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  • Atração dos latinos pelos fracassados

    Atração dos latinos pelos fracassados


    A posição de relativo destaque desfrutada hoje por Fred Hart entre os escritores policiais que atuaram nos Estados Unidos na década de 40 do século passado lhe foi assegurada por um livro intitulado O Resgate da gangue de Frank Butter, de autoria do professor Joaquín Maria Moretti de Aguirre, da Universidade Autônoma de Madri.

    A ressurreição de Fred Hart (1899-1948) só se deu porque Joaquín Maria, uruguaio de Salto, escolheu a metrópole da América do Norte para ali amargar seu exílio. Os pais dele queriam que fosse para a Europa, porém mais alto falou a paixão que o rapaz nutria pela literatura policial norte-americana.

    O modestíssimo sonho de Joaquín Maria, concluído o curso universitário, era passar um ano em uma sonolenta cidadezinha na fronteira com o Brasil, onde sua mãe possuía uma casa herdada de ancestrais bascos. Pretendia ali dominar o áspero português fronteiriço ao mesmo tempo em que mergulharia no cotidiano do vilarejo. De posse desses conhecimentos, a língua de Camões em sua versão para contrabandistas e a vida insossa num cafundó, escreveria mais tarde, com proustiana dedicação, um romance histórico sobre a chegada maciça de bascos espanhóis ao Sul do Continente em meados do Século 19.

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    Esse sonhou evaporou-se em um dia ventoso e frio de julho quando Joaquín Maria subiu a um palanque no qual jovens barbudos raivosos discursavam contra o governo. Desprezando os políticos e a política, Joaquín Maria não chegou àquele púlpito para destratar autoridades ou exigir liberdade, como escreveram depois jornalistas desavisados. Na verdade, sequer subiu ao palanque. Foi colocado lá à força. Mas, aproveitando o ensejo, pronunciou então uma desconchavada e hilariante arenga que ainda naquele mesmo dia correu de boca em boca pelas gélidas ruas da capital uruguaia com a velocidade das labaredas que devoram os campos estorricados de janeiro…

    Não, não nos antecipemos.

    O jovem Joaquín Maria pretendia também, depois de lançar o romance que lhe faria luzir o nome no vasto mundo literário hispânico, escrever soturnos contos campeiros, como o faziam muitos escritores de sua pequena, porém orgulhosa, nação. O núcleo verdadeiro de sua obra seria formado por curtas histórias trágicas protagonizadas por peões taciturnos.

    Mas, por azar, na época de sua desgraça, andava alinhavando – apenas para treinar os dedos, como dizia – um folhetim de casos burlescos protagonizados por um fabuloso coronel, Buenaventura Pasión, veterano de muitas refregas eleitorais e guerreiras, um anti-herói irônico, desbocado, parlapatão e pantagruélico.

    No dia fatídico, Joaquín Maria carregava no bolso de sua jaqueta de couro o original desse folhetim.

    Bem, já que estamos falando de alguém que se tornou renomado professor de literatura, é importante consignar que Joaquín Maria havia publicado, um ano antes, no El Nacional, um ensaio, intitulado “Neblina e escárnio”, com o qual pretendia demonstrar que a Grã-Bretanha e a Irlanda só eram o berço de magníficos escritores satíricos por sofrerem com um dos piores climas do mundo. Por outro lado, defendia que, embora nascidos em terras ensolaradas, portugueses, espanhóis e italianos eram os autores dos livros mais lúgubres da literatura mundial.

    Leitor onívoro, Joaquín Maria entremeava a leitura de romances clássicos (dominava também o inglês, o francês e o português) com coletâneas de contos argentinos, brasileiros e uruguaios. Como muitos rapazes daquelas terras austrais, sentia-se literariamente mais atraído pelo rude cotidiano dos gaúchos do que pelo vazio espiritual das cidades. Para espairecer o espírito, no intervalo entre a leitura de duas obras densas, devorava romances policiais norte-americanos.

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    Como foi Joaquín Maria parar em cima do tal fatídico palanque?

    Foi assim.

    Naquele dia ele havia almoçado num restaurante do Mercado del Puerto em companhia de dois colegas e de quatro garrafas de vinho. A primeira botelha, esvaída antes que fizessem o pedido, já os deixou alegres. A segunda acompanhou o despacho das carnes e a terceira e a quarta foram consumidas, entre gargalhadas, durante a leitura que Joaquín Maria fez dos capítulos iniciais de As mais tristes desventuras do valoroso coronel Buenaventura Pasión.

    Risonhos ainda, bochechas vermelhas e pernas incertas, os três jovens ganharam a rua ventosa. De repente, ao quebrarem uma esquina, viram-se diante de um ajuntamento em uma praça. Enfiaram-se pelo meio da ululante multidão até que se detiveram ao pé dos oradores.

    Livres pensadores, praticamente anarquistas, indiferentes à política, perceberam ali uma excelente oportunidade de diversão. Estavam em um posto privilegiado para a fruição das frases feitas e dos chavões dos furibundos discursadores, muitos dos quais eles conheciam de vista da universidade.

    Resolveram desempenhar o sempre divertido papel de bêbados de comício. Passaram a aplaudir com grande entusiasmo toda e qualquer tirada dos oradores, especialmente as mais idiotas. De vez em quando soltavam em voz alta uma piada.

    Como confessaria trinta anos depois, já então proprietário de veneranda barba grisalha e rotundo e dilatado ventre, Joaquín Maria estava ali também para, se possível, bolinar alguma donzela.

    À época ele era acossado por um recorrente sonho erótico no qual fazia amor com uma guerrilheira tupamara, vestida de Branca de Neve, que o fustigava com um chicotinho, chamando-o de “sórdido porco capitalista”.

    Tudo correu bem no início. Às vezes uma das piadas dos mancebos que recendiam a vinho obtinha o reconhecimento do público. De vez em quando, Joaquín Maria conseguia se roçar em uma garota.

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    Ocorre, porém, que, no intervalo entre as falas de dois oradores, alguns marmanjos grandalhões – cansados das piadinhas infames e das esfregas – resolveram colocar Joaquín Maria, o menor dos três amigos, em cima do palanque. Pegaram-no pelos braços e pernas e erguendo-o por cima de incontáveis jovens cabeças excitadas lançaram-no deitado sobre o tablado.

    Ao se levantar, Joaquín Maria surpreendeu-se com a visão de uma massa humana que ria às bandeiras despregadas. Não demorou um segundo para descobrir o que tinha de fazer. Retirou do bolso da jaqueta o manuscrito amarfanhado que pouco antes lera para os colegas. E, com voz pastosa e queixo duro, começou a narrar As mais tristes desventuras do valoroso coronel Buenaventura Pasión.

    As gargalhadas e os cacarejos se sucediam num rugido crescente como ondas de um mar furioso.

    Os organizadores do comício demoraram preciosos minutos até perceber que o baixote magricelo tinha de ser arrancado dali imediatamente. Debochava dos militares, sim, mas avacalhava também o protesto. Vacilaram um pouco a retirá-lo dali porque sabiam que não se deve contrariar uma aglomeração que ri.

    Em que consistia a novela de Joaquín Maria? Era um livrinho tosco, porém movimentado e divertido, no qual o autor enfileirava piadas – contadas pelo coronel – sobre a estultícia e a avareza dos poderosos, rurais ou urbanos.

    Como Joaquín Maria construiu sua noveleta?

    Pela junção de inúmeras piadas. Ele simplesmente agarrava o esqueleto de uma história engraçada e decorava-o com roupas e adereços. E depois dava um jeito de uni-la a outra piada também estilizada. Um cáustico militar, o coronel Buenaventura Pasión, era o protagonista/narrador do rosário de chistes e palhaçadas.

    Se fosse atento às coisas da política naquela época, Joaquín Maria certamente não teria concedido uma patente militar a seu pícaro herói.

    Amolecido pelo vinho e pela vertigem de ver-se acolhido por uma cumplicidade multitudinária, Joaquín Maria fez a leitura dos dois primeiros e breves capítulos do seu para sempre inédito folhetim até que, sob palmas e assovios, mais de apoio que de repúdio, foi sacado do palco.

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    Horas mais tarde, sóbrio à custa de três xícaras de café amargo, atravessou em alta velocidade, num carro de amigos de sua família, o cenário – pequenas cidades indolentes – que elegera como palco para as patifarias do coronel Buenaventura.

    Ao raiar o sol, no dia seguinte ao de seu efêmero triunfo oratório, cruzou uma rua e adentrou um exótico país chamado Brasil, que também vivia, à época, dias impróprios para piadistas.

    Três semanas mais tarde chegava a Caracas, de onde voou para os Estados Unidos. Lá, já estudante da Universidade de Nova Iorque, recebeu a incumbência de resenhar um livro policial escrito nos anos 40. Deram-lhe a oportunidade de optar entre os consagrados Dashiel Hammet ou Raymond Chandler. Ocorre, porém, que Joaquín Maria Moretti de Aguirre tinha verdadeira obsessão por escritores menores. Achava que a paixão pelos fracassados era um traço distintivo dos latinos, dos católicos, que jamais seria compreendido por mestres norte-americanos, protestantes. Por isso, para desafiar seu professor e afrontar a mentalidade anglo-saxônica, escolheu escrever sobre A gangue de Frank Butter, de Fred Hart, escritor de segunda ou terceira linha.

    Foi assim que saíram do anonimato e do esquecimento um hoje famoso ensaísta latino-americano (que não escreveu um romance histórico e nem mesmo um só conto duro) e o divertidíssimo Fred Butter, protagonista da obra mais representativa do que hoje se conhece como romance policial-pastelão.

    Lourenço Cazarré é escritor

    Texto originalmente integrado no livro Kzar Alexander, o louco de Pelotas


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  • Não importa, sempre acaba mal

    Não importa, sempre acaba mal


    – Não tenho biografia.

    – Fique tranquilo. Aqui são comuns declarações como esta. Com o choque, os pacientes se perdem de si mesmos.

    A doutora Adriana Kreuzfeuer era a bem-aventurada possuidora de um belíssimo rosto – delicadas sobrancelhas assimétricas, olhos azuis, narizinho empinado e boca esfaimada – coroado por uma encaracolada cabeleira loira herdada de avós imigrantes, a saber: o falecido Helmuth Schatsschneider Kreuzfeuer, construtor de chaminés de tijolos vermelhos para fábricas, e a nonagenária Ângela, em solteira Backheuser Stumpfsinn.

    – Por que o senhor não me conta um pouco da sua vida?

    – Porque o meu corpo foi tomado por alguém. E esse alguém não tem memória da minha vida anterior. Ou seja, esse alguém não pode – e eu também não posso – falar sobre o que aconteceu há, digamos, dois dias.

    – Sei. É como se a mente do senhor tivesse sido tomada por um alienígena.

    – Não. O caso não é tão moderno. Fui ocupado por um espírito, um velho espírito.

    A doutora anotava no computador, batucando com dedos espertos, tudo o que o homem lhe dizia.

    – Compreendo. O senhor é espírita?

    – Agora, sou agnóstico. Antes, não sei. Mas certamente não tinha uma fé muito profunda. Talvez por isso o tal espírito apoderou-se tão facilmente do meu eu anterior. Minha alma estava disponível.

    A bela Adriana Kreuzfeuer esboçou um rápido riso, divertido e intrigado, riso de psiquiatra que se descobre, por fim, diante de um lunático engraçado.

    – O que sabe o senhor sobre o, vá lá, espírito que está de posse de sua alma?

    O homem alto e magro movimentou-se inquieto na cadeira. Defensivamente, cruzou diante do peito os longos braços guarnecidos por mãos ossudas. Seu rosto comprido, atapetado por uma barba mais branca que cinzenta, aparada recentemente por máquina ajustada para dentes de número três, era o de alguém verdadeiramente angustiado.

    A psiquiatra refez a pergunta:

    – O senhor conhece a identidade desse espírito que se apossou da sua alma?

    – Sim. Conheço-lhe o nome, as datas de nascimento e morte. E, por alto, alguns fatos importantes de sua vida na terra.

    – Oh, isso é maravilhoso!

    A expressão do rosto da médica não acompanhou o entusiasmo exclamativo da frase. Era uma médica, uma cientista, e não estava ali para maravilhar-se. O que se podia dizer dela, sem conotação positiva ou negativa, é que era uma mulher nervosa, agitada, apressada, consciente de que, ao longo daquele dia, teria de enfrentar ainda muitos outros contadores de histórias desencontradas.

    – Me passe as datas de nascimento e morte do falecido?

    – 1860 e 1902.

    – Profissão?

    – Médico.

    Por baixo das sobrancelhas bem-cuidadas, um rápido e penetrante olhar azul-piscina partiu em direção ao homem alto e magro. Com os dedos levitando sobre o teclado, a médica parecia questionar-se. Debochando da minha cara?

    Pousou as mãos ao lado do teclado e suspirou. Não, não, aquele era apenas um mais pobre homem desnorteado, acachapado por uma tragédia pessoal que não conseguia compreender, aceitar e superar.

    – Especialidade do seu médico?

    – Clínico geral. Ele não defendeu sua tese de mestrado. Eu, aliás, ele, nós chegamos a fazer uma viagem à ilha de Sacalina…

    – Ele morreu bastante jovem. De quê?

    – Tuberculose.

    – Qual era o seu nome, o nome dele, do médico?

    – Anton.

    – Devo concluir que não era brasileiro.

    – Não. Era russo.

    – Russo?

    Bruscamente, a médica afastou o teclado com os polegares e ergueu os olhos diretamente para a lâmpada que estava sobre sua cabeça. E, congelada nessa incômoda postura, suspirou profundamente. Parecia descontente com a quantidade de luz emitida pela lâmpada. Talvez pensasse em processar o fabricante. Ao cabo de um demorado minuto, ela voltou os olhos celestiais para o paciente.

    – O senhor fala russo? Poderia me dizer umas três ou quatro palavras nessa língua?

    – Não. Claro que não. Sou um homem traduzido.

    Aquela última frase foi demasiada para a doutora Adriana. Ela imobilizou-se com os dedos abertos, a cabeça baixa, os olhos aparentemente procurando uma letra que não havia sido posta no teclado. Racionava. Seu pensamento talvez possa ser sintetizado por uma frase indelicada: esse maluco é de tirar qualquer um do sério.

    – Me dê mais informações sobre o médico russo.

    – Nasceu em uma cidade balneária, no mar Negro, a mil quilômetros de Moscou.

    A médica reproduziu num batuque ligeiro o que ele havia dito e quis mais:

    – Fale da família dele?

    – Éramos seis irmãos. Eu, Anton, tinha o dom de imitar. Todos riam das imitações que eu, ele, fazia dos mujiques, dos cocheiros, dos professores e dos funcionários públicos. O pai deles, o nosso pai, comerciante, adorava música. Treinava-nos para que cantássemos no coral da igreja. Depois de falir, papai, quero dizer, esse chefe de família foi para Moscou. Após concluir o ensino médio, eu segui também para lá. Ingressei na faculdade de Medicina. Como tinha grande habilidade com as palavras, como sabia tecer histórias, comecei então a escrever contos humorísticos para jornais e revistas populares. Logo ele, eu, estava sustentando a família com o que recebia pelos textos.

    – Bela história. Edificante. Mas, voltando ao nosso caso concreto, o senhor sente que é, verdadeiramente, esse escritor russo de contos de humor ou o senhor sabe que é apenas o corpo de um cidadão brasileiro dominado pela mente de um contista estrangeiro?

    O homem descarnado demorou a responder.

