Etiqueta: Pindorama

  • Um magnífico espetáculo de aviltante bajulação

    Um magnífico espetáculo de aviltante bajulação


    – Mãe, o pai chorou!

    – Não me diga – a mulher fecha o livro.

    – Foi quando parou de cavar – diz o rapaz em voz baixa, inclinando.

    – Não acredito – ela passa a mão pelo rosto do filho.

    – Pois a senhora pergunte a ele.

    – Vou ao banho – diz o homem, atravessando a sala a passos largos. – Não nasci pra coveiro.

    – Me conte o que aconteceu – pede a mulher num sussurro.

    – Foi muito rápido. O pai passou a mão nos olhos, mas eu vi as lágrimas, poucas.

    – Seu pai chorando? Por essa eu não esperava.

    A grande cadela maluca corria que nem uma degenerada. De um salto saía da sua casa e zunia rente ao muro com a vizinha e dobrava à esquerda e cravando suas garras poderosas no chão pelado atravessava os dez metros até a esquina e quebrava mais uma vez à esquerda chispando junto à cerca gradeada, ao fim da qual encerrava sua exibição de fúria e perplexidade. Ainda latindo, ofegante, voltava então para sua casinha, construída sob a amoreira.

    A grande cadela maluca tinha o pátio a seu dispor, mas preferia preguiçar dentro de sua própria casa. Estendia-se sobre a frescura do piso de cimento alisado, a cabeça próxima da abertura, apoiada nas patas dianteiras. Piscava para a claridade e bocejava. Mordia o ar quente na tentativa de caçar moscas insidiosas. Após a pancada seca dos dentes se chocando, sacudia vigorosamente a cabeça. Moscas do diabo!

    De vez em quando, dama um espetáculo.

    Bastava alguém costear o muro do fundo do pátio falando alto ou rindo. Para quê? Esquecida das moscas, ela arrancava para mais uma demonstração de força, velocidade e indignação. Quem era o desaforado que se atrevia a romper o silêncio daquele canto calmo da cidade? Vinham latidos estrangulados pelo espanto e pela ira. Vais e vens de tontear. Repulsa colérica daquela monta, no entanto, não podia durar muito. E ela se dirigia à vasilha de água, mantida sempre na sombra, ao lado da casinha.

    No fim da tarde descia da escola uma garotada vasta, de toda espécie. Havia as criaturas muito pequenas que se agachavam e colocavam as mãozinhas pelo meio das grades para receber o carinho gosmento da longa língua vermelha. Havia diabretes maiores que gostavam mesmo era de bater com força as mãos abertas na chapa de metal da cerca para endoidecer a cachorra, que de calma não tinha nada. A pobre não sabia o que fazer. Acarinhava as vacilantes mãozinhas assustadas ou latia para a barulhada dos mais taludos?

    – A Pirata, sua louca! – gritavam os galalaus depois de estapearem o metal sonoro.

    – A Piratinha – balbuciavam os pequeninos, entre exultantes e enojados, retirando a mãozinha lambida.

    – Vamos chamá-la Pirata – disse a mulher.

    – Isso nunca – retrucou o homem. – Não pode ser Pirata porque não tem jeito de cachorra macha. É frouxa, não aguenta cócegas.

    – Vai ser Pirata – insistiu a mulher. – O apelido é perfeito. Olha só este olhinho.

    O homem pegou a cadelinha e aproximou seu rosto anguloso do trêmulo focinho úmido. Impressionante a negra mancha que circulava o olho esquerdo.

    – É um tapa-olho perfeito! – voltou a mulher. – Pirata!

    Os olhos míopes do homem, aumentados pelas lentes grossas, assustaram a coisinha branca pintalgada aqui e ali por bolinha negras, que se pôs a ganir.

    – Podia ser Maria Bonita – disse o homem. – No cangaço havia mulheres machonas. Eram ainda mais cruéis que os homens.

    – Pirata – teimou a mulher. – Ela nasceu com uma cara perfeita pra receber esse nome. Pirata.

    – A Pirata – concordou o homem. – Está bem. Eu cedo. Mas para mim ela será sempre A Pirata. Pirata só se fosse macho, mas não é. A Pirata.

    A cadela de pernas altas e musculosas em que aquele nada de filhote se transformou era apaixonada pelo menino da casa. Não digo que desprezasse os adultos e as meninas, apenas não prestava muita atenção a eles.

    Quando o menino surgia no pátio, ainda vestindo a farda do colégio, ela apresentava seu melhor número: um magnífico espetáculo de aviltante bajulação.

    Para começar, enterrava a cara na cerâmica fria da varanda. E com um olho só, desconfiado e brincalhão, observava o recém-chegado. Esperava que ele abaixasse para então saltar e escapar-se do abraço dele. A Pirata, sua doida. A seguir, fingia-se de morta, olhos semicerrados, focinho sobre as patas. A sua segunda fuga da tentativa de carinho era ainda mais espetacular. A bem dizer escorregava por entre os braços do garoto, dava-lhe uma lambida gosmenta na bochecha e chispava para o centro do pátio. Ali, latia furiosamente diante do ataque de incontáveis inimigos invisíveis. E, para livrar-se deles, encenava as mais estrambóticas performances guerreiras. Exibia dentes e garras, rosnava, unhava chão e ar. Mas, de repente, imobilizava-se, exausta. Admitia, por fim, o exagero cenográfico. Envergonhada, baixava a cabeça e varria o chão com as orelhas. A imobilidade, porém, não se delongava. Encostava-se à pitangueira e roçava com gosto e vigor o lombo lustroso. Era o patético ponto final. Dali em diante, dedicar-se-ia a receber as carícias do menino, latindo mansamente aos pés dele.

    Um dia, anos depois, a cachorra ficou velha.

    Não corria mais pelo quadrilátero do pátio. Não latia para ninguém, nem mesmo para os moleques nojentos que esmurravam a chapa metálica. Penava para subir os degraus que lavavam à varanda. Não mais abocanhava moscas. Dormia onde caía. As pessoas batiam à porta da casa para avisar que a coitada, caída no meio do pátio, sob um sol tenebroso, estava tentando se levantar e não conseguia. Não se exibia mais para o menino porque ele, já meio rapaz, de penugem acima dos beiços, não descia mais ao pátio depois da escola.

    – Ontem eu vi um rato enorme comendo a ração da Pirata – disse a mulher. – Ela deixou que ele comesse o quanto quisesse.

    – Chegou a hora – retrucou o homem. – Vou comunicar a triste verdade ao proprietário da besta.

    O rapaz não quis conversa.

    – Que história é essa, pai? Matar a Pirata?

    – Matar, não. Sacrificar é palavra mais ajustada.

    – Nunca.

    – Nunca diga nunca. Você já deve ter ouvido esta frase ridícula e certeira: nunca diga nunca.

    – Nunca.

    – Então vá ao pátio – disse o pai. – Da varanda observe sua filha. Verá que ela não corre mais, se arrasta. Verá que não presta atenção às crianças da escola. Verá que fica onde cai porque não consegue mais se botar sobre as patas. Ela está viva, porém morta. Isso acontece também com os homens. Muitos morrem antes de perder a respiração. O pior: ela já não enxerga mais os ratos, nem sente a catinga deles.

    Certa tarde veio o veterinário. A palavra nunca fora afastada.

    Aconteceu debaixo da pitangueira.

    O doutor explicou tudo direitinho.

    – A primeira injeção é pra que ela não sinta dor.

    A grande cadela magérrima e ossuda estava deitada sobre as pernas do rapaz que, sentado no chão, recostado contra o tronco da pitangueira, tinha a cara tisnada de tristeza.

    – A segunda injeção arrefecerá os batimentos do coração dela.

    O rapaz aquiesceu com um vago gesto de cabeça.

    Foi o que ocorreu. Duas agulhadas. O batuque do coração se enfraqueceu aos poucos. Devagar.

    De repente, a esplêndida fêmea branca com tapa-olho preto de flibusteiro não estava mais entre os vivos. Repousava deitada no chão umbroso, a cabeça no colo daquele que fora seu pai e sua mãe, um rapaz que um dia fora um menino. A grande cara comprida, espichada pela magreza, exibia para quem quisesse ver a pinta negra perfeitamente redonda em torno do olho esquerdo.

    – Deixe comigo – disse o pai. – Ela vai ser plantada ali onde parava a fim de lamber as mãos das criancinhas.

    O enterro foi naquela noite.

    – Pra onde vão as almas dos animais? – quis saber o rapaz, que segurava a lanterna.

    O homem parou de cavar. Enterrou a pá no montículo de areia fofa. Passou as mãos pela base das costas. Buscou um cigarro no bolso da camisa. Riscou o isqueiro.

    – Sim, senhor, isso é o que eu chamo de bela pergunta. Pois eu vou lhe esclarecer o que se passa com o espírito dos cães falecidos. Vão pra um lugar onde há muita água e pouco inseto. Várias vertentes, nem mosca ou pulga. Lá, como ninguém lhes dá comida, voltam a caçar. Apanham bichos pequenos que se entocam nos morros. Preás. Correm o tempo todo. Cansados, deitam-se à sombra das árvores.

    O rapaz movimentou a lanterna. O homem passou a mão pelo rosto, indicador e polegar drenando os olhos úmidos, e depois acabou de agasalhar na terra o corpo ossudo.

    Lanterna apagada, o rapaz saiu na frente a passos ligeiros.

    Na sala, aproximou-se da mulher que estava sentada no sofá, iluminada pelo abajur de pé, lendo um livro.

    – Mãe, o pai chorou!

    Lourenço Cazarré é escritor

    Este conto vendeu o Prêmio Ana Maria Martins, da União Brasileira de Escritores (2022)

  • A cerimónia de adeus do Yokozuna Amoyama

    A cerimónia de adeus do Yokozuna Amoyama


    Meu velho avô Kurama Takahashi, o mais gentil dos homens, pediu permissão a meus pais para que eu faltasse às aulas a fim de acompanhá-lo à Cerimônia de Adeus do grande Amoyama.

    Meu velho e cego avô, Kurama Takahashi, queria que alguém de sua máxima confiança, alguém de sensibilidade semelhante à dele, lhe relatasse em detalhes a retirada daquele que considerava o maior lutador de sumô de todos os tempos.

    Meus pais cederam, claro, embora fossem rigorosos no controle dos meus estudos. Jamais eu havia faltado um só dia à escola. Mesmo quando estive com febre alta naquele inverno das fortes nevascas. Cederam porque ninguém resistia a um apelo do mais gentil dos homens, que era meu falecido avô Kurama Takahashi.

    Então fomos, meu idoso avô e eu, ele agarrado ao meu braço, pelas ruas de Tóquio, pela sempre cambiante paisagem colorida que se desdobrava diante de nossos olhos, os meus olhos cheios de luz e os de meu avô, plenos de sombras.

    Foi na manhã de um dos últimos dias do torneio de setembro.

    Embalado por uma entusiasmada orquestra de aplausos, o sempre majestoso Amoyama ingressou no estádio imenso que, naquele dia, tinha só uns poucos lugares vagos.

    Ladeado por uma dúzia de homens gordos, que vestiam quimonos azuis, o grande yokozuna subiu ao dojô a fim de cumprir o ritual da sua aposentadoria.

    Ali estava ele para, pela última vez, repetir com supremo rigor e elegância os gestos que haviam impressionados os japoneses ao longo de quase três décadas.

    Que gestos eram esses?

    Primeiramente, de olhos fechados, Amoyama abriu seus imensos e poderosos braços como se fosse um albatroz preparando-se para alçar voo na praia cinzenta de um mar sacudido por ventos furiosos.

    Depois, por três vezes, bateu com a mão direita fechada no peito, como alguém que, na porta do céu, implora aos deuses que lhe franqueiem o ingresso, o ingresso merecido por todos os que foram bons e justos ao longo de sua vida.

    A seguir, ainda mais vagaroso, demorou-se na certeira disposição dos pés.

    – Ele está se agachando – contei ao meu avô. – Acho que procura o ponto certo para obter depois o mais devastador dos impulsos.

    – É mais que isso – disse meu querido avô Kurama Takahashi. – Ele sabe o exato local em que sopra a energia represada no centro incandescente da terra.

    Sobreveio o silêncio. Um silêncio tão denso que só poderia ser cortado pelo afiado sabre ritual de um samurai.

    Imóvel, agachado, com as mãos fechadas apoiadas no chão, o yokozuna estava pronto para sua derradeira luta.

    Um combate de sumô, me disse certa vez meu amado avô Kurama Takahashi, é aquele mínimo espaço de tempo em que os homens conseguem se transformar nos animais mais ferozes: búfalos, leões, tigres…

    Ah, esqueci-me de narrar aqui, como também me esqueci de relatar a meu avô Kurama Takahashi naquele dia, que, enquanto Amoyama encenava sua preparação guerreira, do outro lado do dojô, de frente para ele, um menino repetia os mesmos gestos simbólicos.

    Que menino era esse?

    Era um pequeno ser magricelo – com a fina cintura envolvida por um mawashi branco – que um homem gordo de quimono azul colocara ali e, com gestos severos, ordenara a ele que se mostrasse um adversário à altura de Amoyama.

    Bem, concretamente: era um garotinho de quatro anos, noventa e cinco centímetros e quinze quilos, chamado Akira Nakamura.

    Dele veio a grande surpresa.

    Sem esperar que o árbitro ordenasse o início do combate, o destemido Akira Nakamura lançou-se contra o colossal homem seminu que tinha diante de si e aplicou-lhe um vigoroso e certeiro uwatê-naguê.

    O que se viu então foi uma maravilha, uma cena jamais registrada em qualquer outra Cerimônia de Adeus, a cena que tive a suprema felicidade de narrar, em todos os seus muitos pormenores, a meu bondoso avô Kurama Takahashi.

    O que se viu então foi o movimento elástico de um corpo de 150 quilos de músculos sendo projetado no ar, girando, o queixo enterrado no peito, os braços cruzados, os cotovelos projetados, as pernas flexionadas, girando, girando, até que se espatifou no solo com o estrépito de uma grande árvore que cai, abatida por um raio, na clareira de uma exuberante floresta tropical.

    Foi uma cena de segundos como são todas as cenas inesquecíveis do imorredouro sumô.

