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  • O fim da amizade: tensões crescentes no Árctico

    O fim da amizade: tensões crescentes no Árctico

    Perto de Kirkenes, cidade norueguesa localizada no Círculo Polar Árctico, encontra-se uma das poucas fronteiras russas abertas com o Espaço Schengen.

    Kirkenes, uma cidade na costa do Mar de Barents, encontra-se no centro da luta geopolítica pelo controlo do Árctico. Ambos os lados da fronteira estão agora fortemente militarizados e repletos de actividades dos serviços de informação e segurança.

    Kirkenes. / Foto: Boštjan Videmšek

    Para a Rússia, esta área reveste-se de uma importância estratégica fundamental. A vizinha Península de Kola abriga não apenas a Frota do Norte da Rússia, mas também a mais recente geração de submarinos nucleares e cerca de mil ogivas nucleares.

    Perto da fronteira fica a base aérea de Olenya, onde o exército ucraniano lançou recentemente um ataque bem sucedido com drones, destruindo vários bombardeiros estratégicos russos. A região é excepcionalmente rica em petróleo e gás natural, mas também é fortemente afectada pelas alterações climáticas. O derretimento acelerado do gelo já começou a afetar as rotas comerciais internacionais.

    Kirkenes é um dos pontos geopolíticos e de segurança “quentes” do mundo.

    Fronteira Noruega-Rússia. / Foto: Boštjan Videmšek

    Após o fim da Guerra Fria, a cidade norueguesa dedicou grandes esforços para se reinventar como uma ponte entre o Oriente e o Ocidente. No entanto, a agressão russa à Ucrânia, em Fevereiro de 2022, juntamente com as subsequentes sanções económicas, pôs um fim abrupto a essa ambição.

    Apesar do declínio dramático das relações entre a Europa e a Rússia, uma pequena parte da população Kirkenes manteve-se favorável em relação à Rússia … Predominantemente por razões económicas. Antes da guerra na Ucrânia, os negócios estavam a crescer na cidade fronteiriça. Além disso, o legado histórico da União Soviética na região era demasiado forte para ser totalmente apagado pelos desenvolvimentos recentes.

    Cerca de 600 cidadãos russos residem actualmente em Kirkenes e, na sua maioria, estão contra as políticas de Vladimir Putin. Vários — jornalistas, activistas, membros do movimento LGBT — fugiram para cá para evitar o recrutamento ou a perseguição por parte do regime russo. Quando os militares russos declararam a primeira grande onda de mobilização forçada, várias dezenas de russos escaparam para Kirkenes. Outra parcela menor da população russa da cidade apoia activamente o regime de Moscovo.

    Kirkenes, uma capital espiã do Norte. / Foto: Boštjan Videmšek

    Antes da guerra, sucessivos governos noruegueses atribuíram somas avultadas para o reforço da cooperação transfronteiriça com a Rússia na zona do Mar de Barents. Há 17 anos, ambos os lados da fronteira chegaram mesmo a ponderar construir uma “cidade gémea”, o que aumentaria os laços de Kirkenes com a cidade mineira russa de Nikel, no distrito de Pechegensky, e talvez até ajudasse a criar uma “área transnacional”.

    Tais eram os sentimentos na época.

    Assim, em Julho de 2008, Kirkenes acolheu uma reunião entre o ministro dos Negócios Estrangeiros norueguês, Jonas Gahr Støre, atual primeiro-ministro da Noruega, e Sergey Lavrov, que ainda desempenha as funções de ministro dos Negócios Estrangeiros russo. O projeto foi interrompido na fase puramente teórica. No entanto, a relação global manteve-se estreita. A equipa de hóquei Kirkenes passou alguns anos a competir numa liga regional russa. E, todos os anos, membros de ambos os grupos de patrulhas de fronteira reuniam-se para um amistoso jogo de futebol.

    Dito isto, várias das pessoas que entrevistei em Kirkenes alertaram para o facto de que partes da cooperação cultural foram ocasionalmente utilizadas indevidamente para fins de política externa. Ou, para ser mais direto, como ferramentas de propaganda direccionada.

    Foto: Boštjan Videmšek

    Legado soviético

    “Sinto-me enlutado e também traído por antigos amigos”, confessou um médico reformado, Harald Sunde, ao lado de um monumento aos soldados soviéticos mortos, no centro de Kirkenes.

    Além da sua longa e ilustre carreira médica, Sunde também é autor de dois livros sobre guerrilheiros noruegueses durante a Segunda Guerra Mundial. Quando Sergey Lavrov visitou Kirkenes pela última vez, em 2019, Sunde ofereceu-lhe um exemplar de um dos seus livros. Os dois cumprimentaram-se com um aperto de mão. Logo depois, o norueguês recebeu uma comenda especial do Ministério da Defesa russo.

    No dia 1 de Março de 2022, uma semana após a “operação especial” na Ucrânia, Sunde fez uma visita ao consulado russo para a devolver.

    “A invasão foi um enorme choque”, recordou, enquanto fitava a estátua da Segunda Guerra Mundial, erguida em 1952. “Até ao último minuto, esperava que Vladimir Putin não cumprisse as suas ameaças. O ataque russo à Ucrânia destruiu toda a confiança. E eu não acho que vai voltar tão cedo. Após três décadas a tentar construir uma comunidade amigável, temos agora um regime hostil do outro lado da fronteira. Os danos causados pelo rompimento dos laços são incalculáveis.”

    Harald Sunde, médico e guia histórico de Kirkenes. / Foto: Boštjan Videmšek

    Durante a Segunda Guerra Mundial, Kirkenes e os seus arredores viram alguns dos combates mais ferozes no Árctico.

    O exército alemão ocupou Kirkenes em Junho de 1940, mantendo a cidade ocupada durante mais de quatro anos. No auge da ocupação, cerca de 30.000 soldados alemães estavam em Kirkenes ou arredores, usando a cidade como um ponto de observação para ataques a Murmansk. Kirkenes esteve perto de ser destruída por aviões soviéticos que lutavam contra as forças nazis, apenas para ser libertada pelo Exército Vermelho em Outubro de 1944.

    Durante a Guerra Fria, o monumento aos soldados russos mortos em Kirkenes serviu como um forte elo nas relações locais Noruega-Rússia. Em ambos os lados da fronteira, o período foi suficientemente apreciado para ser apelidado de “a paz no Árctico”.

    Sempre que visitava o monumento, encontrava-se estacionado junto a ele um carro pintado com as cores da bandeira ucraniana, ostentando slogans como “Parem Putin!” e “Parem a guerra!”. O carro pertencia a um cidadão russo.

    Um carro com slogan anti-Putin está estacionado diariamente junto ao monumento dos soldados soviéticos. / Foto: Boštjan Videmšek

    O centro de Kirkenes também ostenta uma estátua de bronze do falecido Thorvald Stoltenberg, pai do antigo ministro da Defesa norueguês e mais tarde secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg. Stoltenberg foi uma figura-chave na ligação entre os países do Árctico após o colapso da União Soviética. Fundou o Secretariado do Mar de Barents e liderou numerosos projetos destinados a estabelecer laços com a Rússia.

    “Ele agora deve estar a virar-se no seu túmulo”, comentou Harald Sunde quando chegámos a esta segunda estátua.

    O aficcionado por História, de 67 anos, também exerce funções na Câmara Municipal como representante do Partido Socialista. Ele acompanhou-me até a placa comemorativa colocada pela comunidade local perto da entrada do consulado russo, após a morte do líder da oposição russa, Alexei Navalny.

    Homenagem a Alex Navalny em frente ao consulado russo, em Kirkenes. / Foto: Boštjan Videmšek

    Enquanto caminhávamos pela rua da memória da cidade, repleta de lembranças nostálgicas, Sunde continuava a elencar as lojas e empresas forçadas a fechar devido às sanções. As ruas eram maioritariamente frequentadas por cidadãos idosos… O que não surpreendeu, dado que os jovens têm fugido da zona. A população total está visivelmente a diminuir. Neste dia de primavera chocantemente quente, alguns turistas estavam por ali, enquanto as gaivotas, voando baixo, gritavam histericamente, protegendo os seus descendentes. Bandeiras ucranianas podiam ser vistas em cada passo que dávamos.

    As placas de sinalização de trânsito em Kirkenes estão escritas em três línguas diferentes: em norueguês, russo e sami. Desde 24 de Fevereiro de 2022, os políticos locais mantiveram um debate fervoroso sobre se as inscrições russas deveriam ser removidas. Recolheram-se assinaturas, iniciou-se uma petição… No entanto, o processo de remoção das inscrições não conseguiu reunir apoio suficiente.

    “Antes da invasão, Kirkenes era um importante centro comercial para os russos de classe média que viviam em cidades perto da fronteira. Posteriormente, muitos negócios fecharam, muitos deles permanentemente. Eu esperava que as autoridades de Oslo ajudassem mais, dada a gravidade da crise”, relatou Sunde.

    Fizemos uma breve paragem no abrigo subterrâneo onde os habitantes da cidade se esconderam durante os três anos de pesados bombardeamentos soviéticos na época da ocupação nazi. Pelo olhar que trocámos, ficou claro que ambos sentíamos que tudo o que é relacionado com a guerra deveria pertencer apenas a um museu.

    Fronteira Noruega-Rússia. / Foto: Boštjan Videmšek

    O colapso da confiança

    O facto de Kirkenes estar a voltar-se contra as políticas agressivas russas foi destacado durante a Conferência de Kirkenes, do ano passado. No seu discurso inicial, o presidente da Câmara Municipal de Sør-Varanger, Magnus Mæland, lamentou que, devido à invasão, as relações com a Rússia se tinham agravado nas gerações vindouras.

    “Independentemente do resultado da guerra, a nossa confiança na Rússia sofreu um golpe substancial”, disse Mæland aos delegados, na reunião. “Kirkenes visa fornecer um porto seguro para aqueles que querem democracia e liberdade”.

    Jonas Gahr Støre, primeiro-ministro norueguês, foi ainda mais directo. Na sua opinião, a situação na região era a mais grave desde a Segunda Guerra Mundial. “Temos de estar preparados para que a guerra acabe por chegar à Noruega, embora não haja uma ameaça imediata”, alertou Store, na Conferência de Kirkenes, em Maio.

    Abrigo da Segunda Guerra Mundial, em Kirkenes. / Foto: Boštjan Videmšek

    No dia de Junho, o edil Magnus Mæland decorou a fachada do prédio da autarquia de Kirkenes com uma grande bandeira arco-íris, usada na Noruega para homenagear a “marcha do orgulho LGBT” durante um mês inteiro. A menos de 100 metros de distância, no consulado russo, está pendurada a bandeira tricolor russa. Este é provavelmente o único lugar do mundo onde as duas bandeiras se encontraram tão próximas.

    “Quando estávamos a hastear a bandeira arco-íris, comecei a reflectir sobre como estávamos a viver na fronteira entre um regime totalitário e uma sociedade democrática aberta”, disse-me o autarca conservador, de 41 anos, no seu espaçoso gabinete no centro de Kirkenes. Mæland tornou-se presidente da autarquia durante o Outono de 2023, um ano e meio após a invasão russa da Ucrânia. Desde então, ele não trocou uma palavra com o cônsul-geral russo de Kirkenes, Nikolay Konyigin. As relações oficiais foram completamente cortadas.

    “Logo após a invasão, o cônsul-geral começou a espalhar as formas mais extremas de propaganda russa. Como como a Rússia estava realmente a lutar contra nazis. Como todos no Ocidente se tornaram nazis. Como esta foi a continuação da Segunda Guerra Mundial”, disse Mæland.

    Kirkenes (centro). / Foto: Boštjan Videmšek

    Na sua opinião, a invasão foi um enorme choque para toda a região, e especialmente para Kirkenes. No entanto, também acredita que os seus eleitores foram rápidos a aceitar a nova realidade, uma vez que as relações entre as duas comunidades fronteiriças já começaram a deteriorar-se após a anexação russa da Crimeia, em 2014.

    “O regime de Putin manipulou-nos como tolos”, afirmou Mæland. “A Europa revelou-se incrivelmente ingénua. Por aqui, vimos 31 anos de estreita colaboração com a Rússia. Somos uma cidade fronteiriça. Estamos interligados com os nossos vizinhos. Muitas das pessoas aqui ficaram tremendamente magoadas. Agora, toda a confiança extinguiu-se. O meu receio é que não renasça, pelo menos durante várias gerações.”

    “Kirkenes é um hotspot geopolítico. É verdade que partilhamos com a Rússia uma fronteira muito mais curta do que a Finlândia ou a Suécia. No entanto, a nossa fronteira está localizada junto ao mar de Barents e à Península de Kola, onde a Rússia tem enormes capacidades nucleares. Toda a área é uma fortaleza russa”, adiantou o autarca.