    – Sinceramente, eu não saberia lhe responder. As duas situações são igualmente plausíveis. Talvez até mesmo possam ocorrer simultaneamente. Neste exato momento, porém, sinto mais forte a impressão de que sou um pobre corpo ocupado. Mas, é claro, sei também que sou escritor e que escrevo em russo. Tentarei me explicar: o corpo é meu e meus movimentos são orquestrados pelo meu cérebro, no entanto, no fundo, sinto que as minhas palavras não são propriamente minhas. Elas pertencem a Anton. Por isso, se, por acaso, lhe disser algo que possa parecer zombeteiro, não se irrite, fique certa de que essas palavras me foram sopradas por ele.

    Os dedos da mulher corriam céleres, entusiasmados, por cima das teclas, perseguindo as palavras que o homem barbado pronunciava.

    – Nunca vi alguém descrever com tal riqueza de detalhes a sua…

    – Loucura, doutora?

    – Talvez. Mas, se for, será passageira. O senhor sairá dessa logo, eu lhe garanto. O senhor vai se livrar de Anton. Mas, agora, me explique uma coisinha. Como o senhor sente a presença dele, do russo?

    – É como ele fosse uma segunda pele, uma pele que está por baixo da minha pele, da verdadeira. O corpo físico de Anton se resume a essa pele. Ele não tem ossos ou carne. Porém meu cérebro pertence a ele, inteiramente.

    – Tenho uma curiosidade. O senhor me disse que ele, o russo, escrevia historinhas engraçadas. Quando ele pensa em algo divertido, o senhor dá uma gargalhada?

    – Não. No máximo, eu sorrio.

    – Quantos anos ele tem hoje?

    – Quarenta. Devo morrer em breve.

    Nessa passagem, pela primeira vez, o homem ergueu os olhos e os fixou na médica. Encarando-a, parecia esperar um desmentido porque era claro, pelos cabelos, barba e bigode quase totalmente brancos, que ele era já um sexagenário.

    – O que eu quero é que me explique como ele, sendo russo, um russo que certamente não conhece o português, consegue se expressar através do senhor.

    – Ele manipula minhas cordas vocais. É com surpresa e estupefação que percebo as frases que me escapam por entre os lábios. As palavras, obviamente, saem em russo do cérebro dele, mas ao chegarem às minhas cordas vocais automaticamente transformam-se em vocábulos portugueses. Há um programa de tradução instantânea no meu aparelho fonador.

    Depois de anotar aquela resposta, a psiquiatra voltou seus inquisidores olhos azuis para os negros olhos sonhadores do homem.

    – Como ele, o russo, consegue entender as minhas perguntas?

    – Há um segundo aparelhinho de tradução simultânea, instalado nos meus ouvidos. É semelhante ao que se encontra nas minhas cordas vocais, mas de funcionamento inverso.

    – Ótimo, ótimo, o senhor até aqui respondeu bem às minhas perguntas, mas agora eu preciso me aproximar da raiz mais profunda da questão… Então, indago: o senhor Anton se metia com política?

    – De jeito nenhum. Sou apartidário, apolítico. Digamos que sou alguém que só defende um valor: a liberdade. Libertários conscientes como eu não podem pertencer a igrejas, partidos ou qualquer outra agremiação.

    – E com mulheres?

    É importante, nesse ponto, termos em mente que o sobrenome da médica, em alemão, significa cruz de fogo.

    O homem abriu lentamente os braços, como que para ser crucificado. Suas orelhas de abano e bochechas chupadas foram tomadas por uma constrangedora vermelhidão. Era como se ele tivesse recebido um sopro de fornalha na face. Fechou os braços, brusco. Anton quis responder rapidamente, para livrar-se daquela pergunta indecente, mas não conseguiu articular uma só palavra.

    – Esse é o ponto central – prosseguiu a médica, e o homem imaginou ver grossos fiapos de uma gosma esverdeada de concupiscência escorrendo pela comissura dos lábios dela. – É sempre ele, sexo. O nosso obscuro lado animal. O acasalamento. Reprodução ou prazer? Não importa, sempre acaba mal… Enfim, em português, me responda: o doutor Anton comparecia?

    O homem enterrou-se na cadeira. Que grosseria! Comparecia? Era termo aceitável em uma consulta médica?

    Anton quis falar, demonstrar sua muita indignação. Comparecia? Era totalmente inadequado utilizar uma expressão tão rasteira em uma conversação com um escritor russo. Por que a doutora não usava a delicada expressão bíblica: conhecer?

    – O ponto nevrálgico é sempre o aparelho genital, a genitália – silvou a psiquiatra. – Mais adiante nos concentraremos nele.

    Adriana Kreuzfeuer encerrou a consulta fechando os olhos e trançando os dedos das mãos sobre o teclado, sinalizando claramente ao paciente que sequer lhe daria um rápido aperto de mão.

    O homem alto e magro de tristonhos olhos negros concluiu que a doutora Adriana talvez estivesse muito cansada. Ou com vontade de fazer algo muito excitante. Retirar o esmalte lascado das unhas, por exemplo.

    Ainda de olhos cerrados, a psiquiatra soltou um jato de ar fazendo biquinho com os grossos lábios sensuais e lascou na linguagem dos homens das cavernas:

    See you later.

    Quando levou o tronco à frente, no movimento de quem vai se erguer da cadeira, ou pular sobre a médica, o homem sentiu o pouso em seu ombro da mão pesada do enfermeiro, que havia permanecido de pé, imóvel e silencioso, atrás dele, atrás de Anton, ao longo da entrevista, mão que se fechou triturando ossos de omoplata e que chegou acompanhada por um vozeirão cavernoso:

    – Bora nessa, chefe, deu por hoje!

    Lourenço Cazarré é escritor

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  • A arte excêntrica dos goleiros

    A arte excêntrica dos goleiros


    «O diretor, que entendia pouco de esportes embora aprovasse com entusiasmo suas virtudes associativas, ficava ressabiado com a escolha que me levava a sempre jogar de goleiro no futebol, “em vez de correr junto com os outros rapazes”.

    A Pessoa em questão, Vladimir Nabokov.


    Alto, de largos ombros, o homem enchia a saleta do casebre deixando pouco espaço para a jovem jornalista que, diante dele, parecia ainda menor e mais gorducha.

    Entusiasmada, ela falava da sua fascinação pelas grossas camisetas coloridas, as luvas imensas, a solidão, a altivez dos goleiros.

    O homem sorria timidamente ao mesmo tempo em que recuava diante da metralhadora verbal.

    – Sente-se, milha filha – disse, e deixou-se cair numa poltrona.

    A mocinha explicou que estava ali com a missão de entrevistá-lo, para uma edição especial do jornal sobre os grandes craques do passado. Ele, como o maior goleiro da cidade, o maior de todos os tempos, tinha que ser ouvido, de qualquer jeito.

    – O cafezinho já vem.

    a soccer goalie's glove laying on a soccer field

    Por um instante ela se calou, o tempo necessário para localizar o sofá. Sentou-se, já falando:

    – Não vamos fazer apenas mais uma daquelas reportagens babacas, saudosistas, melosas. Isso nunca! É um trabalho sério, para incentivar o surgimento de novos talentos.

    Os olhos dela correram pela pequena peça talvez em busca de algo com que colorir depois sua narrativa, mas não havia um só quadrinho ou um calendário nas paredes nuas.

    – Quero saber como tudo começou para o senhor, isto é, a sua paixão pelo futebol, o jogar de goleiro. Em suma, qual é a sua lembrança mais remota?

    O homem suspirou fundo. As grandes mãos calosas, de juntas grossas, dedos tortos, espalmaram-se sobre as coxas. Os pés dele afastaram-se um pouco.

    Tem gestos mansos de gato, anotou a moça no caderninho.

    O longo silêncio pareceu desconcertar a jornalista, que tentou acomodar-se melhor no sofá de molas duras.

    Então, a mulher dele chegou com as xícaras de café na bandeja. Era uma mulata alta de meia idade, ainda bastante bonita, tristonha.

    goalie about to catch the ball

    – Esta moça é uma jornalista – disse ele.

    A garota fez menção de levantar-se, mas a mulher já deixava a sala, escorregadia.

    A jornalista sabia – disso tinha sido informada pelos colegas – que a mulata era lavadeira. Sabia que era ela quem ganhava o dinheiro para a cerveja que ele, religiosamente, ia tomar todas as tardes no centro da cidade. Era ela quem mantinha impecavelmente limpas as roupas puídas que ele vestia.

    Em silêncio, beberam o café.

    – Eu já era um rapazinho de doze anos quando assisti pela primeira vez a uma partida de futebol. Veja só, que coisa! Foi uma partida de veteranos e num campo de várzea!

    O rosto da jornalista se iluminou e ela ligou rapidamente o gravador.

    – Eu tinha chegado pouco antes, vindo do campo, para estudar interno no colégio dos padres. Meus pais queriam que eu entrasse para o seminário, depois. Era um bom jeito de enganar a miséria. Bem, num fim de semana, pedi licença ao diretor para visitar um tio meu, solteirão, eletricista, que morava aqui na cidade.

    O goleiro explicou então que admirava muito aquele tio que havia tido a coragem de abandonar as terras do avô e as rotinas massacrantes da agricultura para tentar a vida na cidade.

    Na época, ele achava que nada podia ser mais interessante do que o trabalho do seu tio que, todo dia, percorria a cidade, montado em uma bicicleta, oferecendo seus conhecimentos de eletricista, adquiridos num curso por correspondência.

    people gathering at soccer field

    – Para um moleque criado na roça, entre porcos e espigas de milho, como eu, ser eletricista era uma profissão fantástica!

    Mas, naquela tarde remota, ele descobriria que o irmão de seu pai podia fazer com as mãos algo ainda mais impressionante do que consertar aparelhos desarranjados.

    – Na garupa da sua bicicleta, o tio me levou a um desses campos de vila, com traves meio tortas, linhas laterais apagadas e grandes falhas no gramado. Mais do que falhas, buracos mesmo, onde a água empoçava nas chuvas. Nas duas áreas pequenas, nem um fiapo de capim, só a terra cinzenta e dura. Um dia o meu tio me disse: a seara dos goleiros só produz barro.

    O velho goleiro se demorava nos detalhes daquele primeiro jogo: era uma tarde comum de inverno, de sol fraco e nuvens baixas, e o vento cortante que vinha do rio assobiava furioso pelo meio dos renques de eucaliptos plantados por trás das goleiras.

    – Sentados debaixo do arvoredo, os veteranos começaram a se fardar. Todos usavam caneleiras, joelheiras, tornozeleiras e coxeiras porque eram velhos arrebentados. Pareciam gladiadores de cinema.

    Furiosamente, a jornalista tomava notas. Era uma garota muito imaginativa. Conseguia vislumbrar os jogadores sob os farfalhantes eucaliptos: gladiadores que só protegiam as pernas, as canelas marcadas pelos golpes das travas, os joelhos artrosados, os tornozelos azulados de antigas lesões. Sob os eucaliptos, ali onde o vento silvava mais forte, pensou ela, devia reinar uma excitação de vestiário de quartel – piadas sujas e gargalhadas. Atletas de cabelos brancos, calvas luzentes, rabiscou na caderneta.

    – O mais novo deles beirava os cinquenta anos e o mais velho tinha sessenta e lá vai pedra!

    Depois ele contou a ela que aquele campo pertencia a um clube de bairro, cujos dirigentes guardavam as manhãs de domingo para os times de guris e as tardes para os jogos de campeonato. Aos velhos, cediam as tardes de sábados.

    – Meu tio era goleiro.

    closeup photography of goalpost during daytime

    A repórter voltou-se interessada para o entrevistado. Tentava imaginar como seria o menino loiro que havia se transformado naquele homem de rosto inexpressivo, o garoto que com muita atenção observava os movimentos do tio: ajeitando as joelheiras esfiapadas, vestindo as meias com cuidado para evitar bolhas, apertando os cadarços da chuteira e ajustando as negras luvas de couro.

    – Estávamos os dois um pouco apartados dos outros. Então, de repente, de graça, o meu tio soltou uma frase que eu nunca vou esquecer, mesmo que viva mil anos. Ele me disse assim: um goleiro não se mistura.

    O homem contou à jornalista que, depois, enquanto esperavam que os outros acabassem de se arrumar, o tio lhe falou dos jogadores. Um por um. Eram como personagens de um livro ou de um filme. Havia um que chamavam de Doutor. Estava bem de vida, era dono de automóvel. Mas fora menino pobre e só cursara Medicina graças ao futebol. O mais gordo de todos, aquele que amarrava as chuteiras, curvado sobre a barriga, jogara na capital por quatro ou cinco meses. Não suportando a saudade da terra, voltara, deixando atrás uma possível carreira de sucesso.

    – Aí o tio me disse: Estás vendo aquele negro ali? É, o careca grisalho. Ele mesmo. Aquilo é mais traiçoeiro que gato de rua. Ele nunca chuta onde a gente está esperando.

    Por muitos e muitos anos, o menino tornaria a ver aquele homem quando fosse ao centro da cidade, porque ele estava sempre por trás do balcão, na sala escura do cartório, com os óculos acavalados no nariz, escrevendo naqueles livrões que tomavam toda a mesa.

    – Todo veterano é barulhento, gozador, matreiro, piadista e falastrão. Mas o meu tio, não. Era calado.

    A jornalista estava agora de braços cruzados, escutando, rosto sereno. Toda a ansiedade havia se afastado dela. Pensava no menino de olhos claros sentado sob os eucaliptos, fiel depositário dos gestos e das palavras de homens reunidos ao acaso, num sábado esquecido, num campo perto de um rio, numa cidade incógnita.

    – Então começou o jogo.

    soccer field

    A bola rolou e os homens se moveram também porque ela era como um imã e eles como pequenos bonecos de ferro que se voltavam invariavelmente para onde ela rolava. Eram veteranos, demasiado velhos para correr, gordos na maioria, deselegantes, lerdos e sarcásticos. Cuspiam palavrões pesados se os passes saíam errados, se o lançamento era longo ou curto demais, se a bola vinha com muito efeito. Bola que teimava em bater nas canelas, nos joelhos, coisa viva que não aceitava ser dominada. E penosamente se levantavam para enfiar o dedo na cara dos outros e para gritar palavrões ao juiz e à senhora sua mãe. Xingavam-se. Rindo, recriminavam-se por beber muito e comer demais.

    – Quando o juiz apitou o final do primeiro tempo, eles voltaram para o meio dos eucaliptos. No início, beberam só a água que tinham trazido num garrafão. Mas, depois, um deles destampou uma garrafa de canha. Davam talagaços. Uns faziam caretas, outros se arrepiavam. Eu achei muito engraçado. Mas o meu tio não bebia.

    Uma sombra correu pelo pálido rosto da repórter. As lembranças do homem alto, de certo modo, eram também dela. Então, naquele momento, ela começou a escrever, mentalmente, a sua reportagem. Começaria pelo intervalo do jogo de veteranos. Chegou a ver a garrafa de aguardente passando de mão em mão, e dois ou três deles, já com o fôlego recuperado, acendendo cigarros. As palavras acavalavam-se dentro dela: homens arfantes, deitados na relva, a fitar fixamente as nuvens de chumbo que, desgraciosas, se arrastavam pelo céu gris, talvez até dormitassem, exaustos, ninados pelo vento que rugia por entre os eucaliptos, velhos homens jogados sobre a relva, inertes.

    – O segundo tempo foi pior.

    Os jogadores sufocavam depois de arrancadas de vinte metros, chutavam a grama em vez da bola, puxavam da camiseta do adversário, passavam rasteiras por detrás, davam cotoveladas, empurrões. E quando a bola vinha pelo alto reclamavam também porque não conseguiam saltar para a cabeçada.

