82 milhões de euros, Em conclusão, este expediente – a utilização abusiva de um benefício fiscal – terá lesado o Estado, segundo estimativas do PÁGINA UM, em cerca de 145 mil euros. Note-se que este esquema, profundamente à margem da lei, envolveu também hospitais públicos, conforme o PÁGINA UM revelou detalhadamente no final de 2022.

    Apesar da logística desta campanha ter sido protagonizada sobretudo pela Ordem dos Médicos, e pelo então seu bastonário Miguel Guimarães, a actual ministra teve um papel bastante activo, e não apenas como co-titular da conta. Ana Paula Martins procedeu a várias ordens de pagamento de géneros – cujas facturas foram encaminhadas para a Ordem dos Médicos – e também participou em diversas reuniões específicas da campanha. De acordo com as actas consultadas pelo PÁGINA UM, a actual ministra da Saúde participou em pelo menos oito reuniões da comissão de acompanhamento entre 11 Maio de 2020 e 5 de Maio de 2021. Mesmo depois da sua saída da liderança da Ordem dos Farmacêuticos em Fevereiro de 2022, manteve-se como titular da polémica conta solidária.

    Além de ser co-titular e co-gestora da conta solidária, e autorizar transferências de dinheiro para pagamento de facturas que, afinal, eram emitidas à Ordem dos Médicos, Ana Paula Martins acompanhou pelo menos durante um anos as operações logísticas da campanha ‘Todos por Quem Cuida’.

    Aquando da primeira notícia desta investigação do PÁGINA UM, em Dezembro de 2022 – após uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa que obrigou as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos a disponibilizar os documentos integrais da campanha solidária –, Ana Paula Martins não responder a um conjunto de 11 perguntas a si dirigidas, optando por uma resposta conjunta com Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves através de advogada.

    Nessa resposta são omissas quaisquer justificações para a não abertura de uma conta institucional nem qualquer argumento para o não-pagamento de impostos de selo nem sobre as declarações falsas nem sobre as facturas assumidas pela Ordem dos Médicos quando não foi esta a entidade que pagou os géneros.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Governo Costa condiciona Governo Montenegro com 20 resoluções de ‘última hora’

    Governo Costa condiciona Governo Montenegro com 20 resoluções de ‘última hora’

    Luís Montenegro ganhou as eleições legislativas e já formou Governo. Mas, antes disso, António Costa teve uma derradeira palavra a dizer e resolveu ‘queimar os últimos cartuchos’ sob a forma de 20 Resoluções de Conselho de Ministros (RCM) nos dias 21 e 24, que ontem foram publicados em Diário da República. Não foi coisa pouca: envolvem um volume de despesas públicas da ordem dos 1,7 mil milhões de euros. Segundo um levantamento do PÁGINA UM, de entre as duas dezenas de RCM – que se tornaram uma forma corriqueira de governar por parte de António Costa –, 12 constituem autorizações para realização de despesa em institutos, empresas públicas e também universidades, sendo que as restantes são reprogramações, embora em grande parte dos casos com definição em concreto de gastos acrescidos e das entidades beneficiadas. Como o próximo Governo de Luís Montenegro não terá a mesma facilidade do de António Costa em gerir a ‘máquina de despesa do Estado’ com simples RCM – por não ter maioria parlamentar –, a ‘impressão digital’ do Partido Socialista vai, assim, manter-se em muitos sectores nos próximos anos.


    Foi uma semana bastante produtiva a última em acção do Governo socialista cessante. Em quatro dias somente António Costa compôs, entre outros diplomas, um total de 21 Resoluções de Conselho de Ministros, praticamente todos com forte impacte financeiro e, em muitos casos, até condicionando da acção do novo Governo de Luís Montenegro, porque têm incidência em programas plurianuais. A sofreguidão do Governo Costa foi tal que alguns dos diplomas saíram de um Conselho de Ministros extraordinário em regime electrónico no passado domingo.

    Tamanho afã governamental, levaram mesmo os serviços da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, que produzem o Diário da República, a trabalho redobrado. Uma parte das Resoluções de Conselho de Ministros tiveram de passar para dois suplementos da 1ª série da ‘edição’ de ontem. O ‘tomo’ principal ficou cm 93 páginas, enquanto um dos suplementos ocupou 27 páginas e o outro mais 51, embora neste caso quase todo ocupado por uma portaria que estabeleceu as normas do regime de incentivo à produção cinematográfica e audiovisual.

    António Costa e Luís Montenegro.
    (Foto: D.R./ Foto oficial de António Costa)

    De acordo com o levantamento do PÁGINA UM, de entre as 20 Resolução com impacte financeiro e até orçamental, 12 constituem autorizações de realização de despesa por parte de institutos e empresas públicas e também universidades, sendo que as restantes são reprogramações, embora em grande parte dos casos também com definição em concreto de gastos acrescidos e das entidades beneficiadas.

    Embora com alguma (pequena) margem de erro, porque algumas reprogramações podem não ter um impacte financeiro por se tratar de reajustamentos plurianuais, as derradeiras medidas do Governo Costa ‘mexem’ num impressionante montante: mais de 1,7 mil milhões de euros. E como o próximo Governo de Luís Montenegro não terá a mesma facilidade do de António Costa em gerir a ‘máquina de despesa do Estado’ com simples Resoluções de Conselho de Ministros – por não ter maioria parlamentar –, a ‘impressão digital’ do Partido Socialista vai manter-se em muitos sectores nos próximos anos.