    Novamente a plateia explodiu. Muitos jogaram para o alto suas pequenas almofadas como se tivessem assistido, de fato, à derrota de um consagrado yokozuna por um maegashira novato.

    Amoyama levantou-se lento, mais lento que nunca, zonzo como jamais, trêmulo, atônito, assustado e incrédulo. Digna e dolorosamente, como se estivesse mesmo muito machucado, como se tentasse esconder dores insuportáveis, encaminhou-se com passadas incertas para o lugar de onde deveria cumprimentar o vencedor. E dali, com a reverência respeitosa que sempre destinara aos raros homens que conseguiram vencê-lo, saudou Akira Nakamura.

    Ainda no centro do dojô, porque esquecera que deveria voltar à sua posição, o pequeno rikishi não conseguiu nem mesmo abaixar a cabeça. Permaneceu imóvel, boquiaberto. Era uma delicada estatueta de assombro. Jamais imaginara as consequências quase fatais do tremendo golpe que aplicara naquele gigante que, agora, com as costas sujas de areia fina, se vergava diante dele, humilde.

    Nesse momento, o mesmo homem gordo de quimono azul, segurando na mão esquerda um pequeno banco, subiu ao dojô e pegou o pequenino Akira com a mão direita, como um pai que recolhe do gramado um brinquedo esquecido pelo filho, e, numa ação quase simultânea, colocou o banquinho no exato centro da arena.

    Nesse banquinho, demorado e majestoso, sentou-se Amoyama.

    Pouco depois subiu as escadas do dojô o avô de Amoyama, um velhíssimo pastor mongol, franzino e encarquilhado, com uma barbicha de uns poucos fios e uma espetada cabeleira branca, ainda íntegra.

    Olhos tomados por uma úmida luminosidade, ele agarrou com suas mãos nodosas a grande tesoura que lhe confiaram, aproximou-se do seu neto, seu único e adorado neto, e com golpes rápidos e certeiros lhe cortou os longos cabelos pretos.

    Passemos agora ao rosto de Amoyama.

    O que expressava aquela carantonha imberbe de maçãs salientes, olhos negríssimos e queixada de baleia?

    Nada além de tristeza. Exibia apenas a melancolia que o acompanhara nos seus muitos anos vitoriosos. A tristeza permanente que lhe dera o cognome famoso:

    Amoyama, o Triste.

    Lourenço Cazarré é escritor

    Publicado no número 69 da revisita Brasil Nikkey Bangaku

  • A mulher que carregava dois felinos no nome

    A mulher que carregava dois felinos no nome


    Pede-me o discreto senhor doutor Tchevov, graduado em Medicina pela Universidade de Moscou, meu mantenedor estilístico e intelectual, que, em face de estarmos neste momento nos dirigindo a Portucale, em companhia do senador Rosario La Ciura, eu lhe conte (a ele, Anton) alguma história que tenha porventura vivido naquela antiga nação marítima. Vamos lá!

    Certa vez, há mais de vinte anos, depois de conhecer a portuária cidade do Porto, dirigi-me a passeio ao concelho de Cinfães, pois foi de lá, mais exatamente da aldeia de Santiago de Piães, que partiu há muito, em direção ao Brasil, um de meus ascendentes.

    Estava eu na Conservatória daquele concelho a tentar obter a certidão de nascimento de minha avó pelo lado materno quando parou ao meu lado, diante do balcão, um homem enxuto de carnes e de rosto martelado em granito.

    – Ora, pois, que os diabos me carreguem se não se trata do senhor Torga, escrevente e esculápio! – exclamei.

    – Pois não – retrucou, sereno e seco, o referido senhor, facultativo e, também, plumitivo, como o ínclito senhor doutor Tchecov.

    – Sou cá leitor dos vossos contos – disse eu. – Admiro-os.

    – Aos contos? Ou aos contos e a mim?

    – Admiro ambos, pois sim, os contos e o senhor doutor, que é deles o escrevedor – respondi sorrindo e acrescentei de pronto: – É dura a vida na montanha, pois não?

    – Pois sim, é.

    – As coisas acabam sempre mal por lá. Brigas, mortes violentas, partos solitários, sangrentas capações de varões lúbricos, homens partindo para o Brasil, mulheres abandonadas, muita reza, padres trêfegos, cabras escoiceando nas lojas, chicanices, aldrabices, traições e bandalheiras.

    – Pois assim é.

    – Muito aprecio as palavras desconhecidas que as usa o senhor Torga, embora eu não lhes atinja o sentido. Padeço. Quando o leio, doutor, peno com o pai dos burros ao colo, folheando-o incessantemente, embevecido com o palavrório exótico…

    – Exótico, diz o senhor?

    – Guardo na mente alguns dos seus lindos vocábulos que carregarei para sempre: talefe, gravelhos, quelhas, bragal, jalapa, relheiras, escarolado, pirisca, engrunhada, taró, desembelinhava, sedeiro, bagalhoça, sarrafusca, lampo, enfrenisava, alanzoar, murra, rinhado, panasco, lapedos, cainça, garanho, lódão, churra, cieiro, capilota, moca, preguiceiro, carolos, ilhentas, monco, trasfegas, farroncas, pedrado, courelas, sulipas, gravelho, desolhada, andilha, reloucaste, pútegas, parança, corcódea, esbarrondas, larinhoto, pantanas, coiras, estrafegada, sanguinidades, boldrego, borga, poviléu, farsola, paleio, daimoso, estopinhas, regueifas, conques, escândula, catraio, cibo, palhiço, bacelo, santanária e cardenha. Ufa! Só lembro destas.

    – Mas quanto às histórias, o senhor alcança-lhes o miolo, pois não?

    – Pois sim, doutor.

    – E com qual delas mais o senhor se impressionou?

    – Falando seriamente, doutor Miguel, apaixonei-me pela história da Maria Lionça, mulher de um belíssimo nome, já que unifica e condensa as forças de uma leoa e de uma onça. Um nome dessa grande beleza só poderia resultar em mulher de redobrada fortaleza a ponto de suportar, sem lamúrias, a longa ausência do marido, o Ruivo, que fora garimpar ao Brasil e que só retorna quando muito doente e desenganado, por males ruins, para defuntear-se logo. Mas aí, quando o ledor acredita que se exterminaram os infortúnios de Maria Lionça, eis que, um dia, já idosa, recebe ela um telegrama de Leixões instando que vá buscar seu filho, que retorna estrompado, não por ter ido gastar-se ao Brasil, mas porque se destroçou, de marujo, varejando o salso argento. Deram-lhe o filho no hospital, a exalar o último suspiro. Meteu-se então a Maria Lionça no comboio com seu rebento ao colo, já a arrefecer, embrulhado numa manta, a pedir licença a todos, recitando que levava ali uma pessoa muito doente. Arredavam-se logo todos. E assim conseguiu sentá-lo e sentar-se a seu lado. E daí a pouco, no macho do Preguiças, o Pedro subia a serra para dormir o derradeiro sono em Galafura, que era ao mesmo tempo a terra onde nascera e o regaço de sua mãe. É isso, senhor doutor Miguel Torga?

    Silêncio e compostura!

    Não me venham dizer que o português lusitano, quando impresso, parece uma inepta tradução de um livro escrito originalmente em basco ou húngaro. E nem defendam que o português lusitano, quando falado, é claramente uma língua germânica, cuja pronúncia se assemelha à do francês canadense, língua, esta sim, falada única e exclusivamente pelo nariz. Lusitanu, locale.

    Lourenço Cazarré é escritor

    Texto originalmente integrado no livro Kzar Alexander, o louco de Pelotas

  • A coisa mais tremenda que eu já vi nesse banhado

    A coisa mais tremenda que eu já vi nesse banhado


    E como chegou, atropelou-a, agarrou-a, apertou-a, abraçando-a pela cintura, metendo a perna entre as dela, forcejando por derrubá-la, respirando duro, furioso, desembestado… mais mordendo que beijando o pescoço amorenado… e garboso…

    No manantial, João Simões Lopes Neto


    Está vendo aquele prédio verde mais alto, ali, à direita? É, o sobrado. Na parte de baixo funciona uma padaria. E lá, à esquerda, aquela casinha rosa bem na esquina? Imagine só: de um lado a outro, isso era só barraco. Um coladinho no outro, sem muro nem pátio. Uma amontoação que descia banhado dentro, quatro, cinco quadras. Ia mais ou menos até aquele poste lá na curva. Isso, onde a avenida dobra. Era muita gente que morava aqui.

    Faz mais de trinta anos, se não me engano. Eu era pequeno de uns nove anos quando chegamos aqui. A família toda: o pai, a mãe, a mana e eu.

    Não, não sei o ano direito, só sei que foi depois de uma enchente. A gente morava do outro lado da cidade, na Cerquinha. Perdemos quase tudo no aguaceiro.

    A vila surgiu num tapa. De repente, tinha aquele monte de barracos. O pai trouxe de charrete as madeiras da casa antiga, que a água tinha arrebentado. A gente veio de noite. De dia já me acordei morando na Vila dos Agachados.

    Ficamos sem colégio aquele resto de ano. Foi bom. A gente se metia pelo banhado: jogando bola, pescando, nadando e matando passarinho. A gente comia passarinho, claro. Pomba era melhor.

    Para todos os lados que se olhasse, só se via bandos e bandos de guris de canelas embarradas.

    No verão, a gente ia nadar num poço grande que tinha bem mais para a frente, depois dum matinho. O nome era Redondo, porque tinha o formato de uma roda mesmo. A gurizada passava o dia nadando. Só os machinhos, claro. As gurias não desciam das casas.

    O Redondo? Era como um açude, mas feito pela natureza mesmo. Fundo, sim. Bem no meião a água tampava a cabeça do indivíduo.

    Foi na beira desse tal Redondo que se deu a coisa mais tremenda que eu já vi nesse banhado aí.

    A senhora tem tempo? Tem mesmo? Olha que é história enrolada!

    Foi assim. Eu morava bem no meio da vila. Quero dizer, a minha casa ficava mais ou menos na metade da rua, a única rua, a que cortava de cima a baixo. Mais para lá, uns três barracos depois, morava o Magro. Era um bem mais alto do que eu, mas leviano de peso, cara fina. Parece que se chamava Nadir, não sei direito. Vivia só ele e mais o pai dele, um senhor emburrado, caladão. Tinham vindo da campanha e parece que o pai dele vivia de biscate.

    Mais adiante, bem no finzinho da rua, morava a Marianita. Era uma mulata sarará, de olho verde. O cabelo era bem loiro, mas ruim. Quando chegou na vila, ela era uma guria sem graça, gordinha, meio corcunda, com a carapinha sempre enfiada num lenço.

    A idade do Magro? Acho que tinha uns treze quando veio para cá. Mas o caso que eu vou lhe contar se deu depois, uns dois anos e pico depois. Então, a senhora faça os cálculos. É isso mesmo: o Magro tinha uns quinze e a guria devia andar pelos quatorze…

    Ah, tem mais uma pessoa nessa história: o Negãozinho. O nome dele era engraçado, nunca esqueci: Dionvaine. Ele morava perto da Marianita, mais na banda de lá. Era uma penca de filhos, uns sete. Tudo guri. O Negãozinho era o mais velho. De idade ele regulava com o Magro, mas era muito maior, ombrudo. O Negãozinho só entrava dobrado, de cabeça gacha, no barraco da família dele.

    Como eu lhe disse, a gurizada passava o dia no banhado. Na parte mais de cá a gente jogava bola. Num arroiozinho que tinha mais para lá se pescava. A gente caçava passarinho no mato que tinha perto do Redondo. Mas também se fazia guerra de bodoque com bolinha de barro. Teve um até que ficou caolho, um gordo foguinho.

    Eu gostava mesmo era do Redondo. Dava para fazer corrida de nado. Tinha prova de mergulho, para ver quem ficava mais tempo afundado. Até campeonato de ponta-cabeça fizemos, para ver quem é que saltava mais longe.

    No primeiro verão, todo mundo nadava. O Magro, o Negãozinho e eu. O Negãozinho era dose. Gostava de afogar os menores. Pegava pela nuca e empurrava para o fundo. Ele se prevalecia porque tinha muita força. O Negãozinho roubava na corrida. Puxava os outros pelo pé. Nadava mal, chegava atrasado e tinha a cara de pau de dizer que tinha ganhado. Todo mundo se arrolhava para ele, menos o Magro. Que era um peixe nadando.

     – Tu pode dizer o que tu quisé, Negãozinho, mas eu te ganhei – dizia o Magro. – E nadando de camisa!

    Ah, tinha isso também: o Magro não tirava a camisa nem para nadar, nunca. Dizia que tinha uma queimadura no peito que era uma coisa feia de se olhar. Nadava com camisa de botão por cima e com camiseta por baixo.

    Depois de perder uma carreira de nado para o Magro, o Negãozinho ficava buzina e ia embora, pateando. Ele podia, se quisesse, dar uma tunda no Magro, mas nunca saiu no pau.

    Por que isso? Eu lhe digo: o Magro era o mais esperto de todos. Era um piá estranho. Falava pouco. Acho que era por causa da voz dele, que era fina, meio fanhosa. Não fazia questão de mandar, mas a gente obedecia tudo que ele mandava. No futebol, ele dividia os times. E nunca deixava ninguém brigar. Se um se esquentava, ele mandava baixar a bola. O Magro jogava no golo. Era corajoso, se metia nos pés dos outros. Uma vez levou um baita bolaço no peito e caiu desmaiado. Na caça, ele era o melhor de pontaria. Mas não deixava ninguém matar só de maldade.

    – A gente só mata o que vai comer – ele dizia.

    O Negãozinho ficava fulo, chiava, mas acabava se michando.

    O Magro tinha uns tiques de nervoso. Se sacudia assim: girava a cabeça bem ligeiro e depois dava um coice para o lado.

    Um dia, a gente estava só os dois, e eu perguntei o porquê daqueles tirões com o pescoço e o pataço. O Magro me olhou, pensou um pouco e disse:

    – É a minha alma que quer se livrar do meu corpo.

    Fiquei arrepiado, me benzi e tudo.

    Um carroceiro, que também tinha vindo da campanha, disse uma vez no boteco da vila que a mãe do Magro tinha aparecido enforcada num galho de umbu.