    Fronteira russa. / Foto: Boštjan Videmšek

    Mæland explicou que Kirkenes fica a 15 minutos da fronteira russa e a apenas 30 minutos de carro do vale de Pechenga, onde está colocada a 200ª Brigada de Fuzileiros Motorizados Separados do exército russo – uma unidade que sofreu pesadas baixas na Ucrânia. “Mais duas horas de condução e você chega a Severomorsk, a sede da Frota do Norte Russa, também composta por submarinos com armas nucleares estratégicas. E então, a apenas 30 quilómetros dali, há a base aérea de Olenya, onde há poucos dias vários bombardeiros de última geração foram destruídos por drones ucranianos”.

    Perguntei a Magnus Mæland se ele se sentia seguro, dado o que ele acabou de me dizer. “Sim”, respondeu ele. “Os nossos serviços de inteligência e segurança sabem exactamente o que está a acontecer. O mesmo vale para a polícia. O exército norueguês é extremamente competente. Estamos no controlo. Ao mesmo tempo, somos os olhos e os ouvidos da NATO. Somos importantes para a União Europeia e para os Estados Unidos. As armas nucleares do outro lado da fronteira nunca foram apontadas à Noruega. E não estão agora, tenho a certeza disso.”

    Mæland está bem ciente de que o Árctico se tornou o novo campo de batalha para as superpotências. As razões são muitas: as alterações climáticas permitem novas rotas comerciais, os abundantes recursos naturais do Árctico (petróleo, gás natural, metais e minerais raros, peixe) e as fontes de energia renovável…

    Magnus Mæland, presidente da Câmara Municipal de Kirkenes. / Foto: Boštjan Videmšek

    O presidente da Câmara de Kirkenes considera que tudo isto constitui uma boa razão para a Europa começar a construir uma nova base industrial. Na sua opinião, este seria o passo fundamental para a autossuficiência. Ao mesmo tempo, denuncia qualquer forma de dependência de regimes totalitários. Ele defende evitar rigorosamente o tipo de “ingenuidade globalizante” que tornou a Alemanha e vários outros países europeus quase totalmente dependentes do gás natural russo.

    “A solução para tudo o que falamos está aqui, no alto do norte”, concluiu o jovem político norueguês. “Embora seja verdade que estamos a enfrentar as consequências mais dramáticas das alterações climáticas, o nosso canto do mundo será, no futuro, muito mais habitável do que outras partes do globo”.

    Pesca pela Segurança

    Kirkenes e dois outros portos menores do Árctico norueguês são os únicos portos onde navios de carga russos ainda estão autorizados a atracar. A maioria deles são barcos de pesca. No entanto, o Serviço de Segurança norueguês permanece vigilante. Vários navios de pesca que atracaram em Kirkenes nos últimos três anos e meio tinham a bordo equipamento moderno dos serviços de informações. Por exemplo, o  barco de processamento de peixe Arka-33, que atracou na cidade durante várias semanas, em 2023.

    Estaleiro de Kirkenes. / Foto: Boštjan Videmšek

    Ben Taub, jornalista da revista The New Yorker, habilmente utilizou fontes do serviço de informação para provar que o Arka-33 estava a recolher informações. A embarcação pertencia a duas empresas russas com laços estreitos com empresas de segurança privadas e de um deputado russo que foi alvo de sanções internacionais.

    No final de 2023, até oito barcos de pesca russos altamente modernos, tripulados por 600 marinheiros, estavam atracados no porto de Kirkenes. Nenhum deles estava presente durante o período da minha visita, embora um (registado em Murmansk) estivesse a ser reparado no estaleiro local. Na sua maioria, os marinheiros russos que atracam em Kirkenes têm passaportes manuscritos — de modo a não serem rastreáveis. Os serviços secretos noruegueses estão convencidos de que pelo menos alguns dos marinheiros são membros da Frota do Norte russa.

    Nos últimos anos, todo o território norueguês do Árctico foi regularmente exposto a ataques dos serviços secretos de segurança russos. A maioria deles era de natureza eletrónica. O que se pode vislumbrar aqui é o núcleo de uma guerra híbrida que grassa em ambas as direções. O Serviço de Segurança da Polícia Norueguesa está a emitir alertas regulares sobre a possibilidade de sabotagem de ferrovias e oleodutos russos. Também se registaram numerosos casos de interferência de GPS.

    A Rússia tem vindo a expandir as suas actividades de inteligência de segurança — ou, em inglês claro, espionagem — em todo o território do Mar de Barents, desde 2014. Isto é especialmente verdade para a Frota do Norte russa. Mas isso não é nada de excepcional nestas partes. É apenas a continuação da norma adoptada durante a guerra fria.

    Rio fronteiriço. / Foto: Boštjan Videmšek

    Desde o início da guerra, o tráfego total no porto de Kirkenes caiu 30%. O principal motivo? A Noruega já não permite que navios russos fiquem fundeados nos seus portos para reparação e manutenção.

    Isso teve um impacto significativo na situação económica da cidade fronteiriça, onde grande parte da infraestrutura de serviços voltada para unidades navais russas foi construída após a Segunda Guerra Mundial. A referida infraestrutura era o principal empregador numa cidade extremamente remota, com todos os seus bares, restaurantes, oficinas mecânicas, hotéis e lojas.

    Ao longo dos últimos meses, tem-se falado cada vez mais de uma possível reabertura da mina.

    A verdadeira divisão

    Bjarge Schwenke Fors é o chefe do Instituto de Barents de Kirkenes, uma organização de investigação local que opera sob a égide da Universidade do Árctico da Noruega em Tromsø.

    Schwenke Fors está convencido de que a deterioração das relações transfronteiriças causou estragos económicos na região.

    Bjarge Schwenke Fors, diretor do Instituto de Barents. / Foto: Boštjan Videmšek

    Schwenke Fors relatou que, na sua opinião, o afecto da população local pela Rússia era, em grande parte, mítico. E apontou para os resultados de um recente estudo do Instituto Norueguês de Pesquisa Urbana e Regional, afirmando que apenas uma parte da comunidade russa de Kirkenes apoiou as autoridades de Moscovo.

    “A verdadeira divisão não está entre aqueles que apoiam ou se opõem ao regime do Kremlin”, esclareceu Schwenke Fors. “É entre aqueles que estão a tentar pôr fim aos investimentos locais na zona do Mar de Barents, bem como qualquer investimento adicional nas relações com os russos … E aqueles que desejam que os investimentos continuem.”

    Encontrei-me com o investigador norueguês na sede do Instituto de Barents. “O meu receio é que não consigamos regressar ao estado pré-invasão tão cedo”, advertiu Schwenke Fors. “Vai demorar várias gerações. O certo é que as relações aqui entraram numa nova época. A recuperação será certamente difícil. De várias formas, as duas comunidades permanecem estreitamente ligadas. Kirkenes é o lar de muitos russos, que são uma parte importante da comunidade. Assim como durante a Guerra Fria, quando a relação era propensa a muita oscilação. Mas, naquela altura, as coisas pelo menos costumavam ser bastante previsíveis. Hoje em dia, há apenas uma incerteza completa …”

    Caminho para a fronteira russa. / Foto: Boštjan Videmšek

    Schwenke Fors acredita que, após o fim da guerra na Ucrânia, as relações entre as duas comunidades terão de ser reconstruídas quase do zero. Principalmente devido a um sentimento de hostilidade cada vez maior.

    A resposta local à abundante propaganda russa era bastante previsível. A suspeita e a russofobia começaram a penetrar até mesmo nos cidadãos de mente mais aberta do lado norueguês da fronteira. Nas palavras de Schwenke Fors, o projecto de criar uma identidade comum na região do Mar de Barents estava morto.

    A identidade do Mar de Barents

    Kirkenes fica na segunda maior e menos povoada província da Noruega, Finnmark. A cidade foi fundada no início do século XIX. Durante muito tempo, foi propriedade de uma empresa mineira privada que a utilizava para extrair minério de ferro. No auge da produção, a mina empregava 1500 trabalhadores. No entanto, durante os anos 80, a falta de encomendas e de opções alternativas de emprego provocou um grave declínio demográfico.

    Foto: Boštjan Videmšek

    A situação mudou após o colapso da União Soviética. Durante alguns anos, os moradores de Kirkenes e Nikel foram autorizados a viajar até 30 quilómetros de distância nos seus respectivos países vizinhos, com apenas um passe de fronteira.

    O estatuto de isenção de impostos de Kirkenes significou que numerosos navios russos começaram a atracar no porto da cidade, trazendo um fluxo constante de comerciantes. Os noruegueses abriram uma cantina pública na cidade russa vizinha de Nikel.

    Durante a primeira metade dos anos 90, observou-se um intenso tráfego nos dois sentidos, entre Kirkenes e Murmansk. Os cidadãos russos frequentavam o lado norueguês da fronteira porque podiam comprar muitas coisas actualmente indisponíveis na sua terra natal. Os noruegueses, por outro lado, gostavam de visitar o lado russo em busca de festas baratas movidas a álcool.

    Durante os primeiros anos após o colapso da União Soviética, o lado russo da fronteira foi marcado por um grande caos. Estava em curso uma privatização de vale-tudo. Sindicatos criminosos assumiram o controle de Murmansk e de muitas cidades menores. A poluição industrial vivia o seu apogeu, em grande parte causada pelo mau manuseamento dos resíduos nucleares.

    Posto fronteiriço terrestre Noruega-Rússia. / Foto: Boštjan Videmšek

    Perto do final dos anos 80, a Península de Kola abrigava aproximadamente 20% de todos os reactores nucleares do mundo. O combustível nuclear em desuso continuou a derramar-se no Mar de Barents. Os resíduos nucleares que aguardavam armazenamento podiam ser vistos em frente a estaleiros navais e instalações industriais falidas.

    Havia algo como a “Identidade de Barents”, ou era um mito — perguntei a Olga Povoroznyuk, antropóloga social da Universidade de Viena e membro  do Instituto Austríaco de Investigação Polar com experiência de investigação a longo prazo na Sibéria e no Árctico.

    “Em 1993, os países do Mar de Barents – Rússia, Noruega, Suécia e Finlândia — criaram uma nova Região Euro-Árctica do Mar de Barents (o BEAR), uma região constituída pelas partes setentrionais da Finlândia, Noruega e Suécia, e a parte noroeste da Federação Russa, e onde vivem cerca de seis milhões de pessoas. A Declaração de Kirkenes, assinada nesse ano, lançou as bases para a cooperação. Esta importante iniciativa contribuiu muito para melhorar as relações internacionais e forneceu uma base para o desenvolvimento de uma identidade comum.”

    Olga Povoroznyuk tem investigado o projeto InfraNorth, com foco na infraestrutura de transporte e sustentabilidade, e actualmente é co-líder do projeto ARCA sobre espaços verdes urbanos e adaptação climática no Árctico. Em Kirkenes, ela e seus colegas da InfraNorth têm se concentrado nos impactos locais do desenvolvimento de infraestrutura e nas visões do projecto de expansão do porto marítimo.

    Mar Árctico. / Foto: Boštjan Videmšek

    “No início do século, quando estava a terminar o meu doutoramento, a ideia de uma identidade comum de Barents recebeu muita atenção nos círculos académicos e políticos”, disse Olga Povoroznyuk, recordando uma época em que as relações regionais atingiram um pico em termos de proximidade.

    E acrescentou: “a identidade regional partilhada foi tema de debates públicos e de imaginários futuros, apesar de o BEAR nunca se ter tornado uma região totalmente integrada do ponto de vista geopolítico”.

    Segundo Povoroznyuk, as relações na região têm vindo a deteriorar-se, pelo menos, desde a crise da Crimeia em 2014. “O ano de 2022 tornou-se um ponto de viragem histórico, impactando enormemente a identidade regional. Onde antes havia uma cooperação estreita, agora só há muita desconfiança e frustração. As vidas de muitos residentes em Kirkenes e Sør-Varanger sofreram mudanças dramáticas com o declínio da mobilidade, do comércio e das trocas comerciais entre a Rússia e a Noruega. O desejo de forjar laços transformou-se num sentimento de perda e incerteza futura”.

    Fronteira russa. / Foto: Boštjan Videmšek

    Antes dos seus actuais projetos de investigação, Povoroznyuk passou alguns anos a investigar os tópicos de indigeneidade, identidade, desenvolvimento industrial e mudanças climáticas na Sibéria e outras zonas do Árctico. “As pessoas aqui, em Kirkenes, estão preocupadas”, disse. “Sentem que estão longe de estar suficientemente protegidas de uma potencial nova ameaça. Ao mesmo tempo, a população ainda é capaz de tirar partido de inúmeras memórias da coexistência pacífica da guerra fria. A situação emocional é, portanto, bastante ambivalente. A população de Kirkenes vê a possibilidade de a cidade ser transformada numa base militar como ‘o cenário apocalíptico’. Ninguém quer ver isso acontecer. Da mesma forma, ninguém quer que a situação escale ainda mais.”

    De alguma forma, as suas palavras foram ecoadas por literalmente todos os meus interlocutores em Kirkenes e arredores.

