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  • ‘Não considero o Chega um partido fascista’

    ‘Não considero o Chega um partido fascista’

    Duas vezes doutorado – em Estudos Americanos, pela Faculdade de Letras de Coimbra, e em Política Comparada no Instituto de Ciências Sociais de Lisboa –, Carlos Martins debruça-se, com o seu ensaio Fascismos, no surgimento desta ideologia no princípio do século XX. Em conversa com o PÁGNA UM, este investigador social, radicado em Cantanhede, fala também das motivações para a escrita deste livro e aborda questões de geopolítica contemporânea.


    Quais os propósitos e motivações para este seu ensaio académico passar para um público mais vasto e de interesses gerais?

    Acima de tudo, foi a ideia de que aquilo que se passa dentro do mundo académico não pode estar totalmente alheado do conhecimento geral e do interesse por parte do público.  Muito aquilo que escrevo no meu livro, exceptuando algumas interpretações pessoais, encontra-se já em muitas outras obras, mas fora do mercado português. No nosso mercado existe uma falta enorme de livros sobre, por exemplo, a História do fascismo romeno. É muito difícil encontrar obras sobre este tema e, portanto, a minha motivação foi essa: achar que se deve partilhar as investigações académicas com o grande público.

    Ao longo do capítulo sobre o fascismo italiano, nomeadamente na figura de Mussolini percebe-se que a construção ideológica tem mais de oportunismo do que de fieldade a princípios dogmáticos. Esta ideia é transversal ao Fascismo como um todo ou aplica-se apenas ao caso italiano?

    É interessante falar nisso, porque são muitos os académicos que vêem de facto o fascismo italiano como uma ideologia oportunista por excelência. O próprio Mussolini parecia preocupar-se mais com o pragmatismo e a acção directa do que com conteúdos ideológicos, aos quais ele fosse fiel. Mas, de certa forma, é possível dizer que o fascismo italiano tem um conteúdo ideológico, para além de, por exemplo, o nacionalismo e o próprio pragmatismo, que é incorporado no seu conteúdo ideológico. Este mesmo pragmatismo é visto como uma justificação para as decisões que Mussolini diz tomar. Perante as diferentes realidades, que têm, dizem eles, tomam decisões diferentes, desde apoiar uma monarquia ou uma república. Mas em última análise, eu defendo que há sempre ali uma base que remete para algum conteúdo ideológico por mais pequeno que seja.

    E no caso alemão, existe alguma verdade na ideia de que os judeus estavam imiscuídos na democracia parlamentar, que de algum modo justificasse o repúdio que sofreram, e que levou ao Holocausto?

    Eu repudio que houvesse qualquer fundo de verdade nisso, dentro do ódio que os nazis nutriam aos judeus. Mas a pergunta sobre a origem desse ódio é a questão mais complexa, uma vez que não foram os nazis que inventaram o antissemitismo. A ideia de que os judeus são ricos e controlam o Mundo já é muito antiga. No caso do nazismo, as origens desse antissemitismo remontam ao século XIX, na ideia de que os judeus estavam por detrás do capitalismo materialista ou até do comunismo materialista. Uma certa direita reacionária, em diversos países, começou a utilizar essa ideia de que o judeu era o símbolo de tudo o que eles odiavam. Eram ideias como a destruição da pureza da raça, no contexto nazi, da raça ariana. Com a Primeira Guerra Mundial, esse antissemitismo exacerbou-se. A extrema-direita propagou muito a ideia que a derrota da Alemanha tinha sido uma conspiração dos judeus, e que mesmo o regime soviético era governado por judeus. Se é verdade que o antissemitismo não começa no nazismo, eu penso que ali foi levado a um extremo nunca visto.

    No capítulo do fascismo português, mostra que ele não começa no Estado Novo, mas sim centrado à volta da figura de Rolão Preto. Ele tem um arco histórico que é descrito como sendo muito sui generis: começa num anticomunismo e acaba a lutar ao lado destes contra o Salazarismo. Mais uma vez fica aqui a ideia de um certo pragmatismo e oportunismo. Pensa que esta oposição era sede de poder ou discórdia ideológica?