    Então, eu achava que os tiques dele eram de recalque.

    No segundo verão, o Magro não foi mais nadar. Ficava em casa ouvindo radinho de pilha. Parou de brincar com a gente e, aí, a coisa complicou. O Negãozinho ficou de chefe. Eu era dos menores e tinha que obedecer. Um dia inauguraram o supermercado e o Negãozinho me mandou roubar cinco rolos de cordão para a pandorga dele. Roubei me borrando de medo, mas roubei. Então a gente começou a ir em bando para o centro da cidade e os guris do colégio dos padres trocavam de calçada quando viam a gente.

    Uma vez, anoitecendo, uns brigadas nos cercaram quando a gente vinha voltando pelo canalete. E, sem conversa, baixaram a borracha no nosso lombo. O Negãozinho foi o que tomou mais pau, mas não chorou. Um brigadiano disse:

    – Fiquem naquela vila de merda e não saiam de lá! Se aparecerem de novo por aqui, vai ter para vocês, maloqueiros!

    O tempo foi passando.

    Eu só sei que um dia os guris mais velhos estavam todos loucos pela Marianita. Foi de repente. Era feiosa, mas, de uma hora para outra, botou corpo. Um corpaço. Ajeitou o cabelo numa trança, comprou sapato de salto e começou a se pintar.

    Sempre fui um piá observador. Era menor que os outros, ainda nem dava bola para gurias, mas notei que o Magro foi o que mais se engraçou para o lado da Marianita. Ele ia até o fim da vila, passava na frente do barraco dela e voltava. Era um passeio sem fundamento porque não tinha nada para ver lá. Se entrava no banhado, e só entrava sozinho, o Magro sempre voltava trazendo uma coisa que dava um jeito de deixar com a Marianita. Era flor, era plantinha, era passarinho: cardeais e canários da terra. Uma vez pegou um ninho inteiro com filhotes de caturrita.

    Depois, começaram a conversar na porta do barraco dela. A Marianita toda arrumadinha de saia curta. O Magro sempre ficava de cabeça baixa, meio que rindo sem jeito, cavando o chão com a ponta do chinelo.

    A mãe da Marianita era uma polaca que trabalhava de faxineira na Santa Casa. Tinha também três guris. Dizem que cada um era de um pai. A Marianita, apesar de clarinha, era filha de negro, aposto. Tinha as feições. Os três menores eram um ruço, um meio índio e um alemão melado.

    Dizem que a mãe dela tinha descido do Morro Redondo ou do Monte Bonito para se virar na Tiradentes. Um dia, não se sabe como, arranjou o emprego de faxina e deixou a vida. Depois, ela e a filharada foram dar com os costados na vila.

    Mas aí tem um detalhe que eu ia me esquecendo. Um dia a prefeitura cercou a favela com arame farpado. Não podia levantar mais barraco nenhum. Os empregados vieram numa camionete com alto-falante. Botaram as pessoas em fila e fizeram um levantamento. Disseram que iam regular a nossa situação. O meu pai até ficou meio desconfiando, mas acabou enchendo uma ficha para eles.

    Tempo vai, tempo vem, a gente via uns sujeitos descendo pela nossa rua com umas fitas métricas compridonas e uns aparelhos de mirar. Começou a falaçada. Que iam nos jogar no banhado. As pessoas discutiam. Meu pai dizia:

    – Por mim, está tudo bem. Podem me botar até nos quintos, mas tem que ser de papel passado em cartório.

    Um dia, armaram um palanque na entrada da vila. A gente se chegou. Disseram que ia ter bandinha da Brigada, foguetório, churrasco, guaraná e até uns drinques. Depois apareceu um caminhão. Dele desceu o prefeito, que era um gordo, baixinho, de óculos. Ele foi para o palanque e começou o nhenhenhém. O bicho falava complicado, mas o caso era que iam mesmo nos dar uns lotes demarcados.

    Foi durante a fala do prefeito que o Negãozinho se enfiou pela traseira do caminhão da prefeitura. Pegou só duas garrafas da cachaça, para os funcionários não desconfiarem muito, e se mandou banhado adentro. Fomos dois guris atrás dele: eu e o Perninha, um que era rengo.

    O Negãozinho deu uma garrafa para nós e ficou com a outra para ele. Bebia e se gabava, dizendo que era homem e tal, que não ficava borracho nunca. O Perninha não falava nada, só bebia e careteava. Eu me fiz de sonso e não tomei quase. Aquilo me queimava as tripas.

    Lá pelas tantas o Perninha se foi embora, mais manco que nunca, meio que se vomitando. Em seguida caiu a noite. O Negãozinho tinha tomado mais da metade e continuava se balaqueando. Eu nem escutava direito o que ele dizia.

    Eu olhei para a vila e vi que as pessoas estavam acendendo as velas e os lampiões. Se acabou a festa, pensei.

    – Vambora, Negãozinho – eu disse. – A mãe deve de tá me procurando.

    – Eu vou é destampar a Marianita – disse ele e meteu o dedo no meu peito. – E tu vai olhá.

    Senti que a coisa estava ficando feia, mas não falei nada. No fundo, eu queria ver como ele ia…

    A senhora me entende?

    Eu era gurizinho novo, só sabia daquilo de ouvir falar.

    Além do mais, eu não tinha coragem de contrariar o Negãozinho. Ele era meu amigo. Não deixava os maiores me pegarem no futebol. Mas eu também gostava de ver o jeito como ele olhava para os brigadianos, assim de cima.

    – Vem comigo, piá – disse o Negãozinho. – Mas fica meio de longe. Não te mete. Eu vou trazer ela para cá. Depois, ela se lava aí no Redondo.

    Fomos. Era noite de lua cheia. Lembro de tudo, tintim por tintim. Lembro até do barulho dos bichos do banhado: era muito nhé de sapo e muito ruuu de coruja.

    O Negãozinho bateu na porta do barraco. Quando a mãe da Marianita abriu a porta, de vela na mão, o Negãozinho mandou um soco nos queixos da mulher. Entrou no barraco, pegou a Marianita assim, na gravata, e se veio. Um dos guris correu de atrás, o menorzinho. O Negãozinho deu-lhe um pontapé que o coitadinho levantou no ar e depois caiu deitado.

    Meio correndo e trazendo a guria de arrasto, o Negãozinho passou pelo matinho e se foi até o Redondo. Eu fiquei por trás, meio escondido num pé de araçá, só bombeando. Ele jogou a Marianita no capim e ela não gritou nem nada. Se levantou, fez que ia ajeitar o vestido, mas voou no pescoço do Negãozinho e cravou as unhas nele. O Negãozinho urrou de dor e derrubou ela com uma rapada. Depois se jogou em cima, metendo a perna no meio das pernas dela. Os dois rosnavam como animais. Ela quebrava a corpo e ele forcejava em cima. Não tenho vergonha de confessar: era uma coisa bonita de se ver, embora fosse maldade.

    Olha, vou dizer uma coisa – que Deus me perdoe, se eu estiver mentindo. Eu estava de olho bem aberto, vendo tudo. De repente, o Diabo me roncou nas tripas: achei que a Marianita estava gostando. Foi quando os corcoveios diminuíram e ela aceitou a boca dele.

    Mas, bah, aquilo não durou um segundo.

    Eu só vi um vulto branco – parecia uma assombração! – passar pela frente dos meus olhos. Um vulto que fez uns movimentos rápidos e aí eu escutei um grito. Um grito de dor.

    Demorei a entender.

    Era o seguinte: o vulto era o Magro. E ele tinha feito, de canivete, um xis nas costas do Negãozinho.

    O Magro estava de calça branca e de camisa branca, bem como eu tinha visto ele no discurso do prefeito, no gargarejo do palanque, ao lado da Marianita.

    – O que tu me fez, seu filho da puta? – perguntou o Negãozinho.

    – Só te marquei na paleta – disse o Magro, naquela voz esganiçada.

    – Eu vou te matar – disse o Negãozinho, e se levantou.

    Então eles começaram a caminhar de lado, como que se toureando.

    A lua brilhava no canivete do Magro.

    A cada volta o Negãozinho se aproximava mais. Estava meio encolhido, como gato pronto para atacar um rato.

    Então, com a mão esquerda o Magro começou a desabotoar a camisa. E perguntou:

    – Tu gosta mesmo de mulher, Negãozinho?

    Negãozinho não respondeu.

    Aí, o Magro deu um jeito de corpo e se livrou da camisa. A lua batia bem nele. Ele estava com uma faixa de pano enrolada no peito.

    Negãozinho parou de andar.

    O Magro deu um puxão e a faixa se foi ao chão. Duas tetas saltaram no peito dele. Duas tetas de mulher.

    O Negãozinho recuou um passo e ficou duro. O Magro abriu a cinta e deu um giro de bambolê na cintura, assim. E a calça dele caiu. O Negãozinho já tinha até abaixado os braços. O Magro meio que se agachou, arrastando a cueca com o dedão. Credo, que coisa! Ele deu um passo em frente, nu, e eu vi um corpo inteiro de mulher.

    – Se tu gosta mesmo, hoje tu vai ter que comer duas.

    Eu já nem respirava. O banhado estava em silêncio, como que estuporado pelo que estava se dando ali.

    O Negãozinho estava de costas para mim, parado. Dava para ver a sangueira na camisa dele.

    Então aquela mulher que tinha saído de dentro das roupas do Magro se encaminhou até onde estava a Marianita e deu a mão para ela. Sempre de canivete levantado, sem tirar os olhos do Negãozinho.

    A Marianita, que estava assistindo aquilo sentada, se levantou. A primeira coisa que fez foi ajeitar o cabelo. Depois recolheu do chão as roupas do Magro.

    Então as duas se foram, uma vestida, outra pelada, de mãos dadas, em direção ao casario.

    Eu me chispei banhado acima, na pontinha dos cascos. Dei uma volta bárbara para chegar até os barracos. Não queria que o Negãozinho soubesse que eu havia assistido aquilo tudo de camarote. Ele ia ficar com medo que eu saísse contando.

    Dias depois, houve a mudança da vila. Foi feita no rapidão porque todo mundo tinha pouca coisa. O pai ganhou um lote bem bom, naquela banda de lá. Em seguida, eu arrumei emprego de mandalete na cidade e comecei a trabalhar.

    Bem, para encurtar. O Magro tomou chá de sumiço naquela noite mesmo. A Marianita logo depois saiu da vila. Falavam mal dela, diziam que tinha seguido a antiga profissão da mãe.

    O Negãozinho só durou mais dois anos. Morreu de balaço pelas costas. Parece que foi um brigadiano.

    Lourenço Cazarré é escritor

    Texto originalmente integrado no livro Exercícios espirituais para insônia e incerteza

  • No incêndio da tarde

    No incêndio da tarde


    Foi no início da tarde, pouco depois da hora do almoço, quando todo mundo estava sesteando, que se deu o causo, aquela barbaridade. Por que os loucos e os guris não sesteiam?

    Todo santo dia, mesmo que fosse inverno e que as águas estivessem frias como chapa de aço, ele nadava no rio. Dava um mergulho e sua cabeça grisalha só reaparecia bem longe. Depois, com braçadas largas, avançava. Era um pouco antes do nascer do sol, escuro ainda. Mesmo nos dias de vento e chuva, quando o rio se encrespava e rugia, ele nadava quase até a outra margem e voltava na mesma braçada segura.

    O grito de morte correu por entre as casas, mas depois ficou parado no ar, cristalizou-se bem no meio da rua. Por isso, todos os homens pularam da cama, entorpecidos.

    Era um sábado, calor dos infernos. O mulato voltava para o barraco dele. Até aquele dia, era manso, manso. Gostava de missa. Colecionava santinhos. Diziam que de noite, à luz de vela, ficava lá no barraco dele apreciando os bentinhos que ganhava do padre da igreja do Porto depois da missa das dez de domingo. Se naquela tarde traiçoeira ele tivesse passado um pouco antes, ou depois, talvez não tivesse se defrontado com os guris, que estavam ali pela esquina. E, se fosse mais cedo ou mais tarde, podia ser que houvesse algum adulto por ali, para impedir a tragédia.

    Quem esqueceu aquela maldita acha de lenha justo ali, na beirinha da calçada?

    Os moleques disseram depois que o crioulo se agachou com um movimento muito ligeiro, elástico, que os olhos dele estavam brilhantes de fúria.

    Aí, ele voltava até a margem de cá e saía da água, luzindo, nu em pelo. Depois ia até a cabaninha dele, que é um moquiço de lata, e botava a roupa por cima do corpo molhado: uma calça esfarrapada e uma camisa no fio.

    Os homens se reuniram na esquina, onde já havia um círculo ao redor do corpo ensanguentado. Alguns nem olharam direito, se contentaram em observar pelo canto do olho o filete vermelho que corria por cima do cimento.

    Os outros meninos estavam um pouco mais afastados, assustados. Aí, um dos homens, um de olhos bem azuis, se aproximou deles e perguntou:

    – Para onde ele foi?

    Pouco antes, os guris estavam por ali, naquela mesma esquina, quando o mulato se veio, gingando naquele passo mole, a cabeça cravada no peito. Eram quatro os piás. Aqueles estavam ali porque não sesteavam. Alguns garotos não têm descanso, são como almas penadas. Estavam debaixo do plátano, na sombrinha. Era cedo para entrar no rio ou para jogar bola, estavam papeando.

    – A gente só estava esperando a comida baixar – disse um deles, e desatou a chorar.

    O mulato seguia, depois, direto para o Mercado. Era como um relógio, cruzava sempre pelo primeiro ônibus que descia para a Balsa.

    – Para onde foi o louco? – insistiu o homem.

    O menino apontou para os grandes armazéns à beira do rio.

    O homem passou a mão pela cabeça do pequeno que soluçava e voltou até onde estavam os outros homens, ao redor do corpo. Nem falou quase, apenas resmungou. Eles se entenderam mais pelos olhos. Então, cinco ou seis deles foram até as suas casas, mas logo saíram de volta para o calor.

    A gurizada estava acostumada com o mulato. Todo dia ele passava por aqui, sempre naquele seu jeito gingado, olhando para o chão. Era mansinho como boi velho, mas naquele dia estava alterado. Por dentro. Por fora, era igualzinho o de sempre, um bicho inofensivo. Aí, eles gritaram:

    – Tarcísio louco!