    Exposição Setentrional

    O The Barents Observer é um jornal local que cobre todo o Árctico. Publicando o trabalho de colaboradores noruegueses e russos, o jornal online está disponível em ambas as línguas. O papel pode ser de natureza local, mas a qualidade de seus artigos está bem à altura dos padrões globais. Muitos dos que acompanham activamente a situação no extremo norte consideram-no um ponto de referência fundamental.

    O seu compromisso com a verdade e a objectividade transformou o jornal num alvo constante de ataques e sanções da Rússia. No início do ano, as autoridades russas declararam a publicação como indesejada, enquanto a colaboração com o jornal foi transformada num acto criminoso com uma pena de prisão de seis anos — incluindo republicar o seu conteúdo online.

    “Uma parte significativa dos materiais publicados tem uma orientação claramente anti-russa. É de salientar que estão a ser elaborados por cidadãos da Federação Russa que deixaram o país e estão incluídos no registo de agentes estrangeiros ou na lista de terroristas e extremistas”, refere um boletim público emitido pela Procuradoria-Geral da Federação Russa, a 7 de fevereiro. As autoridades russas também alegaram que os artigos do The Barents Observer visavam fomentar protestos nas partes do norte da Rússia, bem como aplaudir novas sanções contra a Federação Russa.

    Caminho para a Rússia. / Foto: Boštjan Videmšek

    Os jornalistas do jornal não ficaram, de modo algum, surpreendidos com a decisão do Kremlin. O jornal divulgou imediatamente uma declaração de compromisso firme com sua missão jornalística — principalmente o jornalismo de investigação publicado tanto em norueguês como em russo.

    “O que aconteceu mostra que o regime repressivo russo estava ciente de que éramos bons no nosso trabalho. O jornalismo não é crime. Tentar impedir a liberdade de imprensa e sufocar a liberdade de expressão do público — agora, isso é um crime! Vladimir Putin construiu o seu domínio com base no medo. Por isso, continuaremos a demonstrar que não temos medo dele”, disseram-me Thomas Nilsen, editor e — juntamente com os jornalistas — coproprietário do The Barents Observer, na modesta sede do jornal.

    Em Fevereiro deste ano, o The Barents Observer ganhou uma ação no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem contra a autoridade de comunicação russa, que impediu os repórteres do jornal de entrar em território russo.

    Nilsen acredita que uma cortina de ferro foi implementada ao longo da fronteira entre a Noruega e a Rússia. As pessoas estão cada vez mais assustadas. “Depois de a Rússia ter iniciado a sua guerra ilegal e brutal em solo europeu, percebemos que a ferramenta mais potente à nossa disposição era o jornalismo. Decidimos intensificar os nossos esforços.”

    Vale a pena mencionar que Nilsen foi proibido de entrar em território russo dois anos antes de todos os outros repórteres do jornal.

    A equipa doThe Barents Observer é composta por quatro jornalistas russos, que fugiram para Kirkenes da censura e perseguição, em 2022. Os quatro jornalistas são regularmente alvo de assédio por parte dos serviços de informação russos, mas continuam fiéis à sua profissão. Considerando que forças mal-intencionadas acompanham cada um de seus passos, não se podem dar ao lixo do menor deslize no padrão do seu trabalho.

    “Toda a zona do Árctico está a tornar-se num importante tópico mundial. Aqui, em Kirkenes, onde as consequências da ruptura dos laços com a Rússia não são tão graves como alguns afirmam, todos os temas-chave da nossa situação estão presentes. A geopolítica, as alterações climáticas, a proximidade da guerra… O que aconteceu há poucos dias na base aérea de Olenya, do outro lado da fronteira, foi um aviso claro de quão perto está a guerra. Percebo muito bem que a nossa carga de trabalho de reportagem só tende a aumentar”, resumiu Thomas Nilsen sobre a situação, falando comigo entre fotografias de Mikhail Gorbachev e caricaturas emolduradas que retratam a perseguição russa a jornalistas, mesmo ao lado de uma sala memorial a Boris Nemtsov.

    Campo de Kirkenes. / Foto: Boštjan Videmšek

    Um barril de pólvora geopolítico

    No contexto da segurança nuclear, a praticamente desconhecida cidade norueguesa de Kirkenes situa-se numa das áreas mais sensíveis do mundo, em termos geoestratégicos — pelo menos tão sensível como, por exemplo, Caxemira.

    Há mais de duas décadas que Vladimir Putin vê o Árctico como um importante campo de batalha geopolítico. A pressão russa sobre a região intensificava-se a cada ano. O mesmo se pode dizer da crescente pressão da NATO sobre a Noruega.

    Desde 2005, a Rússia começou a reabrir mais de 50 antigas bases militares soviéticas na Península de Kola. De acordo com os meus interlocutores, pelo menos mil ogivas nucleares — o segundo maior arsenal nuclear da Rússia — estão agora localizadas num raio de 200 quilómetros. A Península de Kola acolhe também zonas de lançamento de ‘rockets‘ hipersónicos e a maior frota de navios quebra-gelo do mundo. Um dos quebra-gelo é alimentado por um reactor nuclear.

    Ainda assim, mesmo com tamanha abundância de recursos, o recurso estratégico mais importante da Rússia na região do Mar de Barents são os seus submarinos nucleares supermodernos. Um único submarino pode transportar 16 ‘rockets‘ balísticos com ogivas nucleares, que podem ser disparados das profundezas do mar. Estes submarinos constituem a base da segurança estratégica russa e continuam a ser a prioridade absoluta de Moscovo. O mapa da Península de Kola parece, assim, um mapa da segurança geoestratégica russa.

    Foto: Boštjan Videmšek

    Aliás, em 30 de Outubro de 1961, o exército soviético desencadeou a maior detonação de uma arma nuclear da História. A explosão foi 3.000 vezes mais poderosa do que a de Hiroshima. A detonação ocorreu na ilha de Novaya Zemlya, no Mar de Barents. Soldados noruegueses no norte do país puderam observar o céu brilhante, mesmo estando a 1.000 quilómetros de distância da explosão.

    Rápida militarização

    A fronteira terrestre entre a Noruega e a Rússia mede 195,7 quilómetros de comprimento, a fronteira marítima 23,2 quilómetros. A única estação de travessia terrestre está localizada em Storskog, a cerca de 10 quilómetros de Kirkenes. A fronteira foi demarcada em 1826 e permaneceu praticamente inalterada até ao presente.

    O posto fronteiriço de Storskog ganhou destaque entre 2015 e 2016, quando foi usado por vários milhares de refugiados e requerentes de asilo do lado russo para entrar na Noruega. Só nos últimos três meses de 2015, mais de 5.000 pessoas atravessaram a fronteira.

    A maioria delas eram cidadãos sírios. Chegaram à Noruega de bicicleta e até de cadeiras de rodas, uma vez que era proibido atravessar a fronteira a pé. Os agentes dos serviços secretos noruegueses identificaram várias pessoas contratadas como agentes pelo Serviço Federal de Segurança da Federação Russa. Esta foi uma das razões pelas quais a fronteira foi fechada para refugiados, enquanto a Rússia foi colocada na lista de países seguros para refugiados. Veículos particulares com placas russas foram impedidos de entrar na Noruega em Maio de 2024.

    Durante o tempo da minha visita, a travessia foi usada do lado russo por um par de autocarros que transportavam turistas chineses. As infraestruturas em torno da estação de travessia estão a deteriorar-se rapidamente.

    Posto fronteiriço terrestre Noruega-Rússia. / Foto: Boštjan Videmšek

    O lado russo fortemente militarizado da fronteira é controlado pelo serviço de fronteira do Estado, enquanto o lado norueguês, cada vez mais militarizado, é patrulhado pela guarnição da região de Sør-Varanger.

    Toda a zona fronteiriça está repleta de estruturas de serviços de informação e segurança — a mais imponente é um trio de enormes cúpulas de radar localizadas na vila piscatória de Vardø e controladas pelo exército norueguês. Nos últimos anos, este exército tem usado a zona para treinar membros de unidades especiais ucranianas.

    Nikel é o primeiro maior assentamento do lado russo, marcado por uma série de chaminés altas. Não há muito tempo, quando a central ainda estava operacional, o ar e a água de ambos os lados da fronteira estavam fortemente poluídos.

    Perto de Nikel, encontra-se o famoso buraco de mais de 12 quilómetros de profundidade — o buraco mais profundo conhecido no mundo. Foi criado por engenheiros soviéticos nos anos 70, com o objectivo de perfurar o seu caminho até ao núcleo da Terra.

    Falharam.

    Foto: Boštjan Videmšek

    A Guerra Híbrida

    “O Árctico está a testemunhar as consequências da agressão à Ucrânia. A Rússia está a promover activamente uma narrativa de militarização do Árctico pela NATO e há vários anos que tem vindo a reforçar as suas posições militares no Árctico, abrindo novos postos avançados e actualizando os antigos”, disse-me Kari Aga Myklebost, professora de História russa na Universidade do Árctico da Noruega, numa conversa telefónica.

    Adiantou que a Rússia aumentou os seus esforços para criar uma imagem hostil do Ocidente a partir de 2022. Ao hastear bandeiras soviéticas e ao organizar aproximações de desfiles militares nos colonatos russos no arquipélago norueguês de Svalbard, no Mar de Barents, a Rússia está a tentar forçar a Noruega a reagir.

    “A incidência da actividade simbólica russa aumentou acentuadamente após o ataque em grande escala à Ucrânia. A Rússia intensificou as comemorações públicas de 9 de Maio como o Dia da Vitória, colocando uma ênfase adicional no seu legado da Segunda Guerra Mundial, ao mesmo tempo em que glorificou a actual guerra na Ucrânia. Este é o actual modo de operações híbridas da Rússia em Svalbard: a Rússia está estrategicamente a aproveitar a liberdade de expressão norueguesa e o uso de símbolos. O objectivo é provocar uma reação através da promoção de símbolos revanchistas, já que uma reacção mais incisiva abriria espaço para acusar a Noruega de discriminação contra a população russa. A partir de 2022, temos assistido a muitos desses casos em Svalbard”, explicou a professora Myklebost.

    Na sua opinião, a Noruega desempenha um papel bastante importante nos planos a longo prazo da Rússia. “Sendo um pequeno país que faz fronteira com a Península de Kola, estrategicamente importante, e com o adjacente Mar de Barents, a Noruega é, com razão, muito cautelosa. O equilíbrio de poder é extremamente assimétrico e estas regiões são de elevada importância militar e estratégica para a Rússia. A Noruega está bem ciente de que a Rússia poderia potencialmente começar a aumentar a pressão sobre o arquipélago de Svalbard.”

    Foto: Boštjan Videmšek

    Após a queda da União Soviética, as autoridades norueguesas investiram muito no estabelecimento de relações com a Rússia através da fronteira no norte. Especialmente em Kirkenes e arredores. “Depois de 2022, a construção de relações foi interrompida. Em Kirkenes, as relações com a Rússia tornaram-se um tema bastante sensível.”

    As comemorações da guerra, como o Dia da Vitória Russa, que costumava ser celebrado conjuntamente pela Noruega e pela Rússia em Kirkenes, tornaram-se controversas. De acordo com Myklebost, Moscovo — através de suas contínuas comemorações de guerra — mantém uma narrativa de unidade transfronteiriça na luta contra o nazismo alemão, bem como o neonazismo na Ucrânia hoje. “E isto é feito apesar do facto de muitos residentes de Kirkenes terem expressado muito claramente a sua desaprovação das comemorações russas, que tentam estabelecer uma ligação com a guerra na Ucrânia. O consulado russo simplesmente continua com suas provocações.”

    Como uma das principais autoridades em geopolítica do Árctico, Myklebost está convencido de que Kirkenes, em si, não tem um valor estratégico muito alto para a Noruega, mesmo que seja importante para a NATO como um todo, devido à proximidade com a Rússia. Já para a Rússia, o caso não poderia ser mais diferente. “Tanto Svalbard como o Mar de Barents são de extrema importância para a Rússia. Em caso de conflito entre a Rússia e a NATO, a Rússia necessitaria de controlar a parte oriental da província de Finnmark, bem como o Mar de Barents, para garantir as suas capacidades estratégicas na Península de Kola e o livre acesso da sua frota setentrional ao Mar Atlântico. Isto envolveria também o controlo de Kirkenes, Svalbard e da parte ocidental do Mar de Barents. Os principais objectivos seriam assegurar as capacidades nucleares da Península de Kola e conceder livre navegação à Frota do Norte russa.”

    O factor chinês

    Há umas semanas, o director do porto de Kirkenes, Terje Jørgensen, afirmou que queria construir um novo terminal portuário, destinado a conectar a América do Norte, Europa e Ásia. O novo terminal iria servir, principalmente, navios de carga chineses, concedendo à China precisamente o que mais deseja. Ou seja, seria um passo importante na criação da chamada Rota da Seda Polar. Embora também tenha de se salientar que o cliché do ‘norte de Singapura’ faz parte do debate público em Kirkenes há tanto tempo que já está um pouco gasto.