    – Quando o juiz apitou o final da partida, já era quase noitinha. Não se sabia mais quem era quem. O barro escuro tinha igualado os uniformes.

    A jornalista podia vê-los: exaustos, silenciosos, acabrunhados trocando a umidade do campo pelo frio dos eucaliptos; imaginou raios desenhando animais agonizantes no céu escuro. Viu depois como todos eles se foram levando vivas na mente as cenas daquele jogo, cenas que logo se misturariam e se confundiriam com outras, mais antigas, de gols perdidos, de passes errados e de lançamentos imperfeitos.

    – Nem me lembro quem venceu, se foi o time do meu tio ou o outro. Goleiros nunca se interessam pelo resultado. Goleiros gostam é de jogar.

    People Playing Soccer on Grass Field during Day

    Por um bom tempo permaneceram em silêncio. O homem de ombros largos e a jovenzinha rechonchuda compartilhavam a mesma imagem evanescente: um homem esgrouviado debaixo das traves, afastado dos outros todos como se fosse o habitante de um mundo diverso, consciente de que viriam atacá-lo, mas não se importando com isso.

    – Meu tio era um pouco encurvado, como todos os homens muito altos, mas, mesmo assim, tinha o porte mais garboso de todos eles.

     – Disso sabemos todos: o goleiro é sempre aristocrático – disse a jornalista e se pôs de pé.

    Seus movimentos eram nervosos, porque tinha pressa em chegar à redação. Queria escrever logo as palavras que se atropelavam no seu coração: um homem alto, solitário sob a goleira, à espera, olhos fuzilando, o corpo como que retesado, os músculos querendo explodir, movendo-se sem cessar sobre o maldito semicírculo de lama negra como animal aprisionado em jaula invisível.

    – Pois é – resmungou o homem. – Um goleiro não se mistura.

    Lourenço Cazarré é escritor


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  • A luz do abajur desafiando a escuridão

    A luz do abajur desafiando a escuridão


    – A casa agora será tua – a voz muito fraca.

    Não se preocupe com coisas materiais, eu deveria ter dito. Não fale, apenas se deixe morrer.

    – Quero que mores lá.

    Preciso dizer qualquer coisa para que ele se cale.

    – Sim.

    – Promete que não vais vender, nunca?

    Demoro a responder. Será que devo prometer alguma coisa a um homem que está pesando pouco mais de quarenta quilos?

    – Quero que me dês a tua palavra – insiste.

    É a voz que eu estou acostumado a ouvir desde sempre: autoritária, imperiosa, inflexível. Embora enfraquecida pela doença e pela morte próxima, é a mesma voz que nunca admitiu réplica.

    – Está bem. Eu juro.

    Fecha os olhos. Agora que está tudo acertado ele pode morrer. Sabe que não voltarei atrás. Quando empenhamos a palavra, ele ou eu, não há força que nos faça descumpri-la.

    Cedi mais uma vez. Sempre me acovardei diante desse homem que soube carregar sem aparente sacrifício a mais pesada de todas as pequenas palavras: pai.

    Eu deveria observá-lo com atenção, pois esta será certamente a última imagem que me ficará dele, mas mantenho os olhos fitos na janela entreaberta pela qual entra o sol do fim da tarde. Não. Esse corpo magro e alquebrado não pertence ao meu pai. O meu velho morreu bem antes, morreu no dia em que não pode vestir-se para ir ao trabalho.

    Era um homem maciço – pescoço taurino, ombros largos, peito amplo – que parecia ter sido fundido em metal. Era uma certeza que jamais vacilava.

    Vou até a janela.

    Ainda bem que a mãe se foi antes.

    A mãe sofreria muito vendo aquele corpo devastado sobre a cama. Aquele não é mais o homem que abria a porta do carro para ela.

    O sol morrente incendeia as casas, as calçadas, o leito da rua. Atrás de mim estão a obscuridade, o frescor e o silêncio do hospital.

    full moon and gray clouds during nighttime

    Ele nunca pode ou quis ser nada além de meu pai. Seria ridículo se tentasse fingir que havia entre nós algo como amizade, companheirismo ou camaradagem. Éramos pai e filho.

    Ficava feliz quando conhecia um homem às antigas, como ele.

    – Hoje encontrei um cavalheiro – dizia.

    Apagou-se em três meses. Sabia que a doença era irreversível. Como estava com setenta e oito anos, decidiu aceitar o fim. Entregou-se porque decidiu que havia chegado ao final da linha. Não creio que tivesse medo de enfrentar a dor.

    Não recusava o alimento. Comia de olhos fechados umas poucas colheradas do que a enfermeira lhe dava e depois, quando ela deixava o quarto, levava o dedo à garganta.

    – Descobri que ele não tem enjoo coisa nenhuma – disse a enfermeira, e persignou-se. – O que ele faz é pecado.

    O médico bateu as mãos espalmadas nos joelhos e se levantou.

    – O senhor, que é o filho, tem de resolver. Ou continuamos assim, e ele morre de inanição, ou começamos a alimentá-lo por sonda, mesmo correndo o risco…

    – Que risco?

    – Em caso de vômito, o alimento pode parar no pulmão. É morte certa.

    – A morte é sempre certa – eu disse. – Escolha o senhor.

    – Não posso lhe assegurar nada, mas, com a alimentação pela sonda. ele talvez permaneça mais tempo conosco.

    – Não sei se ele faz questão de permanecer mais tempo na nossa companhia – retruquei.

    Aliás, eu nunca soube se ele quis algum dia estar ao lado de alguém que não fosse a mãe.

    Era um homem calado, extremamente reservado.

    – Não gosto de gente derramada – dizia.

    Penso que gostava de mim apenas porque eu era o filho da mulher que ele amava com um fervor religioso.

    Reflexivo, o médico passou o indicador pelo lábio inferior. Era um técnico, precisava tomar uma decisão séria, que veio em seguida.

    – Vamos à sonda nasogástrica! – disse e, seguido pela enfermeira, se encaminhou para o quarto.

    O pai morreu dois dias depois de ter me arrancado aquela promessa.

    black and gray cement tombs

    *

    – Hoje tu vais me acompanhar – disse a voz que não admitia contradita.

    – Posso ir de bicicleta?

    – Não. Vamos a pé. De pés descalços! Choveu muito nesta noite.

    Parado na escadaria que descia ao pátio, de costas para mim, as mãos cravadas na cintura, vestindo apenas calção, o pai lembrava a figura de um boxeador que eu vira numa enciclopédia.

    Recalcitrante, encostei na parede do alpendre a bicicleta que havia encontrado minutos antes ao lado da árvore de Natal. Sentei-me na laje úmida e tirei as sandálias. Eu não havia dado nem vinte pedaladas no brinquedo tão aguardado. Pedaladas silenciosas para não acordar a mãe, que gostava de dormir até mais tarde.

    Quando me pus de pé, e me arrepiou o contato com a laje fria, o pai estava já com o portão aberto. Ao correr até ele, eu me voltei para olhar mais uma vez a bicicleta.

    Tomara que a gente não demore muito, pensei.

    Era o meu primeiro passeio na praia com o pai.

    Saímos para a manhã úmida. As ruas sem calçamento estavam encharcadas, com muitas poças de água barrenta.

    Não entendi quando nos encaminhamos para o interior do balneário, em vez de irmos para a orla. Eu esperava que o pai me levasse para caminhar à beira da lagoa. A gente poderia ir até o trapiche dos pescadores, chutando as ondas, molhando os pés e as canelas.

    Só anos depois compreendi por que o pai me levou a zanzar pelas ruas da zona mais rica da praia. Ele se orgulhava de ter construído muitos daqueles casarões.

    De quando em quando, apontando discretamente, me chamava a atenção para detalhes dos jardins, dos muros, dos portões, dos telhados. Sabia quanto aquilo tudo havia custado. Entremeava a citação de valores com relatos resumidos de episódios dramáticos da construção: paredes derrubadas pelo vento, pedreiros despencando de andaimes, alicerces que cediam misteriosamente. Se havia um automóvel na garagem, me informava da marca, modelo e ano de fabricação. Por fim, o pai me dizia o nome do proprietário e se ele tinha filhos ou netos.

    – É preciso aprender a ler o que está escrito nas ruas.

    Naquela manhã ele não parou de falar. Em casa, raramente abria a boca para pronunciar uma daquelas suas frases curtas, secas.

    Quando voltávamos, já bem próximos de casa, de repente o pai parou.

    – Isso aqui é greda – disse ele.

    – O quê?

    – Greda – repetiu, como que se deliciando com a palavra. – É boa para fazer tijolos.

    O pai enterrava com gosto o pé descalço na argila macia, amarelada, que lhe subia por entre os dedos e cobria-lhe o peito do pé.

    Depois, agachou-se.

    – Faz como eu. Mete as mãos no barro.

    Embora sentindo nojo, esmigalhei uns torrões daquela matéria pastosa. Pensei na mãe. Se ela me visse ali, colocando as mãos naquela sujeira, ficaria muito braba.

    – É gostoso, não é?

    – Sim, é bom – menti.

    O pai estendeu a mão embarrada até uma caixinha de fósforos, vazia, que estava sobre a relva que nascia junto à calçada. Abriu a caixa e encheu com barro a parte em que ficavam os palitos.

    – Vamos levar isso com a gente.

    – Para quê?

    – Tu vais saber depois.

    Em casa, antes de correr para o tanque a fim de me lavar, vi o pai colocar a caixinha cheia de argila em cima da mureta do pátio. Com as mãos e os pés ainda úmidos, peguei a bicicleta e saí para pedalar na rua.

    a man holding a lantern in the dark

    *

    O pai esperava que eu cursasse engenharia, como ele. A mãe gostaria mesmo que eu fosse advogado, como o pai e o avô dela, mas bem que se contentaria com engenharia.

    Não conseguiram esconder o desapontamento quando eu anunciei que faria o vestibular para arquitetura.

    O certo é que um dia, cinco anos depois, pendurei um diploma na parede da saleta que o pai alugou para que nela eu montasse o meu primeiro escritório. Comecei com modestíssimas encomendas de gente remediada, como se chamava a classe média de então.

    – Um nome se constrói com trabalho – dizia o pai.

    Ele jamais me convidou para atuar em nenhuma das obras que tocava sem parar, uma atrás da outra, às vezes duas ou três simultaneamente. Tinha seus arquitetos, engenheiros, mestres de obra e pedreiros, gente que trabalhava para ele há décadas.

    – Meu time é só de pessoas de extrema confiança.

    Nunca me pediu que projetasse sequer uma casa de cachorro. Pelo meu lado, nunca lhe pedi um trabalho, nem mesmo no penoso início da carreira.

    Como nunca trabalhamos juntos, jamais brigamos.

    *

    No domingo seguinte, antes de sairmos a passear, o pai apanhou de cima do muro a caixa de fósforos e de dentro dela retirou um pequenino retângulo de barro seco, que me entregou.

    – Um tijolinho para construíres tua primeira casa.

    Ele passava a semana na cidade. Só chegava à casa da praia pelo meio das tardes de sábado. Nas segundas-feiras, bem cedo, embarcava no automóvel e retornava às obras.

    Nosso passeio dominical nas manhãs de verão durou oito anos. Na semana em que completei catorze anos, ele me dispensou.

    – Se quiseres, a partir de hoje, podes passear sozinho. Tu agora és um homem.

    Comemorei a libertação correndo para o clube. Naquele dia cheguei a tempo de entrar na escolha dos jogadores para a primeira partida de futebol de salão. Antes, por causa do passeio obrigatório, eu era obrigado a entrar só na terceira partida, a que reunia os pernas-de-pau recusados para os jogos anteriores.

    Aqueles passeios – que por muitos anos foram uma tortura para mim – são hoje uma das minhas melhores lembranças.

    O pai passava os domingos de verão no alpendre, acomodado na cadeira de balanço, sempre com um livro ou jornal nas mãos. De olhos fechados, como se estivesse dormindo, estirada na espreguiçadeira, a mãe escutava a música que vinha do toca-discos da sala.

    Na casa da praia, aos domingos, eles reproduziam as noites sempre iguais da nossa casa na cidade. Música e leitura. A mãe gostava de tangos e boleros, mas também ouvia óperas. O pai só queria saber de jornais, revistas e livros de engenharia.

    Desde que me lembro, eles sempre estiveram sentados, próximos, lendo e escutando música, na praia ou na cidade, raramente trocando umas palavras em voz baixa.

    person in black jacket walking on pathway between trees during daytime

    *

    Vamos agora ao que realmente interessa.

    Ao final do terceiro passeio, quando passávamos pelo portão, eu peguei o pai pela mão. Ele me olhou surpreso. Gaguejante, mal controlando uns risinhos tolos, eu o conduzi até o fundo do pátio.

    Paramos debaixo da figueira.

    – Olhe o que eu fiz – apontei, sorridente.

    O pai ficou um tempão calado, só olhando. Vi muitas coisas no rosto dele naquele momento. Um sorriso largo, de espanto e orgulho. Depois, comoção. Percebi até um cintilo prenunciador de lágrimas. Mas aqueles sentimentos delicados se apagaram logo.

    Então ele se agachou diante da casinha que eu havia construído com tijolinhos de barro.

    – Esta parede aqui não está cem por cento. Tu poderias ter caprichado mais.

    A tarefa de montar aquela casa me tomara a semana inteira. Eu havia fabricado centenas de tijolinhos. Perdera muito tempo percorrendo os bares à procura de caixas de fósforos vazias e tivera que descobrir outra mina de greda numa rua próxima.

    Pensei em retrucar. Poderia ter dito: não, pai, a parede está perfeita porque eu usei prumo e esquadro. Mas permaneci calado.

    O rosto do pai tinha voltado a ser o que era sempre: uma indecifrável máscara de traços fortes.

    Aquela foi a primeira e única vez em que mentiu para mim. Deve ter custado muito a ele.

    – Mentira é cor que não sai da minha paleta – dizia.

    Só bem mais tarde, já adulto, fui compreender por que motivo ele havia dito que a tal parede estava torta. Ele julgou que eu me acomodaria se dissesse que a casinha estava bem-feita. Para ele, as pessoas tinham de ser permanentemente chicoteadas e esporeadas para que buscassem a perfeição.

    woman holding string lights

    *

    Cumpri meu juramento.

    Depois de trinta anos morando em apartamentos pequenos, voltei para este casarão imenso, que está sempre reclamando algum cuidado. Não falo pelo dinheiro. O problema é que uma casa deste tamanho exige atenção, tempo.

    Sinto-me um estranho, embora tenha vivido aqui até os vinte e cinco anos. As muitas peças, amplas, de pé direito elevado, fazem com que eu me sinta de novo pequeno. O silêncio às vezes é opressivo.

    À noite, antes de me deitar, venho para cá, e me sento nesta poltrona que foi do pai para assistir aos noticiários dos canais internacionais. Sempre gostei de estudar línguas estrangeiras. Vou de um telejornal a outro: espanhol, italiano ou francês. As notícias são idênticas em todos os canais do mundo, as emissoras usam as mesmas imagens. A leitura não me atrai, nunca me interessei por música.

    Às vezes sou tocado por uma estranha sensação. É como se algo leve como um sopro atravessasse a sala. Eu me arrepio.

    Eu sentia o mesmo quando era pequeno. De noite, já de pijama, eu me deitava de bruços no tapete para folhear livros infantis ilustrados. Mesmo protegido pela presença dos meus pais, de vez em quando eu espichava olhares para os cantos mais escuros e sentia medo.