    Cedinho, quando o fiscal da Prefeitura, ainda bocejando, enfiava a chave no portão do Mercado, o crioulo já estava por lá. Alto, parecia ainda mais alto no meio dos portugueses das bancas, quase todos baixinhos. Uma mancha escura no meio de rostos pálidos, uma sombra gigantesca e desengonçada. Enfiado na portuguesada, ele entrava Mercado adentro, afoito e displicente ao mesmo tempo.

    Ao voltarem à rua, os homens estavam armados. Dava para ver por baixo de cada camisa o volume do revólver. Tinham todos os olhos injetados de quem não sesteou bem.

    Então o homem que tinha passado a mão na cabeça do piá, o homem dos olhos azuis, cujo nome agora me escapa, se encaminhou para o rio. Os outros foram atrás. Iam devagar. Devagar demais, como se lhes pesasse muito o andar, como se carregassem um fardo. Seguiram pelo meio da rua. As pedras do calçamento estavam fervendo de tanto calor.

    Como se deu a coisa? Bem, primeiro, os guris gritaram. O mulato seguiu em frente, deu ainda mais dois ou três passos. Quando o coro se repetiu, ele parou e levantou a cabeçorra. Tinha sempre uns olhos tristes de vaca, mas, naquele dia, não, os olhos dele brilhavam alucinados. A gurizada tornou a gritar. Foi o erro deles. O mulato olhou em volta. Viu a acha de lenha caída junto ao meio-fio.

    – Foi muito rápido – contou um dos meninos, depois. – Ele se agachou, como se fosse de mola. A gente parou de gritar. Quando se levantou, ele já tinha a lenha na mão. A gente saiu correndo.

    Aí, ele começava a percorrer os corredores do Mercado. Ia de um lado a outro, arreganhando as narinas, para sentir melhor o cheiro bom que vinha do interior das mercearias. Só parava, e por pouco tempo, diante dos viveiros de passarinhos. Então, um português o chamava. Não importava quem, trabalhava para todos, mesmo para o mais pão-duro. O português apontava uma carroça qualquer e ele ia até lá e agarrava as caixas de frutas. Carregava três de cada vez. Depois, outro portuga lhe gritava o nome e ele ia até outra carroça.

    Os homens enveredaram pelo campinho e foram direto ao muquifo do mulato. Para dizer a verdade: era mais ou menos uma casa de cachorro grande. Metro e meio, se tanto, de altura. O homem que tinha afagado a cabeça do moleque do que chorava sacou o revólver e agachou-se, cauteloso, diante da abertura. Não havia nem mesmo uma tábua que servisse de cama. Engatinhando, enfiou-se lá dentro e voltou pouco depois trazendo na mão uma caixa de charutos. Em silêncio, os outros homens o cercaram. Levantada a tampa, todos puderam ver as dezenas de santinhos.

    – O pobre maluco – resmungou um deles.

    Depois, quando não havia mais carroças para descarregar, um dos portugueses lhe dava uma vassoura e ele varria os corredores. Já havia então bastante gente por ali, na maioria velhas de cabeças cobertas por mantilhas negras, mal saídas da missa na Beneficência Portuguesa. Finda a varrição, o crioulo ia a uma das lancherias para receber sua paga: um litro de leite e um pão sovado de meio quilo recheado com mortadela.

    Saindo do barraco, os homens pegaram a trilha que levava ao rio, a trilha aberta pelos pés do próprio mulato. Só pararam junto à margem, amontoados debaixo da sombra pouca de um salso chorão. Viram logo um ponto no meio do canal de navegação. Era a cabeça dele.

    Aí o homem de olhos azuis, assumindo o comando, ordenou que dois fossem até o Clube de Regatas para trazer uns caíques.

    O ponto escuro no meio do rio sumia aqui e reaparecia lá adiante.

    – Mais dia, menos dia, a gente ia ter que fazer isso mesmo – disse um deles. – Não existe louco manso.

    Foi o quinto e último filho. Seus quatro irmãos eram pretos como a noite. Quando viu o recém-nascido, clarinho, o homem que deveria ter sido seu pai, se foi para nunca mais voltar. Sumiu sem fazer uma só pergunta à mulher, sumiu sem um só xingamento.

    A mulher rezara muito para Santa Bárbara pedindo que a gravidez não vingasse, mas a santinha não lhe ouviu as preces.

    Desesperada por ter sido abandonada, ela descontou a desgraça no filho. Negou-lhe o peito, mas, mesmo assim, ele cresceu forte como um novilho. Negou-lhe cafunés, mas, mesmo assim, ele era amoroso. Então, ela começou a bater nele de rebenque. Por onde pegasse, na cabeça de preferência. Na cabeça de cabelos cacheados, cacheados como os cabelos do branco.

    Pouco depois chegaram os dois barquinhos. Os homens embarcaram em silêncio. O homem dos olhos azuis, na proa de um deles, não desgrudava sua mirada do pontinho negro no dourado das águas.

    – Ele está girando em círculo – disse alguém. – Vai ser fácil pegar ele.

    Quando chegou o tempo das primeiras palavras, o mulatinho não se pronunciou. Não falaria uma só palavra em toda sua vida. Ainda bem pequeno, ganhou o jeito esquivo dos bichos do mato. Depois de muito escorraçado pelos irmãos, não tentou mais brincar com eles. Mirava a mãe de soslaio, à espera de um aceno carinhoso que nunca veio. Começou a se refugiar no mais escuro do mato e ali passava os dias.

    Tempos depois, mais taludo, passou a perambular pelos campos. Voltava à tardinha, depois da janta dos irmãos, para comer os restos. Cada vez ia mais longe nessas andanças. Certo dia descobriu duas coisas assombrosas: a Lagoa, que era um mundo de água que não acabava nunca, e o negro velho que não tinha uma perna.

    Os barcos deslizavam embora os remos estivessem levantados.

    – Temos muito tempo ainda antes de escurecer – disse o homem dos olhos azuis, mirando o céu vermelho.

    Ficou morando por ali, num canto da cabana do negro velho. Não apanhava mais de rebenque, e isso era bom. No verão, passava os dias dentro da água. Da margem, mal equilibrado na muleta, o velho fazia uns gestos que o menino tentava imitar. Foi assim que aprendeu a nadar. O velho o ensinou também a pescar de caniço e a matar marrecões a pedrada.

    – Com esse tempo todo dentro d’água, ele deve estar cansado – disse alguém.

    Um dos homens apontou para onde vinha deslizando uma lancha. Compreenderam então que ela passaria entre eles e aquele que caçavam.

    Acordava e ia pescar. Quando voltava com a fieira de peixes, o fogo já estava aceso e o velho mateava. Enquanto os peixes fritavam, o velho contava histórias que o pequeno não compreendia. Falava principalmente das barbaridades que vira nas revoluções: degolas e capações.

    Após a passagem da lancha, quando a paisagem se refez, os homens só viram o largo rastro da água que se abria. Não havia nem sinal do nadador. Os caícos ficaram totalmente parados, como que pendurados no calorão da tarde.

    – Lá está ele – disse um homem, por fim. – Não é sonso como a gente pensa. Aproveitou a passagem da lancha para escapar.

    Depois de vencer os juncos da margem, o homenzarrão nu corria pelo descampado em direção ao seu barraco.

    – Se eu tivesse um fuzil… – disse alguém.

    Ofegante, apressado, o mulato se agachou diante de abertura do seu barraco, enfiou-se por ela e apanhou a caixa de charutos. Com os dedos molhados, manipulou as estampas de santos.

    – Força nos remos! – gritou o homem dos olhos azuis.

    Quando reapareceu, correndo, aquele homem que era a caça estava se dirigindo ao rio, mas agora fazia um caminho diverso do anterior: cortava pelo meio do capinzal crescido.

    – Já nos viu – disse alguém. – Está desviando.

    – Não adianta – disse o homem dos olhos azuis. – Ele sabe que não nos escapa.

    Às vezes, aparecia com um marrecão, um préa ou uma perdiz. Ou frutas do mato. O negro velho cultivava um roçado de mandioca.

    Entenderam o que ele ia fazer. Corria para a barranca alta de onde os guris gostavam de pular de ponta-cabeça na água. Sem se falar, os remadores mudaram o curso dos barquinhos.

    Embalado pela corrida, o mulato escalou a barranca e lá de cima saiu voando: o imenso corpanzil estirado, as mãos unidas na frente.

    Então, alguém fez fogo. Foi um gordo, que trabalhava de balconista numa farmácia.

    A explosão desfez a beleza do movimento do homem que voava. Ele se contraiu e caiu de lado, levantando uma nuvem de água.

    – Acertei no costado dele – comemorou o gordo, erguendo o revólver.

    Num dia de inverno, ao voltar da Lagoa, o mulato não encontrou o fogo aceso. O velho dormia ainda. Agachou-se junto à porta e esperou. Esperou por todo o dia, mas o velho não se levantou.

    No amanhecer seguinte, tangido pela fome, saiu caminhando. Precisava encontrar alguém que tivesse um fogo para assar os peixes que havia pescado no dia anterior.

    Mais uma vez os caçadores ficaram em silêncio nos botes imóveis. Por mais que mergulhasse, e o mulato mergulhava uma barbaridade, ele não podia ir muito longe já que estava baleado.

    – Talvez tenha morrido – disse alguém.

    Aí, como que para desmenti-lo, o caíque virou. Duas grandes mãos escuras seguraram na borda e a puxaram para baixo. Foi rápido e inesperado. O pequeno barco oscilou bruscamente e os homens não tiveram tempo de se segurar.

    A calmaria da tarde foi cortada pelos gritos dos que caíam na água e dos que estavam no outro bote. Esses, agarrados à borda, tiveram tempo de sacar seus revólveres, mas não encontraram um alvo.

    Os que tinham sido jogados na água nadaram até a margem, mas um deles teve que ser recolhido porque não sabia nadar.

    – Foi tudo muito de repente – disse o resgatado. – Eu só vi as mãos na borda, bem pertinho de mim, e veio a puxada forte. Malandro! E eu, trouxa, achando que ele já estava mortinho no fundo do rio.

    Lá pelas tantas, encontrou cabanas parecidas com a do velho, cinco ou seis, também na beira de um curso de água. Sentiu vontade de nadar ali, mas tinha fome, muita fome. Precisava de alguém que lhe cozinhasse os peixes. Entregou-os a uma velha magricela de carapinha branca.

    A mulher resmungou um bocado antes de perceber que havia alguma coisa errada com aquele rapagão com olhos macios de criança. Deve de ser atrasadinho das ideias, pensou ela. Então jogou fora os peixes, mas botou um feijão para cozinhar.

    Por um tempo ele ficou parado diante da água. Não entendia por que a água não se perdia de vista, como na frente da cabana do preto velho. Dali podia ver a margem do outro lado. Mesmo estranhando, entrou na água e se pôs a nadar.

    – Só pode ser doidinho mesmo – resmungou a velha. – Como é que me entra numa água gelada dessas?

    O mulato reapareceu no meio do rio, nadando forte.

    – O que é que ele vai aprontar agora? – perguntou alguém.

    O homem de olhos azuis suspirou fundo. Havia alguma coisa de muito dolorosa naquelas largas braçadas, pensou ele. Por que não se entrega de uma vez?

    – As palmas das minhas mãos estão em carne viva – disse um dos remadores.

    Estava terminando de comer o feijão quando chegaram os homens da Guarda Municipal. Queriam ver seus documentos, queriam saber de onde vinha. Como não respondesse, eles o levaram preso, algemado. No quartel, só quando ele já estava muito ensanguentado, o cabo desistiu de interrogá-lo.

    – Para apanhar desse jeito, que nem boi ladrão, sem dizer nem água nem sal, só pode ser mudo ou louco. Ou as duas coisas juntas.

    Perto da ponte, o mulato parou de nadar. Boiou de costas por um tempo, como disposto a esperar pelos seus perseguidores. Mas, de repente, quando os homens se aproximaram, submergiu.

    – Desgraçado!

    Os remadores levantaram os remos e o barco seguiu escorregando pela chapa das águas, perdendo velocidade.

    – O que esse louco danado está preparando agora?

    – Talvez queira virar o nosso barco também.

    Quando foi solto, no dia seguinte, bem cedo, andou pelo centro da cidade, aparvalhado com todas aquelas construções enormes.

    Perseguido pelos moleques que o xingavam, refugiou-se no Mercado. Ali, um português apiedou-se dele e mandou que descarregasse uma carroça que estava atulhada de engradados de cerveja.

    O fugitivo tornou a reaparecer, já fora da água, na margem direita, debaixo da ponte. Rengueando, meio vergado, corria para um capão de mato.

    – Agora, não nos escapa mais – disse alguém. Os remos voltaram a bater com fúria na água. – Ali no mato a gente faz o serviço nele.

    O mulato reapareceu, além das árvores, subindo o barranco que levava à rodovia. A escalada era penosa.

    – Será que pretende fugir pela estrada?

    O mulato chegou à ponte. Encurvado, o torso projetado para diante, as mãos pendentes ao lado do corpo, pôs-se de pé sobre o parapeito.

    – Deve ter perdido muito sangue – disse alguém.

    Com os braços abertos, como equilibrista de circo, o perseguido começou a caminhar sobre o parapeito.

    Naquele dia mesmo, o português lhe arranjou um nome.

    – Na minha terra, lá em Cinfães, havia um gajo grandalhão como tu, e igualmente comilão e tolo. Chamava-se Tarcísio aquele estupor. Por isso, vou chamar-te Tarcísio.

    A proa do caíco voltou a ser apontada para o meio do rio e os homens tornaram a avançar, mas devagarinho. Acompanhavam a lenta caminhada do ferido por cima da amurada da ponte.

    – O que é que esse desgraçado vai fazer, meu Deus?

    Passou sua segunda noite na cabana da preta velha. De manhã cedo, nadou no rio. Mais tarde, quando sentiu fome, dirigiu-se ao Mercado.

    Na metade da ponte, exatamente no centro do rio, ele se deteve. Virou-se de frente para o lado do porto. Levou a mão direita à cintura, ao local onde havia sido atingido, e ficou esperando que o bote deslizasse até perto de onde estava. Então, num movimento vagaroso, que lembrava o de um pássaro grande prestes a alçar voo, ele abriu os braços.