    “O facto é que o porto de Kirkenes precisa de investimentos e actividade. É por isso que o director expressou a sua abertura à colaboração económica com a China. A minha sensação pessoal é que o Governo norueguês não o permitirá, por razões de segurança”, argumentou Kari Aga Myklebost. A professora destacou os estreitos laços estratégicos da Rússia com a China, tendo os dois países realizado exercícios militares conjuntos no Árctico.

    Kari Aga Myklebost. / Foto: D.R.

    “A Noruega receia que a potencial infraestrutura portuária chinesa em Kirkenes possa ser utilizada para fins duplos. Ou para vários fins, em desacordo com os interesses nacionais noruegueses”, concluiu Myklebost.

    Os serviços secretos noruegueses estão cada vez mais preocupados com as mudanças recentes na Casa Branca, bem como com os norte-americanos que se aproximam da Rússia enquanto estão “de olho” na aquisição da Gronelândia. O norte da Noruega foi apanhado no meio de uma convulsão geopolítica.

    “A Noruega está a adaptar-se à evolução das circunstâncias. Por um lado, temos uma Rússia muito determinada e, por outro, a administração norte-americana extremamente imprevisível. Neste contexto, o Governo norueguês anunciou, em Maio, que tenciona suavizar as restrições impostas aos seus aliados há 70 anos, relativamente às actividades nas zonas fronteiriças com a Rússia. Esta é uma grande mudança, uma vez que as restrições foram em parte destinadas a enviar uma mensagem à Rússia,” disse Kari Aga Myklebost.

    Tal como a Finlândia e a Suécia, a Noruega tem vindo a reforçar as suas capacidades defensivas nacionais com o objectivo de conter a Rússia. “Esta é a realidade. Por enquanto, simplesmente não estamos em posição de planear as nossas futuras relações com a Rússia. A situação é demasiado imprevisível.”

    O Derretimento do Norte

    Outro factor-chave que contribui para as tensões crescentes no Árctico são as alterações climáticas.

    Nas últimas quatro décadas, cada década, em média, viu o derretimento de 13% do gelo de Verão. E a tendência só aumenta. A este ritmo, o Árctico poderá ficar livre de gelo até 2040 — uma previsão que se assemelha a uma declaração de guerra global. Ao mesmo tempo, o derretimento do gelo já está a abrir novas rotas comerciais. Alguns deles atravessam o Mar de Barents. Muito em breve, a Rota do Mar do Norte estará aberta durante todo o ano.

    Todos os países do Árctico, excepto a Rússia, são membros da NATO. À aliança militar euro-atlântica juntaram-se recentemente os vizinhos há muito neutros da Noruega, a Suécia e a Finlândia. A Rússia, que controla mais de dois terços do Árctico por si só, estendendo-se por 5.600 quilómetros de comprimento, foi expulsa pelo Conselho do Árctico em 2022. Todos os contactos científicos foram igualmente cortados, causando danos incalculáveis à nossa compreensão comum das mudanças que varrem a região do Árctico.

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    Foto: D.R.

    Antes do ataque russo à Ucrânia, as autoridades norueguesas planeavam transformar o porto de Kirkenes numa importante base logística que ligava a Europa à Sibéria ocidental. De suma importância, seria um terminal de petróleo e gás ligado à cidade finlandesa vizinha de Rovaniemi e, a partir daí, ao sistema ferroviário finlandês. Mas a invasão russa não foi o único factor que pôs fim ao ambicioso projecto. A Noruega também tinha expectativas excessivas em relação aos seus projectos de perfuração de gás terrestre no Mar de Barents.

    A Noruega, que se apresenta actualmente como um dos países mais verdes do mundo, continua a procurar intensamente novas jazidas de petróleo e gás terrestre. Estima-se que o Árctico contenha cerca de 30% das reservas mundiais de gás terrestre.

    De acordo com analistas petrolíferos, o Mar de Barents detém dois terços das reservas norueguesas de petróleo e gás terrestre. Em 2022, quando o sistema energético europeu entrou em pânico na sequência do ataque à Ucrânia, a Noruega abriu 93 novos locais de perfuração. Destes, 71 deles estavam localizados no ecossistema extremamente sensível do Mar de Barents. No período de 2022, o petróleo e o gás terrestre representaram 73% de todas as exportações norueguesas.

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    Foto: D.R.

    De acordo com dados do Departamento da Plataforma Continental, em Dezembro de 2023, a Noruega quebrou um recorde de seis anos em relação à quantidade de gás terrestre extraído num só mês (379 milhões de metros cúbicos). No final do ano passado, a Noruega exportava, em média, 1,85 milhões de barris de petróleo por dia para a União Europeia.

    Os combustíveis fósseis continuam a ser uma das principais forças motrizes da guerra.

  • Trust in News: sem data para divulgar contas anuais, mantém-se dúvida sobre ‘rubrica misteriosa’

    Trust in News: sem data para divulgar contas anuais, mantém-se dúvida sobre ‘rubrica misteriosa’

    A comunicação oficial do encerramento definitivo de actividade da Trust in News (TIN) — dona de várias publicações, incluindo a revista Visão — está suspensa a aguardar, de novo, uma decisão dos credores, sobretudo a Autoridade Tributária e da Segurança Social, que são os principais credores da empresa que se encontra insolvente. Mas, enquanto se decide o futuro desta empresa de media, mantém-se uma incógnita sobre as contas de 2024, o que impede, até agora, de apurar a verdadeira magnitude das dívidas e de saber se o ‘reinado’ de Luís Delgado esteve envolto em contabilidade criativa com contornos de potencial fraude.

    A divulgação do relatório e contas da empresa referente a 2024 deveria estar concluída em finais de Julho, mas está atrasada e sem data para publicação. As contas nem sequer estão ainda fechadas, conforme apurou o PÁGINA UM. Aguarda-se assim por saber se a TIN vai efectuar uma ‘limpeza’ contabilística e alterar, por exemplo, uma rubrica misteriosa que permitiu a Luís Delgado evitar o registo de prejuízos ao longo de anos e esconder a real situação da empresa perante os trabalhadores, os credores e a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). Aliás, nenhuns dados financeiros relativos ao ano passado foram referenciados no Portal da Transparência dos Media, algo que deveria ter sido feito até finais de Junho.

    white Canon cash register
    Foto: D.R.

    Nas últimas semanas, a TIN voltou a ser gerida pelo administrador de insolvência, André Correia Pais . Será com este administrador no leme que a TIN vai, em princípio, divulgar os seus resultados de 2024.

    Uma das várias dúvidas financeiras que paira sobre a contabilidade da TIN prende-se com a existência de cerca de 14 milhões de euros em activos que Luís Delgado atribuiria a receitas futuras. Esse montante está registado na rubrica “Outras contas a receber”, que nem sequer são registadas com factura emitida, subsistindo dúvidas quanto à sua correspondência a um activo real, ou seja, que possa efectivamente ser convertido em receitas — e, em última instância, em dinheiro.

    Luís Delgado conseguiu esconder os problemas financeiros da sua empresa unipessoal Trust in News graças a um malabarismo contabilísticos. / Foto: Captura de ecrã a partir de vídeo do Canal Parlamento.

    Caso não tenha existência real, esta rubrica terá apenas servido para ‘embelezar’, nos últimos anos, a calamitosa situação financeira do grupo, uma vez que evitava o reconhecimento de resultados líquidos negativos da ordem dos milhões de euros. 

    A sociedade unipessoal de Delgado, cujo capital social é de uns meros 10.000 euros, fechou o exercício de 2023 com um resultado líquido negativo de ‘apenas’ 115 mil euros, apesar de ter um passivo superior a 30 milhões de euros. Este prejuízo foi o primeiro que a TIN registou, segundo os dados disponíveis na Plataforma da Transparência da ERC. Nos anos anteriores, anunciou sempre resultados positivos, mas ‘milimetricamente’ próximos de zero, enquanto o passivo disparava. Em 2018, teve um lucro de 14.281 euros. Em 2019, o lucro subiu para 16.345 euros e a partir daí foi sempre a descer. Em 2020, a TIN ainda registou resultados positivos de 10 mil euros, mas em 2021 ficaram-se por 27 euros e, em 2022 , pelos 1.061 euros.

    Com a empresa em situação de insolvência, estranhamente, nem os credores, nem os trabalhadores nem o gestor de insolvência pediram ainda explicações fundamentadas para a existência da rubrica misteriosa nas contas da TIN em anos passados. Nem sequer foi pedida uma auditoria.

    Revista Visão (Foto: PÁGINA UM)

    O tema tem sido ignorado, apesar das suas implicações graves. Na prática, se o activo registado nas contas da TIN nunca existiu, estamos perante um activo fictício e, portanto, um caso de apresentação de contas fraudulentas.

    Se, por outro lado, esse activo existiu, mas a recuperabilidade deixou de ser provável, terá de ser reconhecida como uma imparidade, resultando assim num prejuízo de milhões. A diferença reside no momento em que a administração sabia — ou tinha o dever de saber — que o activo não existia ou nem sequer era recuperável.

    Assim, mostra-se expectável, ainda mais porque agora será o administrador judicial a ter de se responsabilizar pelas contas. que a demonstração de resultados e o balanço de 2024 tenha esta ‘rubrica misteriosa’ completamente clarificada, ficando a saber-se, afinal, do que se tratava e se foram, ou não, cometidos crimes.

    woman in dress holding sword figurine
    Foto: D.R.

    Se se concluir que foi feita, de forma intencional, uma sobreavaliação fraudulenta de activos, estamos perante mesmo um crime. Ou seja, se o balanço apresentava um valor que não tinha base real, e isso foi feito com intenção de enganar credores, trabalhadores e reguladores, entra no âmbito de contas falsas ou falsificação de demonstrações financeiras. Os crimes estão previstos nos artigos do Código das Sociedades Comerciais referentes a ‘contas falsas’ e ‘deveres dos administradores’.

    Também o Código Penal prevê o crime de falsificação de documento, sendo que as demonstrações financeiras são documentos.

    Acresce que, se as contas da TIN foram aprovadas com conhecimento da falsidade, há dolo, o que pode levar a responsabilidade criminal dos administradores mas também dos revisores oficiais de contas (ROC) e, eventualmente, de quem tenha participado conscientemente no esquema contabilístico.

    Se um ROC certificou as contas da TIN e não detectou ou não reportou a inconsistência existente, pode haver responsabilidade disciplinar e civil, e até criminal se se provar conluio.

    Luís Delgado e Francisco Pedro Balsemão, presidente-executivo da Impresa, em Janeiro de 2018, na assinatura do acordo de venda do portfólio de publicações da Impresa Publishing à TIN. A venda permitiu ‘salvar’ financeiramente a Impresa que se encontrava numa situação financeira difícil, já naquela altura.
    / Foto: D.R.

    Recorde-se que, como o PÁGINA UM noticiou, Delgado esteve a esconder durante anos a situação de dívidas ao Estado, porque nem sequer emitiu a Certificação Legal de Contas (CLC), que no seu caso era claramente obrigatória por ser uma sociedade por quotas com um balanço superior a 1,5 milhões de euros, deter vendas anuais superiores a 3 milhões de euros e contar mais de 50 trabalhadores.

    De facto, nas contas de 2018 a 2022 depositadas regulamente na Base de Dados das Contas Anuais (BDCA), a TIN informava sempre que não estava obrigada a ter contas certificadas por um revisor oficial de contas. 

    Mas isso foi até ao dia 4 de Julho de 2024. A empresa de media apresentou no dia 5 de Julho do ano passado uma “declaração de substituição” respeitante às contas do ano civil de 2021, para assim ‘eliminar’ aquela que fora apresentada em 15 de Julho de 2022, e que o PÁGINA UM tinha obtido.

    Foto: PÁGINA UM

    Na altura, a alteração mais relevante que a TIN fez às suas contas consistiu num acto do revisor oficial de contas. A DFK & Associados fez, então, uma reserva extremamente relevante: “Chamamos a atenção para o facto da Entidade [Trust in News] apresentar dívidas à Segurança Social e Autoridade Tributária [e Aduaneira] no montante total aproximado de 8.200.000 euros. Do valor indicado refira-se que até à emissão da presente Certificação tinham sido liquidados, pelo menos, 790.000 euros e celebrado acordos de pagamentos prestacionais no montante de 2.500.000 euros”. 

    O desfecho de anos de acumulação de dívidas, sobretudo ao Estado, foi um Processo Especial de Revitalização (PER) falhado, seguido de um pedido de insolvência. No dia 18 de Julho, a juíza Diana Martins, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, não deu ‘luz verde’ ao plano de insolvência da TIN que tinha sido apresentado por Delgado por violar a lei no que toca às garantias dos credores. Delgado, que está a cumprir pena suspensa durante cinco anos pelo crime de abuso de confiança fiscal agravado, pretendia ficar imune a novas acções de penhora e execução. O Tribunal decretou o encerramento da empresa, o que espoletou o processo de despedimento colectivo.