    Dois dos sectores onde tal será mais evidente são os investimentos na ferrovia e na habitação. O novo ministro das Infraestruturas e Habitação, Miguel Pinto Luz, estará ‘agarrado’ a três decisões do Governo de António Costa sobre a afectação de verbas específicas do Fundo Ambiental e do Orçamento do Estado para o Plano de Investimento em Material Circulante por parte da CP.

    (Foto: D.R./Foto oficial de António Costa)

    Um dos diplomas concede, desde já, autorização à empresa pública para proceder á repartição de encargos plurianuais, até 2032, num montante total de cerca de 746 milhões de euros. Por exemplo, para o Orçamento do Estado do próximo ano, o Governo de Luís Montenegro será já obrigado a incluir uma verba específica de 50 milhões de euros para dar cumprimento a esta Resolução.

    Também é o Governo de António Costa que, em ‘fim de festa’ determinou a repartição em concreto das verbas que o Fundo Ambiental, que será tutelado pela nova ministra Maria da Graça Carvalho, deverá entregar à CP. A título de exemplo, este ano serão 78,5 milhões de euros e no próximo mais 82,6 milhões.

    Ainda no sector dos transportes, mas neste caso em benefício do Metropolitano de Lisboa, foi também António Costa – que, desde Novembro acumulava a tutela das Infraestruturas – que decidiu já as compensações financeiras anuais a atribuir até 2030 pelo Estado no âmbito das obrigações de serviço público. Por ordem do Governo socialista, o Governo da Aliança Democrática terá de entregar este ano ao Metropolitano de Lisboa um total de 4.259.786 euros, e se continuar a durar em 2025 serão mais cerca de 18,3 milhões de euros. Nos próximos sete anos, a Resolução de Conselho de Ministros de 21 de Março, apenas assinada por Mariana Vieira da Silva, fixou pagamentos à empresa pública de 73,7 milhões de euros.

    (Foto: PÁGINA UM)

    No caso do sector da habitação, Miguel Pinto Luz vai, em termos práticos, ser obrigado a cumprir a estratégia do Governo socialista. A Resolução de Conselho de Ministros autorizou o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) a realizar a despesa e a assumir os encargos plurianuais de mais 390,5 milhões de euros no âmbito da contratualização do Programa de Apoio ao Acesso à Habitação, e que visa, em princípio, a construção das 26 mil habitações. Para 2025 e 2026, Luís Montenegro terá de garantir 190,25 milhões de euros em cada um destes anos para este programa habitacional, assim o determinou António Costa nos seus últimos dias como primeiro-ministro.

    Acresce ainda, no sector da habitação, mas neste caso para residências de estudantes universitários, duas autorizações de despesa concedidas à Construções Públicas (ex-Parque Escolar).  A primeira para se gastar quase 17 milhões de euros num edifício na lisboeta Avenida 5 de Outubtro. A segunda para se gastar um pouco menos de 6,6 milhões de euros na reabilitação de um edifício em Seia. Os prédios pertencias ao Subfundo ImoResidências, da Estamo, dissolvido recentemente.

    O sector da Saúde também teve decisões de última hora por parte do Governo Costa. Além da confirmação de mais compras de vacinas contra a covid-19 até 2026, no valor de 210 milhões de euros – que terão, em grande parte, o lixo como destino, por ser já escassa a procura face aos compromissos assumidos pela Comissão Europeia –, houve muitas decisões para obras em hospitais.

    A última reunião de Conselho de Ministros ordinária do anterior Governo contou a presença do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. (Foto: D.R./Foto oficial de António Costa)

    No caso da reprogramação dos encargos plurianuais do Programa de Investimentos na Área da Saúde, foram incluídas autorizações de despesas para o alargamento e remodelação das instalações da urgência polivalente da Unidade Local de Saúde de Viseu Dão-Lafões (8,06 milhões de euros), aquisição de acelerador linear para o Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro (4,9 milhões de euros), a requalificação das instalações do Hospital de Conde de São Bento, em Santo Tirso (6,45 milhões de euros), o projeto de eficiência energética no Centro Hospitalar do Baixo Vouga (2,41 milhões de euros), a construção de uma central térmica no Hospital de Santa Maria (8,95 milhões de euros), a reabilitação dos sistemas energéticos do Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro (4,26 milhões de euros) e a requalificação do edifício de cirurgia do Instituto Português de Oncologia de Coimbra (38,3 milhões de euros).

    Ainda no sector hospitalar, o Governo Costa aprovou a realização, ainda para este ano, de gastos por parte da Administração Central do Sistema de Saúde no valor de cerca de 16,1 milhões de euros, no quadro de um acordo de prestação de cuidados de saúde com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa em duas unidades de saúde: o centro de reabilitação de Alcoitão e o Hospital Ortopédico de Sant’Ana.

    Por fim, ainda houve mais três Resoluções relacionadas com a logística e aquisição de fármacos, um dos quais a próxima ministra da Saúde, Ana Paula Martins, até ‘agradecerá’ por não ser ela a tomar. Trata-se de uma aquisição de compra, ao longo deste ano, de cerca de 1,6 milhões de euros do polémico antiviral remdevisir, para tratamento da covid-19, que é comercializado sob a marca Veklury, pela Gilead. Ana Paula Martins foi um quadro de topo desta farmacêutica entre Fevereiro de 2022 e Janeiro de 2023. Nesta Resolução integra-se também a compra de outros “medicamentos contra a covid-19” não especificados, mas feito no âmbito de acordos celebrados, e mantidos em segredo, que atingiram os 22,7 milhões de euros desde 2022.