    Agora, quando projeto uma casa, começo da sala. É como se eu quisesse reconstruir as noites tranquilas da minha infância. A música suave, o crepitar das páginas de um livro e a luz do abajur desafiando a escuridão lá fora.

    Sim, sou parecido com meu pai.

    Agora, exatamente como ele queria, eu consigo ler o que está escrito nas ruas.

    Lourenço Cazarré é escritor


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  • Portugal e o escrivão Isaias Caminha

    Portugal e o escrivão Isaias Caminha


    Um dos maiores escritores brasileiros, Afonso Henriques de Lima Barreto precisou recorrer a Portugal, em 1909, para dar início a sua vida literária porque não encontrou no Brasil quem quisesse publicar o seu primeiro, cáustico e corrosivo, romance: Recordações do escrivão Isaias Caminha.

    Editada, a brochura de pouco mais de 300 páginas, de capa cor de vinho, atravessou o Atlântico e foi recebida em Pindorama pelo mais estrondoso silêncio. A recepção que teve dos jornais e críticos brasileiros – que viviam a exaltar toda e qualquer bobagem impressa, mas com forte preferência pelas rimadas – foi quase nenhuma.

    Por que era maldito o tal livro? Porque, na verdade, era uma devastadora crítica à imprensa brasileira (carioca) daquele tempo. Era uma obra em que pessoas e eventos reais apareciam com nomes fictícios. Aliás, há uma expressão francesa para esse tipo de publicação, mas deixamos de reproduzi-la aqui porque soa mal em português.

    LIma Barreto (1881-1922)

    O livro conta a história de um jovem pobre, mestiço, interiorano, estudioso e inteligente, que acaba por ir trabalhar no principal jornal do País na época, O Globo. Nada a ver com a publicação que hoje tem este nome. O objetivo a ser torpedeado era, de fato, o Correio da Manhã, um dos principais veículos daquele tempo.

    Todos os podres dos repórteres e redatores – suas trampolinagens, safadezas, espertezas, vigarices e patifarias – vêm à tona. Ficamos sabendo como uns e outros ganhavam um dinheirinho extra escrevendo – ou silenciando – sobre os ricos e poderosos. A mais rentável dessas falcatruas era a obtenção de cargos públicos bem-remunerados.

    Muitos escritores reconhecidos aparecem com nomes alterados no relato do escrivão Caminha brasileiro. Os dois mais notórios deles são Coelho Neto, maior best-seller da época, que surge como Veiga Filho, e o cronista João do Rio, que aparece na pele de Raul Gusmão.

    Há uma curiosa referência a Portugal no livro. Os maiores anunciantes nos jornais da Cidade Maravilhosa, naquela época, eram os lusitanos, que dominavam o comércio local. De repente, alguém, antecipando o inferno da cobrança politicamente correta, lembra que o Correio da Manhã não conta com um luso na sua redação.

    O dono do jornal trata então de buscar na Terrinha um plumitivo que preencha a cota destinada a nascidos na península ibérica.

    Seguem aqui uns recortes, editados por mim, do trecho em que se trata da importação desse panfletário alfacinha:

    – Como poderíamos arranjar um português para redator, dize lá?

    – Encomenda-se a Portugal.

    Capa da edição original, publicada em Portugal em 1909. No Brasil foi publicada apenas em 1917, numa edição revista e aumentada.

    E fui eu encarregado de levar o telegrama ao submarino. Não se tratava já de um redator; pedia-se a uma livraria de Lisboa um redator e dois correspondentes literários.

    Os correspondentes já estavam arranjados, mas não havia quem quisesse vir.

    – Cá está ele… Está arranjado.

    Embarcaria no primeiro paquete. Era espirituoso, entendido em coisas portuguesas e queria setecentos mil réis fracos.

    – Sabes, Pranzini, temos um homem… De Lisboa chegou-nos a resposta.

    – É bom… Vocês sabem, sem português, nada aqui vai adiante. Os patrícios exigem, é justo; eles são talvez trezentos mil, pagam rios de dinheiro em anúncios – é justo.

    Vale transcrever aqui outro texto divertido, que é o da conversa entre o dono do jornal e o Lobo, gramático encarregar de zelar pelo idioma camoniano.

    – Ora, Lobo. Já vem você!

    – Mas, doutor, a língua é uma coisa sagrada. O culto da língua é um pouco o culto da pátria. Então o senhor quer que seu jornal contribua para a corrupção desse idioma de Barros e Vieira…

    – Qual Barros, qual Vieira! Isso é brasileiro – coisa muito diversa!

    – Brasileiro, doutor – falou mansamente o gramático. – Isso que se fala aqui não é língua, não é nada; é um vazadouro de imundícies. Se frei Luís de Sousa ressuscitasse, não reconheceria a sua bela língua nessa amálgama, nessa mistura diabólica de galicismos, africanismos, indianismos, anglicismos, cacofonias, cacotenias, hiatos, colisões… Um inferno! Ah, doutor! Não se esqueça disso: os romanos desapareceram, mas a sua língua ainda é estudada.

    brown canyon during golden hour

    Fechemos com um pouco da vida de Lima Barreto, autor ainda de outros dois belos romances: Triste Fim de Policarpo Quaresma (para muitos sua maior obra) e Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá.

    Nascido no Rio de Janeiro, em 1881, morreu naquela mesma cidade em 1922. Embora de família pobre, teve educação esmerada. Ingressou na Escola Politécnica, mas jamais conclui o curso de engenharia. Tornou-se funcionário público por concurso. Órfão de mãe desde a infância, cuidou de seus irmãos e de seu pai, que padecia de doença mental. É autor de centenas de contos e crônicas nos quais – usando tanto de melancolia quanto de ironia – deixa claro o imenso amor que tinha por sua cidade natal, em especial por seus subúrbios, e pelos seus mais humildes habitantes.

    Lourenço Cazarré é escritor


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  • É música o dia inteiro

    É música o dia inteiro


    Era muito cedo, estava frio e o guri cabeceava de sono.

    – O teu corpo pede cama – disse o avô. – Aí, tu falas para ele: moleza, não; calorzinho, não!

    Quando saíram para o pátio, a frialdade e a escuridão fizeram com que o menino estacasse. No fundo do pátio, além da cerca de arame, ele viu um traço vermelho na base do céu.

    – Vamos para o meio do pomar – disse o velho.

    A tree filled with lots of oranges under a blue sky

    Lá, entre as goiabeiras e laranjeiras, a escuridão era mais fechada. O neto sentiu um pouco de medo, teve até vontade de chorar, mas engoliu em seco e concentrou-se na figura do avô: uma mancha mais escura no meio daquele negrume.

    – Presta atenção!

    Viu que o velho se curvava e espalmava as mãos no chão gelado e que, a seguir, com um movimento ágil, jogava as pernas para trás.

    – O nome disso é apoio de solo.

    Interessado no que fazia o avô, o menino agachou-se. Percebeu então que o corpo dele, reto como uma tábua, subia e descia, movido apenas pela força dos braços.

    – Faço vinte, no mínimo. Mas, quando me irrito com os meus braços, quando eles fraquejam, dou uma ordem: mais dez!

    O piá esfregou os braços enregelados. Seus olhos correram pelo negror que o circundava. Teria algum bicho pendurado naqueles galhos molhados? Tremia de frio, seus dentes chacoalhavam.

    As juntas dos braços do velho crepitavam.

    elderly, hands, ring

    O vovô vai se desconjuntar, pensou.

    – Agora é a tua vez – disse o avô, ofegante, depois de pôr-se em pé.

    – O quê?

    O velho soprou forte para colocar a respiração em ordem.

    – Faz como eu: mão na frente do peito, corpo espichado.

    Com movimentos delicados, o avô ajudou o neto a espichar-se por cima do chão úmido.

    – Tu não precisas atingir a perfeição no primeiro dia. Tu até podes te retorcer como minhoca em areia quente que, depois, aos poucos, tu pegas a feição.

    O garoto fez dois movimentos incertos, sinuosos.

    – Faz mais um! – ordenou o avô.

    – Não aguento mais.

    – É por isso mesmo. Teu corpo tem que aprender. Quem manda é a força de vontade. O corpo só tem que obedecer.

    O menino moveu de leve o corpo.

    – Por hoje, está bom! Te levanta!

    Um galo cantou ao longe.

    – Agora, vou te mostrar o inferno – disse o velho e se dirigiu à portinhola que ficava debaixo da escada que descia da cozinha.

    Assustado, o guri parou no centro do pátio. O avô voltou-se para ele, risonho:

    – Estou só brincando, seu pateta! Temos três peças boas aqui no porão. Vem!

    Vagarosamente, o menino dirigiu-se à porta que se abriu com um rangido de filme de terror.

    – Aqui, nesta primeira peça, fica a minha oficina.

    Cauteloso, o pequeno passou pela porta aberta. Ao sentir o ranço forte de umidade e mofo, tossiu. Uma lâmpada fraca mostrava uma peça pequena, que tinha uma bancada de carpinteiro. Não teve tempo de examiná-la porque o avô já o chamava da peça seguinte.

    – Aqui dormem os passarinhos.

    O pequeno ficou encantado com o grande número de gaiolas que havia por ali. Em cada uma delas havia um bichinho sonolento.

    – Daqui a pouco vou te apresentar a eles. Todos têm nome de gente. Vem.

    Passaram à última peça.

    – E aqui, vô, o que é aqui?

    – É o depósito, onde a gente guarda coisas velhas. Te senta.

    grayscale photo of boy having haircut

    O piá ajeitou-se na cadeira que o avô lhe indicara, diante de uma penteadeira. O espelho estava rachado ao meio. No teto baixo, por cima da cabeça dele, pairava outra daquelas lâmpadas amareladas. O chão era de cimento áspero.

    Enquanto o velho furungava nas gavetas da penteadeira, os olhos do seu neto percorriam os cantos mais afastados da peça.

    É certo que aqui tem rato, pensou. Ratos e outros bichos nojentos. Cobras e escorpiões. Talvez até aqueles morcegos que chupam sangue.

    Mergulhado nessa preocupação, não percebeu que o avô estava de pé por trás dele, empunhando alguma coisa. Sentiu então o primeiro beliscão da máquina, na base do crânio.

    – Vou arranjar um corte de homem para ti – disse o velho. – Mulher é que gosta de cabelo comprido.

    A máquina mordia e remordia.

    – Tu sabes o que é vaidade?

    – O quê, vô?

    – Vaidade? Vaidade é se considerar bonito. Um homem pode ser feio. As mulheres, não. Elas são vaidosas.

    Os beliscões da máquina doíam uma barbaridade. Discretamente, o menino limpou umas lágrimas.

    – Cabelo é vaidade. Então, a gente raspa. Além do mais, a cabeça fica livre dos piolhos.

    O guri fechou os olhos com força para evitar a saída de novas lágrimas.

    – Está pronto – disse o velho, passando a mão áspera pelo pescoço do neto. – Agora, só vamos aparar, todo sábado.

    a group of birds on a wire

    Saindo dali, entraram na peça em que se encontravam os passarinhos.

    – Eles atravessam o dia todo cantando. Se prestares atenção, vais ver que sempre tem um deles piando. Um canta melhor do que o outro.

    O pequeno se aproximou de uma gaiola. Dentro dela, viu um passarinho amarelo todo encolhido. Devia estar morrendo de frio. Tentou enfiar o dedo entre as grades para acariciá-lo, mas o bichinho recuou.

    – O canto deles vai emendando um no outro. Um para e o outro começa. É música o dia inteiro.

    A atenção do guri foi atraída pela gaiola onde havia um bichinho diferente, mais bonito.

    – Qual é o nome deste aqui, o da cabecinha vermelha?

    – O nome dele é Pablo.

     – Não! Eu quero saber é a raça dele!

    – Ah, é um cardeal – respondeu o avô. – Também chamam de galinho-da-campina, mas eu prefiro cardeal.

    O passarinho não parava de mudar a cabeça de posição, sempre observando avô e o neto, muito atento.

    – É um cardeal muito sabido. Canta uma monstruosidade! Não, na verdade, não canta. Ele assobia. Queres ver?

    O velho soprou um trechinho de música e o bichinho respondeu a ele.

    red and black bird on brown wooden surface

    O garoto sorriu. Era engraçado aquilo. Então, ele próprio tentou assobiar, mas saiu-lhe um sopro meio falhado. Mesmo assim, o cardeal respondeu a ele.

    – Pablo sabe de tudo – disse o avô.

    Os outros passarinhos começaram a cantar.

    – Que maravilha! Eles não pagam imposto para cantar. Cantam e pronto. 

    Ficaram parados ali, por um bom tempo, escutando a cantoria.

    Por fim, o avô disse:

    – Vamos subir para o café. Garanto que a velha bruxa já está nos esperando com uma xícara fumegante de veneno.

    A avó, gorducha e baixinha, acintosamente cravou as mãos na cintura.

    – O que tu fizeste com o cabelo do guri, Leovegildo? O coitadinho ficou parecendo um enjeitado, um louquinho de hospício.

    – Não te mete, Edméa! Isso é coisa de homem.

    – Coisa de homem! Isso é coisa de doido! Onde já se viu raspar um coco desse jeito? Isso aqui não é quartel.

    O avô pegou uma fatia de pão e, falando alto, saiu para o pátio.

    – Vou é cuidar dos meus passarinhos que eu ganho mais.

    A velha passou a mão pela cabeça do neto.

    – Não te assusta com o teu avô. Ele é meio maluco, sim, mas tem um coração do tamanho de um bonde. Um homem que passa os dias cuidando de passarinhos não pode ser mau. Tu não achas?

    O menino concordou com um gesto de cabeça. Não respondeu porque estava mastigando um baita naco de pão com manteiga.

    – Esse velho passa o dia em função dos bichinhos – prosseguiu a vó. – Agora, vai gastar uma hora limpando as gaiolas e botando água e alpiste para eles. Depois vai espalhar as gaiolas pelo pátio. Tu vais ver. Mais tarde, ele fica trocando as gaiolas de lugar. Primeiro, bota os passarinhos no sol. Quando esquenta, leva eles para a sombra. O dia inteiro é essa dança.

    O menino coçou o pescoço. Estava com uma comichão irritante atrás da gola do pijama.

    – Onde já se viu? Zerar o cabelo do neto com uma máquina velha. Um cacheado tão lindo! Só mesmo um velho maluco! Cada vez ele está mais maniático. Por acaso ele te ensinou a fazer ginástica?

    O menino sacudiu afirmativamente a cabeça, e pegou uma nova fatia de pão.

    – É um exagero. Garanto que faz mal para a saúde dele. Está ficando gagá. É só para se mostrar para ti. Se tu morasses aqui na nossa cidade, se não viesses para cá só nas férias de julho, ele não se exibia tanto para ti. Como é que ele não tem vergonha? Só os passarinhos mesmo para aguentar esse velho rabugento.

    Lourenço Cazarré é escritor


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  • É a Oceania, estúpido!

    É a Oceania, estúpido!


    Logo após as Olímpiadas de Tóquio, em 2021, escrevi um artigo – intitulado “É a Oceania, estúpido!” – no qual afirmava uma obviedade pouco divulgada: o Continente vencedor da maior competição esportiva do Planeta era aquele formado por dois países de rarefeita população (Austrália e Nova Zelândia) e mais doze pequenas nações espalhadas por incontáveis ilhas. Agora, após os Jogos Olímpicos de Paris, vejo aquela afirmação assegurada por números ainda mais expressivos.

    Mas vamos por partes, como dizem os legistas!