    No dia 4 de Agosto, o Tribunal deu o seu aval ao pedido de adiamento da comunicação oficiosa ao Fisco do encerramento da actividade da TIN, que tinha sido pedido pelo Correia Pais, segundo noticiou a Lusa. Assim, o administrador de insolvência ganhou tempo para que surjam soluções que travem o definitivo encerramento da TIN, pelo menos até 8 de Outubro.

    Os credores, sobretudo a Autoridade Tributária e a Segurança Social, têm de decidir se aceitam a proposta de um grupo de trabalhadores da Visão para a aprovação do plano de insolvência excluindo a clausula ilegal que protegia Luís Delgado, ou, em alternativa, dar o seu aval para manter a revista em funcionamento até à sua eventual venda. / Foto: D.R.

    Por outro lado, um grupo de onze trabalhadores da revista Visão, incluindo o seu diretor, Rui Tavares Guedes, solicitaram ao Tribunal, no dia 25 de Julho, para convocar uma nova assembleia de credores da empresa. Propõem que o plano de insolvência avance excluindo a cláusula ilegal que visava proteger Luís Delgado, ou, em alternativa, seja permitido que a revista continue a funcionar até à sua eventual venda, sob supervisão do administrador de insolvência —, o qual exige “imunidade” pessoal nas responsabilidades fiscais e junto da Segurança Social.

    Entretanto, alguns dos trabalhadores da TIN, que tem estado a ser afectada por uma greve por tempo indeterminado, têm vindo a deixar a empresa. Os que ficaram, têm a esperança de ser encontrada uma solução que evite o fecho da TIN, mas enfrentam um futuro sem garantias, nem de postos de trabalho, nem de salários. Depois de serem despejados das instalações no Tagus Park, os trabalhadores estão agora a trabalhar a partir de casa.

    Quanto a Delgado, recorreu da decisão da não homologação do seu plano de insolvência, segundo noticiou a agência Lusa. Mas esta acção não terá efeitos suspensivos. O dono e gerente da TIN corre ainda o risco de vir a ser acusado de insolvência culposa, algo que ficou deixado em aberto pela juíza do processo de insolvência.

    Num artigo publicado na Visão, no passado dia 8 de Agosto, a ex-directora da revista, Mafalda Anjos, lava as suas mãos da ‘queda em desgraça’ da TIN e atribui o descalabro da empresa a uma “gestão gravemente danosa e incompetente”.

    Mafalda Anjos foi publisher da TIN durante cinco anos e directora da Visão durante seis anos. A Lei da Imprensa concedia-lhe o direito de ser informada da situação económica e financeira da empresa.

    Mas a Lei da Imprensa concede aos directores das publicações o direito de “ser informado sobre a situação económica e financeira da entidade proprietária e sobre a sua estratégia em termos editoriais”. Ora, Mafalda Anjos foi ‘publisher’ da TIN e directora editorial de vários títulos (Visão, Visão Saúde, Visão Biografia e A Nossa Prima) entre 2018 e 2022, tendo apenas saído da liderança da Visão em Dezembro de 2023 – ou seja, teve seis anos para se informar, como a Lei da Imprensa lhe permitia, sobre a situação financeira e económica da empresa de Luís Delgado.

    Se exerceu esse direito de directora responsável, ignora-se, mas sabe-se que, em Julho de 2023, Mafalda Anjos apelidou de “artigos fantasiosos” as notícias do PÁGINA UM que alertavam para os graves problemas financeiros da TIN e o seu gigantesco passivo. O tempo confirmou que o PÁGINA UM escreveu a verdade que muitos queriam esconder debaixo do tapete.

  • Bordalo II ‘vende’ Lisboa enquanto não pára de fazer fortuna a vender arte a autarcas de norte a sul

    Bordalo II ‘vende’ Lisboa enquanto não pára de fazer fortuna a vender arte a autarcas de norte a sul

    É um déjà vu, que começa a ficar estafado. O artista Bordalo II — nome artístico de Artur Bordalo — está de novo nas notícias e é assunto nas redes sociais. Dois anos depois da polémica que criou com uma instalação artística nas Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ), este ano o artista de projecção internacional já ‘atacou’ na capital com bons efeitos de marketing: em Maio com um tabuleiro do Monopólio, alegadamente uma ideia plagiada, e ontem instalou um ‘banner‘ no Cais das Colunas que simula um anúncio imobiliário, com a inscrição “Vende-se Lisboa“.

    A obra será uma crítica à crise na habitação que tem afligido a capital, mas que tem gerado um disparar de preços das casas e das rendas por todo o país. O artista já tinha colocado, em Maio, um jogo do Monopólio na Praça Duque da Terceira, no Cais do Sodré, também como crítica à crise na habitação.

    O artista Bordalo II instalou um ‘banner’ no Cais das Colunas em Lisboa a simular um anúncio de da conhecida rede imobiliária Remax. / Foto: D.R. | Bordalo II.

    Agora, numa publicação nas redes sociais, Bordalo II colocou as imagens do ‘banner‘que instalou no Cais das Colunas acompanhadas de um texto que simula um anúncio, com frases como: “Uma oportunidade de sonho numa cidade onde a maioria nem pode sonhar em viver”. Saliente-se que Bordalo II não está incluído nessa maioria, porque viverá na capital: a sede da Mundo Frenético, na zona de Marvila, é uma moradia unifamiliar de dois pisos com sotão e garagem.

    Mas enquanto alguns em Portugal sentem os efeitos da crise económica, do mesmo não se pode queixar este artista, que nos últimos sete anos acumulou uma pequena fortuna a vender obras de arte a municípios de norte a sul do país.

    De facto, através da sua empresa Mundo Frenético, o artista tem-se vendido a municípios onde muitos portugueses já não conseguem viver, ou vivem mas com muitas dificuldades. No total, em sete anos, Bordalo II amealhou 941.515 euros em 29 negócios feitos com 21 autarquias ou empresas municipais de todo o país. Só este ano, o artista já facturou 210.940 euros em dois negócios angariados junto de duas autarquias.

    O ‘banner’ instalado no Cais das Colunas tem o número de contacto do departamento ‘Habitar Lisboa’, da Câmara Municipal de Lisboa. / Foto: D.R. | Bordalo II

    O negócio de ‘venda de arte’ mais recente, feito com o município de Ponte de Lima, rendeu-lhe 79 mil euros, o que somado o IVA à taxa de 6% resulta num ganho de 83.740 euros. Esta transacção diz respeito à “criação, execução e instalação de escultura e mural de Bordalo II”. O contrato foi adjudicado por ajuste directo e assinado no dia 30 de Julho.

    Numa outra transacção angariada este ano, junto do Município de Sines, no litoral alentejano, Bordalo II cobrou 120 mil euros, ou 127.200 euros com IVA incluído, num negócio de “aquisição de elemento escultório” pela autarquia. O contrato por ajuste directo foi assinado no dia 14 de Fevereiro.

    Segundo o caderno de encargos deste procedimento, o município de Sines pagou pela “aquisição de serviços para conceção, execução e instalação de uma obra de arte única e original da autoria do artista Bordalo II“.

    Instalação de Bordalo II na Praça Duque da Terceira, no Cais do Sodré, em Maio deste ano. / Foto: D.R. | Bordalo II

    Neste contrato, entre as condições impostas pela autarquia, o artista comprometeu-se a fornecer uma “escultura(s) de exterior, composta por uma estrutura de suporte em ferro, forrada a madeira e revestida com desperdícios de plástico e outros materiais descartados”.

    A escultura envolve um “animal a representar um polvo, com dimensões aproximadas de 11 m x 8 m”. Outras condições referiam que se pretendia “a apresentação de draft, projeto 3D e maquete, com execução de estudo e projeto de estabilidade (engenharia)” e a “produção e materiais em estúdio e instalação no local pelo artista Bordalo II”.

    Não se conhecendo ainda maquete, certo é que Bordalo II não recicla apenas materiais; recicla ideias: já existe um polvo da sua autoria na Costa da Caparica.

    Polvo de Bordalo II na Costa da Caparica. Foto: DR.

    No caso da instalação em Sines, a autarquia assume també todos os encargos respeitantes ao “alojamento para quatro pessoas”, bem como o “transporte entre as instalações do cocontratante e o local de instalação em camião apropriado, bem como camião grua a plataforma elevatória no local durante a instalação”. Também serão pagos pelo município alentejanos os custos com “camião grua e plataforma elevatória para efeitos de instalação”, além de “autorizações, licenças e policiamento em caso de necessidade de corte de via”.

    Antes, a 25 de Novembro do ano passado, Bordalo II já tinha angariado um contrato com a Inframoura-Empresa de Infraestruturas de Vilamoura, para a “execução de peça artística alusiva à circularidade na Alameda da Praia da Marina, com utilização de bicicletas do sistema partilhado da Inframoura e outros materiais em fim de vida”. Neste contrato, o artista facturou 73.988 euros, com IVA incluído.

    De resto, no ano passado o artista ganhou 164.416 euros com obras vendidas a uma empresa municipal e três municípios em Portugal: Arcos de Valdevez; Lousada; e Mealhada. Desde que há registos de contratos com o artista na plataforma de registo de compras Públicas — Portal Base — Bordalo II já fez negócios com 21 municípios, além de juntas de freguesia e empresas municipais, num total de 29 contratos. Além destes contratos, há ainda negócios feitos com outras entidades públicas. No global, em 35 contratos públicos, Bordalo II facturou 1.212.875 euros em sete anos.

    A escultura ‘Sketchy Crab’ de Bordalo II em Vilamoura custou 73.988 euros e foi produzida com materiais em fim de vida fornecidos pela empresa municipal Inframoura, que encomendou a obra.
    / Foto: Inframoura

    Curiosamente, o primeiro contrato público que o PÁGINA UM encontrou no Portal Base foi efectuado precisamente com a Câmara Municipal de Lisboa, em 18 de Maio de 2018, para o “fornecimento de uma escultura com materiais recicláveis da autoria de Bordalo II”. O negócio foi realizado através da Mistaker Maker – Associação de Intervenção Criativa e rendeu ao artista 15.900 euros, com IVA incluído.

    Certamente, alguém na autarquia lisboeta estará a pensar se não teria sido apropriado reforçar uma relação comercial com o artista que teve apenas esse contrato público no tempo do socialista Fernando Medina. Recorde-se que em 2019, ainda no tempo de Medina, foi anunciado que um mercado no Martim Moniz contaria com esculturas de Bordalo II, mas tal não avançou no primeiro mandato de Carlos Moedas.

    Assim, com crise ou sem crise, Bordalo II continua a ter nos municípios portugueses clientes regulares que anualmente lhe trazem receita na entrega de murais e esculturas feitas com materiais de desperdício disponíveis nas cidades onde as obras de arte ficam instaladas.

    Antes desta acção em Lisboa, o artista já tinha partilhado nas redes sociais, no dia 18 de Julho, um ‘banner’ similar em Loures. / Foto: D.R. | Bordalo II

    E enquanto o capitalismo selvagem e políticas públicas têm promovido a especulação na habitação e o aumento da desigualdade e da pobreza, para Bordalo II a crise não chegou. No caso dos negócios feitos entidades públicas, sobretudo autarquias e empresas municipais, é dinheiro certinho que chega directamente dos cofres públicos. Mais precisamente, são notas de euro que perfazem 1.212.875 euros que entraram na conta bancária do artista nos últimos sete anos.

    Nada mau, ser-se um artista milionário num país em eterna crise. Traz o bónus de haver sempre oportunidade para mais instalações polémicas e oportunidades para promover o nome e, quem sabe, angariar mais umas esculturas e murais pelas cidades onde muitos já não conseguem viver.

  • Marcelo contrata Pinguim Atrevido para explicar como usar uma condecoração

    Marcelo contrata Pinguim Atrevido para explicar como usar uma condecoração

    Quando o assunto é complicado e se pretende torná-lo simples e cativante, o melhor é fazer um desenho. E se então for um desenho animado, estupendo. Terá sido isso que pensou Marcelo Rebelo de Sousa quando a Presidência da República decidiu encomendar a realização de um filme de animação para explicar… como usar condecorações.

    A empresa escolhida pela Presidência da República para esta ‘árdua tarefa’ de mostrar aos mais novos como as 10 dezenas de condecorações são usadas, quase sempre pelo já (muito mais) velhos, foi a Pinguim Atrevido, com sede no Porto, que vai facturar 17.896 euros, com IVA incluído, num contrato celebrado por ajuste directo no dia 5 de Junho, mas somente publicado no Portal Base no passado dia 9 de Julho.

    Marcelo Rebelo de Sousa com António Mota, antigo CEO da Mota-Engil, em Junho passado. / Foto: Presidência da República

    O objecto do contrato é a “aquisição do serviço de produção de filme de animação ‘Como Usar uma Condecoração’”, mas o contrato muito simples é omisso quanto às especificações do filme e também não menciona qual o objectivo desta encomenda. Sabe-se apenas que deverá estar concluído no início de Setembro.