    Ana Paula Martins (Foto: Captura a partir de vídeo da AR-TV)

    No sector da segurança, o Governo de António Costa já ‘avançou’ com o trabalho da nova ministra da Administração Interna, Margarida Blasco já não se terá de preocupar demasiado com a aquisição de serviços de suporte à Rede Nacional de Segurança Interna. Ou, pelo menos, ficará a saber que o Governo socialista determinou já vai tudo vai ficar em cerca de 63 milhões de euros, sendo que este ano se gastará apenas 5,2 milhões de euros, mas depois 12,8 milhões de euros em cada ano do quadriénio 2025-2028, terminando em 2029 com um gasto final de 6,4 milhões de euros.

    Além de autorizações para gastos em campanhas de sensibilização na área dos resíduos – onde o Governo Costa determinou ‘autorizar’ que o Governo Montenegro venha a gastar cerca de 10,7 milhões de euros, através do Fundo Ambiental e da Agência Portuguesa do Ambiente – e de autorizações para a aquisição de computadores por escolas e de aquisição de serviços de gestão do centro de contacto do Instituto de Segurança Social, houve também lugar, nesta recta final do Governo socialista, em garantir despesa para obras em duas universidades.

    Para uma residência de estudantes, a Universidade de Lisboa obteve autorização para avançar com uma empreitada de 6 milhões de euros, cujas obras deverão estar concluídas no próximo ano.

    Já a Universidade de Coimbra recebeu duas benesses na recta final do Governo socialista: a primeira para avançar com a empreitada de edificação da nova biblioteca da Faculdade de Direito, no valor de 28,1 milhões de euros; e a segunda para reprogramar a despesa de outra empreitada, dessa vez de quase 22,3 milhões de euros, no decurso da construção do Centro de Excelência em Investigação do Envelhecimento.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Vacinas: Governo cessante autoriza despesa de 210 milhões de euros em mais doses que acabarão no lixo

    Vacinas: Governo cessante autoriza despesa de 210 milhões de euros em mais doses que acabarão no lixo

    Antes de sair, António Costa manteve as ordens recebidas de Bruxelas, através de uma Resolução de Conselho de Ministros de última hora publicada hoje em Diário da República: Portugal vai continuar a comprar vacinas contra a covid-19 como se estivéssemos no auge da pandemia. Este ano ficou garantida uma despesa de 103,3 milhões de euros, mantendo prevista a compra de mais 107 milhões de euros em 2025 e 2026. Desde Outubro do ano passado, já só foram administradas menos de dois milhões de doses, e se se mantiver o ritmo dos reforços até ao Inverno de 2026-2027, o desperdício financeiro (em benefício das farmacêuticas) atingirá os 550 milhões de euros, porque haverá cerca de 35 milhões de doses literalmente deitadas ao lixo por perda de validade. Quando a covid-19 deixou de ser um problema de Saúde Pública – este mês representa 0,17% das mortes –, e sabendo-se que há 1,7 milhões de cidadãos sem médico de família, esta estratégia mostra os paradoxos das políticas de Saúde Pública em Portugal.


    Preso pelos acordos secretos da Comissão von der Leyen com as farmacêuticas, o Governo cessante de António Costa decidiu no domingo passado, em Conselho de Ministros extraordinário, reprogramar as despesas pelas compras de vacinas contra a covid-19, autorizando para o ano de 2024 gastos da ordem dos 103,3 milhões de euros. Uma parte desta verba será para suportar encargos feitos no ano passado, mas apenas a serem pagos agora por causa de alegados atrasos de visto no Tribunal de Contas.

    Com a reprogramação desta despesa – a que acrescerão mais quase 107 milhões de euros em 2025 e 2026 –, confirma-se um desastre financeiro e de Saúde Pública: num país com mais de 1,6 milhões de cidadãos sem médico de família, vai continuar a haver dinheiro para comprar doses de vacinas contra a covid-19 que serão enviadas literalmente para o lixo, face à cada vez mais diminuta procura. Com efeito, estando a covid-19 endémica e com uma baixíssima mortalidade – este ano causou 197 óbitos, representando 0,6% dos óbitos totais, mas este mês de Março encontra-se abaixo dos 0,2% –, a procura tem sido bastante baixa.

    De acordo com os dados da Direcção-Geral da Saúde, entre Outubro do ano passado e o domingo passado, 24 de Março, foram administradas um total de 1.990.226 doses de reforço. Considerando o preço médio unitário de 15,5 euros, indicado num relatório do Tribunal de Contas, a despesa total terá ascendido a 30,8 milhões de euros, caso não existissem compromissos assumidos pela Comissão von der Leyen com a concordância dos diversos Governos da União Europeia de se comprar mais do que o necessário.

    people collecting trash in garbage truck
    Vacinas desperdiçadas: não serão enviadas para o lixo urbano, obviamente, mas serão inutilizadas cerca de metade das doses que serão adquiridas por Portugal desde 2020 até 2026.

    O Tribunal de Contas, num relatório de Setembro do ano passado, já apontava para um elevado desperdício financeiro pela inutilização de doses não administradas. O valor provisório então indicado, referente ao final de Dezembro de 2022, era de um desperdício de 3,5 milhões de doses com um valor de 54,5 milhões de euros. Porém, esse montante pecava já por defeito.