    Critério burro

    O quadro de medalhas aponta as nações que capturam o maior número de galardões, estabelecendo-se a colocação delas de acordo com os ouros conquistados, depois as pratas e, por fim, os bronzes. É um critério burro, acho.

    Disse-me um amigo, José Cruz, reconhecido jornalista desportivo, que esse quadro não foi invenção do Comitê Olímpico, mas sim da imprensa. Nasceu, consolidou-se e, aparentemente, nunca ninguém se revoltou contra o fato de ser injusto.

    Pesos diferentes

    Penso que teríamos uma avaliação mais sensata, se déssemos um peso diferente a cada tipo de medalha. Exemplo: cada primeiro lugar valeria três pontos; uma segunda colocação representaria dois pontos; e uma terceira renderia apenas um ponto.

    Já existe

    Quando apresentei essa minha tese a outro jornalista, Mário Medaglia, ele me informou que, nos jogos Abertos de Santa Catarina (uma das mais fortes disputas desportivas do Brasil) a premiação vai do primeiro colocado (13 pontos) até o sexto lugar (1 ponto).

    O Brasil avança

    O Brasil, que foi o vigésimo classificado em Paris, com um total de 20 troféus, sucede a Irlanda, a décima-nona, que obteve somente. Por quê? Porque a terra de James Joyce ganhou quatro medalhas douradas enquanto Pindorama obteve só 3.

    Aplicando-se a fórmula (de pesos diferentes) que propus acima, o Brasil (com 3 ouros, 7 pratas e 10 bronzes) somaria 33 pontos. Já a Irlanda (4 ouros, nenhuma prata e três bronzes) ficaria com exatos 11 pontinhos.

    Um só ponto

    Vamos a outro critério possível: cada medalha (indiferentemente da matéria em que foi forjada) valeria um ponto.

    Assim, o Brasil (com 20 medalhas) saltaria para a décima-terceira posição, logo atrás do Canadá (27), e ultrapassando Uzbequistão (13), Hungria (19), Espanha (18), Suécia (11), Quênia (11), Noruega (8) e Irlanda.

    População

    Deixando de lado essas especulações, passemos a uma avaliação que me parece, realmente, a mais representativa do verdadeiro papel que o esporte representa na vida de cada país. Ou na vida dos cidadãos de um determinado país.

    Trata-se do critério relação medalha/população.

    EUA e China, os vencedores que não ganharam

    Os Estados Unidos, vencedores desta Olimpíada, amealharam um total de 126 prêmios. Dividindo-se esses galardões pelo número de habitantes (333 milhões) do País do Mickey Mouse, constatamos que cada medalha saiu do suor de um grupo de 2,6 milhões de cidadãos.

    Seguindo na mesma toada, a segunda colocada, a China, com suas apenas 91 medalhas, divididas pela sua incalculável população (1,4 bilhão), conseguiu um prêmio para cada 15,3 milhões de cidadãos.

    Japão

    Continuemos na mesma linha. A terceira nação mais premiada, o Japão, que tem uma população (120 milhões) entre dez e onze vezes menor que a chinesa, obteve quase que a exata metade (45) de prêmios arrematados por aquele seu (incômodo, garantem os maldizentes) vizinho.

    Explicando melhor aos ruins de Matemática: o Japão deu uma medalha a cada 2,7 milhões de seus moradores. Índice quase idêntico ao dos Estados Unidos.

    Em outras palavras, proporcionalmente, o país de Kurosawa ganhou cinco vezes mais troféus que a terra daquele gorducho, anteriormente chamado Mao Tsé Tung, que recentemente ganhou um nome horrível.

    Oceania

    Sigamos. A pequena Nova Zelândia (5 milhões de habitantes) conquistou dez medalhas. Ou seja, uma medalhinha para cada 500 mil habitantes. O mesmo ocorreu com sua vizinha, a Austrália, que (com suas 53 medalhas) deu uma premiação a cada meio milhão de seus cidadãos.

    Ou seja, proporcionalmente, australianos e neozelandeses ganharam 30 vezes mais prêmios do que seus vizinhos não tão distantes assim, os cidadãos do Império do Meio.

    No tapa

    Já nós, tupinambás, teremos que dividir, aos tapas ou aos golpes de tacape, uma medalha entre cada dez milhões de habitantes. Não chega a ser um número ruim, se observamos a China. Mas é péssimo, quando nós nos voltamos para a Oceania.

    Temperaturas decentes

    Aliás, dizem alguns que Austrália e Nova Zelândia são países favorecidos – na prática desportiva – pelo seu clima, marcado por temperaturas decentes.

    Como se sabe a vocação desportiva dos anglo-saxões é irrefutável. Inventaram quase todos os esportes, com exceção do frescobol, do futevôlei e do vôlei de praia, criados por uma “gente bronzeada” que sabe “mostrar seu valor” (como apregoa a cantiga dos Novos Baianos).

    Mas os moradores do Reino Unido não foram privilegiados no quesito clima. Isso, não. Padecem muita chuva e muito frio.

    Assim, quando me refiro a “temperaturas decentes”, estou levando em conta que há muitos países do Norte da Europa que contam com invernos que duram nove meses. E a prática desportiva por lá só pode ser desenvolvido em ginásios. Nada muito problemático para aquelas nações, em geral muito ricas, mas ao ar livre seria mais divertido e confortável.

    O detalhe do solzinho

    Para alguém nascido nas vizinhanças da linha do Equador passar nove meses por ano sem um solzinho no lombo seria uma tortura insuportável.

    Continentes

    Dos vinte países que encabeçam a lista dos mais premiados em Paris, dez são europeus (França, Holanda, Grã-Bretanha, Itália Alemanha, Hungria, Espanha, Suécia, Noruega e Irlanda), quatro são asiáticos (China, Japão, Coreia e Uzbequistão), dois são da América do Norte (EUA e Canada), dois da Oceania (Austrália e Nova Zelândia), um da América do Sul (Brasil) e um da África (Quênia).

    Quase todos são países de renda média elevada, com exceção do pobre Quênia e do desconhecido Uzbequistão (república integrante daquilo que anteriormente era conhecido como Sovietistão).

    E do Brasil, claro, que embora tenha o quinto território mais extenso, a sétima maior população e o sétimo Produto Interno Bruto, consegue manter boa parcela da sua população circulando em volta da chamada linha da pobreza.

    Lembranças

    Para comparar, vejamos os dados da Olimpíada de 2021. Nela, a Nova Zelândia, que ocupou o décimo-terceiro posto – logo atrás do Brasil – ganhou 20 medalhas. A Austrália subiu 46 vezes ao pódio.

    Cadê Cuba?

    Vale mais uma lembrança, a de uma nação americana que antigamente se destacava na competição. Há três anos, Cuba obteve 15 medalhas e acabou em décimo-quarto lugar da classificação geral. Agora, caiu para o trigésimo-segundo lugar, com apenas 9 medalhas.

    Teve, claro, melhores desempenhos nos anos em que recebia ajuda econômica da defunta União Soviética.

    a man with a flag on his back walking down the street

    O mistério

    Mas o grande mistério olímpico continua sendo o Quênia (66º lugar em PIB), dos grandes corredores de longas distâncias.

    Explicando o título

    Muitas vezes precisamos reforçar aquilo que nos parece óbvio. O óbvio ululante, como diria o nosso maior teatrólogo.  

    No caso deste artigo, recorri a uma frase – “The economy, stupid” (É a economia, idiota) – que teria sido forjada em 1992 por James Carville, na época o estrategista da campanha presidencial de Bill Clinton contra George H. W. Bush para reforçar a ideia de que a economia – isso é claríssimo, patente, manifesto – tem um papel determinante em uma eleição presidencial.

    Lourenço Cazarré é escritor


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  • A mansa loucura do professor de teatro e cinema

    A mansa loucura do professor de teatro e cinema


    O que se encontra no coração dos homens permanece um mistério para mim. Desdeaquela época, tenho observado vários tipos de pessoas – escroques, falsários,
    gente que matou ou morreu por dinheiro – e todos eles parecem pessoas normais;
    fico confuso.

    Relato autobiográfico, Akira Kurosawa


    Dias atrás, de manhã, fui até essa porta, mas não consegui ultrapassá-la. Não que houvesse problema com a fechadura. Girei a chave e, depois, simplesmente, meu braço se recusou a movimentar a maçaneta.

    Não, não ria. Embora também ache que a situação é ridícula, eu lhe peço que não se entregue à zombaria antes de ouvir o que tenho a dizer. Também nunca levei a sério essas histórias de sujeitos que se veem, repentinamente, impossibilitados – por uma espécie particular de loucura – de realizar atos insignificantes do cotidiano.

    Porém, foi exatamente isso que se deu comigo.

    *

    Na primeira semana, ninguém reclamou da ausência do velho.

    É possível que alguém tenha estranhado a falta dele, sim, mas o certo é que o tal aluno não se perdeu em considerações sobre o assunto porque aqui, mais que em qualquer outro campus, uma folga inesperada é sempre bem recebida.

    A vantagem de uma universidade nos trópicos é que a coisa toda é levada na maciota, por alunos e professores. Vejamos pelo nosso lado. Em geral, não ganhamos bem, mas, em compensação, quase não trabalhamos. Resumindo: professores fingem que lecionam; estudantes fingem aprender. O mundo nem para nem gira mais depressa por causa desse nosso jeitinho inzoneiro.

    rectangular brown wooden framed window at daytime

    Em outras palavras: uma gazeta professoral, mesmo que larga, não espanta ninguém por aqui. Professores estão sempre viajando para conferências, seminários, mesas-redondas ou outras tapeações. Nos nossos banheiros faltam torneiras e papel higiênico, mas há bastante dinheiro para passagens aéreas.

    Vocês podem achar que falo assim por despeito. É verdade, sou ressentido porque não fui esperto o suficiente para descolar um doutorado no exterior. E falo maldosamente sempre que posso porque sou do signo de escorpião.

    Fui menos amargo quando jovem, mas a vida me triturou tanto que acabou por me transformar nessa poção venenosa. Namoros ridículos, um casamento fracassado e uma vida profissional medíocre fizeram de mim uma víbora peçonhenta.

    O certo, repito, é que na primeira semana nem deram pelo sumiço do velhote. Acontece que os alunos dos primeiros semestres, que são justamente os que ele leciona, gostam muito de ficar a maior parte do tempo no pátio, namorando, dizendo bobagens e rindo como idiotas. Já os mais espertos preferem as áreas arborizadas, onde podem, incógnitos, queimar a sua maconhazinha cotidiana.

    Nem tão incógnitos, é verdade, porque o cheiro nos invade as salas e sempre tem alguém pedindo para ir ao banheiro. Aí, eu digo:

    – Vá, mas vá correndo, porque já devem estar na bagana.

     

    *

    Eu sentia que não devia sair do apartamento. Em silêncio, eu me dizia: Caetano Antunes, pare, não abra a maldita porta!

    Assim, deixei a chave na fechadura, ali, onde ela se encontra até agora, como você pode ver, e voltei ao meu quarto. Deitado, eu pensava no cômico da situação, e ria. Mas também chorava. Eu já sabia que jamais poderia sair daqui.

    Agora, passados tantos dias, sei o motivo pelo qual estou confinado neste apartamento. Se você tiver tempo e paciência, eu poderei lhe falar sobre…

    *

    Não, o velho nunca foi considerado maluco. Neurastênico, impaciente, áspero e sarcástico, isso sim. Mas doido, não.

    Embora sua ironia seja invariavelmente ranzinza e raivosa, em toda turma que leciona ele sempre consegue capturar a cumplicidade de dois ou três gozadores que se divertem com suas tiradas ferinas.

    *

    Percebo que agora, enquanto me observa, entre condoído e assustado, você se pergunta se não estou louco. Reconheço que tem todos os motivos para pensar assim, mas acontece que jamais estive tão lúcido.

    No fundo, o que você mais teme é que eu lhe tome demasiado tempo com o relato dessa história.

    *

    No final da segunda semana, a coisa veio à tona.

    O alarme foi dado por uma aluna. Estava eu na secretaria da faculdade, passando a limpo as notas de uma das minhas turmas, quando a garota se apresentou no guichê, afoita, querendo saber o que estava ocorrendo com “o bode velho”.

    – Será que ele agora está fazendo uma greve particular, uma continuação da paralisação de quarenta dias que os vagabundos dos nossos professores fizeram no início do semestre? Ou será que se acostumou a ficar em casa, de papo para o ar, coçando o saco murcho?

    A tal mocinha é um caso raro de muito estudo mesclado a vocabulário de quartel.

    Permaneci com a fuça enfiada nos papéis temendo que sobrassem xingamentos para mim. Como a maioria dos professores, adotei a tática da invisibilidade.

    empty chairs in theater

    A funcionária que a atendia – uma das pessoas mais preguiçosas e cínicas da face da terra – perguntou:

    – Você está falando de quem, afinal, minha filha?

    – Não sou sua filha e, obviamente, estou falando do professor Caetano. Quem mais se parece com um bode velho do que ele?

    – É verdade – disse a funcionária. – Você tem razão, faz dias que ele não aparece por aqui. Vou informar esse fato ao chefe do Departamento.

    – Fale agora mesmo! – retrucou a garota. – Se ele não voltar logo às aulas, entro com uma representação contra ele no Conselho Universitário.

    *

    Como você sabe, sou homem de poucas palavras. Sempre fui obrigado por esta nossa exigente profissão a papagaiar bastante nas salas de aula. Por isso, sou lacônico fora delas.

    Nunca ninguém me viu – em mais de trinta anos em que leciono aqui – fazendo em sala confissões constrangedoras, que são os sinais mais fortes da vulgaridade.

    Tenho um pudor quase invencível no meu relacionamento com outras pessoas. Como sempre me considerei o maior dos maçadores, preferi viver fechado em mim mesmo. Se me abro hoje, com você, é porque este é o momento de falar para, em seguida, calar-me para sempre.

    Só lhe peço que me escute com a atenção que, em tese, é devida a um homem de setenta anos.

    *

    No final daquela manhã, fui chamado ao gabinete do chefe do nosso Departamento, o Mascarenhas.

    Sabendo que eu era vizinho do professor Caetano, ele me pedia para dar uma passada pelo apartamento do velho a fim de verificar o que estava acontecendo com ele.

    – Sujeito idoso e meio pirado. Sempre lendo, dia e noite. Os miolos vão se gastando, como o resto. Um dia, a casa cai. Fora uma ida às livrarias, nas manhãs de sábado, nunca deixa o apartamento. A velhice, a solidão.

    Mascarenhas, que sempre fala como se estivesse tratando com alunos imbecis, riu amarelo e arrematou:

    – Faça-me esse favor. Veja se o bruxo não está morto debaixo de uma pilha de livros.

    Era uma sexta-feira chuvosa.

    a wet window with a traffic light on it

    *

    Há cerca de vinte anos, comecei a lecionar sobre teatro e cinema. Antes devo frisar que, na época, não me interessava nem um pouco por essas duas artes. Sempre fui um homem de letras. Letras impressas. Um homem totalmente de papel. Nunca havia me interessado por outra realidade além daquela – aparentemente falsa – que encontramos nas obras de ficção.

    Certo início de ano, Margarida, a então diretora, pediu-me que ministrasse umas aulas de Dramaturgia. O titular da disciplina pedira demissão. Não me recusei. Naquele tempo, éramos poucos professores. A partir dali, passei a ler loucamente sobre teatro.

    Dois anos depois, inventaram uma cadeira chamada Linguagem Cinematográfica, que também acabou caindo sobre os meus ombros.