    Também não está disponível o caderno de encargos do procedimento, contrariando as melhores práticas de transparência na contratação pública. Também não se sabe a razão da escolha da empresa Pinguim Atrevido. Para contratos de valor inferior a 20 mil euros podem ser feitas adjudicações de ‘mão beijada’ ao abrigo do disposto no Código dos Contratos Públicos.

    Em todo o caso, a Pinguim Atrevido é uma empresa criada em Maio de 2015 por Jorge Marques Ribeiro e Rui Marques Ribeiro, gerindo “um pequeno estúdio situado no centro do Porto” e produz “desenhos animados em 2D, 3D, e misturado com imagem real”.

    Foto: Presidência da República

    No seu site, a empresa complementa a sua apresentação com mais detalhes: “Temos vários estilos e linguagens tanto em filme como em ilustração, mas o que mais gostamos de fazer é bonecada!” O primeiro dos sócios, Jorge Marques Ribeiro, foi presidente da Casa da Animação, tendo realizado diversas animações, como, por exemplo, uma dedicada ás Linhas de Torres Vedras.

    Mas este não foi o único contrato envolvendo filmes recentemente encomendados pela Presidência da República. No dia 4 de Agosto, os serviços da Presidência formalizaram um contrato para a “aquisição de serviços de edição de vídeo para reformulação do filme ‘Palácio de Belém: Vivências’, inicialmente realizado em 2005..

    Este novo contrato foi adjudicado a Ramon de Oliveira Freitas, criador do personagem ‘Mitzpe’, através de um procedimento de consulta prévia. A justificação dada para a não realização de concurso foi o facto de ter, alegadamente, havido uma “consulta prévia, com convite a pelo menos três entidades”, o que abre caminho para um ajuste directo “quando o valor do contrato seja inferior a 75.000” euros. No caso deste contrato, o valor pago foi apenas de 3.752 euros.

    Marcelo Rebelo de Sousa numa das condecorações atribuídas no passado dia 28 de Julho no Palácio de Belém. Na imagem, Miguel Horta e Costa, presidente da Associação World Monuments Fund Portugal, recebeu a insígnia de Membro Honorário da Ordem do Infante D. Henrique atribuída àquela organização.
    / Foto: Rui Ochôa | Presidência da República

    O filme sobre o Palácio de Belém que vai agora ser alvo de ‘remodelação’, conta a história do “emblemático edifício, desde a implantação da República aos primeiros anos do séc. XXI”, tendo sido originalmente encomendado por Jorge Sampaio no âmbito da exposição temporária ‘Do Palácio de Belém. Encontra-se disponível online e na exposição permanente do Museu da Presidência da República.

    O filme faz um retrato “das vivências da residência oficial do Presidente da República Portuguesa e de quase cem anos da nossa História contemporânea”. Foi concebido por Diogo Gaspar e Elsa Alípio e teve produção de Patrícia Rolo Duarte.

    Já em Fevereiro do ano passado, a Presidência contratou “a produção e aquisição de filmes para o Núcleo das Ordens Honoríficas Portuguesas“, num contrato feito por ajuste directo no valor de 18.327 euros. A encomenda ficou nas mãos da empresa Shortfuse – Soluções de Webvídeo.

    Fotograma de um dos desenhos animados da Pinguim Atrevido.

    Um ano antes, em Janeiro de 2023, contratou a “prestação de serviços para produção de filme biográfico dos Presidentes da República para exposição permanente do Museu da Presidência da República“. O montante pago foi de 11.622 euros, tendo o contrato sido adjudicado sem concurso à empresa Braveant II.

    No total, em três anos, Marcelo Rebelo de Sousa gastou, pelo menos, 51.597 euros em filmes. Ficamos agora a aguardar para ver o filme animado sobre como usar condecorações. Outro filme que poderia atrair o interesse dos portugueses seria um sobre como se gasta o dinheiro público. Mas, se calhar, é melhor não dar ideias à Presidência da República…

  • Ridículo: Estado só concluiu 12 fogos habitacionais no ano passado

    Ridículo: Estado só concluiu 12 fogos habitacionais no ano passado

    Apesar do coro político sobre a prioridade nacional para a habitação, o Estado português – nas suas diversas vertentes, desde a Administração Central até às autarquias, passando pelos Governos Regionais – conseguiu um ‘feito inaudito’: concluir apenas 12 fogos habitacionais em todo o país durante o ano passado. Nem uma centena. Nem meia centena. Doze. É esse o número de casas novas em todo o ano de 2024, de acordo com os dados provisórios do Instituto Nacional de Estatística (INE), agora analisados pelo PÁGINA UM.

    No total de todas as habitações familiares concluídas no ano passado, o sector público foi responsável por menos de 0,05% – ou seja, apenas uma em cada 2.000 casas familiares terá sido construída por entidades públicas.

    low angle photography of cranes on top of building

    Num país onde vigora um Plano de Recuperação e Resiliência com centenas de milhões atribuídos à chamada “Habitação Acessível”, a acção directa do Estado revela-se, na prática, estatisticamente irrelevante.

    Apesar de se assistir a um novo dinamismo na construção de habitações familiares – o ano passado, com 25.311 fogos, foi o melhor da última década, superando mesmo o conjunto do triénio 2015-2017 –, tem sido a iniciativa privada que se tem destacado, tanto ao nível de pessoas singulares (famílias) como de empresas.

    Ao longo de 2024 foram concluídos 15.030 fogos construídos por empresas e mais 10.168 por pessoas singulares. Estes valores são também os máximos da última década, sendo que os crescimentos relativos face a 2023 foram de 15% e 2,7%, respectivamente. Uma parte também reduzida (101 fogos em 2024) foi concluída por iniciativa de empresas de serviço público, cooperativas de habitação e instituições sem fins lucrativos.

    Total de fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por entidade promotora entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    O mapa dos fogos públicos concluídos é quase caricatural: três em Mafra, três em Miranda do Douro, e um em cada um dos seguintes concelhos: Braga, Paredes, Caldas da Rainha, Vila do Conde, Lagoa (Açores) e Valença.

    Esta é a cartografia da acção do Estado português enquanto construtor de habitação. Sempre se poderá dizer que, conforme alerta o INE, não existem ainda dados nos últimos dois anos para os concelhos de Lisboa, Faro e Póvoa de Varzim, por ausência ou insuficiência de informação, mas esse quadro não se modificará muito quando houver dados desses municípios. Por exemplo, a capital de Portugal só tem referidos 100 fogos de iniciativa pública concluídos entre 2015 e 2022.

    A análise da última década mostra uma tendência contínua de afastamento do Estado enquanto promotor directo de habitação. Em 2015, os organismos públicos ainda concluíram 88 fogos. Não era quase nada, mas era sete vezes mais do que em 2024. O número manteve-se baixo ao longo dos anos seguintes, com um breve pico em 2021, quando foram contabilizados 262 fogos públicos – o valor mais elevado da década.

    Mas desde então, o colapso é evidente: 21 em 2022, 63 em 2023 e apenas 12 em 2024. Mesmo com eventuais acertos quando os dados forem definitivos, por agora o INE aponta para apenas 727 fogos familiares por iniciativa pública na última década, que contrastam com os 72.653 fogos por iniciativa de pessoas singulares, os 78.884 por empresas privadas e 556 por outras entidades.

    Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por todas as entidade promotora entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Este desinvestimento é tanto mais escandaloso quanto mais se recorre ao discurso público como cortina de fumo. Nunca se falou tanto de habitação pública, nunca se prometeram tantos apoios, tantos programas, tantas metas. Mas o resultado, medido em tijolos e telhados, é medíocre. Os números não mentem: o Estado não constrói.

    Os dados do INE, que não são matéria de opinião, demonstram que o que se vende como política pública de habitação não passa, em grande medida, de engenharia retórica. Em suma, dos 151.820 fogos habitacionais novos construídos entre 2015 e 2024, praticamente 52% foram de empresas privadas, cerca de 47,2% foram de iniciativa particular, 0,5% por iniciativa pública e um pouco mais de 0,3% por outras entidades.

    Em todo o caso, de forma global, observa-se uma tendência de crescimento do número total de fogos – que passou de pouco mais de 7 mil em 2015 para mais de 25 mil em 2024 –, mas o Estado, além de não contribuir para o volume, está muito longe de ter poder de regulação dos preços de mercado. Aliás, o Estado e as autarquias até beneficiam directamente da especulação, por via dos montantes tributados de IMT (Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis) e de IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis).

    Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por iniciativa de empresas privadas entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
    Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por iniciativa de pessoa singular (família) entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Os números do INE – que acabam por mostrar que os projectos, os planos, as primeiras pedras e os anúncios de entrega de chaves (que em muitos casos são de casas reabilitadas ou já existentes) – revelam que os sucessivos Governos prometem combater a especulação e a crise habitacional, mas é o mercado, com a iniciativa particular e de empresas privadas, que mostra dinamismo. Estamos perante a radiografia de um modelo de governação que trocou o cimento pelo soundbite. A política da habitação em Portugal continua a ser feita em conferências de imprensa, não em estaleiros de obra. E os cidadãos pagam, todos os dias, o preço dessa encenação.

    O dinamismo da construção de fogos habitacionais novos na última década tem estado concentrado sobretudo nos concelhos urbanos do eixo Porto-Braga e Lisboa-Setúbal, onde se intrometem Leiria, Aveiro e Viseu. O município que mais construiu entre 2015 e 2023 foi o Porto, com 6.590 fogos habitacionais, seguindo-se Vila Nova de Gaia, com 5.543 fogos. Braga é o outro concelho acima da fasquia dos cinco mil (5.045).

    Na Área Metropolitana de Lisboa, o Seixal foi o município que mais construiu (4.291 novos fogos). Segue-se depois, novamente a Norte, Guimarães (3.272), Leiria (3.062) – o primeiro concelho fora das duas áreas metropolitanas – e Vila Nova de Famalicão (3.041). Acima de dois mil fogos estão ainda Barcelos e Odivelas (ambos com 2.658), Matosinhos (2.398), Sintra (2.394), Lisboa (2.328), Mafra (2.311), Loures (2.285), Aveiro (2.234), Viseu (2.146) e Cascais (2.060). Fecham o top 20 os concelhos de Almada (1.991), Maia (1.862) e Setúbal (1.816). Quase quatro em cada 10 novos fogos habitacionais (39,3% do total) foram construídos nestes 20 municípios.

    Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por iniciativa de entidades públicas (Administração Central, Local e Regional) entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
    Evolução dos fogos concluídos em construções novas para habitação familiar por iniciativa de outras entidades (empresas de serviço público, cooperativas de habitação e instituições sem fins lucrativos) entre 2015 e 2024. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Porém, as dinâmicas mais recentes mostram algumas diferenças. Apesar de o Porto e Vila Nova de Gaia terem sido os que mais fogos concluíram em 2024 – 1.542 e 1.431, respectivamente –, o terceiro lugar é ocupado por Braga (mais 669 fogos), seguido do Seixal (649), Maia (567), Leiria (564), Cascais (540), Funchal (481), Sintra (472) e Oeiras (465). Estes 10 municípios foram responsáveis por 29,4% dos fogos concluídos no ano passado em todo o país.

    Recorde-se que no mês passado, o Programa do Governo estabeleceu como meta a construção de “59 mil casas públicas” e  a disponibilização de financiamento para mais projectos, incluindo parcerias público-privadas em imóveis do Estado devolutos com aptidão habitacional. Mas as promessas nem quatro paredes possuem, quanto mais tecto e acabamentos, pelo que, o mais provável, pelo histórico, é a montanha parir um rato.

    Aliás, também a promessa do Governo socialista de transformar a empresa pública Parque Escolar em Construção Pública – para assim passar a deter competências na área da habitação social – não passou do papel. E acabou por ser mais uma promessa não concretizada no sector da habitação.

  • Em quatro anos, Marcelo derrete 1,75 milhões a alugar  carros

    Em quatro anos, Marcelo derrete 1,75 milhões a alugar carros

    Em menos de quatro anos, Marcelo Rebelo de Sousa autorizou a despesa de 1,75 milhões de euros em viaturas para o parque automóvel da Presidência da República — mas nenhum desses veículos pertence ou pertencerá ao Estado.

    De acordo com uma análise do PÁGINA UM, desde Setembro de 2021, todos os contratos para viaturas da Presidência têm sido feitos em regime de aluguer operacional de (suposta) longa duração, porque duram geralmente apenas três anos, o que significa que os veículos são devolvidos às empresas no final do prazo, sem qualquer entrada no património público. São carros que custam como se fossem do Estado, mas que acabam por ser apenas emprestados — a preço de ouro.

    O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. / Foto: P.R.

    Apesar de estar a pouco mais de seis meses de abandonar o Palácio de Belém, Marcelo mandou renovar mais uma vez a frota oficial. Na passada quinta-feira foram assinados mais dois novos contratos, envolvendo uma despesa adicional de 279.516 euros. Ou seja, mesmo prestes a sair, continua a deixar contratos fechados e facturas abertas — a serem pagas já pelo futuro Presidente da República.