    Uma análise do PÁGINA UM, com base em informação oficial, mostrava que apesar de Portugal ter encomendado 61.19.803 doses de vacinas até 2022 somente tinha administrado, até então, 28.200.460 doses, considerando os dados do European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC). Ou seja, como a partir dessa altura até agora acresceram cerca de dois milhões de doses, administradas, chega-se a um desperdício de mais de 40 milhões de doses.

    Mas entretanto, ainda se comprou muitas mais doses, e mais se comprarão, atendendo à cativação das verbas desde 2020 pelo Governo de António Costa. Apesar de os contratos celebrados pela DGS continuarem escondidos – o PÁGINA UM tem um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa que corre há quase 15 meses, embora seja considerado urgente –, fica-se a saber, através de sucessivas Resoluções de Conselho de Ministros quanto se gastou e se continuará a gastar em vacinas contra a covid-19 até, pelo menos, 2026.

    person holding white plastic bottle

    A primeira compra foi autorizada em 20 de Agosto de 2020, antes mesmo da aprovação das vacinas. Montante: 20 milhões de euros. Ainda nesse ano, em 17 de Dezembro, em vésperas da administração da primeira dose, o Governo de António Costa autorizou, para o ano seguinte, a realização de despesas de aquisição de vacinas e de logística no total de 195,5 milhões de euros.

    Menos de cinco meses depois, em 6 de Maio de 2021, uma nova autorização para realização de despesa adicional: mais 241.537.472 euros. Em 23 de Dezembro desse ano, autorizou-se mais compras de vacinas contra a covid-19 para 2022: e assim se concedeu liberdade para se gastar mais 291,4 milhões de euros. Mas não acabou por aí: em 17 de Novembro de 2022, o Governo Costa autorizou mais compras no valor de quase 70,6 milhões de euros. E menos de um mês depois, em 15 de Dezembro, ainda se adicionou mais uma autorização no valor máximo de mais de 57,8 milhões de euros.

    Nesta lógica de dividir uma factura cada vez mais crescente, em 7 de Setembro do ano passado, o Conselho de Ministros determinou que em 2023, apesar de a covid-19 deixar de ser uma preocupação pública relevante, se gastariam ainda mais 65,4 milhões de euros em 2023, mais cerca de 50 milhões de euros em 2024, mais 53,5 milhões de euros em 2025 e outro tanto em 2026.

    A decisão do passada domingo de um Governo em gestão altera os montantes de 2023 e 2024 – sem afectar a despesa previamente definida, e assegura a despesa pré-determinada para os anos de 2025 e 2026 – mostra sobretudo que Portugal, tal como os outros parcerias comunitários, está completamente preso aos negócios secretos assumidos secretamente por Ursula von der Leyen.

    António Costa e Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, que negociou contratos secretos com as farmacêuticas que resultarão seguramente, apenas em Portugal, no desperdício de 35 milhões de doses e quase 550 milhões de euros

    Somando toda a despesa feita e assumida desde 2020 pelo Governo português, Portugal deverá assumir encargos de 1,1 mil milhões de euros associadas à compra e armazenamento de vacinas contra a covid-19, dos quais 210 milhões de euros entre 2024 e 2026. Se o preço unitário rondar os 15,5 euros por dose, o valor indicado pelo Tribunal de Contas, então estará garantida a compra de quase 71 milhões doses.

    Contudo, contabilizando as doses já administradas (cerca de 30 milhões) e se o processo de reforço nos Invernos de 2024-2025, 2025-2026 e 2026-2027 for similar ao do mais recente, o nosso país apenas administrará 36 milhões de doses, o que significará que desperdiçará praticamente metade das doses adquiridas. Contas feitas, o processo de aquisição sob a batuta da Comissão Europeia entregará cerca de 550 milhões de euros aos cofres das farmacêuticas beneficiadas sem qualquer préstimo, uma vez que aproximadamente 35 milhões de doses serão deitadas para o lixo por nem sequer haver quem as queira receber de borla.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Câmara de Cascais pagou 233 mil euros em almoços numa única factura, em tempo recorde, sem discriminação nem guias de entrega

    Câmara de Cascais pagou 233 mil euros em almoços numa única factura, em tempo recorde, sem discriminação nem guias de entrega

    A Câmara Municipal de Cascais aceitou pagar, em tempo recorde, uma factura de cerca de 233 mil euros de uma empresa fornecedora de refeições para refugiados ucranianos numa altura em que os seus centros estavam quase vazios. Ainda mais estranho, e contrariando mesmo o caderno de encargos, a autarquia liderada pelo social democrata Carlos Carreiras fez a transferência ainda durante a vigência do contrato, que decorreu desde 26 de Setembro do ano passado e o dia a seguir ao mais recente Natal, sem sequer se apurar o número de refeições supostamente distribuídas. A autarquia quer agora, num processo de intimação protagonizado pelo PÁGINA UM no Tribunal Administrativo de Sintra, que o caso seja encerrado sem sequer explicar os motivos para não se revelarem guias de remessa e de recepção das refeições. Um caso que, na verdade, merecia mais ser tratado num tribunal penal do que administrativo, até porque em outro estranho ajuste directo com preços hiperinflacionados, envolvendo o Modelo Continente, a Câmara Municipal de Cascais – que fez contratos para apoio aos refugiados da Ucrânia de quase dois milhões de euros – diz que, afinal, não comprou nada à cadeia de supermercados. Mas diz isto sem apresentar provas, e apenas depois de ter sido obrigada pelo Trbunal Administrativo de Sintra a pronunciar-se.