    Aos poucos, com a contratação de novos professores, fui repassando minhas disciplinas originais.

    Por fim, há cinco anos, acabei ficando só com essas duas: Dramaturgia e Linguagem Cinematográfica.

    Que ironia!

    Veja: eu, amante da Literatura, acabei afastado da palavra escrita. Empurraram-me para a escuridão dos teatros e dos cinemas. Mas os homens se acostumam a tudo, e eu não sou diferente.

    Agora, ao cabo de tantos anos, creio que posso dizer que adoro essas disciplinas que estudei com afinco de jovem mesmo sendo já um sujeito maduro.

    Sempre tive consciência do valor de meu papel como professor. Digo, agora que estou velho, que sou um homem feliz, pois sempre trabalhei naquilo que mais gosto. Nasci para estar em uma sala de aula, de pé, falando e gesticulando, a cabeça enfiada num redemoinho em busca das palavras mais exatas, dos exemplos mais significativos, das histórias mais engraçadas, de tudo, enfim, que consiga prender a peregrina atenção dos estudantes.

    Todo professor é um homem do mundo livresco. O nosso parco saber nos vem dos livros. Há quem saiba ler no chamado livro da vida, mas eu não consegui jamais decifrá-lo. Aliás, parece-me bastante mal escrito.

    O ensino da Dramaturgia levou-me a perceber, com nitidez, as pequenas trapaças que eu próprio vinha encenando há tanto tempo. Tive consciência então dos truques, tiques, escamoteações e trejeitos dos quais me utilizava ao longo de tantos anos nas salas de aula.

    Todo professor é um ator, só que extremamente privilegiado: tem público cativo, casa sempre cheia e seu espetáculo fica um ano inteiro em cartaz. Uma aula, como uma peça, tem de comover e fazer rir, alternadamente, num ritmo meticulosamente ajustado.

    Ao entrar em sala eu me sentia como se estivesse ingressando num túnel, do qual sairia um outro homem. Ao fim da aula, eu tinha que respirar fundo para voltar a ser o que era antes.

    Assim ocorre com os atores, creio, que costumam deixar abertas as portas de suas almas para o vaivém dos personagens.

    silhouette of three performers on stage

    Confesso que me sentia eletrizado – quase levitando – ao fim das aulas de Dramaturgia. Mas essa agradável impressão durava pouco porque o impacto de um bom espetáculo de teatro, como o de um belo poema, só permanece em nós por instantes fugazes. Em seguida, o mundo nos avassala com suas solicitações e estrangula nossos sonhos de beleza.

    Num certo momento, notei que não mais estava preparando aulas; o que eu fazia era imaginar monólogos. Pela reação previsível dos alunos, bocejos ou risadas, eu retocava esses monólogos. De um ano para outro, aprimorava-os. Por fim, cheguei à sofisticação de engendrar diálogos. Sim, eu estabelecia perguntas e imaginava as respostas mais prováveis dos alunos e, para todas elas, preparava réplicas jocosas. E, assim, fui tomado por um homem espirituoso quando, na verdade, meu pensamento é extremamente moroso. Jamais tive uma resposta pronta na ponta da língua.

    Estudei cuidadosamente a marcação. Depois de algum tempo, eu sabia o exato momento de me levantar da cadeira para ir à janela. Havia momentos de fitar sonhadoramente o céu. Ou de encarar silenciosamente os alunos. Há frases para serem ditas andando. Há palavras que só podem ser pronunciadas por um homem que, sentado, taciturno, observa o entardecer.

    Poderia falar muito mais, baseado na minha experiência, sobre a colocação da voz, os movimentos das mãos e o uso desta máscara de infinitas possibilidades que é o nosso rosto. Mas chega!

    Preciso lhe dizer também algumas palavras sobre Cinema.

    *

    Peguei o carro e fui direto ao decrépito edifício cujos apartamentos a universidade nos aluga a precinhos camaradas. No elevador, por força do hábito, apertei o botão do quinto andar. Morava ali há três anos. Estava já desembarcando quando me lembrei que precisava subir até o sexto, onde residia o professor Caetano. Tornei a pressionar o botão.

    O corredor do sexto andar é idêntico ao do quinto andar: cerâmicas frouxas, pintura descascada e iluminação deficiente. Quando ia premir a campainha, tive um instante de vacilação. Por que aceitei o pedido do idiota do Mascarenhas?

    Parei o gesto no meio, braço no ar, indicador esticado. Não seria melhor descer ao meu apartamento sem falar com o velho? Na segunda-feira, inventaria qualquer mentira para engambelar o Mascarenhas.

    Mas acabei apertando o botão. Afinal, não é todo dia que um pacato professor de Literatura Brasileira tem a oportunidade de bancar o detetive.

    *

    Quando não consegui abrir a porta, considerei num primeiro momento que estava apenas com medo de sair à rua. Nada mais natural do que ter medo de deixar nossa casa hoje em dia. Nas ruas, há sempre carros dispostos a atropelar um pedestre desatento como eu. Nos becos, há sempre assaltantes à espera de um velhote que não possa reagir.

    Mas não, não era esse tipo de medo que me retinha.

    Eu não saí de casa porque, se passasse da porta, se cruzasse o umbral, o mundo desapareceria todo comigo. O mundo seria sugado.

    a pen sitting on top of a piece of paper

    Vejo que mais um sorriso quer tomar conta de seus lábios e percebo também que você luta para escondê-lo. Não se contenha, ria. Porque o que eu estou lhe contando parece mesmo sem pé ou cabeça.

    Porém, devo ser honesto com você, ainda que parecendo bizarro.

    Confesso que antevi o que aconteceria se eu chegasse ao corredor: o mundo se desintegraria por trás de mim, cidades, campos, árvores e fábricas, homens e animais, tudo sumiria às minhas costas, todas as coisas seriam sugadas e tragadas por um abismo negro, tudo o que foi construído, plantado ou sonhado seria diluído na escuridão. O mundo desapareceria, em meio a uma nuvem de poeira e a um rascar estridente, exatamente como some a lição escrita no quadro-negro, ao fim da aula, quando movimentamos o apagador. Ou melhor, o mundo sumiria como um pedaço de celuloide consumido pelo fogo.

    Se fosse um sujeito vulgar, você venceria o espanto e o desconforto que o tolhem neste momento e me perguntaria: onde foi que o senhor arranjou esta maluqueira, professor Caetano?

    Mas como você é comedido, e não me fará essa pergunta, eu tomarei para mim a tarefa de lhe explicar esse tipo particular de doidice.

    *

    A campainha soou forte.

    Prolongavam-se os segundos e eu não escutava nada. Passos, ruído de chaves, pigarro ou tosse. Nada.

    Será que o velho morreu?

    Um calor nervoso me subiu ao rosto. Esfreguei as mãos úmidas.

    Eu vacilava, sem saber se apertava de novo na campainha ou se me ia embora, quando a porta foi aberta.

    De repente, sem um ruído, escancarou-se.

    – Que surpresa! – disse o velho.

    O professor Caetano Antunes era um homem de estatura média, mais para o gorducho, com uma barbicha branca pendente da ponta do queixo. Encimando a boca chupada, um imenso nariz. A mão que estendeu para mim era grande e seu aperto vigoroso e visguento.

    Uns olhos castanhos, escondidos por trás de lentes garrafais, me fitavam com intensidade.

    – O que o traz ao meu modesto apartamento?

    Ao fim de uma caótica introdução, recheada de perdões e escusas, expliquei a ele que ali me encontrava, a pedido do chefe do Departamento, para ver como ele estava passando.

    – O Mascarenhas está preocupado com a sua ausência. Intelectuais, em geral, não cuidam da própria saúde ou são orgulhosos demais para admitir que estão doentes. Por isso, ele me mandou até aqui. Para ajudar, se preciso.

    – Diga ao Mascarenhas que ele deve preparar o edital para a contratação de meus sucessores nas duas disciplinas.

    black round metal on brown brick wall

    Depois dessas palavras, o professor Caetano explodiu numa formidável gargalhada, daquelas que trazem junto seu próprio eco.

    Enquanto ele gargalhava, troquei o pé de apoio três vezes.

    – Mas entre um instantinho!

    Embora intimidado por aquele riso histérico, avancei. A visão das paredes da sala, inteiramente cobertas de livros, do chão ao teto, me puxou para dentro do apartamento.

    Havia livros por todos os lados: na mesa, nas cadeiras, nos sofás, nos aparadores. Por toda a sala, como soldados de um batalhão em debandada, erguiam-se pilhas vacilantes de livros que exalavam o aroma da poeira longamente acumulada.

    O professor Caetano retirou braçadas de livros de duas cadeiras.

    – Sente-se! Há muitos anos não recebo a visita de ninguém. Estou contente em vê-lo, professor. Quero aproveitar sua presença aqui para dar início ao meu processo de desligamento da universidade.

    *

    Apaixonei-me também pelo Cinema. Acho que não há arte que exija mais talento que essa. É preciso ser um gênio para falar através de imagens em movimento. De início, o meu amor era platônico, quase frio, o único tipo de amor que nós, intelectuais, sabemos viver. Passei depois a adorar as imagens tanto pelo que estampavam quanto pelo que escondiam. Admirava Fellini, Buñuel e Kurosawa, os três gênios. Mas um amor só se transforma em paixão quando é amplo e generoso. Passei, então, a apreciar também as comédias, os musicais, os faroestes, as aventuras para crianças e os filmes policiais.

    Vejo que neste momento, discretamente, você tenta ler o mostrador do relógio. Está com pressa. Ou com fome. Ou cansado. Deve estar doido para chegar em casa e tomar uma cervejinha. É sexta-feira. Compreendo. Não se preocupe. Vou concluir rapidamente.

    Diga ao Mascarenhas que me mande até aqui alguém com a relação dos documentos que devo apresentar para requerer minha aposentadoria. Acrescente, porém, que jamais porei um pé para fora deste apartamento. Diga-lhe que aqui estou e que aqui ficarei até o fim dos meus dias, que não deve tardar.

    a black and white photo of an empty auditorium

    Diga a ele que estou me lixando para tudo, diga que tenho setenta anos e que agora quero descansar. Diga a ele também que pretendo assistir a todos os filmes que foram feitos no mundo e que para isso basta que eu levante o telefone e ligue para a loja que aluga fitas de vídeo que logo chega o rapaz da motocicleta com belos filmes suecos, japoneses, italianos, franceses, espanhóis e alemães. Existem milhares de filmes e não me resta vida para assistir a todos eles, como antes não pude ler todos os livros, mas…

    Diga ao Mascarenhas que não abri minha porta porque finalmente compreendi que este mundo faz parte de uma única peça escrita e dirigida por um só diretor, um sujeito cuja face ninguém conhece, que eu chamo O Sem Rosto; e que, por fim, eu percebi que esta fabulosa peça teatral vem sendo filmada o tempo inteiro por um diretor, que ninguém jamais conheceu, e que eu chamo O Sem Olhos, que pretende um dia montar um filme que seja a síntese perfeita da história da humanidade, e quem não é tolo sabe que o sol não passa de um canhão de luz, que nós nada mais somos que figurantes, e que os olhos d’O Sem Olhos são câmeras, e que um dia, se eu sair por essa porta, Ele vai gritar: Corta!

    Lourenço Cazarré é escritor


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  • Ilhados

    Ilhados


    E disse Maria ao anjo: Como se fará isto, visto que não conheço varão?

    Lucas I, 24


    Choveu a noite inteira.

    Com as trevas, veio a chuva. De início, mansa, silenciosa, pouco mais que uma garoa. Então todos se recolheram às suas casinhas de madeira e pouco depois as luzes foram apagadas porque eram pescadores e teriam de sair cedo para a lagoa no dia seguinte. Era uma vila de casebres, que pareciam ter sido improvisados sobre a areia estéril da praia, nada mais que frágeis caixotes de madeira corrompida, vulneráveis.

    E todos eles dormiram embalados pela chuvinha sobre o teto e, mais tarde, quando começou o temporal, tiveram sonhos ruins. Eram ribombos sacudindo as janelas, raios finos retalhando o céu e um vento frio que se enfiava pelas frestas. Parecia que aquela tormenta não teria fim.

    Por causa dos trovões e dos laçaços da chuva no teto de zinco das casinhas, ele pode serrar e martelar tranquilo, como se fosse marceneiro e não pescador. Ninguém viu quando ele, lutando contra o vento, lampião balouçando na mão, saiu para o pátio e pegou a tora de madeira. Dois ou três raios se afogaram nas águas distantes enquanto ele a arrastava até a porta dos fundos, que estava escancarada. Como tinha empurrado as cadeiras para o canto, pôde passar, espremido, entre o armário e a mesa.

    photo of body of water and droplets

    Depositou a madeira no chão de terra batida, soltou o lampião em cima da mesa e puxou o banquinho. Ainda havia tempo para recuar. Não que tivesse qualquer dúvida a respeito do valor que sua empreitada teria para Deus, que aceita de bom grado todos os nossos sacrifícios, mas porque acreditava, justo que era, que, no fundo da alma, os homens conspurcam tudo que fazem, mesmo suas mais nobres ações, se pensam em demasia sobre elas.

    Fazia aquilo por amor a Deus ou por orgulho e soberba? Não era, ele próprio, também um pecador? Tudo muito confuso.

    Mais do que a indiferença dos homens, temia a chacota, porque podemos muito bem suportar os corações desapiedados, que se fecham à nossa passagem, mas a dor que sentimos quando zombam da nossa fé é insuportável, e não adianta nos lembrarem que Ele ofereceu a outra face porque a ira que nos invade o peito é irrefreável. De todo modo, talvez o temporal, que prendia todos dentro de suas casas, que os tornava surdos para a barulheira do serrote, fosse um sinal positivo do Senhor.

    Colocou a tora sobre o banquinho e se pôs a serrar.

    Cortou confiando no olho, não mediu nada. Como a madeira estava úmida, padeceu com o serrote enferrujado. Gostava da palavra madeiro. Madeiro era palavra de homem de fé. Rezava enquanto o serrote, penosamente, subia e descia.

    Na hora de nossa morte, amém.

    Pensou na estrada até o barranco, que teriam de percorrer de pés descalços. Sangrariam por causa das pequenas pedras pontiagudas do caminho. Mas fazia parte do holocausto.

    O Senhor nos dará forças.

    Quando a madeira se partiu, respirou fundo. Perfume bom de terra molhada e de serragem. As coisas de Deus cheiram bem. As dos homens, não. Os bafios da sua própria casa, por exemplo: a sopa do magro jantar, o último cigarro e o ranço peculiar, entre doce e amargo, de fêmea adormecida.

    brown cross on brown surface

    Tinha agora dois pedaços de madeira, o mais curto era para os braços. Marcou o lugar onde deveria fazer o encaixe. Recomeçou a serrar. Difícil concentrar-se nas orações. Pensava num homem de barbas brancas, seminu, voando entre anjos, quando murmurava Pai Nosso que estais no Céu. Via um letreiro luminoso, desses de fachada de loja grande, quando rezava Santificado seja o Vosso nome.

    Pegou o formão para fazer o chanfrado. Um cansaço quase invencível pesava-lhe nas pálpebras. Podia dormir, uns minutos só, sentado numa cadeira. Não! Passou a mão áspera pelo rosto, esfregou os olhos e persignou-se. Aquela soneira, está visto, era tentação do Capeta. Sacudiu os ombros magros e foi apanhar os pregos na gaveta do armário.