    Os novos contratos foram celebrados para três “lotes” de veículos. Num dos contratos, no valor de 170.920,80 euros, a empresa PPL Car foi contratada para fornecer quatro viaturas Peugeot 508 Allure Plug-in Hybrid, cada uma com 225 cv de potência. Cada viatura custará 42.730 euros pelo período de três anos — sem ficar na posse do Estado. No mercado, o preço-base deste modelo ronda os 50 mil euros, mas sem ter de ser devolvido ao ‘vendedor’ ao fim de três anos.

    No segundo contrato, no valor de 108.595,80 euros, a adjudicatária foi a habitual Lease Plan, empresa que tem vindo a ganhar praticamente todos os contratos com a Presidência desde 2021. Neste procedimento foram alugadas duas viaturas: um Mercedes Classe V 300 d Longo Avantgarde, por 71.744,23 euros, e um Peugeot 5008 Allure Plug-in Hybrid de 195 cv, por 36.851,59 euros. Só o Mercedes representa um custo diário de 65 euros, incluindo fins-de-semana e feriados — e no fim dos três anos, regressará à empresa como seminovo pronto a revender. Se a opção fosse comprar, a Presidência pagaria cerca de 90 mil euros, e o veículo poderia durar mais de três anos e ficar no Estado. No caso do Peugeot, o preço-base deste modelo está um pouco acima dos 47 mil euros.

    O aluguer de quatro viaturas Peugeot 508 Allure Plug-in Hybrid de 225 cv de cilindrada por um período de três anos vai custar aos contribuintes o valor de 170.920,8 euros. / Foto: D.R.

    A Presidência da República tem recorrido exclusivamente ao aluguer operacional de longa duração (AOLD), uma opção que permite o uso de viaturas novas mediante o pagamento de uma mensalidade fixa durante um período determinado (geralmente três ou quatro anos). Este tipo de contrato inclui manutenção e seguro, mas não transfere a propriedade do veículo para o Estado, nem no final do contrato, nem mediante qualquer valor residual.

    Embora essa modalidade seja frequente em empresas privadas e possa apresentar vantagens de gestão logística (sobretudo em frotas de uso intensivo), a sua aplicação sistemática na Administração Pública levanta sérias dúvidas de racionalidade económica, porque mesmo que uma entidade possa, por questões até de dignidade protocolar, desejar renovar a frota, os veículos com três anos (e uso pouco intensivo) poderiam ser encaminhados para instituições pública.

    Apesar de quase todos os contratos terem sido precedidos de concurso público, a Lease Plan venceu 19 dos 21 contratos dos últimos quatro ano, no valor global de 1.542.5781 euros. As ‘migalhas’ ficaram para a SGald, com um contrato de aluguer de um Mitsubishi Outlander em 2021, e para a PPL Car, com o contrato dos quatro Peugeot 508 Allure celebrado na passada quinta-feira no valor de um pouco menos de 171 mil euros.

    Mercedes Classe V 300 d Longo Avantgarde: opção pelo aluguer operacional é aparentemente implica que, ao fim de três ano, em vez de o Estado ficar com o veículo, este regressa à empresa.

    Os dados do Portal BASE mostram ainda que em 2023 se atingiu o pico de despesa, com 680.190 euros, enquanto em 2024, até meados de Julho, a Presidência já comprometeu 343 mil euros, ficando assim a nova frota já assegurada para o futuro chefe de Estado que será eleito em Janeiro.

    Não se conhece publicamente qualquer estudo sobre a opção por este modelo de renovação contínua de frota da Presidência da República que implicam que os veículos circulam três anos — e saem a partir daí pela mesma porta para não mais regressarem. Regressam outros, quase ao mesmo preço da compra.

  • Helicópteros: INEM celebra ajuste directo com Gulf Media para evitar ter de lhe aplicar sanções de milhões

    Helicópteros: INEM celebra ajuste directo com Gulf Media para evitar ter de lhe aplicar sanções de milhões

    Numa manobra que deixa em aberto sérias implicações jurídicas e financeiras, o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) celebrou ontem, pelas 14 horas, um ajuste directo com a empresa Gulf Med Aviation, com sede na ilha de Malta, no valor de 4.011.500 euros (acrescido de IVA), para garantir a operação de três helicópteros de emergência médica em regime de prontidão diária de 12 horas (H12).

    Este novo contrato, com uma duração de 123 dias, anula na prática os efeitos de um polémico contrato de 77.475.160 euros (mais IVA), adjudicado à mesma empresa num concurso público internacional lançado em Novembro do ano passado para vigorar a partir de 1 de Julho deste ano, mas cuja execução não está a decorrer porque a empresa de Malta não conseguiu disponibilizar a totalidade dos quatro meios aéreos em todas as horas do dia.

    Na prática, como se a Gulf Med não estava a dar cumprimento do contrato adjudicado após concurso público, o INEM poderia aplicar multas por incumprimento contratual de 730 mil euros por dia, como destacou hoje a TVI.

    O ajuste directo agora celebrado – invocando razões de “urgência imperiosa” – prevê agora a disponibilização de três aeronaves: dois helicópteros médios H145 e um helicóptero ligeiro H135, que deverão estar operacionalmente prontos para missões de emergência médica em território continental português. Um dos helicópteros médios só estará disponível a partir do próximo dia 15.

    O contrato estabelece um custo diário por helicóptero de 11.300 euros mais IVA, englobando operação, manutenção, tripulação e certificações técnicas, sem possibilidade de indisponibilidade superior a 12 horas sem substituição gratuita por aeronave equivalente.

    Este recuo estratégico surge após o falhanço da Gulf Med em garantir a entrada plena em funcionamento das aeronaves a 1 de Julho, como estipulado no contrato público original. Os dois helicópteros baseados em Macedo de Cavaleiros e Loulé só operam de dia, e por tempo indeterminado. O terceiro só estará disponível em Évora a partir de 15 de Julho. A base de Viseu deverá ter aeronave disponível em Agosto, sendo que todas estas operarão, numa primeira fase, exclusivamente em horário diurno. O uso de helicópteros da Força Aérea foi colocada em cima da mesa, mas com limitações técnicas e até jurídicas fortes. O INEM justificava que a passagem para operação 24 horas por dia será “gradual”, de acordo com uma mensagem interna citada pela CNN Portugal.

    Recorde-se que o concurso público internacional foi severamente criticado pela limitação de prazos e penalizações avultadas previstas para falhas operacionais (183 mil euros por base inactiva por dia). Apenas três empresas apresentaram propostas, entre as quais a Gesticopter, que já avançou com uma acção judicial para impugnação do concurso, actualmente em curso nos tribunais administrativos.

    A opção do INEM por este ajuste directo com a Gulf Med – ignorando por completo os pressupostos e o cronograma do concurso anterior – coloca em risco os próprios gestores públicos, que poderão vir a ser responsabilizados pelo Tribunal de Contas caso haja perdão implícito de penalidades à empresa maltesa, numa alegada “fase de transição”. Em casos semelhantes, os tribunais têm imposto restituição integral de verbas ao Estado e aplicação de multas individuais.

    doctors doing surgery inside emergency room

    Este novo contrato, ontem assinado entre o presidente do INEM e os representantes da Gulf Med, reforça assim a sensação de improvisação e falta de planeamento que tem marcado a gestão do sistema de emergência médica aérea, agora dependente de um ajuste directo de quase cinco milhões de euros por apenas quatro meses, enquanto se espera pela regularização – ou colapso – do contrato plurianual de 77 milhões.

    A polémica está longe de terminar. E os tribunais serão, ao que tudo indica, o palco principal onde se decidirá se houve mera urgência técnica ou fraude ao espírito do concurso público. Uma das empresas que perdeu o concurso público, a Gesticopter, já prometeu uma participação ao Tribunal de Contas e uma queixa-crime por indícios de favorecimento público e também à Comissão Europeia.

  • Mais circo do que pão: na região mais pobre do país, Calheta gasta quase 4% do orçamento num festival de música

    Mais circo do que pão: na região mais pobre do país, Calheta gasta quase 4% do orçamento num festival de música

    Nos Açores, a região com a maior taxa de pobreza do país, há um município que acaba de fazer um ajuste directo recorde. Tem apenas 3.500 habitantes, mas isso não impediu o a autarquia açoriana de Calheta, São Jorge, de gastar “à grande e à francesa”. No passado dia 4 de Julho, a autarquia adjudicou o seu maior contrato por ajuste directo de sempre. E não, não foi para tapar buracos numa estrada nem para mudar o telhado numa escola nem para apoio social. Calheta decidiu fazer o ajuste directo milionário para organizar um festival de música.

    A despesa recorde, efectuada em ano de eleições autárquicas, supera os 343 mil euros e destina-se a contratar músicos e serviços de montagem e desmontagem de palco no âmbito de um festival que se realiza entre o dia de hoje, 10 de Julho, e o dia 14 deste mês.

    O irlandês Gavin James é a principal estrela do Festival de Julho 2025, na Calheta, Açores. / Foto: D.R.

    Segundo o contrato, adjudicado sem concurso à empresa Excellent Vanguard, entre os artistas que vão actuar neste festival contam-se Gavin James, David Fonseca, The Gift, À variações, Némanus, Wet Bed Gang, Karetus, Tropa do Lima e os DJ’s John c e Oram. O preço final inclui a montagem e desmontagem do palco, som e luz..

    Assim, David Fonseca e À variações actuam hoje, 10 de Julho e os Némanus actuam amanhã. Já os Wet Bed Gang e os Karetus actuam no dia 12 enquanto a banda The Gift sobe ao palco no dia 13. Gavin James encerra o evento com um concerto no dia 14. Quanto aos dois DJ’s contratados, actuam no dia 12. Todos os concertos têm uma duração aproximada de duas horas.

    Para o município açoriano, trata-se do quinto maior contrato de sempre registado pela autarquia na plataforma de contratos públicos, o Portal Base. Só é superado por quatro despesas referentes a empreitadas de reabilitação de infrastruturas.

    David Fonseca sobe ao palco hoje na Calheta. / Foto: D.R.

    Em termos de despesa, este ajuste directo ‘comeu’ 3,6% do orçamento anual global da autarquia, da ordem dos 9,5 milhões de euros. Comparando com o caso do orçamento de Lisboa, é como se a capital decidisse gastar 49 milhões de euros com um só evento.

    Tendo em conta o número de habitantes, este festival ‘grátis’ na Calheta corresponde a 98 euros por residente naquele município açoriano que engloba cinco freguesias.

    Para a empresa que ganhou este contrato sem concurso, trata-se da maior facturação de sempre com uma entidade pública. Dos cinco contratos que tem no Portal Base, o segundo maior contrato que obteve com o sector público foi no ano passado, também o município de Calheta, para organizar o Festival de Julho 2024.

    The Gift. / Foto: D.R.

    Mas o contrato obtido no ano passado com aquela autarquia foi de ‘apenas’ 135.736 euros, ou seja, um valor que corresponde a 40% do montante que a empresa conseguiu facturar com o contrato feito agora para o ‘Festival de Julho 2025’.

    O contrato assinado em 4 de Julho do ano passado aparece em branco no documento que é disponibilizado no Portal Base, estando apenas registados os dados com um resumo do procedimento.

    A empresa Excellent Vanguard foi criada em Setembro de 2017 e é detida por um casal que reside em Angra do Heroísmo. A maior quota está nas mãos de Elisa Margarida Oliveira Terroso e uma quota menor pertence ao marido, Rui Duarte Alves Álamo.

    A Excellent Vanguard anunciou que fez o ‘bis’ e ganhou a organização do ‘Festival de Julho 2025’. / Foto: Captura de imagem do Instagram

    Rui Álamo conseguiu, individualmente, um outro ajuste directo no ano passado, no valor de 60.614 euros. Tratou-se de um contrato adjudicado pelo município de Angra do Heroísmo relativo à aquisição de “serviços de manutenção de pavimentos através do corte de infestante no centro urbano da cidade de Angra do Heroísmo”.

    De resto, não se encontra site da empresa na Internet, mas nas sua página na rede social Instagram, a Excellent Vanguard apresenta-se como a organizadora de outros eventos nos Açores, designadamente o Graciosa Sound Fest e o Festas na Praia, na Terceira, e a ‘Festa do imigrante’, nas Flores.

    Para os residentes nos Açores, música não faltará este Verão. No caso da Calheta, haverá música e festa a ‘bombar’ nos próximos dias.

    O cais da Calheta, São Jorge, Açores. / Foto: D.R.

    Segundo o relatório ‘Balanço Social 2024‘, uma em cada 10 famílias na Região Autónoma dos Açores não consegue fazer uma refeição proteica de dois em dois dias, sendo que “a taxa de pobreza está quase 8 pontos percentuais acima da média nacional nos Açores, a região com maior taxa de pobreza em Portugal”.

    De resto, segundo o mesmo relatório, a região apresenta o valor mais alto de privação em diversos indicadores de pobreza, a nível nacional. Os Açores registaram, em 2023, o mais alto coeficiente de desigualdade — GINI — (36,0)em Portugal. Em 2024, a região apresentava a maior taxa de risco de pobreza a nível nacional, chegando aos 24,2%. No relatório, os Açores surgem ainda como a região do país com maior nível de desigualdade.