    A negra velha morreu pouco depois.

    Um dia, os homens da Prefeitura vieram e derrubaram todos os barracos. Mas ele, só ele, continuou por ali. Não adiantava destruir o casebre porque ele sempre voltava a reconstruí-lo. Então o deixaram de mão.

    O mulato se abaixou um pouco. Tomou a feição de uma pantera pronta para atacar.

    O homem dos olhos azuis tentou inutilmente secar na camisa úmida a mão empapada de suor que segurava o cabo do revólver.

    O grande corpo musculoso descreveu uma curva elegante contra a vermelhidão do sol e fendeu a água quase sem levantar respingos.

    Os homens empunhavam os revólveres. A espera se alongava.

    Ele deve ter ido ao fundo, pensou o homem dos olhos azuis. Não sei o motivo, mas acho que ele precisa tocar pela última vez o lodo do fundo do rio, pensou o homem de olhos azuis, o homem cujo filho fora assassinado no início daquela tarde.

    Então, a cabeça já grisalha e a cara morena afloraram a água.

    A distância entre o caçador e a presa era de dois metros.

    O homem de olhos azuis mirou na testa sem rugas.

    O som seco do tiro ficou ecoando entre as pilastras da ponte.

    Quando a água voltou a se imobilizar, o gordo que trabalhava na farmácia estendeu o remo e pegou o santinho que flutuava.

    – É São Benedito – disse.

    Lourenço Cazarré é escritor

    Texto originalmente integrado no livro Histórias suburbanas


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  • Enfeitiçados todos nós

    Enfeitiçados todos nós


    A umidade é o primeiro dos feitiços.

    Quando Deus fez o mundo e nele jogou o primeiro homem, a primeira pedra e a primeira palavra tudo – ou seja, todo o nada – estava coberto pela umidade. Deus, bom e justo que é, achou bonitas aquelas inofensivas gotinhas de água. Por isso, recolheu-se feliz e satisfeito às sombras do seu reino de justiça e liberdade.

    As gotículas de umidade, porém, quando se viram sem governo, resolveram que apenas cobrir o nada era pouco. E decidiram então possuí-lo em todas as suas dimensões e extensões.

    Foi por isso que se infiltraram pelas paredes das casas de todos nós, casas erguidas mais como chacota do que como abrigos nas ruas desertas desta cidade fantasmal, que se chama Tapera, assim nomeada porque, na língua dos primeiros homens que habitaram as margens desta Lagoa assombrada, Tapera quer dizer aldeia abandonada contra a mancha negra da noite. Depois elas penetraram até as fibras mais recônditas das tábuas dessas pontes vacilantes. E, também, encharcaram as roupas dos homens para que eles se tornassem fracos e doentes e servis e cabisbaixos. E, ainda, se apossaram da areia para que nela os meninos e as meninas não pudessem brincar e se transformassem nos pálidos fantasmas que vemos por trás das vidraças de todas estas janelas fechadas.

    Quando o mundo começou a respirar no primeiro pulmão a umidade já cobria e possuía tudo. É por isso que nossas sempre atormentadas mães varejam os quartinhos de despejo em busca de velhos jornais amarelados para com eles cobrirem as tijoletas gotejantes de suas cozinhas. E depois, quando partimos sobraçando a pasta repleta de lápis de cor do nosso jardim de infância, elas trocam as folhas empapadas por outras, secas.

    O mais certo de tudo, dizia-nos a tia-avó, dando golpes no ar com suas agulhas de crochê, é que não se pode aprisionar nem o mar, nem o vento, nem o frio, nem o calor e muito menos esta maldita umidade.

    Da umidade virão o mofo e o musgo, cinza e verde. Nascerão em todas as coisas, especialmente sobre as pedras polidas do calçamento destas ruas abertas sobre a pestilência de antigos mangues. O verde veludo é o musgo. O traço cinzento é o mofo. O musgo costura estas ruas, umas nas outras, para que não se dissolvam sob os passos de todos esses enfeitiçados. O musgo veda as rachaduras das paredes descascadas para que espíritos sem paz não adentrem a sonolência dos nossos lares.

    O mofo é mais forte porque é cinzento, da cor dos nossos pesadelos. O mofo gris recobre nossos corações e faz com que amemos esta terra inóspita e sombria, até mesmo nos seus piores dias, que começam quando o vento se apresenta na sua carruagem, terrível e barulhenta, na boca daquela rua que acaba dentro das águas barrentas do rio.

    O mofo toma conta de todas as coisas que estão perdidas nos porões da memória (relógios de parede, lanças de ébano e escarradeiras de bronze) até que a mão ensanguentada do Negrinho do Pastoreio as venha resgatar.

    O musgo cobre até mesmo as alças destes caixões que mãos azuladas e trêmulas conduzirão ao cemitério em um dia de chuva.

    O calor é o segundo feitiço.

    Quando ele aponta, no alto do morro que domina esta cidade, os homens arrebentam os botões do colarinho e as mulheres escancaram as pernas enquanto dão de mamar ao filho recém-nascido. A praça fica repleta de pessoas afogueadas que se entreolham com amarelados olhos vazios. Na fresca da noite, anunciada pelo cheiro da erva-mate, os velhos vão para as calçadas com suas garrafas térmicas e suas bocas chupadas e mostram à lua suas geométricas dentaduras enquanto seus peitos encatarrados tentam conseguir um pouco de ar. O suor se transforma em rios quando todos aqueles velhos insones pressentem que naquela noite não resistirão ao apelo das forças primitivas e que, por fim, se transformarão em lobisomens. Assim aconteceu com o meu e com o teu avô, enquanto nossas avós percorriam alucinadamente as contas negras dos rosários com seus dedos ossudos e bondosos e murmuravam orações piedosas para a salvação de nossas almas.

    O calor é o tempo das noites curtas e dos longos dias vermelhos porque o sol se detém no meio do firmamento, sobre a cúpula da nossa catedral, e ali se queda fustigando e incendiando tudo até a chegada da brisa noturna. Por isso é que só de manhãzinha, bem cedo, quando os raios alaranjados dançam no cume do morro, nossa avó asmática, fatigada pela insônia, consegue adormecer.

    O calor é o tempo da mula-sem-cabeça. Por isso todos aqueles meninos se reuniam na frente da nossa casa, ao redor do vô que, sentado em seu mocho cambaio, pitando aquele cigarro de fumo Ouro Pelotense enrolado em papel Colomy, gostava de contar a história do negro Luís e de como ele se transformou em lobisomem numa noite assim escaldante e de como ele mordeu o lençol de linho branco da baronesa e de como o guarda-caça do castelo dos Simões Lopes o feriu com um tiro de bacamarte e de como o médico descobriu no dia seguinte – depois de ter-lhe retirado estilhaços de chumbo da nádega ferida – fiapos de linho entre seus fortes dentes de africano.

    E por todo o penoso arrastar desta noite, no intervalo entre um e outro pesadelo, ouviremos a voz de nossa avó que recita com seu cantante sotaque lusitano os versos que nos salvarão do fogo do inferno.

    O verão é a gota de suor que é quase a mesma coisa que a primeira gotícula de umidade que estava sobre todas as coisas quando Deus, nosso criador e criador de todas as coisas, admirou Sua obra. O calor é o murmúrio de todos esses homens encerrados como ladrões entre as altas e grossas paredes dessas fábricas fumacentas que são os verdadeiros braços desta nossa cidade febril. O calor é a cantiga dos teares que ensurdece nossas tias operárias e que leva para todo o sempre suas impressões digitais. O calor é também o raio de fogo que fere o cérebro de nossos gatos pretos que nessas noites de labaredas correm desatinados sobre o zinco fervente dos telhados musguentos. Lúdicos gatos lúbricos, lascivos.

    O calor é o nosso pai com uma garrafa de cerveja diante dos olhos e um lápis na mão. O calor é tão bruto e insensível quanto a conta que ele faz e refaz, acabrunhado pela fria e indestrutível certeza da matemática, a conta que o mantém escravo daqueles pavilhões sufocantes. O calor é a certeza de que o inferno é aqui mesmo, agora, mas é também a certeza de que esta garrafa de cerveja, coberta de pequenos diamantes de suor, é o único anjo que Deus enviou para nos resgatar deste vale de lágrimas.

    A chuva é o terceiro feitiço.

    A chuva é o vidro moído que cai sobre esta cidade que um dia foi chamada Tapera, que quer dizer casa sem gente dentro, oco, vazio e nada.

    A chuva, nos outros lugares do mundo, nas outras taperas, é destruição e força, ímpeto e arrogância. Aqui não, é serenidade e constância, equilíbrio e delicadeza, porque cai como flocos de algodão ou outra coisa ainda mais leve e mais acariciante. Lenta e doce, ela vai caindo e se amontoando sobre a superfície luminosa dos paralelepípedos centenários. Do jeito que cai, mansa e ordeira, fica. Por isso ninguém sabe, antes que se escoe uma semana, que está chovendo. Até que o primo tagarela nos avisa, quando estamos com o nariz enterrado no vapor cheiroso da xícara de café com leite, que a rua está alagada e que teremos que tirar os sapatos e caminhar três quarteirões até o ponto do ônibus que nos levará à escola.

    Ela chegou tão de mansinho, tão manhosa, tão encantadora, que nem percebemos que os nossos dois pares de sapatos, o da missa de domingo e o de ir à escola, estão completamente úmidos e que é preciso colocá-los perto do fogão para que sequem junto com a nossa japona azul empapada. E então, um belo dia, quando faz mais de um mês que esta outra praga veio do céu para nos provar, descobrimos, por fim, que estamos ilhados. As ruas são agora pequenos rios. É por isso que reviramos a casa em busca daquele baralho mofado que não tem o Rei de Espadas ou daquele jogo de víspora que não tem o número 22, marrequinhas com arroz. E nosso pai se irrita e ameaça espatifar na parede aquele radinho japonês que comprou de um contrabandista em Rio Grande porque a minúscula porcaria não serve nem para captar os tangos da Rádio Taperense, até que nosso irmão mais velho se aproxima dele e diz com sua voz cambiante de adolescente que a essas alturas até mesmo a antena da Rádio deve estar debaixo d’água e que o cadáver inchado e insepulto do nosso bisavô possivelmente estará flutuando entre os transmissores.

    A nossa chuva é aquela mesma de quarenta dias que está na Bíblia, diz o padre com sua voz alemã cheia de erres e depois ergue seus olhos de esmeralda para o teto do templo a fim de observar o balé daqueles milhões de pardais que, voando entre as vigas do teto alto, esperam a estiagem. Certamente, morreremos todos nós afogados – afirmou ele no sermão da missa das seis, para assustar as beatas que se escondem sob mantilhas negras – porque neste raio de cidade não há nenhum Noé.

    Não existe Noé, eu sei, mas acontece que o leiteiro e o padeiro contaram à nossa madrinha que o padre se levanta às quatro da manhã só para rezar uma missa especial, em latim, para os pardais adormecidos. Eu garanto que é ele o nosso Noé porque o leiteiro e o padeiro viram quando os passarinhos entoaram o “Glória a Deus nas alturas” e, depois, bateram com as asinhas no peito enregelado recintando o mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa

    O vento é o quarto feitiço.

    Num dia qualquer, os eucaliptos, os plátanos, os umbus e as figueiras voltam a sacudir suas cabeleiras molhadas. É sinal de que as nuvens negras se foram na direção do mar distante. Os homens abrem as portas enferrujadas de suas casas e espicham os ouvidos pelas vielas desta cidade que se chama Tapera, palavra que quer dizer campo arrasado, bandeira aviltada, barco à deriva…

    Então chega o vento para revirar os olhos das raparigas nos seus leitos incendiados de virgens imaculadas, para acariciar seus seios de bicos arrepiados, para soprar entre suas coxas vermelhas, para submetê-las a todas essas torturas deliciosas.

    Todos os rapazes, até mesmo os musculosos remadores do Clube de Regatas, voltam seus olhos para dentro de si e assombrados observam o que se passa no interior de seus peitos glabros: a louca corrida do sangue que pulsa e explode desgovernado em busca de uma brecha naquele corpo rijo. Por isso, eles se levantam no meio da noite, sonâmbulos, e batem com a testa latejante contra as cerâmicas úmidas do banheiro enquanto resmungam desconexas rezas de primeira comunhão.

    O vento é como o apito do marinheiro, triste e solitário. À noite, observado apenas pela lua e pela coruja, ele arranha as paredes sem reboco da nossa casa, aplaina as arestas das esquinas e varre os campos semeados. O vento vai e volta, sereno, por esses becos, mas torna-se furioso, destruidor, quando se defronta com todos os obstáculos que o homem insiste em construir: estátuas, túmulos e palanques.

    Por causa do vento nosso tio não larga mais aquela maldita garrafa de cachaça, nem mesmo para ir ao banheiro. O vento não lhe dá sossego, persegue-o por todos os corredores desta casa, espicaçando-o, enlouquecendo-o. Mas nós sabemos que aquele vento, aprisionado no labirinto dos ouvidos do nosso pobre tio, jamais sairá dali.

    O vento é meio cabeça-de-vento, diz o professor de História, enquanto nós todos, meninos, damos gargalhadas e nos cutucamos e sussurramos: como é louco este velhinho! Mas nós somos ainda mais patetas – acrescenta o professor, folheando seu álbum de selos franceses – porque nos irritamos com o vento, mesmo sabendo que um dia ele também vai desaparecer dentro da Lagoa, que é o fim de todas as coisas que nos cercam.

    Pois bem, certo dia o vento some nas curvas do canal levando consigo seus cortejos de esqueletos, seus comboios de folhas secas e suas caravanas de panelas amassadas. Lento, a passo miúdo, vai dançando sobre charcos e pântanos sempre em busca do Sul do mundo.

    Depois vem o frio, quinto feitiço.

    O frio é a pedra de gelo que nos recobre as pernas e o sexo e que eletriza nossas gengivas e nossos dentes. O frio é o frio mesmo, diz nossa falecida mãe enquanto coloca fralda sobre fralda na bunda de nosso irmãozinho menor mesmo sabendo que de pouco vai adiantar já que dentro de duas horas, três no máximo, ele vai despertar chorando todo mijado por causa dessa frialdade que nos encaranga a todos, indiferentemente.