    Um contrato com um preço estimado de 250 mil euros para fornecimento de alimentação ao centro de refugiados da Ucrânia em Cascais foi facturado quase na íntegra à autarquia apenas dois dias após o ajuste directo e o pagamento concretizou-se ainda no prazo de vigência, sem sequer especificar sequer número de refeições entregues. Esta situação ocorreu num momento em que os centros de refugiados naquele município estavam já com um número reduzido de ucranianos, segundo apurou o PÁGINA UM, e existem fortes suspeitas de não terem sido entregues grande parte das refeições, apesar do pagamento feito. A autarquia de Cascais sempre recusou divulgar ao PÁGINA UM elementos sobre os refugiados que apoiou desde a invasão da Rússia à Ucrânia.

    A factura deste contrato – o terceiro em cerca de dois anos, para o mesmo fim – foi enviada pela ICA – Indústria e Comércio Alimentar em 28 de Setembro do ano passado à Câmara Municipal de Cascais, com um valor total de 232.799,69 euros, mas sem explicitar o número de refeições nem a sua tipologia nem o número de beneficiários nem as condições de entrega. Na referida factura surge apenas a referência “Serviço Refeição – Almoços aos Refugiados” com a quantidade de “1 UN” [uma unidade], com um “Preço Unitário” de 189.268,04 euros, a que acresceu IVA a 23%. Se foram apenas almoços a serem fornecidos, e se se estipulasse um preço unitário de 10 euros, estaríamos perante mais de 23.000 refeições, o que, distribuídas pelo prazo do contrato, daria quase 260 refeições por dia.

    Carlos Carreiras, presidente da Câmara Municipal de Cascais. É possível pagar facturas de 233 mil euros com indicação de 1 unidade? Em Cascais, sim.

    Como revelou o PÁGINA UM, em Setembro do ano passado, este terceiro ajuste directo à empresa ICA estabelecia “a prestação de serviços de fornecimento de refeições conforme as necessidades até ao valor contratual máximo de 250.000,00 euros, pelo período estimado de 3 meses”, que incluía o “fornecimento diário até 4 refeições completas (pequeno-almoço, almoço, lanche e jantar)” com entregas “nos centros de acolhimento a refugiados”, cujas “localizações e quantidades” deveriam ser acordadas com “o gestor do contrato”.

    Porém, ao longo do ano passado, a autarquia liderada por Carlos Carreiras – que foi de longe a entidade pública que despendeu mais dinheiros públicos alegadamente para apoio aos ucranianos após a invasão pela Rússia – nunca mostrou disponibilidade para facultar acesso ao PÁGINA UM aos centros de refugiados nem aos registos das pessoas apoiadas, obrigando assim à instauração de um processo de intimação no Tribunal Administrativo.

    Foi no decurso deste processo no Tribunal Administrativo de Sintra que o município de Cascais acabou por enviar cópia da factura, bem como a ordem de pagamento emitida em 7 de Novembro do ano passado, ou seja, a autarquia até pagou antes do fim do contrato, incumprindo, logo aqui, o caderno de encargos que a impedia de conceder adiantamentos.

    Factura da empresa ICA emitida em 28 de Setembro de 2023, dois dias após o ajuste directo e quando ainda faltavam 89 dias para o fim da vigência do contrato. Não consta a discriminação das refeições a entregar. Ver AQUI a cópia da factura(em melhor qualidade) e a ordem de pagamento.

    Mas o mais suspeito neste estranho contrato de alimentação está relacionado com a assumpção, agora, por parte da própria Câmara Municipal de Cascais, junto do Tribunal Administrativo de Sintra, de que não existirão quaisquer documentos que comprovem o número de refeições efectivamente entregues em cada um dos 91 dias do contrato.

    Relembre-se que numa reportagem do Diário de Notícias em Fevereiro do ano passado , Carlos Carreiras dizia que nos dois centros de acolhimento em Cascais, então existentes, estavam “apenas 132 cidadãos” ucranianos, acrescentando que se esperava que até ao final de Março esse número fosse “cerca de metade e que até Maio/ Junho já todos [tivessem] encontrado soluções”. Ou seja, perante a postura da Câmara de Cascais ignora-se quem comeu, e sobretudo quantas pessoas comeram, refeições no valor de 232.799,69 euros supostamente entregues pela ICA entre 26 de Setembro e 26 de Dezembro de 2023. E ignora-se sobretudo quem entregou e quem recebeu, porque a autarquia não quer revelar guias de remessa e de recepção, e quer mesmo que o Tribunal Administrativo de Sintra não a obriga a revelar dando por encerrada a lide com a simples entrega de uma factura e de uma ordem de pagamento.

    Ora, não é nada expectável – pelo contrário, a sua falta configura ilegalidades graves – que os serviços associados a uma facturação de um valor tão elevado, que se desenvolvia ao longo de 91 dias, se tenham feito sem qualquer requisição, sem qualquer guia de recepção, sem qualquer outra comunicação entre adjudicante e adjudicatária.