    Mas, apesar destes indicadores, música não faltará. Pelo menos na Calheta.

  • CMTV arrisca multa de 150 mil euros por ‘vender’ Lidl e aparelhos de audição

    CMTV arrisca multa de 150 mil euros por ‘vender’ Lidl e aparelhos de audição

    A fronteira entre informação, entretenimento e publicidade continua perigosamente diluída na grelha da CMTV, canal detido pela Medialivre – grupo de comunicação social com Cristiano Ronaldo entre os seus accionistas de referência. E, desta vez, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) decidiu não ficar indiferente: após analisar uma emissão do programa Manhã CM, transmitida em directo no passado dia 3 de Março, instaurou um processo de contra-ordenação por violação grave da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido (LTSAP).

    Em causa está a promoção encapotada da inauguração de um supermercado Lidl em Odivelas, sem qualquer aviso aos telespectadores de que se tratava de conteúdo publicitário. A coima prevista poderá atingir os 150 mil euros, conforme estipulado pela legislação aplicável.

    Num estilo de reportagem jornalística, a CMTV nem avisou os telespectadores de que se tratava de publicidade. A ‘brincadeira’, se a lei se aplicar com rigor, pode custar-lhe 150 mil euros.

    A rapidez da deliberação – cerca de um mês – é invulgar e revela a gravidade atribuída pela ERC à infracção. No documento a que o PÁGINA UM teve acesso, a entidade reguladora descreve em detalhe a forma como a CMTV transformou um suposto momento de entretenimento matinal numa acção promocional descarada. Em directo do novo espaço comercial, uma apresentadora do canal, com pose de jornalista, exaltou o local como “um espaço moderno, totalmente renovado”, afirmando ainda que “esta loja conta com um investimento de nove milhões de euros (…). Já sabe que é aqui que pode encontrar a melhor qualidade ao melhor preço”.

    Durante a emissão, a apresentadora entrevistou clientes visivelmente seleccionados, cujos testemunhos reforçavam o tom publicitário: “Está muito bem, está muito grande e com muita variedade de produtos”. As imagens mostravam o interior da loja, produtos nas prateleiras e respectivos preços, acompanhadas de mensagens no ecrã como “Lidl Portugal”, “Nova loja em Odivelas”, “Frutas e legumes sempre frescos” e “Investimento de 9 milhões de euros”.

    O programa não se ficou por aí. Pouco depois, foram exibidas imagens de um aparelho de audição da marca Philips, que ocupava cerca de metade do ecrã, com a legenda: “Audição com estilo? Sim, é possível”. Em momento algum foi identificado que se tratava de publicidade, colocação de produto ou ajuda à produção – exigências legais obrigatórias.

    A inauguração do Lidl de Odivelas em Março deste ano está ainda no medialivre Boost Solution, dedicado a publicidade, mas a emissão não avisou que era publicidade e ‘deu ares’ de se tratar de uma peça jornalística.

    A análise da ERC é taxativa: as referências exibidas tinham inequívoco carácter promocional, utilizavam linguagem elogiosa e destacavam vantagens comerciais. Mais grave ainda, essas inserções ocorreram sem qualquer enquadramento legal. O regulador recorda que a publicidade televisiva deve ser “facilmente identificável como tal e claramente separada da restante programação”. E sublinha que a colocação de produto “não pode influenciar os conteúdos e a sua organização na grelha de programas (…) de modo que afecte a responsabilidade e a independência editorial do operador de televisão”.

    Apesar da possível coima, o episódio parece antes indicar uma prática reiterada da Medialivre, que, sob pretextos informativos ou lúdicos, tem acumulado casos de ilegalidade e promiscuidade. Ainda recentemente, o PÁGINA UM revelou que, sob o disfarce de um ciclo de debates intitulado “Uma Cidade para Todos”, a Câmara Municipal de Lisboa pagou 147.600 euros à Medialivre por “serviços” que incluíram a presença do próprio director editorial do grupo, Carlos Rodrigues.

    A jornalista Daniela Polónia desempenhou o papel de ‘mestre-de-cerimónias’ e o jornalista João Ferreira assumiu funções de moderador contratualizado, num evento que não contou com qualquer representante da oposição a Carlos Moedas.

    Carlos Rodrigues, director do Correio da Manhã e da CMTV, na conferência paga pela Câmara Municipal de Lisboa á sua empregadora, a Medialivre. A jornalista Daniela Polónia, ao seu lado, foi a ‘mestre-de-cerimónias’: eis as novas funções, cada vez mais banalizadas, de jornalistas num mercado em que os reguladores tudo permitem.

    No ano passado, a ERC instaurou igualmente um processo de contra-ordenação à Medialivre por uma campanha de autopromoção do Correio da Manhã disfarçada de reportagem jornalística. O episódio decorreu numa papelaria e foi protagonizado por uma jornalista estagiária, em violação flagrante das normas editoriais, onde se falava de cupões de desconto.

    Ainda mais grave foi, em 2023, a celebração de 11 contratos com autarquias para as comemorações dos 10 anos da CMTV. Neste caso, o canal por cabo da Medialivre recebeu mais de 200 mil euros para promover municípios em programas de entretenimento e informação. A troco de valores entre os 20 mil e os 25 mil euros, as autarquias puderam indicar locais e pessoas a entrevistar – incluindo os próprios autarcas –, e até foram definidos os horários dos blocos noticiosos, como previsto nos cadernos de encargos consultados pelo PÁGINA UM. Nessas emissões, o jornalista Francisco Penim, ex-director de programas da SIC e também da CMTV, conduziu os programas, acompanhado da jornalista Sofia Piçarra. Nenhuma sanção conhecida foi aplicada a estas promiscuidades por parte da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ).

    Em 2023, os jornalistas Sofia Piçarra e Francisco Penim foram os mestre-de-cerimónias de 10 emissões pagas por autarquias, elogiando os concelhos e entrevistando autarcas e outras pessoas indicadas pelas Câmaras Municipais, que pagaram os programas de informação, onde ficaram explicitadas as horas dos directos. A ERC e a CCPJ ainda não tomaram decisões definitivas sobre estas promiscuidades que descredibilizam o jornalismo.

    O exemplo mais extremo de promiscuidade registou-se no programa informativo Falar Global, onde o então jornalista Reginaldo Rodrigues de Almeida promovia entidades que, simultaneamente, contratavam os seus serviços através da empresa Kind of Magic. O conflito de interesses era total: jornalistas a fazerem contratos privados com fontes de informação para lhes dar visibilidade num espaço supostamente editorial.

    A reincidência é, pois, notória. Mas o verdadeiro problema reside sobretudo na complacência institucional: mesmo perante actos reiterados de promiscuidade e publicidade disfarçada, as sanções concretas tardam – o que, na prática, legitima o jornalismo vendido ao melhor patrocinador. Com efeito, nenhum dos referidos processos de contra-ordenação à Medialivre, levantados ainda sob liderança de Sebastião Póvoas, foram concluídos pelo Conselho Regulador da ERC agora liderado por Helena Sousa.

  • Distância às urgências: há quem demore menos de dois minutos; e outros mais de hora e meia

    Distância às urgências: há quem demore menos de dois minutos; e outros mais de hora e meia

    Há números que desmentem de forma irrefutável o discurso político da coesão territorial. E o acesso aos serviços de urgência, através do tempo gasto entre a residência e o hospital mais próximo, é um dos mais eloquentes. Segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), divulgados este mês e relativos ao ano de 2022, um quarto da população portuguesa demora mais de 21,5 minutos de automóvel ligeiro a chegar ao hospital com urgência mais próximo. A mediana nacional, que representa o tempo abaixo do qual está metade da população, situa-se nos 12,7 minutos.

    Mas estes valores médios são como o caso do frango comido por uma só pessoa, enquanto outra passa fome, porque, de forma enganosa, a Estatística diz que cada uma comeu meio frango. De facto, os valores nacionais na rapidez de acesso às urgências escondem realidades profundamente assimétricas entre regiões, distritos e concelhos. Por exemplo, considerando o tempo mediano de 12,7 minutos, na verdade há 87 concelhos em que esse tempo é inferior, mas 222 municípios onde é superior; em alguns casos mais de cinco vezes superior.

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    Nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, a resposta hospitalar está à distância de um curto passeio de carro. Em Lisboa, por exemplo, a mediana é de apenas 4,3 minutos, enquanto no Porto é de 5,5 minutos. Ou seja, metade da população destes concelhos demorava, no máximo, esse tempo para chegar a uma urgência hospitalar.

    Um total de 11 municípios apresentava tempos inferiores a 5 minutos de distância para metade da população: Amadora e Barreiro (4,8 minutos), Lisboa, Elvas e Lagoa, nos Açores (4,3), Espinho (4,2), São João da Madeira (3,7), São Brás de Alportel (3,5) e Sines (2,7). Este concelho alentejano é, aliás, aquele que melhor situação apresenta a nível nacional, uma vez que somente 25% da população gasta mais de 4,2 minutos para chegar à urgência hospitalar. Esse indicador é mesmo melhor do que o de Lisboa, já que este tempo diz respeito ao terceiro quartil.

    Em contraste, em muitas regiões de concelhos mais rurais e de baixa densidade populacional, particularmente no interior Norte, Centro e Sul do país, as distâncias para as urgências hospitalares tornam-se obstáculos que podem ser fatais.

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    A região do Alentejo apresenta o quadro mais grave. A mediana de acesso é de 30,6 minutos, e 25% da população demora mais de 40,5 minutos a alcançar cuidados urgentes. Este cenário estende-se ao interior Centro — sobretudo nas Beiras e na Serra da Estrela — e a vários concelhos da região Norte oriental.

    O problema agudiza-se ao nível concelhio. Um total de 15 concelhos portugueses regista tempos medianos superiores a 45 minutos, o que significa que metade da população nesses territórios está a mais de 45 minutos de um hospital com urgência. São os casos de Barrancos (distrito de Beja), Freixo de Espada à Cinta (Bragança), Miranda do Douro (Bragança), Moura (Beja), Pampilhosa da Serra (Coimbra), Odemira (Beja), Mértola (Beja), Ourique (Beja), Mogadouro (Bragança), Alcoutim (Faro), Figueira de Castelo Rodrigo (Guarda), São João da Pesqueira (Viseu), Penedono (Viseu), Sernancelhe (Viseu) e Vila Nova de Foz Côa (Guarda).

    Estes territórios, localizados em regiões de fraca densidade populacional e débil investimento público, representam zonas de alto risco em termos de equidade no acesso à saúde. Mas o retrato é ainda mais inquietante quando se analisa o terceiro quartil (Q3), que indica o ponto abaixo do qual se encontra 75% da população. Em dez concelhos, pelo menos 25% da população vive a mais de uma hora de um hospital com urgência. São os casos de Barrancos (Beja), Freixo de Espada à Cinta (Bragança), Miranda do Douro (Bragança), Moura (Beja), Mogadouro (Bragança), Alcoutim (Faro), Figueira de Castelo Rodrigo (Guarda), Penedono (Viseu), Sernancelhe (Viseu) e Vila Nova de Foz Côa (Guarda).

    No caso de Barrancos, o cenário é extremo: toda a população demora cerca de 90 minutos para chegar a uma urgência. Nos concelhos de Freixo de Espada à Cinta, Miranda do Douro e Melgaço, mais de 75% da população demora uma hora a chegar às urgências. Com tempos entre 45 minutos e uma hora estão ainda mais de 75% da população dos concelhos de Alcoutim (58,6 minutos), Penedono (57,8), Figueira de Castelo Rodrigo (57,2), Sernancelhe (56,3), São João da Pesqueira (52,2), Vila Nova de Foz Côa (51,7), Mogadouro (49), Odemira (44), Moura (47,5), Mora (51,1), Pampilhosa da Serra (44,7), Mourão (51,3), Mértola (45), Mêda (48,6), Montalegre (40,8), Aguiar da Beira (47,9), Ourique (46,1), Monção (45,7), Porto Moniz (41,8), Oleiros (44,7), Sousel (44,4) e Almodôvar (45,8).

    Apesar de este ser um indicador pouco relevado quando se analisam as políticas de saúde pública — e sobretudo a expectativa de vida em função da residência —, estas discrepâncias colocam em causa o princípio constitucional da igualdade de acesso à saúde.

    Quando uma pessoa que sofre um enfarte em Lisboa pode estar, em minutos, numa sala de hemodinâmica, enquanto outra em Penedono depende de um percurso de mais de uma hora por estradas sinuosas, a universalidade do Serviço Nacional de Saúde revela-se uma ficção estatística.

    A estas disparidades somam-se outros factores, como a carência de transportes públicos nas zonas mais afectadas, o encerramento progressivo de unidades hospitalares periféricas, e a centralização cada vez maior de recursos humanos e técnicos nos grandes centros urbanos.