    O frio é o frio mesmo, sem tirar nem pôr, diz a mãe, puxando as pontas das fraldas, alfinete de segurança entre os dentes, enquanto lança olhares vigilantes para nós que, entrouxados em roupas de lã piniquenta, estamos virando cambalhotas sobre o sofá-cama.

    O frio deve ter chegado a esta terra – nossa terra úmida e fria – em companhia dos tropeiros que vieram para fundar sangrentos matadouros nesta perdida parte do Sul do mundo. Eram homens casmurros e teimosos porque construíram aqui sua casa e seu trabalho sem prestar atenção ao que lhe diziam os índios: isto aqui é terra sem gente, gente sem terra, povo sem voz, fogo sem brasa e outros disparates.

    O frio percorre todos os andares de nossas costelas e faz com que nos encolhamos entre os ombros e por isso sejamos homens macambúzios e cismáticos sentados ao redor de uma fogueira enquanto algum velho de largas bombachas e barba por fazer vai enfileirando mentiras e se esquece de nos passar a cuia do chimarrão.

    E nós, quando nos interrogam, não sabemos responder se é por causa deste frio ou daquele calor, desta umidade ou daquele vento que muitos destes homens e mulheres foram findar seus dias entre as altas paredes do Sanatório, de onde nunca mais sairão por causa daquele enorme portão de ferro e dos cacos de vidros que cintilam sobre o muro depois da chuva.

    Lourenço Cazarré é escritor

    Texto originalmente integrado no livro Enfeitiçados todos nós


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  • Isso que a senhora chama de disfunção profissional

    Isso que a senhora chama de disfunção profissional


    Vou ser totalmente sincero com a senhora.

    Aqui me sobra muito tempo. Em apenas duas horas cumpro minha tarefa obrigatória. Escrevo cinco cartas por dia. É a minha cota diária, estabelecida por sugestão do doutor Oliveira. Mas permaneço nesta sala as horas regimentais, que são cinco. Pode ser que alguém telefone pedindo explicação sobre uma carta.

    Não, ninguém telefona. Nunca. A última ligação ocorreu há uns três anos. Uma pessoa que discou um número errado.

    Antigamente? Quando comecei a trabalhar, e lá se vão mais de três décadas, éramos sete funcionários aqui na Seção. Já naquela época o chefe era o doutor Oliveira. Ingressei como contínuo. Admirava os velhos escriturários, gostaria de ser como eles. Muito contribuinte chegava furioso até este balcão. De dedo em pé, cuspindo marimbondos, o cidadão vinha exigir explicação sobre as cobranças. Alguns até esmurravam o tampo do balcão, soltando fumaça pelas ventas, mas os escriturários daquele tempo praticavam a altivez. Eles retrucavam no mesmo tom. O senhor contribuinte que se colocasse no seu devido lugar…

    Naquela época? Trabalhava-se muito, mas havia um clima de camaradagem. Se alguém precisasse sair para resolver um problema pessoal, os colegas o cobriam sem reclamar. Quando se encerrava o atendimento ao público, às quatro da tarde, o ambiente interno se descontraía rapidamente.

    Quando o doutor Oliveira se aposentou, ficamos reduzidos a três escriturários. E não foi nomeado um novo chefe.

    Há uns cinco anos, os dois outros escriturários fizeram um cursinho de digitação e foram transferidos daqui. Restamos eu e essa máquina de escrever.

    A cota de cinco cartas?

    Uma vez o doutor Oliveira, já aposentado, veio aqui e me disse em confiança:

    – Bartolomeu, faça em uma semana o que poderia concluir em um só dia. Aí, você sempre terá uma boa papelada em cima da sua mesa. Parecerá atolado em trabalho.

    Gente boa, funcionário exemplar, o doutor Oliveira. Faleceu faz dois anos. Fui ao enterro dele. A mãe do coitado tinha morrido uma semana antes. Desconsolado, ele meteu jornais por baixo da porta da cozinha e vedou as frestas da janela com fita isolante preta. Depois abriu as bocas do fogão, mas não tocou nos fósforos. Ficou só esperando.

    Sim. Foi ele quem escreveu a carta-padrão, que leio para a senhora:

    Prezado Cidadão, em revisão rotineira, a Secretaria de Fazenda desta Prefeitura Municipal constatou que Vossa Senhoria não pagou a(s) parcela(s) do Imposto Predial referente(s) ao(s) mês(es). Tendo em vista o fato acima, estamos enviando-lhe novo(s) boleto(s), com o(s) valor(es) corrigido(s), multa e juros acrescidos, a fim de que seja procedido o pagamento do(s) mesmo(s) numa agência bancária credenciada.

    Belo texto, não?

    Nesse ponto, preciso fazer uma confissão à senhora. Sou um sujeito inquieto, criativo. Faz três anos que não repito uma redação. Uma só! A máquina de escrever favorece a minha rebeldia, na verdade a acirra.

    Comecei pelo erro. Um dia escrevi: Prezadi. Veja: a letra i está ao lado da letra o, aqui no teclado. Completei: Prezadíssimo.

    No dia seguinte cheguei aqui empolgado. Resolvi começar uma carta de modo dramático: Prezado Cidadão!

    Veja só que irreverência: meter ponto de exclamação em correspondência oficial. Não é pouca epopeia.

    E fui me aprofundando. Um dia, contrariado com certo contribuinte que eu sabia ser mau pagador, inseri uma palavra:

    …de que seja procedido, imediatamente, o pagamento…

    Por que ajo assim?

    Porque me recuso a desempenhar minha missão de forma burocrática. O uso de um computador me empurraria para a acomodação. Mas isso não, jamais! Quero que meu trabalho tenha sempre um pingo de contestação e resistência. É isso que me fez infiltrar palavras inesperadas e pontos de exclamação ou interrogação no texto oficial.

    Ontem mesmo, por exemplo, escrevi o seguinte:

    A fim de que seja procedido o pagamento do(s) mesmo(s) numa agência bancária credenciada, sob pena de ser Vossa Senhoria…

    A senhora já viu ameaça e reticências em uma correspondência oficial?

    Não viu nem nunca verá. Criatividade total.

    Quando? Eu me aposento neste final de ano. Aí, certamente, aposentar-se-ão também os pontos de exclamação e as reticências.

    Com relação ao inquérito que trouxe a senhora procuradora municipal até esta Seção, quero dizer o seguinte: sim, tem fundamento a denúncia de que não me limito a escrever e enviar aos contribuintes apenas as cartas protocolares, adulteradas, de cobrança. Sim, reconheço que também remeto aos senhores munícipes contos de minha lavra.

    Mas explicarei.

    Desde que me tornei o único funcionário desta Seção, passei também a escrever histórias curtas. Mas só depois de ter cumprido minha cota diária de cinco cartas, claro!

    Eu simplesmente ponho um papel em branco na máquina e me abro para o que vier. Datilografo. Palavra chama palavra. Trato de alinhar os vocábulos que, do cérebro, me chegam às pontas dos dedos.

    Isso era de início um passatempo, uma brincadeira, um jogo. Eu tratava apenas de dar certa coerência à enxurrada de palavras que me avassalava. Tempos depois me surgiram historinhas com princípio, meio, desenlace.

    Se eu tenho uma explicação?

    Claro. Isso que a senhora chama de disfunção funcional decorre do excesso de tempo livre. Redigida minha cota de cartas, todos os dias, constato que aquele relógio, ali na parede, avançou apenas um ou dois números. Então, tendo diante dos meus olhos uma folha branca, passo a batucar no teclado. Sou um homem de vida interior agitada, repito. Tenho imaginação fértil e razoável domínio da língua escrita…

    O que eu faço com as tais histórias?

    Bem, no começo eu as guardava numa pasta que está naquele armário de aço. De vez em quando pegava uma delas e a retocava. Punha uma palavra nova, retirava duas. Botava uma vírgula, eliminava um conetivo. Perseguia as repetições que costumam esconder-se muito bem num texto. Isso na parte, digamos, física. Porém, o que escrevemos possui também uma camada espiritual. Nessa camada, eu me limito a instilar um pouco de humor, melancolia ou até mesmo desilusão.

    Sim. Eu os chamo contos a esses meus trabalhos, mas reconheço que, se nós os analisarmos com maior rigor, descobriremos que de fato são modestas crônicas de um escriturário municipal.

    Sim, de certa forma, a senhora tem razão quando diz que, sendo contos ou crônicas, tanto faz, no fundo são textos roubados ao erário público.

    A remessa aos contribuintes?

    Não! Isso não!

    Foi assim: um dia eu me perguntei: o que fazer com essas histórias?

    A resposta que me veio foi: entregue-as a seus verdadeiros donos, os contribuintes.

    Pensei inicialmente em remeter essas crônicas àqueles que realmente saberiam apreciá-las: professores, artistas e intelectuais, os que aparecem no jornal palpitando sobre o que acontece na cidade. Mas desisti ao concluir que gente assim, sempre ocupada em dar entrevistas, não teria tempo para dedicar aos meus escritos.

    Pensei depois em remetê-las para os aposentados, que são numerosos aqui na cidade. Meu raciocínio era simples: eles têm mais tempo ocioso. Mas, por fim, acabei me decidindo por escolher os destinatários ao acaso no nosso fichário.

    Agora, tem aí um detalhe relevante: sempre comprei envelopes e selos com meu próprio dinheiro.

    Que isso fique bem registrado no seu inquérito! Selos e envelopes saem do meu bolso!

    Lourenço Cazarré é escritor

    Texto originalmente integrado no livro Kzar Alexander, o louco de Pelotas


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  • Atração dos latinos pelos fracassados

    Atração dos latinos pelos fracassados


    A posição de relativo destaque desfrutada hoje por Fred Hart entre os escritores policiais que atuaram nos Estados Unidos na década de 40 do século passado lhe foi assegurada por um livro intitulado O Resgate da gangue de Frank Butter, de autoria do professor Joaquín Maria Moretti de Aguirre, da Universidade Autônoma de Madri.

    A ressurreição de Fred Hart (1899-1948) só se deu porque Joaquín Maria, uruguaio de Salto, escolheu a metrópole da América do Norte para ali amargar seu exílio. Os pais dele queriam que fosse para a Europa, porém mais alto falou a paixão que o rapaz nutria pela literatura policial norte-americana.

    O modestíssimo sonho de Joaquín Maria, concluído o curso universitário, era passar um ano em uma sonolenta cidadezinha na fronteira com o Brasil, onde sua mãe possuía uma casa herdada de ancestrais bascos. Pretendia ali dominar o áspero português fronteiriço ao mesmo tempo em que mergulharia no cotidiano do vilarejo. De posse desses conhecimentos, a língua de Camões em sua versão para contrabandistas e a vida insossa num cafundó, escreveria mais tarde, com proustiana dedicação, um romance histórico sobre a chegada maciça de bascos espanhóis ao Sul do Continente em meados do Século 19.

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    Esse sonhou evaporou-se em um dia ventoso e frio de julho quando Joaquín Maria subiu a um palanque no qual jovens barbudos raivosos discursavam contra o governo. Desprezando os políticos e a política, Joaquín Maria não chegou àquele púlpito para destratar autoridades ou exigir liberdade, como escreveram depois jornalistas desavisados. Na verdade, sequer subiu ao palanque. Foi colocado lá à força. Mas, aproveitando o ensejo, pronunciou então uma desconchavada e hilariante arenga que ainda naquele mesmo dia correu de boca em boca pelas gélidas ruas da capital uruguaia com a velocidade das labaredas que devoram os campos estorricados de janeiro…

    Não, não nos antecipemos.

    O jovem Joaquín Maria pretendia também, depois de lançar o romance que lhe faria luzir o nome no vasto mundo literário hispânico, escrever soturnos contos campeiros, como o faziam muitos escritores de sua pequena, porém orgulhosa, nação. O núcleo verdadeiro de sua obra seria formado por curtas histórias trágicas protagonizadas por peões taciturnos.

    Mas, por azar, na época de sua desgraça, andava alinhavando – apenas para treinar os dedos, como dizia – um folhetim de casos burlescos protagonizados por um fabuloso coronel, Buenaventura Pasión, veterano de muitas refregas eleitorais e guerreiras, um anti-herói irônico, desbocado, parlapatão e pantagruélico.

    No dia fatídico, Joaquín Maria carregava no bolso de sua jaqueta de couro o original desse folhetim.

    Bem, já que estamos falando de alguém que se tornou renomado professor de literatura, é importante consignar que Joaquín Maria havia publicado, um ano antes, no El Nacional, um ensaio, intitulado “Neblina e escárnio”, com o qual pretendia demonstrar que a Grã-Bretanha e a Irlanda só eram o berço de magníficos escritores satíricos por sofrerem com um dos piores climas do mundo. Por outro lado, defendia que, embora nascidos em terras ensolaradas, portugueses, espanhóis e italianos eram os autores dos livros mais lúgubres da literatura mundial.

    Leitor onívoro, Joaquín Maria entremeava a leitura de romances clássicos (dominava também o inglês, o francês e o português) com coletâneas de contos argentinos, brasileiros e uruguaios. Como muitos rapazes daquelas terras austrais, sentia-se literariamente mais atraído pelo rude cotidiano dos gaúchos do que pelo vazio espiritual das cidades. Para espairecer o espírito, no intervalo entre a leitura de duas obras densas, devorava romances policiais norte-americanos.

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    Como foi Joaquín Maria parar em cima do tal fatídico palanque?

    Foi assim.

    Naquele dia ele havia almoçado num restaurante do Mercado del Puerto em companhia de dois colegas e de quatro garrafas de vinho. A primeira botelha, esvaída antes que fizessem o pedido, já os deixou alegres. A segunda acompanhou o despacho das carnes e a terceira e a quarta foram consumidas, entre gargalhadas, durante a leitura que Joaquín Maria fez dos capítulos iniciais de As mais tristes desventuras do valoroso coronel Buenaventura Pasión.

    Risonhos ainda, bochechas vermelhas e pernas incertas, os três jovens ganharam a rua ventosa. De repente, ao quebrarem uma esquina, viram-se diante de um ajuntamento em uma praça. Enfiaram-se pelo meio da ululante multidão até que se detiveram ao pé dos oradores.