    Repasto em Junho do ano passado em Cascais aquando da visita do presidente da autarquia russa de Irpin a um dos centros de acolhimento de refugiados, mas onde estiveram a almoçar muitos portugueses. O contrato suspeito com a ICA foi celebrado em Setembro de 2023.

    Acresce também que a emissão da factura apenas dois dias após a celebração do contrato, e com o pagamento a ocorrer em 7 de Novembro, consubstancia uma irregularidade contratual, uma vez que na cláusula 13ª do Caderno de Encargos refere-se que “os pagamentos são efectuados no prazo de 60 dias após a entrega das respectivas facturas, as quais só podem ser emitidas após o vencimento das obrigações a que se referem, devendo conter a menção do número de compromisso e do número de requisição externa […].” Mais se adiantava, que “podem ser propostos pagamentos parcelares, não havendo, contudo, lugar a adiantamentos […]”, conforme é reiterado na cláusula 14ª.

    Para além de terem sido feitos pagamentos claramente antecipados – a transferência foi realizada pelo município 20 dias antes da data de vencimento da factura –, ignora-se nos documentos entregues entretanto  pela autarquia de Carlos Carreiras qual o motivo para o valor final ter sido de 189.268,04 euros sem IVA (232.799,69 euros com IVA) – e não de 250.000 euros sem IVA estabelecido em contrato – e quantas refeições afinal foram contratadas, uma vez que supostamente não existem documentos onde se indique o número total de refeições, a sua tipologia e o preço unitário.

    Na intimação junto do Tribunal Administrativo de Sintra, o PÁGINA UM tinha requerido que a Câmara Municipal de Cascais entregasse, entre outros elementos, a totalidade dos documentos que comprovassem a execução diária do fornecimento de refeições, com o número (em cada dia) de refeições (por tipologia) e o custo respectivo.

    Quanto ao ajuste directo para a compra de diversos produtos alimentares e não-alimentares ao Modelo Continente no valor de 166.124,88 (sem IVA) para a entrega em períodos mensais, durante um ano – a acabar em Junho próximo –, de cerca de uma centena de produtos, a autarquia de Cascais diz que, afinal, não comprou nada. O ‘problema’ deste contrato estava sobretudo no facto de as quantidades constantes no caderno de encargos, aos preços unitários então praticados pelos supermercados do Grupo Sonae, totalizarem pouco mais de 14 mil euros. Ou seja, o valor dos bens previstos no contrato era mais de 10 vezes superior ao valor de mercado desses produtos, havendo uma diferença de mais de 160 mil euros, se se considerar o IVA.

    green wheat field under blue sky during daytime
    Autarquia de Cascais celebrou contratos públicos de quase dois milhões de euros para apoio aos refugiados da Ucrânia, destacando-se entre as entidades públicas portuguesas. Mas, no momento de mostrar ‘contas’, fechou-se em copas.

    Somente com a intimação junto do Tribunal Administrativo de Sintra, a autarquia de Cascais veio agora revelar que este estranho contrato, denunciado em Outubro passado pelo PÁGINA UM,  afinal terá ficado “em águas de bacalhau”. Ao Tribunal Administrativo de Sintra, a autarquia diz que “até à presente data não foi efectuada qualquer encomenda àquela entidade [Modelo Continente] e por conseguinte não foi emitida qualquer guia de remessa, não foram emitidas quaisquer determinações ou comunicações por parte do gestor do contrato, não foram emitidas facturas por parte daquela empresa, nem existem ordens de pagamento no âmbito do referido contrato”. Informações que que, perante o histórico e comportamento da edilidade liderada por Carlos Carreiras, deveria necessitar de uma confirmação por parte de um entidade judicial com capacidades de investigação para aferir da sua veracidade.

    Recorde-se que, desde Junho de 2022, o PÁGINA UM tem-se debruçado nos estranhos contratos da autarquia de Cascais em em redor do apoio aos refugiados ucranianos, que chagaram quase aos dois milhões de euros (com IVA), e mesmo com a intervenção do Tribunal Administrativo tem feito finca-pé para manter o obscurantismo e evitar que se afira a legalidade dos seus procedimentos. A sentença deste processo ainda não foi declarada, estando o PÁGINA UM em fase de resposta jurídica aos argumentos da autarquia de Cascais durante a presente semana. Este é um dos 20 processos de intimação do PÁGINA UM para a obtenção de documentos administrativos financiados pelos leitores através do FUNDO JURÍDICO.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Ivermectina: Acordo judicial obriga autoridade do medicamento dos Estados Unidos a ‘tirar o cavalinho da… Internet’

    Ivermectina: Acordo judicial obriga autoridade do medicamento dos Estados Unidos a ‘tirar o cavalinho da… Internet’

    Numa das campanhas mediáticas ‘mais sujas’ contra um fármaco comercialmente pouco interessante para a Big Pharma, por já não ter patente, a ivermectina chegou a ser apodada como um mero desparasitante para cavalos ou vacas durante a pandemia da covid-19, quando alguns resultados se mostravam auspiciosos. A Food & Drug Administration ‘ajudou ao festim’ com um comunicado e posts nas redes sociais em que apelava de forma sensacionalista ao não uso de fórmulas veterinárias, sem relevar o potencial interesse na prescrição por médicos de fórmulas humanas. Numa acção judicial intentada por três médicos, a FDA acabou esta semana por aceitar eliminar o comunicado e todos os textos nas redes sociais, entre os quais um que se intitulava “Tu não és um cavalo. Tu não és uma vaca. A sério, pessoal. Parem de tomar ivermictina para a covid.” A autoridade norte-americana do medicamento tem agora um prazo de três semanas para “tirar o cavalinho da chuva”; neste caso, os seus polémicos conteúdos da Internet.