    Arrastando os dois pedaços de madeira, saiu para a tempestade. Aproveitou-se da nesga de luz do lampião, que escapava dançarina pela porta aberta, para cruzá-las. O encaixe não ficou lá essas coisas, mas ele não era marceneiro, como José. Os pregos entraram com facilidade na madeira úmida. O lenho. Gostava das palavras que o padre usava na missa. Santo Lenho. Guardou no bolso os pregos, para as mãos. A voz do padre dava dignidade até mesmo às coisas bem pequenas. O madeiro. O Santo Lenho.

    Martelando afastara o cansaço.

    Livrai-nos do mal, amém.

    Para onde teria o vento furioso levado o som dos golpes do martelo?

    Olhos fechados, chuva braba no rosto erguido para o céu negro, o homem ficou escutando o batuque do seu coração acelerado. Sentiu o sangue pulsando forte nas têmporas. Tudo é usado pelo Tinhoso para distrair a gente das rezas. Mas ainda bem que o trabalho duro mantém o demônio longe de nós.

    Venha a nós o Vosso reino: um castelo; assim na terra como no céu: um castelo entre as nuvens.

    Rezava para não pensar. De que adianta viver se atormentando? As coisas só se resolvem quando O Pai quer que se ajeitem. Às vezes, nos sonhos ou na vigília, Ele nos diz o que devemos fazer. Aquela cruz, no pátio, sobre o barro, por exemplo.

    Mas tinha de partir logo! Um homem de crença não pode vacilar. Um cidadão de bem não pode ficar parado sem fazer nada quando Deus Pai lhe deu uma missão. A cruz estava pronta. Não sabia quanto tempo gastariam para vencer a estrada. O barranco, frente à lagoa, era alto como um morro santo. A voz doce do padre. O Gólgota.

    a hammer and a block of wood on top of a bench

    *

    Por uns instantes, quando começou a chover mais forte, a mocinha sentiu uma alegria intolerável. Riu, rosto enfiado sob as cobertas. Uma alegria explosiva no coração. Água nas ruas, água dentro dela. No centro do corpo, atrás do umbigo, a nascente de água. Pensou naquele barulho quando a gente toma água demais. Marulho interior. E no meio das águas um menino encantador, Pequeno Polegar.

    Depois veio a tristeza, grossa e visguenta, como a aflição dos pesadelos, como o desalento que nos invade quando descobrimos que todos os dias são iguais e que seguirão sendo iguais até o final dos tempos.

    Perdera a mãe um ano antes. Recordava o dia terrível em que ao chegar da escola se defrontou com o pai na porta da casa, a esperá-la. Tua mãe morreu, disse ele. Vamos à cidade. Aquele foi o dia mais doloroso e lento de todos. Sentada no banco duro do hospital esperou pelo pai que percorria as funerárias pechinchando o preço do caixão. Por fim, por uns poucos instantes, pode ver pela última vez o rosto de sua mãe; mas não conseguiu beijá-la, porque os coveiros estavam com pressa. E no dia seguinte não foi mais à escola.

    Nas noites frias, gostava de dormir agarrando os joelhos ossudos contra os seios pequenos, mas tinha de parar com isso agora. Sufocava o Pequeno Polegar.

    Na escola, os dias eram diferentes porque sempre alguém dizia ou fazia uma coisa engraçada e na hora do recreio pegavam sol na cara. E elas, as meninas mais velhas, até flertavam, mesmo sendo aqueles guris uns crianções. Olhavam para eles de cima, não só porque eram mais altas, mas porque tinham seios e fluxos. E eles apenas corriam feito loucos e se davam coices e empurrões.

    Os dias se tornam iguais, tristes, quando a gente deixa a escola. Quis continuar estudando, bastava-lhe um expediente para fazer a lida: varrer a casa, lavar e passar a roupa, cozinhar. Mas o pai não permitiu. Disse que ela tinha de ser a dona da casa e ele não sabia de donas de casa que estudassem.

    Se, pelo menos, possuíssem um radinho de pilha! Gostava de música. E nem na janela podia ficar, o pai não deixava.

    Agora estava grávida, tinha dentro de si o Pequeno Polegar, não precisava de mais ninguém. De início temera a reação do pai, mas ele não falou nada. Sabia, sim, que a filha estava prenha, via a crescente barriga redonda, mas não disse lhufas. Ele, que já não falava quase, simplesmente se fechou. Isso foi o pior. Esperava ser xingada e agredida, talvez até mesmo expulsa de casa, mas o pai apenas se entrincheirou num mutismo ainda mais impenetrável. Agora, viviam como inimigos, inimigos que se vigiavam o tempo todo.

    Já nos primeiros dias, quando sentiu que não lhe vinha o sangue, decidiu que, por nada neste mundo, confessaria o nome do pai da criança. Guardaria sozinha o terrível segredo.

    sky filled with stars photography during nighttime

    Mocinha com criança na barriga fica mais esperta, mais matreira. Sabia que não podia esperar boa coisa do pai. Aquele mutismo era de rancor. Era silêncio de tocaia, de bicho caborteiro preparando o bote. Alguma coisa ele estava arquitetando, calado. Ela até pensou mesmo em morrer, em se deixar matar, mas isso foi no começo, nos dias de maior vergonha e desespero, quando queria encontrar aberta uma passagem para as chamas do inferno. Sim, a vergonha queimava como fogo. Aquele era pecado dos brabos, mortal, coisa para danação eterna. Pecado sem remissão. O pior dos pecados do mundo. Por isso aceitaria morrer junto com a semente que trazia no ventre. Não se pode matar um ser humano, está certo, mas e na sua condição? O que se pode esperar de uma criança gerada no mais hediondo dos pecados?

    Mas tudo neste mundo de Deus tem um fim, até mesmo a maior das vergonhas e o pior dos remorsos. Especialmente quando se sente o primeiro chute da criança. Então a gente se transforma. Por isso, agora, vigiava todos os movimentos do pai, movimentos de gato traiçoeiro.

    Quando sentiu no corpo o visgo da umidade fria do temporal estava com muito sono, olhos areentos, braços pesados. O pai ainda estava no seu quartinho, sentado na cama, fumando. Ela sabia que só poderia dormir depois de ouvir o estralejar do colchão de palha sob o magro corpo do seu pai. Poderia então relaxar um pouco, dormir o sono inquieto dos que temem uma armadilha. Depois de um primeiro sono, breve e profundo, dormiria outros, mais demorados, porém mais leves. Acordaria, então, ao menor movimento do homem que vigiava. Sabia que a cada dia tinha de redobrar os cuidados, mas a sucessão das vigílias sem incidentes a esgotara. Por isso, naquela noite, não escutou nem o serrote nem o martelo.

    Foi acordada pelo pai, que tinha o mesmo rosto fechado do dia em que lhe morrera a mulher.

    – Vamos!

    Permaneceu calada por uns instantes, seus sentidos captando toda a noite ao redor: a chuva grossa, o rugido dos trovões, o silêncio da casa adormecida, a respiração ofegante do pai, o frio que penetrava pela porta aberta da cozinha e o cintilo dos raios entrando pelas frestas. Ruim mesmo era o que não via nem ouvia, o horror que pressentia escondido no convite.

    – Vamos pra onde?

    O homem não respondeu. A filha notou então que ele estava com a cinta na mão. Apanhara muito antes de ter sua primeira regra, estava acostumada, mas naquela noite notou que a fivela de ferro pendia na ponta da cinta dobrada ao meio. Levantou-se. Não podia apanhar, não por ela, mas pela criança. Como era mulher, insensivelmente, ajeitou os cabelos. O sono se fora e o cansaço também. Alguma coisa tinha de ser feita e ela a faria, o mais depressa que pudesse, porque a criança tinha que voltar para o quente da cama. Enfiou a capa de oleado.

    silhouette of cloud with sunlight

    Saíram para a chuva.

    A nesga de luz que fugia pela porta da cozinha iluminava a cruz.

    *

    O dia se insinuava por trás da lagoa quando o padre e o comerciante entraram no casebre.

    Na sala, viram a mocinha deitada no sofá que usava como cama, o rosto virado para a parede, o cobertor cinzento moldando-lhe as curvas do corpo.

    Passaram ao quarto. Afundado na cama, o rosto tisnado destacando-se contra o branco do travesseiro, o pescador parecia ainda mais magro e triste. Seus olhos, pequenos e duros, luziram, entre raivosos e resignados, ao ver os visitantes.

    O padre ajoelhou-se ao lado da cama e, sem olhar diretamente para o pescador, perguntou-lhe se queria se confessar.

    O comerciante tomou a palavra:

    – Ele não deu um pio na vinda até aqui, padre. No geral, ele quase nunca abre a boca. Acho que agora não vai falar nada.

    – Mas eu preciso saber exatamente o que aconteceu, pra perdoá-lo.

    Cabeça abaixada, mãos unidas, o sacerdote parecia rezar.

    Depois de um fundo suspiro, o comerciante voltou a falar:

    – O pobre vivente não mexe um só dedo. É como eu lhe disse, padre. Ele deve de ter quebrado o espinhaço quando caiu de cima do barranco. Como é que pode um homem ficar louco de uma hora pra outra? Onde ele foi buscar a ideia daquela cruz…

    – Cruz? – indagou o padre. Era um homem jovem e bonito. Cabelos negros, olhos índios, pele amorenada.

    – Eu já não lhe falei na cruz? Ela estava cravada no chão no alto daquele barranco que tem ali na curva da estrada. Uma cruzona de mais de dois metros.

    O pescador voltou o rosto para a janela fechada, desinteressado dos homens que o ladeavam.

    person touching hands

    Depois de uma breve pausa, o comerciante recomeçou a contar, com a mesma ênfase caótica, a desencontrada história que iniciara ao bater na porta da sacristia.

    – Como lhe disse, eu estava voltando pra casa, porque não consegui ir até a cidade. Eu queria comprar combustível. Bem, quando cheguei na ponte sobre o arroio, vi que a água já estava cobrindo tudo. Aí, pensei cá comigo: estamos ilhados de novo. E comecei a voltar. Eu vinha até meio desatento, xingando Deus e o mundo. Estava muito escuro ainda. De repente, um raio mais forte alumiou tudo e eu pude ver aquela barranca bem alta perto da margem da lagoa. É tudo pelado lá em cima, sem uma árvore, porque o vento não deixa nenhuma semente se criar naquele ponto. Na beira do barranco, eu vi a cruz.

    O comerciante persignou-se.

    – De início, tive medo, seu padre. Cruz é coisa de Deus. Depois, em seguida, me atentei pra uma outra sombra. Parecia gente acocorada. Parei o jipe e fiquei olhando a escuridão, mas, aí, quando veio outro raio, vi mesmo a cruz e aquilo outro que devia de ser uma pessoa.

    Cabeça inclinada, o sacerdote observava atentamente o homem que falava.

    – Saltei do carro. E me botei a patinar no lodo da encosta em direção ao alto da barranca. Penei uma barbaridade pra subir. Veja, um homem da minha corpulência! Lá, em cima, encontrei a guria ajoelhada diante da cruz, de mãos postas, rezando. Parecia em estado de choque, a coitadinha. Comecei a falar com ela. De início, ela não dizia coisa com coisa. No chão, eu vi uns pregos grandes e um martelo. Aos poucos, ela foi se acalmando. E falando. Então eu entendi o caso. O pai queria crucificar a pobrezinha. Mas ela se defendeu, e acabou jogando ele lá de cima do barranco. Bah, estava um frio bárbaro lá no alto! Aí, peguei ela pela mão e, resvalando, descemos a ribanceira. No jipe, passei uma manta por cima dela.

    O comerciante fez uma pausa. Sabia que tinha toda a atenção do padre.

    – Depois de acomodar a guria, saí do carro e, de lanterna em punho, me fui procurar o pai. Não demorou nada. Mal meti o facho de luz nas macegas, eu vi esse pobre homem aí – com um gesto do queixo trêmulo, apontou o pescador – caído no chão, estatelado, os braços abertos. Arrastei o coitado até o jipe. Era um peso morto, um saco de batatas. E aquela areia fofa da praia cansa demais as pernas da gente. Deitei ele na traseira e pensei cá comigo: deve de ter caído de ponta-cabeça e arrebentado o espinhaço, não escapa de ficar paralítico.

    Pelas frestas da janela fechada entravam os primeiros raios grises do dia.

    a church with pews and stained glass windows

    – Aí, quando eu ia dar a partida no carro, a manta caiu de cima dos ombros dela. Fui ajeitar. Senti então uma coisa gosmenta nos meus dedos. Foquei a lanterna e vi. Era sangue mesmo. Devia de ser de carregar a cruz nos ombros. Mas será que tinha levado a cruz daqui até lá, estirão de uns dois quilômetros? Perguntei, mas ela não me respondeu. Só gemia. Aí, me vim, desembestado, pra cá. Mas o pior aconteceu aqui, na chegada. Quando descia do carro, ela fez água. Muita água. Aí, eu entendi que ela estava prenha. Devia de ter arrebentado a tal de bolsa. De modos que o parto é coisa pra logo, pensei. Larguei eles por aqui e fui correndo chamar o senhor. Veja, seu padre, uma guria que nem quinze anos tem!

    Depois de renovar o ar dos pulmões com mais um largo suspiro, o comerciante voltou a falar.

    – É como dizia minha mãe: em casa de pobre, o pão cai sempre com a manteiga pra baixo. O pai endoidou, quis pregar a filha numa cruz. A guria empurrou ele de cima do barranco e o coitado, agora, na certa vai ficar paralítico. Já a guria, pelo lado dela, está buchuda e resolveu parir justo quando estamos ilhados, justo quando não temos como chegar ao hospital.

    O homem interrompeu a narrativa ao mesmo tempo que um sorriso malicioso corria-lhe pela carantonha.

    Lentamente, agachou-se ao lado do sacerdote e sussurrou-lhe no ouvido:

    – Sabe o que me passou pela cabeça?

    – Não! – respondeu o padre, sobressaltado.

    – Que a guria foi embarrigada pelo próprio pai. Ele sempre foi meio maluco, mas piorou depois que a mulher dele morreu. Deve de ter abusado da filha. Aí, quando viu que ela estava barriguda, revolveu crucificar.

    – Vá correndo buscar a parteira! – disse o sacerdote e se pôs de pé.

    *

    A mocinha permanecia na mesma posição.

    Perto da porta, olhando o homem gordo que se afastava, o padre perguntou, voz quase inaudível:

    – Contaste pra alguém?

    photo of dried brown soil

    Ela voltou seus olhos para ele. Uns olhos que estampavam um rancor duro. Os olhos do padre desceram para o chão.

    Devagar, ela se sentou. Depois, colocou os pés no chão. Levantou-se. Caminhou na direção dele. Seus pés nus deixavam marcas de sangue no piso de tábuas.

    O padre recuou um passo.

    A guria sentia-se maior e mais forte do que ele. Havia carregado a cruz por toda a longa estrada, havia aguentado as chibatadas sem gritar, havia suportado o corte das pedrinhas nos pés descalços. Depois, lá em cima, havia tido forças para empurrar o seu próprio pai barranco abaixo.

    Pesando tudo, era uma pessoa muito forte. Certamente conseguiria criar sozinha o filho que tinha no ventre, não precisaria da ajuda do homem que a havia deflorado.

    – Fora daqui, seu porco! – disse ela e empurrou o sacerdote para a luz suja de mais um dia chuvoso.

    Lourenço Cazarré é escritor


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  • Um só corpo, corcovado e imenso

    Um só corpo, corcovado e imenso


    Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. Sim senhor. Aquilo ganhava dinheiro para maltratar as criaturas inofensivas. Estava certo?