    Livres pensadores, praticamente anarquistas, indiferentes à política, perceberam ali uma excelente oportunidade de diversão. Estavam em um posto privilegiado para a fruição das frases feitas e dos chavões dos furibundos discursadores, muitos dos quais eles conheciam de vista da universidade.

    Resolveram desempenhar o sempre divertido papel de bêbados de comício. Passaram a aplaudir com grande entusiasmo toda e qualquer tirada dos oradores, especialmente as mais idiotas. De vez em quando soltavam em voz alta uma piada.

    Como confessaria trinta anos depois, já então proprietário de veneranda barba grisalha e rotundo e dilatado ventre, Joaquín Maria estava ali também para, se possível, bolinar alguma donzela.

    À época ele era acossado por um recorrente sonho erótico no qual fazia amor com uma guerrilheira tupamara, vestida de Branca de Neve, que o fustigava com um chicotinho, chamando-o de “sórdido porco capitalista”.

    Tudo correu bem no início. Às vezes uma das piadas dos mancebos que recendiam a vinho obtinha o reconhecimento do público. De vez em quando, Joaquín Maria conseguia se roçar em uma garota.

    group of people illustration

    Ocorre, porém, que, no intervalo entre as falas de dois oradores, alguns marmanjos grandalhões – cansados das piadinhas infames e das esfregas – resolveram colocar Joaquín Maria, o menor dos três amigos, em cima do palanque. Pegaram-no pelos braços e pernas e erguendo-o por cima de incontáveis jovens cabeças excitadas lançaram-no deitado sobre o tablado.

    Ao se levantar, Joaquín Maria surpreendeu-se com a visão de uma massa humana que ria às bandeiras despregadas. Não demorou um segundo para descobrir o que tinha de fazer. Retirou do bolso da jaqueta o manuscrito amarfanhado que pouco antes lera para os colegas. E, com voz pastosa e queixo duro, começou a narrar As mais tristes desventuras do valoroso coronel Buenaventura Pasión.

    As gargalhadas e os cacarejos se sucediam num rugido crescente como ondas de um mar furioso.

    Os organizadores do comício demoraram preciosos minutos até perceber que o baixote magricelo tinha de ser arrancado dali imediatamente. Debochava dos militares, sim, mas avacalhava também o protesto. Vacilaram um pouco a retirá-lo dali porque sabiam que não se deve contrariar uma aglomeração que ri.

    Em que consistia a novela de Joaquín Maria? Era um livrinho tosco, porém movimentado e divertido, no qual o autor enfileirava piadas – contadas pelo coronel – sobre a estultícia e a avareza dos poderosos, rurais ou urbanos.

    Como Joaquín Maria construiu sua noveleta?

    Pela junção de inúmeras piadas. Ele simplesmente agarrava o esqueleto de uma história engraçada e decorava-o com roupas e adereços. E depois dava um jeito de uni-la a outra piada também estilizada. Um cáustico militar, o coronel Buenaventura Pasión, era o protagonista/narrador do rosário de chistes e palhaçadas.

    Se fosse atento às coisas da política naquela época, Joaquín Maria certamente não teria concedido uma patente militar a seu pícaro herói.

    Amolecido pelo vinho e pela vertigem de ver-se acolhido por uma cumplicidade multitudinária, Joaquín Maria fez a leitura dos dois primeiros e breves capítulos do seu para sempre inédito folhetim até que, sob palmas e assovios, mais de apoio que de repúdio, foi sacado do palco.

    black and gray condenser microphone

    Horas mais tarde, sóbrio à custa de três xícaras de café amargo, atravessou em alta velocidade, num carro de amigos de sua família, o cenário – pequenas cidades indolentes – que elegera como palco para as patifarias do coronel Buenaventura.

    Ao raiar o sol, no dia seguinte ao de seu efêmero triunfo oratório, cruzou uma rua e adentrou um exótico país chamado Brasil, que também vivia, à época, dias impróprios para piadistas.

    Três semanas mais tarde chegava a Caracas, de onde voou para os Estados Unidos. Lá, já estudante da Universidade de Nova Iorque, recebeu a incumbência de resenhar um livro policial escrito nos anos 40. Deram-lhe a oportunidade de optar entre os consagrados Dashiel Hammet ou Raymond Chandler. Ocorre, porém, que Joaquín Maria Moretti de Aguirre tinha verdadeira obsessão por escritores menores. Achava que a paixão pelos fracassados era um traço distintivo dos latinos, dos católicos, que jamais seria compreendido por mestres norte-americanos, protestantes. Por isso, para desafiar seu professor e afrontar a mentalidade anglo-saxônica, escolheu escrever sobre A gangue de Frank Butter, de Fred Hart, escritor de segunda ou terceira linha.

    Foi assim que saíram do anonimato e do esquecimento um hoje famoso ensaísta latino-americano (que não escreveu um romance histórico e nem mesmo um só conto duro) e o divertidíssimo Fred Butter, protagonista da obra mais representativa do que hoje se conhece como romance policial-pastelão.

    Lourenço Cazarré é escritor

    Texto originalmente integrado no livro Kzar Alexander, o louco de Pelotas


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  • Não importa, sempre acaba mal

    Não importa, sempre acaba mal


    – Não tenho biografia.

    – Fique tranquilo. Aqui são comuns declarações como esta. Com o choque, os pacientes se perdem de si mesmos.

    A doutora Adriana Kreuzfeuer era a bem-aventurada possuidora de um belíssimo rosto – delicadas sobrancelhas assimétricas, olhos azuis, narizinho empinado e boca esfaimada – coroado por uma encaracolada cabeleira loira herdada de avós imigrantes, a saber: o falecido Helmuth Schatsschneider Kreuzfeuer, construtor de chaminés de tijolos vermelhos para fábricas, e a nonagenária Ângela, em solteira Backheuser Stumpfsinn.

    – Por que o senhor não me conta um pouco da sua vida?

    – Porque o meu corpo foi tomado por alguém. E esse alguém não tem memória da minha vida anterior. Ou seja, esse alguém não pode – e eu também não posso – falar sobre o que aconteceu há, digamos, dois dias.

    – Sei. É como se a mente do senhor tivesse sido tomada por um alienígena.

    – Não. O caso não é tão moderno. Fui ocupado por um espírito, um velho espírito.

    A doutora anotava no computador, batucando com dedos espertos, tudo o que o homem lhe dizia.

    – Compreendo. O senhor é espírita?

    – Agora, sou agnóstico. Antes, não sei. Mas certamente não tinha uma fé muito profunda. Talvez por isso o tal espírito apoderou-se tão facilmente do meu eu anterior. Minha alma estava disponível.

    A bela Adriana Kreuzfeuer esboçou um rápido riso, divertido e intrigado, riso de psiquiatra que se descobre, por fim, diante de um lunático engraçado.

    – O que sabe o senhor sobre o, vá lá, espírito que está de posse de sua alma?

    O homem alto e magro movimentou-se inquieto na cadeira. Defensivamente, cruzou diante do peito os longos braços guarnecidos por mãos ossudas. Seu rosto comprido, atapetado por uma barba mais branca que cinzenta, aparada recentemente por máquina ajustada para dentes de número três, era o de alguém verdadeiramente angustiado.

    A psiquiatra refez a pergunta:

    – O senhor conhece a identidade desse espírito que se apossou da sua alma?

    – Sim. Conheço-lhe o nome, as datas de nascimento e morte. E, por alto, alguns fatos importantes de sua vida na terra.

    – Oh, isso é maravilhoso!

    A expressão do rosto da médica não acompanhou o entusiasmo exclamativo da frase. Era uma médica, uma cientista, e não estava ali para maravilhar-se. O que se podia dizer dela, sem conotação positiva ou negativa, é que era uma mulher nervosa, agitada, apressada, consciente de que, ao longo daquele dia, teria de enfrentar ainda muitos outros contadores de histórias desencontradas.

    – Me passe as datas de nascimento e morte do falecido?

    – 1860 e 1902.

    – Profissão?

    – Médico.

    Por baixo das sobrancelhas bem-cuidadas, um rápido e penetrante olhar azul-piscina partiu em direção ao homem alto e magro. Com os dedos levitando sobre o teclado, a médica parecia questionar-se. Debochando da minha cara?

    Pousou as mãos ao lado do teclado e suspirou. Não, não, aquele era apenas um mais pobre homem desnorteado, acachapado por uma tragédia pessoal que não conseguia compreender, aceitar e superar.

    – Especialidade do seu médico?

    – Clínico geral. Ele não defendeu sua tese de mestrado. Eu, aliás, ele, nós chegamos a fazer uma viagem à ilha de Sacalina…

    – Ele morreu bastante jovem. De quê?

    – Tuberculose.

    – Qual era o seu nome, o nome dele, do médico?

    – Anton.

    – Devo concluir que não era brasileiro.

    – Não. Era russo.

    – Russo?

    Bruscamente, a médica afastou o teclado com os polegares e ergueu os olhos diretamente para a lâmpada que estava sobre sua cabeça. E, congelada nessa incômoda postura, suspirou profundamente. Parecia descontente com a quantidade de luz emitida pela lâmpada. Talvez pensasse em processar o fabricante. Ao cabo de um demorado minuto, ela voltou os olhos celestiais para o paciente.

    – O senhor fala russo? Poderia me dizer umas três ou quatro palavras nessa língua?

    – Não. Claro que não. Sou um homem traduzido.

    Aquela última frase foi demasiada para a doutora Adriana. Ela imobilizou-se com os dedos abertos, a cabeça baixa, os olhos aparentemente procurando uma letra que não havia sido posta no teclado. Racionava. Seu pensamento talvez possa ser sintetizado por uma frase indelicada: esse maluco é de tirar qualquer um do sério.

    – Me dê mais informações sobre o médico russo.

    – Nasceu em uma cidade balneária, no mar Negro, a mil quilômetros de Moscou.

    A médica reproduziu num batuque ligeiro o que ele havia dito e quis mais:

    – Fale da família dele?

    – Éramos seis irmãos. Eu, Anton, tinha o dom de imitar. Todos riam das imitações que eu, ele, fazia dos mujiques, dos cocheiros, dos professores e dos funcionários públicos. O pai deles, o nosso pai, comerciante, adorava música. Treinava-nos para que cantássemos no coral da igreja. Depois de falir, papai, quero dizer, esse chefe de família foi para Moscou. Após concluir o ensino médio, eu segui também para lá. Ingressei na faculdade de Medicina. Como tinha grande habilidade com as palavras, como sabia tecer histórias, comecei então a escrever contos humorísticos para jornais e revistas populares. Logo ele, eu, estava sustentando a família com o que recebia pelos textos.

    – Bela história. Edificante. Mas, voltando ao nosso caso concreto, o senhor sente que é, verdadeiramente, esse escritor russo de contos de humor ou o senhor sabe que é apenas o corpo de um cidadão brasileiro dominado pela mente de um contista estrangeiro?

    O homem descarnado demorou a responder.

    – Sinceramente, eu não saberia lhe responder. As duas situações são igualmente plausíveis. Talvez até mesmo possam ocorrer simultaneamente. Neste exato momento, porém, sinto mais forte a impressão de que sou um pobre corpo ocupado. Mas, é claro, sei também que sou escritor e que escrevo em russo. Tentarei me explicar: o corpo é meu e meus movimentos são orquestrados pelo meu cérebro, no entanto, no fundo, sinto que as minhas palavras não são propriamente minhas. Elas pertencem a Anton. Por isso, se, por acaso, lhe disser algo que possa parecer zombeteiro, não se irrite, fique certa de que essas palavras me foram sopradas por ele.

    Os dedos da mulher corriam céleres, entusiasmados, por cima das teclas, perseguindo as palavras que o homem barbado pronunciava.

    – Nunca vi alguém descrever com tal riqueza de detalhes a sua…

    – Loucura, doutora?

    – Talvez. Mas, se for, será passageira. O senhor sairá dessa logo, eu lhe garanto. O senhor vai se livrar de Anton. Mas, agora, me explique uma coisinha. Como o senhor sente a presença dele, do russo?

    – É como ele fosse uma segunda pele, uma pele que está por baixo da minha pele, da verdadeira. O corpo físico de Anton se resume a essa pele. Ele não tem ossos ou carne. Porém meu cérebro pertence a ele, inteiramente.

    – Tenho uma curiosidade. O senhor me disse que ele, o russo, escrevia historinhas engraçadas. Quando ele pensa em algo divertido, o senhor dá uma gargalhada?

    – Não. No máximo, eu sorrio.

    – Quantos anos ele tem hoje?

    – Quarenta. Devo morrer em breve.

    Nessa passagem, pela primeira vez, o homem ergueu os olhos e os fixou na médica. Encarando-a, parecia esperar um desmentido porque era claro, pelos cabelos, barba e bigode quase totalmente brancos, que ele era já um sexagenário.

    – O que eu quero é que me explique como ele, sendo russo, um russo que certamente não conhece o português, consegue se expressar através do senhor.

    – Ele manipula minhas cordas vocais. É com surpresa e estupefação que percebo as frases que me escapam por entre os lábios. As palavras, obviamente, saem em russo do cérebro dele, mas ao chegarem às minhas cordas vocais automaticamente transformam-se em vocábulos portugueses. Há um programa de tradução instantânea no meu aparelho fonador.

    Depois de anotar aquela resposta, a psiquiatra voltou seus inquisidores olhos azuis para os negros olhos sonhadores do homem.

    – Como ele, o russo, consegue entender as minhas perguntas?

    – Há um segundo aparelhinho de tradução simultânea, instalado nos meus ouvidos. É semelhante ao que se encontra nas minhas cordas vocais, mas de funcionamento inverso.

    – Ótimo, ótimo, o senhor até aqui respondeu bem às minhas perguntas, mas agora eu preciso me aproximar da raiz mais profunda da questão… Então, indago: o senhor Anton se metia com política?

    – De jeito nenhum. Sou apartidário, apolítico. Digamos que sou alguém que só defende um valor: a liberdade. Libertários conscientes como eu não podem pertencer a igrejas, partidos ou qualquer outra agremiação.

    – E com mulheres?

    É importante, nesse ponto, termos em mente que o sobrenome da médica, em alemão, significa cruz de fogo.