    Em situações normais, um fármaco demora anos a fio, por vezes diversas décadas, até estabelecer um consenso entre os investigadores, e as decisões das autoridades do medicamento em manter ou não a sua comercialização depende de um contínuo avolumar de ensaios clínicos e de acompanhamento da sua aplicação pelos médicos em doentes reais.

    Mas durante a pandemia, esse ‘circuito natural’ da Ciência foi modificadode forma drástica. Enquanto novos fármacos foram rapidamente aprovados e quase ‘endeusados’, resultando em negócios chorudos – como sucedeu com o remdesivir, o Paxlovid e molnupiravir, este último já retirado do mercado, por ser ineficaz e até promover mutações do SARS-CoV-2 –, outros foram metidos foram difamados em três tempos, mesmo se vários médicos os foram prescrevendo quase às escondidas, temendo represálias.

    People Wearing DIY Masks

    O caso mais conhecido sucedeu com a ivermectina, que, até ao início de 2020, era um dos fármacos mundiais mais amado pela Organização Mundial de Saúde, elogiada por médicos e investigadores. Os louvores vinham de todos os lados, sobretudo da comunidade de farmacologia, e logo no título de artigos científicos, que a consideravam uma wonder drug, um fármaco maravilhoso, ao lado da penicilina e da aspirina.

    Entre 1990 e 2019, o Google Scholar contabiliza cerca de 16.400 artigos sobre a ivermectina. Nenhum a maldiz. Pudera: o seu descobridor, o japonês Satoshi Omura e o irlandês William Campbell – que a “purificou” – foram galardoados com o Prémio Nobel da Medicina em 2015, pelas maravilhas produzidas por este “milagre da terra”.

    Mas, no decurso da pandemia, quando vários médicos começaram a testar diversos fármacos já existentes para outras doenças, a ivermectina foi estranhamente amaldiçoada, e metida no mesmo ‘saco’ da cloroquina e da hidrocloroquina.

    Apesar de vários médicos a nível mundial continuarem, durante os anos da pandemia, a prescreverem a ivermectina – e em alguns países, como no Peru, chegou-se a usar de forma preventiva, embora fosse depois abandonada, com efeitos que não foram os melhores –, muitas autoridades e ‘peritos’ associados a farmacêuticas montaram, com o apoio da imprensa mainstream, uma das mais eficazes campanha de difamação de um fármaco.

    white house carrying a wheeled box close-up photography

    Um dos eventos mais relevantes sucedeu em Agosto de 2021, quando a Food & Drug Administration decidiu lançar um comunicado para recomendar que não fosse feita auto-medicação com ivermectina, sobretudo através de fórmulas usadas para tratamento veterinário.

    A autoridade norte-americana destacava o “interesse crescente num medicamento chamado ivermectina para a prevenção ou tratamento da covid-19 em humanos”, referindo que, além de “certas formulações para animais”, e acrescentava que, no caso de uso humano, “os comprimidos de ivermectina são aprovados em doses muito específicas para tratar alguns vermes parasitas, e existem formulações tópicas (na pele) para piolhos e doenças de pele como rosácea”. E a FDA alertava que tinha recebido “vários relatos de pacientes que necessitaram de cuidados médicos, incluindo hospitalização, após automedicação com ivermectina destinada a gado”.

    Salientando então não haver ainda conclusões sobre a eficácia do fármaco, a FDA fazia recomendações sobre os perigoso de tomar “grandes doses de ivermectina”, remetendo para a necessidade de ser um médico a prescrever uma receita, se assim fosse por ele determinado, e a toma ser “exactamente como prescrito”.  E concluía: “nunca use medicamentos destinados a animais em si ou em outras pessoas. Os produtos de ivermectina para animais são muito diferentes daqueles aprovados para humanos. O uso de ivermectina animal para prevenção ou tratamento de covid-19 em humanos é perigoso”.

    Mas aquilo que seria uma recomendação óbvia para a generalidade dos fármacos com uso humano e veterinário – ou seja, uma pessoa não deve automedicar-se e ainda menos com fórmulas ou doses usadas em animais – acabou por ser um ‘ferrete’ na ivermectina que passou a ser usado pela imprensa e pelos promotores de medicamentos novos. E a a culpa foi inteiramente da FDA, que usou a mensagem do seu comunicado nas redes sociais de modo enviesado.

    Tanto no Facebook como no Twitter (actual X) e no LinkedIn, a FDA apelava ao não uso de ivermectina veterinária de forma sensacionalista: “Tu não és um cavalo. Tu não és uma vaca. A sério, pessoal. Parem de tomar ivermictina para a covid.” E assim foram lançados os dados para continuamente maldizer a ivermectina, confundindo-se uso veterinário com uso humano.

    Em pleno ano de 2024, ainda se está longe de um consenso sobre a eficácia da ivermevtina no combate ao SARS-CoV-2, mas o seu interesse científico é por demais evidente. Só desde Janeiro deste ano, o Google Scholar regista a publicação de 719 artigos científicos; alguns não encontrando eficácia, outros apontando vantagens. O mais recente foi publicado há duas semanas na revista científica Heliyon, da conceituada Elsevier, da autoria de três investigadores chineses que, numa meta-análise envolvendo 33 outros artigos com dados quantitativos sobre a ivermectina, concluíram que este fármaco “pode reduzi o risco de necessidade de ventilação mecânica e de efeitos adversos em doentes com covid-19 sem aumento de outros riscos”, acrescentando que “na ausência de melhor alternativa, os médicos podem usá-la com precaução”.