    Vidas Secas. Graciliano Ramos


    – Se pudesse, eu metia logo um balaço na perna dele – diz o sargento.

    – Melhor no braço – retruca o soldado. – Facilitava pra gente ir pra cima ele.

    – Tu tá achando que a gente vai chegar nele de novo?

    – Sim, mas eu quero é ir sozinho.

    – Tu? – espanta-se o sargento. Depois ri. – Não é hora de brincadeira.

    Os dois trocam um rápido olhar. Depois, por entre os galhos ressequidos, voltam a espiar o homenzarrão na outra margem do pequeno canal.

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    – Se o senhor deixar, eu vou.

    – Tu tá é maluco! Se ele te acerta um tiro não é nada, porque aquela espingarda dele é de chumbinho, mas o duro é se ele te agarra pelo pescoço. Aí tu podes encomendar a alma.

    – O que não pode é a gente continuar aqui, parada, com ele ali cantando de galo. É um desaforo.

    – Acho que vou pedir reforço pelo rádio da viatura.

    – Não, sargento! Isso seria mais humilhação ainda. Me deixa pegar ele!

    Estão deitados na margem direita do canalete, por trás duns caraguatás, observando o homem alto e gordo, sem camisa, que grita e gesticula diante deles. A separá-los, o leito quase seco do riacho, cortado pelo negro fiapo da água suja que serpenteia entre os monturos.

    – Mas o que é que tu tá pensando, homem de Deus? – pergunta o sargento, impaciente.

    – Tenho um plano. Num minuto estou com ele derrubado no chão. Aí, vocês chegam e metem as algemas nele.

    – Falar é fácil, língua não tem osso. Ele já botou o Caldeira e o Braga pra dentro do lodo! E eles são mais fortes que tu!

    – Deixa comigo, chefe – o soldado sorri. – Meu braço está comichando de vontade de apertar aquele pescoção.

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    O sargento suspira fundo.

    – Faz o que tu quiseres. És maior de idade e vacinado. Agora, uma coisa é certa: eu não me responsabilizo. Faz de conta que tomaste a iniciativa sem eu saber. Se ele te torcer o pescoço, azar.

    – Fechado.

    O soldado ergue-se. É muito jovem, terá no máximo uns vinte anos, e franzino.

    Enquanto corre, agachado, em direção aos casebres, escuta os gritos irônicos do grandalhão.

    *

    – Adonde tu vai com essa pressa toda, franguinho? Vai procurar tua mãe? Pois aproveita e te esconde debaixo das asas daquela galinha! Ou será que tu vai chamar mais brigadianos? Chama bem uns vinte que eu tomo conta deles tudo! Bando de cagão! Brigadiano só serve pra bater em mulher e criança! Que venham! Vou fazer com eles o que já fiz com os outros dois trouxas!

    *

    – Olha, lá, Caldeira! – diz o soldado grisalho, levantando o braço e apontando com o dedo. – Viste? Era o Magro correndo! Pra onde será que ele vai?

    – Acho que foi se esconder no meio dos barracos – responde o soldado negro, passando a manga da túnica pelo nariz. – Deve estar se cagando de medo.

    – O Magro não é medroso. Já me vi em hoscas com ele e ele sempre vai em frente. O que tem de leviano de peso tem de valente.

    – O que tu acha mesmo que o Magro foi fazer? – pergunta o soldado negro, enquanto olha para a mancha de sangue na manga.

    – Buscar reforço. Só pode ser isso.

    – Aí, sim. Quando a gente chegar no Luisão, ele vai ver o que é bom pra tosse. Vou dar uma porrada na boca dele.

    – Mas antes a gente vai ter que pegar ele. E aí é que eu quero ver! Não vai ser fácil!

    – Ele não tem nem três nem quatro colhões. Não é mais macho que nós!

    – Mais macho não é, mas que o bicho é forte, isso é – o soldado grisalho leva a mão ao queixo. – Já tivemos uma amostra hoje.

    – O filho da puta me quebrou o nariz, acho.

    – É caborteiro.

    – Tenho é vontade de afogar ele nessa água suja.

    – Isso nem é água mais.

    – Parece suco de merda. Tu já percebeu o quanto nós tamos fedendo, Braga? Credo! Esse puto vai lavar a minha farda lá no quartel!

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    – Ele é mais gabola que bandido.

    – Se o sargento tivesse deixado a gente usar o revólver!

    – Aí não tinha graça.

    – Eu meteria um balaço no meio daquela cabeça cabeluda.

    – Não precisa. Quando não tá bêbado, o Luís Gordo é gente boa – diz o grisalho, sempre observando o homenzarrão, que continua gritar e esbravejar. – Mas, bebum, ele gosta de cantar de galo.

    *

    Ao atingir o casario, o soldado se levanta. É de estatura meã, mais para baixa. Apressado, avança por entre as casinholas de paredes de lata, de compensado, de refugos de madeira e até mesmo de papelão.

    O barro negro das ruas está seco, não chove há muito. Mulheres e crianças escondem-se por trás das paredes vacilantes do Templo dos Crentes – um barraco um pouco maior, mas igualmente frágil – prontas para fugir caso Luís Gordo atravesse o arroio.

    O soldado circula os olhos pela gente assustada. Aponta para um velho barbudo.

    – Tu aí, me dá tua roupa. Vamos, ligeiro! Onde tem um lugar que a gente possa se trocar?

    O velho não diz nada.

    O soldado arranca a própria túnica, joga-a no chão. Depois toma a camisa do velho.

    – Vamos, tira a calça também!

    Um sussurro de espanto corre entre as mulheres.

    – Virem a cara pro lado! – ordena o soldado, ao mesmo tempo que veste a camisa remendada.

    Sentado no meio da ruela, desamarra os cadarços, tira as botinas. Despe a calça do uniforme. Seus gestos são rápidos, nervosos, De novo de pé, enfia a calça do outro, que está imunda. Por fim, arranca da cabeça do velho o roto chapéu de palha, deixando-o completamente nu.

    Este cachaceiro está podre de borracho, pensa o soldado. Inspira fundo e sente a catinga de canha da camisa que vestiu. Lança um olhar duro ao velho estupidificado, de cuja boca aberta pende um grosso fiapo de saliva.

    – Quem é o dono do bolicho? – pergunta o soldado, apontando a placa na porta de um barraco.

    Ninguém responde.

    – De quem é a merda do bolicho? – grita ele para os que estão escondidos por trás do Templo. – É bom dizer antes que eu ponha a porta abaixo!

    Um homenzinho balofo surge vindo de não se sabe onde.

    – De que é que o senhor precisa?

    – Pega uma garrafa de pinga. Rápido! E já me traz sem tampa!

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    Pouco depois, o bodegueiro chega com a cachaça. O soldado bebe um gole largo. Depois, de pés descalços, encaminha-se, vacilante, como se estivesse muito bêbado, para a pontezinha que atravessa o canal.

    É uma pinguela de duas pranchas largas de madeira, precária, vacilante. Na época das chuvas é retirada para que as águas não a levem.

    Agarrado ao fio de arame que serve de corrimão, o soldado observa Luís Gordo pelo canto dos olhos.

    Ele continua lá, na frente do minúsculo barraco, a berrar e a bracejar com a passarinheira segura, pelo cano, na mão direita. Seu largo peito glabro brilha suarento sob o sol cruel do meio-dia.

    O soldado magricelo tenta escutar o que ele diz, mas não há vento para trazer os sarcasmos daquela voz rouca até ali. Luís Gordo fala demais, pensa.

    Trôpego, assoviando uma desconchavada musiquinha, com a garrafa na mão esquerda, o soldado travestido em mendigo encaminha-se para onde está Luís Gordo.

    Deixa cair a cabeça para o lado. Espiando por baixo da aba do chapéu, consegue entrever, do outro lado do fosso, os seus colegas, deitados entre a vegetação ressequida.

    *

    – Braga, tem um cara atravessando a pinguela.

    – E tá pra lá de bêbado.

    – Era só o que nos faltava: um outro borracho pra se juntar com o Luísão!

    – Peraí! Aquele cara é o Magro! Com roupa de mendigo. E se fingindo de bebum!

    *

    Era menos que uma vila, era até menos que uma favela porque os que ali viviam eram menos que gente, eram qualquer coisa acima de bichos porque sabiam falar.

    Vieram de todos esses campos aí pela volta da cidade. Lá fora viviam mal das pernas, quase sem roupa e sem remédios, mas, no geral, tinham o que comer. Plantavam para o gasto, uns pés de milho, uma ponta de arroz, e carneavam uma ovelha de vez em quando, roubada quase sempre. Tinham galinha para os ovos e para a canjinha, quando adoeciam. Até passarinhos eles matavam, a bodocaços, quando a fome apertava.

    Na cidade só se tem ruas de asfalto e de calçamento e ninguém, a não ser Pedro Malasartes, desencava comida das pedras. Que lhes resta quando percebem que vieram de outro tempo e de outro mundo e que ali não tem lugar para eles? Se arrinconam lá pelas voltas do Forno do Lixo, sob um céu sempre negrejado por bandos de urubus. Ali podem colher alguma coisa, como antes colhiam no campo.

    São catadores de papel, vendedores de vidro e ferro, carroceiros, jardineiros, changueadores, biscateiros. Como chegaram há pouco, ainda não dominam os misteres urbanos, nos quais serão mestres seus filhos: ladrões de botijão de gás, punguistas na volta do mercado, gigolôs de perebentas, flanelinhas raivosos, cheiradores de cola, assassinos de velhas.

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    Por terem chegado há pouco do campo, foram obrigados a se acomodar nos confins da cidade, nas terras encharcadas, ao lado do arroio sinuoso que pastoreia os detritos da cidade toda. E lá ergueram suas casinholas, na maioria com paredes de lata, latas de conservas e de óleo de soja retalhadas a abridor.

    *

    Luís Gordo estava há um bom tempo por ali. Mas morava meio afastado, só ele naquela margem do arroio, porque não gostava de gente. Não se misturava Era um verdadeiro bicho do mato. No começo, ganhava uns trocos cabeceando sacos numa arrozeira, mas depois se deu bem, arranjou uma boca de leão-de-chácara num puteiro. Não era de briga, mas isso não importava porque era muito alto e forte. E tinha cara feia, cara de índio, com aquela cabeleira negra escorrida e uns olhinhos achinesados que botavam medo até mesmo nos vagais siderados pelo pico. Só o jeitão dele já amansava os chinelões mais brabos.

    Era conhecido dos brigadianos, por pacato e respeitador, mas, de longe em longe, acordava com os bofes virados e se passava na canha, como naquele domingo. Aí, a coisa desandava.

    De manhã, no bolicho, sentado num saco de feijão, bebera uma garrafa inteira, sozinho. Igual que sempre, estava meio emburrado. Depois, pateara o balcão. E saíra pela vila a dizer palavrões cabeludos, a inticar com as mulheres e a desaforar os homens. Gritou que eram uns machos de merda, e meteu a mão nos dois ou três que não tiveram tempo de se afastar. Que chamassem a Brigada! E se fora sestear.

    Estava no bem bom do sono quando bateram à porta do barraco. Eram dois brigadianos, um velhusco e um negro fortão. Disseram que ele tinha de ir à delegacia responder pela arruaça, que um cidadão tinha prestado queixa e que eles estavam ali, de viatura e tudo, para conduzi-lo ao distrito.

    Mas, bah, nem disse nada! Só enfiou o braço. Mandou um murro em cada um. Foi pá e pá. O grisalho se foi direto para o riacho, desconjuntado, mas o negro ainda conseguiu se equilibrar. O jeito foi dar-lhe uma cotovelada na cara. E ele, caindo de costas, foi se juntar ao outro.

    Num vupt, Luisão pegou a passarinheira que mantinha atrás da porta e fez mira na testa deles, que já tentavam escalar de novo a margem barrenta. Que se sumissem! Encagaçados, eles saíram patinhando pela água suja e galgaram a outra margem e foram se refugiar entre as unhas-de-gato.

    Pouco depois, vindos da camionete, juntaram-se a eles o sargento e o soldado magro.

    *

    – Tão pensando que eu sou o quê? Um alimal? Vocês tão é muito enganados! Acham que esta cidade é grande merda só porque tem um batalhão de brigadianos? Me cago pros brigadas! Tô de saco cheio disso aqui! Qualquer dia volto lá pra fora. Tem sanga limpa e não esse arroiozinho de merda. Tem cancha pra carreira e salão de dança. O que é que tem aqui pra se fazer num domingo? Nada. Tem futebol, mas isso é coisa de maricas. Meto-lhe uma bala num!

    *

    E Luís Gordo estava falando ainda, empolgado pela canha que lhe fermentava nas entranhas, quando o bêbado de camisa remendada entrou na pinguela e se veio na direção dele. Vinha bem devagarzito, desenhando a beira da barranca, quase que se despencando.

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    Era só um pobre borracho magro e miserável, de olhar turvo e boca aberta, um fiapo de homem. De pés descalços. Uma coisa à toa. Não merecia atenção. Desinteressado do pinguço, Luís Gordo continuou a despejar a mágoa armazenada. Com sua voz grossa e rouca, repetia, com pequenas variações, as mesmas frases. Sempre segurando a passarinheira pelo cano.

    Aí, de repente, sem mais nem menos, o bêbado, saltou nas costas dele. Os braços magros se aferraram em torno do grosso pescoço moreno e as pernas em torno da grande barriga, com os pés se entrecruzando na frente.

    De primeiro, os olhos arregalados mostraram estupor. Em seguida, raiva. E Luís Gordo se pôs a pinotear como se estivesse com um piá nas costas, o filho que não tinha, brincando de upa-upa cavalinho. Sufocado, não conseguia falar mais nada, apenas urrava como um burro triste, saudoso de sua querência.

    Nem podia mais pensar direito, o pobre homem. Tinha era que arranjar um jeito de se livrar daquele carrapato.

    Foi então que ele viu os três brigadianos descendo pela outra margem do arroio. Tropeçando na raizama, vinham de cassetete em punho. E em seguida, no embalo, pularam sobre o lodo preto que era o leito do arroio e começaram a subir o barranco.

    Pressentindo que ia entrar na borracha, Luís Gordo resolveu guarnecer as costas. Encostou-se então contra a parede do seu barraco e levantou a espingarda, como se ela fosse um tacape. E esperou os três brigadas que se vinham de cacete em punho, furiosos.

    Enquanto esgrimia com eles, Luís Gordo lembrou que na parede do seu barraco havia umas cabeças salientes de pregos enferrujados e umas rebarbas pontiagudas de lata.

    Aí, pôs-se a esfregar contra ela as costas, as costas do soldadinho magro, que estava agarrado a ele como uma sanguessuga.

    Foi como se sentisse a dor do outro, os cortes, as fincadas, os lanhos na própria carne. Mas, como estava com aquele molambo de homem nas costas, Luís Gordo perdeu o jogo de cintura e se tornou alvo fácil para as porretadas dos brigadas.

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    Para se distrair, ele até se botou a contar as lapadas que levava e espantou-se porque elas cada vez doíam menos. Já estava chegando a vinte quando lhe acertaram uma no pé do ouvido.

    Então ele foi arriando, se encolhendo como um tatu mulita, devagarzinho, já entregue. Mas, de repente, não se sabe de onde, ele conseguiu arranjar um resto de força. Aí, se levantou e, lentamente, caiu para a frente. Se foi em direção ao leito imundo do arroio levando consigo, de carona, o bêbado das costas ensanguentadas. Na queda, Luís Gordo e o soldadinho nele agarrado pareciam um só homem, um só corpo, corcovado e imenso.

    Lourenço Cazarré é escritor


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