    O homem abriu lentamente os braços, como que para ser crucificado. Suas orelhas de abano e bochechas chupadas foram tomadas por uma constrangedora vermelhidão. Era como se ele tivesse recebido um sopro de fornalha na face. Fechou os braços, brusco. Anton quis responder rapidamente, para livrar-se daquela pergunta indecente, mas não conseguiu articular uma só palavra.

    – Esse é o ponto central – prosseguiu a médica, e o homem imaginou ver grossos fiapos de uma gosma esverdeada de concupiscência escorrendo pela comissura dos lábios dela. – É sempre ele, sexo. O nosso obscuro lado animal. O acasalamento. Reprodução ou prazer? Não importa, sempre acaba mal… Enfim, em português, me responda: o doutor Anton comparecia?

    O homem enterrou-se na cadeira. Que grosseria! Comparecia? Era termo aceitável em uma consulta médica?

    Anton quis falar, demonstrar sua muita indignação. Comparecia? Era totalmente inadequado utilizar uma expressão tão rasteira em uma conversação com um escritor russo. Por que a doutora não usava a delicada expressão bíblica: conhecer?

    – O ponto nevrálgico é sempre o aparelho genital, a genitália – silvou a psiquiatra. – Mais adiante nos concentraremos nele.

    Adriana Kreuzfeuer encerrou a consulta fechando os olhos e trançando os dedos das mãos sobre o teclado, sinalizando claramente ao paciente que sequer lhe daria um rápido aperto de mão.

    O homem alto e magro de tristonhos olhos negros concluiu que a doutora Adriana talvez estivesse muito cansada. Ou com vontade de fazer algo muito excitante. Retirar o esmalte lascado das unhas, por exemplo.

    Ainda de olhos cerrados, a psiquiatra soltou um jato de ar fazendo biquinho com os grossos lábios sensuais e lascou na linguagem dos homens das cavernas:

    See you later.

    Quando levou o tronco à frente, no movimento de quem vai se erguer da cadeira, ou pular sobre a médica, o homem sentiu o pouso em seu ombro da mão pesada do enfermeiro, que havia permanecido de pé, imóvel e silencioso, atrás dele, atrás de Anton, ao longo da entrevista, mão que se fechou triturando ossos de omoplata e que chegou acompanhada por um vozeirão cavernoso:

    – Bora nessa, chefe, deu por hoje!

    Lourenço Cazarré é escritor

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  • A arte excêntrica dos goleiros

    A arte excêntrica dos goleiros


    «O diretor, que entendia pouco de esportes embora aprovasse com entusiasmo suas virtudes associativas, ficava ressabiado com a escolha que me levava a sempre jogar de goleiro no futebol, “em vez de correr junto com os outros rapazes”.

    A Pessoa em questão, Vladimir Nabokov.


    Alto, de largos ombros, o homem enchia a saleta do casebre deixando pouco espaço para a jovem jornalista que, diante dele, parecia ainda menor e mais gorducha.

    Entusiasmada, ela falava da sua fascinação pelas grossas camisetas coloridas, as luvas imensas, a solidão, a altivez dos goleiros.

    O homem sorria timidamente ao mesmo tempo em que recuava diante da metralhadora verbal.

    – Sente-se, milha filha – disse, e deixou-se cair numa poltrona.

    A mocinha explicou que estava ali com a missão de entrevistá-lo, para uma edição especial do jornal sobre os grandes craques do passado. Ele, como o maior goleiro da cidade, o maior de todos os tempos, tinha que ser ouvido, de qualquer jeito.

    – O cafezinho já vem.

    a soccer goalie's glove laying on a soccer field

    Por um instante ela se calou, o tempo necessário para localizar o sofá. Sentou-se, já falando:

    – Não vamos fazer apenas mais uma daquelas reportagens babacas, saudosistas, melosas. Isso nunca! É um trabalho sério, para incentivar o surgimento de novos talentos.

    Os olhos dela correram pela pequena peça talvez em busca de algo com que colorir depois sua narrativa, mas não havia um só quadrinho ou um calendário nas paredes nuas.

    – Quero saber como tudo começou para o senhor, isto é, a sua paixão pelo futebol, o jogar de goleiro. Em suma, qual é a sua lembrança mais remota?

    O homem suspirou fundo. As grandes mãos calosas, de juntas grossas, dedos tortos, espalmaram-se sobre as coxas. Os pés dele afastaram-se um pouco.

    Tem gestos mansos de gato, anotou a moça no caderninho.

    O longo silêncio pareceu desconcertar a jornalista, que tentou acomodar-se melhor no sofá de molas duras.

    Então, a mulher dele chegou com as xícaras de café na bandeja. Era uma mulata alta de meia idade, ainda bastante bonita, tristonha.

    goalie about to catch the ball

    – Esta moça é uma jornalista – disse ele.

    A garota fez menção de levantar-se, mas a mulher já deixava a sala, escorregadia.

    A jornalista sabia – disso tinha sido informada pelos colegas – que a mulata era lavadeira. Sabia que era ela quem ganhava o dinheiro para a cerveja que ele, religiosamente, ia tomar todas as tardes no centro da cidade. Era ela quem mantinha impecavelmente limpas as roupas puídas que ele vestia.

    Em silêncio, beberam o café.

    – Eu já era um rapazinho de doze anos quando assisti pela primeira vez a uma partida de futebol. Veja só, que coisa! Foi uma partida de veteranos e num campo de várzea!

    O rosto da jornalista se iluminou e ela ligou rapidamente o gravador.

    – Eu tinha chegado pouco antes, vindo do campo, para estudar interno no colégio dos padres. Meus pais queriam que eu entrasse para o seminário, depois. Era um bom jeito de enganar a miséria. Bem, num fim de semana, pedi licença ao diretor para visitar um tio meu, solteirão, eletricista, que morava aqui na cidade.

    O goleiro explicou então que admirava muito aquele tio que havia tido a coragem de abandonar as terras do avô e as rotinas massacrantes da agricultura para tentar a vida na cidade.

    Na época, ele achava que nada podia ser mais interessante do que o trabalho do seu tio que, todo dia, percorria a cidade, montado em uma bicicleta, oferecendo seus conhecimentos de eletricista, adquiridos num curso por correspondência.

    people gathering at soccer field

    – Para um moleque criado na roça, entre porcos e espigas de milho, como eu, ser eletricista era uma profissão fantástica!

    Mas, naquela tarde remota, ele descobriria que o irmão de seu pai podia fazer com as mãos algo ainda mais impressionante do que consertar aparelhos desarranjados.

    – Na garupa da sua bicicleta, o tio me levou a um desses campos de vila, com traves meio tortas, linhas laterais apagadas e grandes falhas no gramado. Mais do que falhas, buracos mesmo, onde a água empoçava nas chuvas. Nas duas áreas pequenas, nem um fiapo de capim, só a terra cinzenta e dura. Um dia o meu tio me disse: a seara dos goleiros só produz barro.

    O velho goleiro se demorava nos detalhes daquele primeiro jogo: era uma tarde comum de inverno, de sol fraco e nuvens baixas, e o vento cortante que vinha do rio assobiava furioso pelo meio dos renques de eucaliptos plantados por trás das goleiras.

    – Sentados debaixo do arvoredo, os veteranos começaram a se fardar. Todos usavam caneleiras, joelheiras, tornozeleiras e coxeiras porque eram velhos arrebentados. Pareciam gladiadores de cinema.

    Furiosamente, a jornalista tomava notas. Era uma garota muito imaginativa. Conseguia vislumbrar os jogadores sob os farfalhantes eucaliptos: gladiadores que só protegiam as pernas, as canelas marcadas pelos golpes das travas, os joelhos artrosados, os tornozelos azulados de antigas lesões. Sob os eucaliptos, ali onde o vento silvava mais forte, pensou ela, devia reinar uma excitação de vestiário de quartel – piadas sujas e gargalhadas. Atletas de cabelos brancos, calvas luzentes, rabiscou na caderneta.

    – O mais novo deles beirava os cinquenta anos e o mais velho tinha sessenta e lá vai pedra!

    Depois ele contou a ela que aquele campo pertencia a um clube de bairro, cujos dirigentes guardavam as manhãs de domingo para os times de guris e as tardes para os jogos de campeonato. Aos velhos, cediam as tardes de sábados.

    – Meu tio era goleiro.

    closeup photography of goalpost during daytime

    A repórter voltou-se interessada para o entrevistado. Tentava imaginar como seria o menino loiro que havia se transformado naquele homem de rosto inexpressivo, o garoto que com muita atenção observava os movimentos do tio: ajeitando as joelheiras esfiapadas, vestindo as meias com cuidado para evitar bolhas, apertando os cadarços da chuteira e ajustando as negras luvas de couro.

    – Estávamos os dois um pouco apartados dos outros. Então, de repente, de graça, o meu tio soltou uma frase que eu nunca vou esquecer, mesmo que viva mil anos. Ele me disse assim: um goleiro não se mistura.

    O homem contou à jornalista que, depois, enquanto esperavam que os outros acabassem de se arrumar, o tio lhe falou dos jogadores. Um por um. Eram como personagens de um livro ou de um filme. Havia um que chamavam de Doutor. Estava bem de vida, era dono de automóvel. Mas fora menino pobre e só cursara Medicina graças ao futebol. O mais gordo de todos, aquele que amarrava as chuteiras, curvado sobre a barriga, jogara na capital por quatro ou cinco meses. Não suportando a saudade da terra, voltara, deixando atrás uma possível carreira de sucesso.

    – Aí o tio me disse: Estás vendo aquele negro ali? É, o careca grisalho. Ele mesmo. Aquilo é mais traiçoeiro que gato de rua. Ele nunca chuta onde a gente está esperando.

    Por muitos e muitos anos, o menino tornaria a ver aquele homem quando fosse ao centro da cidade, porque ele estava sempre por trás do balcão, na sala escura do cartório, com os óculos acavalados no nariz, escrevendo naqueles livrões que tomavam toda a mesa.

    – Todo veterano é barulhento, gozador, matreiro, piadista e falastrão. Mas o meu tio, não. Era calado.

    A jornalista estava agora de braços cruzados, escutando, rosto sereno. Toda a ansiedade havia se afastado dela. Pensava no menino de olhos claros sentado sob os eucaliptos, fiel depositário dos gestos e das palavras de homens reunidos ao acaso, num sábado esquecido, num campo perto de um rio, numa cidade incógnita.

    – Então começou o jogo.

    soccer field

    A bola rolou e os homens se moveram também porque ela era como um imã e eles como pequenos bonecos de ferro que se voltavam invariavelmente para onde ela rolava. Eram veteranos, demasiado velhos para correr, gordos na maioria, deselegantes, lerdos e sarcásticos. Cuspiam palavrões pesados se os passes saíam errados, se o lançamento era longo ou curto demais, se a bola vinha com muito efeito. Bola que teimava em bater nas canelas, nos joelhos, coisa viva que não aceitava ser dominada. E penosamente se levantavam para enfiar o dedo na cara dos outros e para gritar palavrões ao juiz e à senhora sua mãe. Xingavam-se. Rindo, recriminavam-se por beber muito e comer demais.

    – Quando o juiz apitou o final do primeiro tempo, eles voltaram para o meio dos eucaliptos. No início, beberam só a água que tinham trazido num garrafão. Mas, depois, um deles destampou uma garrafa de canha. Davam talagaços. Uns faziam caretas, outros se arrepiavam. Eu achei muito engraçado. Mas o meu tio não bebia.

    Uma sombra correu pelo pálido rosto da repórter. As lembranças do homem alto, de certo modo, eram também dela. Então, naquele momento, ela começou a escrever, mentalmente, a sua reportagem. Começaria pelo intervalo do jogo de veteranos. Chegou a ver a garrafa de aguardente passando de mão em mão, e dois ou três deles, já com o fôlego recuperado, acendendo cigarros. As palavras acavalavam-se dentro dela: homens arfantes, deitados na relva, a fitar fixamente as nuvens de chumbo que, desgraciosas, se arrastavam pelo céu gris, talvez até dormitassem, exaustos, ninados pelo vento que rugia por entre os eucaliptos, velhos homens jogados sobre a relva, inertes.

    – O segundo tempo foi pior.

    Os jogadores sufocavam depois de arrancadas de vinte metros, chutavam a grama em vez da bola, puxavam da camiseta do adversário, passavam rasteiras por detrás, davam cotoveladas, empurrões. E quando a bola vinha pelo alto reclamavam também porque não conseguiam saltar para a cabeçada.

    – Quando o juiz apitou o final da partida, já era quase noitinha. Não se sabia mais quem era quem. O barro escuro tinha igualado os uniformes.

    A jornalista podia vê-los: exaustos, silenciosos, acabrunhados trocando a umidade do campo pelo frio dos eucaliptos; imaginou raios desenhando animais agonizantes no céu escuro. Viu depois como todos eles se foram levando vivas na mente as cenas daquele jogo, cenas que logo se misturariam e se confundiriam com outras, mais antigas, de gols perdidos, de passes errados e de lançamentos imperfeitos.

    – Nem me lembro quem venceu, se foi o time do meu tio ou o outro. Goleiros nunca se interessam pelo resultado. Goleiros gostam é de jogar.

    People Playing Soccer on Grass Field during Day

    Por um bom tempo permaneceram em silêncio. O homem de ombros largos e a jovenzinha rechonchuda compartilhavam a mesma imagem evanescente: um homem esgrouviado debaixo das traves, afastado dos outros todos como se fosse o habitante de um mundo diverso, consciente de que viriam atacá-lo, mas não se importando com isso.

    – Meu tio era um pouco encurvado, como todos os homens muito altos, mas, mesmo assim, tinha o porte mais garboso de todos eles.

     – Disso sabemos todos: o goleiro é sempre aristocrático – disse a jornalista e se pôs de pé.

    Seus movimentos eram nervosos, porque tinha pressa em chegar à redação. Queria escrever logo as palavras que se atropelavam no seu coração: um homem alto, solitário sob a goleira, à espera, olhos fuzilando, o corpo como que retesado, os músculos querendo explodir, movendo-se sem cessar sobre o maldito semicírculo de lama negra como animal aprisionado em jaula invisível.

    – Pois é – resmungou o homem. – Um goleiro não se mistura.

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