    Ora, mas do ponto de vista mediático a ivermectina continuava ‘conspurcada’ pelo comunicado e posts de Agosto de 2021 da FDA, algo não foi suportado de forma indiferente por alguns médicos. Três deles – Mary Talley Bowden, Paul Marik and Robert Apter, medicos no Estado norte-americano de Louisiana – interpuseram uma acção contra a FDA por extravasar as suas atribuições.

    Anteontem, numa decisão histórica, num acordo firmado em tribunal, a FDA aceitou retirar no prazo de 21 dias – e nunca mais republicar – os controversos conteúdos colocados nas redes sociais sobre a ivermectina em 21 de Agosto de 2021, bem como a apagar o seu comunicado de imprensa daquele mês, cuja primeira versão é de 5 de Março de 2021.

    Comunicados e posts nas redes sociais da FDA ajudaram a criar a ideia de a ivermectina ser um mero medicamento de uso veterinário.

    De igual modo, também será apagado um post do Twitter de 26 de Abril de 2022 com o sugestivo título: “Hold your horses, y’all. Ivermectin may be trending, but it still isn’t authorized or approval to treat covid-19”, onde a autoridade norte-americano do medicamento não escondia o entusiasmo em manter a artificial má-fama de um fármaco de já não tem patente e é, por isso, bastante barato, ao contrário do remdesivir, comercializado pela Gilead, e do Paxlovid, comercializado pela Pfizer.

    Em declarações ontem à revista norte-americana Newsweek, fonte oficial da FDA defendeu que “a agência optou por resolver este processo em vez de continuar a litigar sobre declarações com entre dois e quase quatro anos”, mas acrescentou que “não admitiu qualquer violação da lei ou qualquer irregularidade, discordando de que “excedeu a sua autoridade ao emitir as declarações contestadas no processo”, e dessa forma, mantém “autoridade para comunicar com o público sobre os produtos regula.”

    Em Agosto do ano passado, uma análise revista pelos pares (peer review) publicada na revista científica Cureus – que integra a editora Springer Nature, a dona da Nature – concluiu que a decisão do antigo presidente peruano Francisco Sagasti de suspender em Novembro de 2020 o uso de ivermectina como terapêutica preventiva contra a covid-19 terá causado uma escalada de mortes naquele país sul-americano.

    Trecho do acordo judicial onde a FDA aceita retirar o seu comunicado e os posts das redes sociais sobre a ivermectina.

    O Peru destacou-se nas estatísticas internacionais como o país com maior taxa de mortalidade atribuída à covid-19 com um espantoso rácio de 6.572 óbitos por milhão de habitantes – que corresponde a 0,65% da população –, quase duas vezes mais do que o valor registado em Portugal.

    Os autores daquele estudo relataram também os bons resultados do uso de ivermectina na província indiana de Uttar Pradesh, e denunciam também a manipulação e erros em ensaios clínicos que acabaram por afectar a reputação deste fármaco de baixo custo.

    “Nas últimas décadas, os medicamentos genéricos geralmente se saíram mal perante a concorrência com ofertas patenteadas, com base na infeliz vulnerabilidade da Ciência à mercantilização e à captura regulatória”, alertaram os autores, exemplificando com o caso de uma terapia tripla para úlceras pépticas, que apresenta uma eficácia de 96%, e que agora é o padrão terapêutico, mas cujo uso foi sendo adiado até que as patentes de dois medicamentos paliativos mais vendidos para esse problema gástrico expirassem.

    E apontam ainda que “tal viés potencial contra a ivermectina foi sugerido por um comunicado de imprensa de 4 de Fevereiro de 2021 da Merck, de que estava desenvolvendo sua própria terapêutica patenteada para covid-19”, alegando que havia “uma relativa falta de dados de segurança” para a ivermectina.

    aerial photography of mountain
    Peru foi um dos países que começou a usar ivermectina como prevenção da covid-19, mas uma posterior decisão política abandonou a campanha de medicação. Resultado: a mortalidade total aiumentou.

    Com efeito, a norte-americana Merck – que oferecera a patente da ivermectina para o Programa Africano de Controle da Oncocercose (cegueira dos rios) – haveria de conceber um fármaco, o molnupiravir, sob a marca comercial Lagevrio, que obteve autorização em finais de 2021 na Europa e foi logo bastante elogiado por vários especialistas, estando à cabeça, em Portugal, o actual bastonário da Ordem do Farmacêuticos, Hélder Mota Filipe, e o pneumologista Filipe Froes, um médico do SNS, consultor da Direcção-Geral da Saúde e um dos mais promíscuos consultores de farmacêuticas.

    Recorde-se, porém, que o molnupiravir acabou ingloriamente os seus dias em Julho passado, depois de evidência da sua completa ineficácia. Mas antes da retirada do mercado, confirmada pelo Infarmed em 17 de Julho, a Merck embolsou com este “embuste”, e com a conivência de reguladores e o apoio de influencers de Medicina, um total de 5,7 mil milhões de dólares em receitas só no ano passado.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.