    Houve várias razões para que Rolão Preto fosse passando por várias fases ao longo da sua vida, sendo que uma foi o resultado da Segunda Guerra Mundial e a forma como muitos repensaram o que tinham andado a fazer em anos anteriores e a que ideologias tinham aderido. Esse anti-salazarismo de Rolão Preto, em diferentes contextos, levou-o a reformular a sua ideologia. A tentativa de golpe em [10 de] Setembro de 1935 para derrubar Salazar foi o ponto de partida para que o seu fascismo puro perdesse grande parte da força que tinha. Para fazer esse golpe, ele aliou-se a forças de esquerda e isso esvaziou um pouco a retórica de fascismo puro ou anti-esquerda. Aliás, na sua fase de líder do movimento fascista, Rolão Preto sempre incluiu, nos seus programas políticos, a defesa de medidas que seriam a favor da classe operária, e que quase poderiam ser vistas como medidas de esquerda para uma pessoa dos nossos dias.

    Em relação ao Salazarismo, concorda com a ideia de ser mais um regime de conservadorismo fascizante do que propriamente fascismo?

    Sim, concordo. Essa expressão de conservadorismo fascizante é, para mim, muito interessante, porque remete para a ideia de uma aproximação do Conservadorismo ao Fascismo que, nessa época, existiu, uma vez que foram adoptados princípios e ideias fascistas, enquanto continuava a haver uma linha de demarcação por mais ténue que fosse. Esta linha, mesmo para investigadores, parece um bocado irrelevante, mas no caso do Salazarismo faz sentido marcar-se uma diferença entre um regime conservador, que se baseia nas classes tradicionais, de um regime como o fascismo italiano, que tem por base o movimento de massas, as milícias, “camisas negras”, e o culto da acção directa; e que partilhou o poder com as instituições tradicionais, o que não aconteceu em Portugal.

    Tivemos a Mocidade Portuguesa…

    Sim. Houve uma fase em que se aproximou do fascismo, nomeadamente com a criação da Mocidade Portuguesa, o que a olho nu parecia quase a mesma coisa. Compreendo até que não se faça essa distinção, mas se formos estudar mais detalhadamente, há alguma necessidade de subtileza. Quero ainda adicionar que esta aproximação do Conservadorismo ao Fascismo não remete necessariamente, ao contrário do que muitas pessoas pensam, que este regime era mais soft ou suave. Um regime conservador pode ser igualmente repressivo e, portanto, não remete para a ideia de que era menos mau. Devido à carga que a palavra Fascismo tem na linguagem coloquial, dizer que algo não é fascista parece que está a dar a ideia de suavizar. Ironicamente, houve regimes conservadores na época que conseguiram ser mais sanguinários do que o de Mussolini.

    Porque é que o Fascismo falhou no Reino Unido?

    Uma das razões é que os partidos tradicionais de direita não precisaram de fazer uma aliança com o Wiliam Mosley. Não houve uma crise de ideologia política, nem uma crise económica que tenha tido um impacto tão grande como na Alemanha, pelo que não houve aquela multidão de pessoas de classe média que aderiram ao fascismo, em desespero ou raiva.

    Mas não será também pelo facto de o Reino Unido ser ainda um império e possuir recursos que a Alemanha, por exemplo, então não tinha?

    Há quem faça esse argumento, que o Fascismo chegou ao poder em países com ambições expansionistas e que o movimento fascista desempenhou esse papel. No caso inglês, essa ambição não existia, porque ainda tinha o seu império. Mesmo Mosley ambicionava a conservação do império a todo o custo.

    Mas este império também se serviu dos seus recursos para, de algum modo, suavizar o impacto da crise económica, e assim evitar a ascensão das ideias mais extremas ou mesmo da violência, certo?

    A Grande Depressão [nos Estados Unidos] também atingiu o Reino Unido, e até mesmo o programa económico do Mosley era voltado para resolver as crises através do corporativismo. Não se pode dizer que teve um impacto tão grande como noutros países, e isso pode ter condicionado a população na forma como olhavam para um eventual movimento fascista. A violência foi vista com maus olhos, quer pela direita tradicional quer pelas classes médias, e houve diversos confrontos entre fascistas e antifascistas britânicos, como a conhecida batalha de Cable Street, que deu um mau nome ao Fascismo.

    Mudando um pouco o tema, agora sobre política contemporânea. A Europa e, porque não o Mundo, está em perigo de um reaparecimento destes movimentos, uma vez que se observa uma ascensão de ideologias de extrema-direita?

    Sim, está a acontecer. Eu diria que o regresso do Fascismo é possível; há, nestes novos partidos de direita, alguns que podem ser classificados como fascistas. No entanto, a direita é sempre heterogénea. Tal como nos anos 20 e 30 do século passado havia partidos conservadores fascizantes, também hoje é assim – ou seja, nem todos serão fascistas, e aqueles mais próximos do poder também não o são. Isso não quer dizer que não sejam perigosos, e que não possam de forma diferente, prejudicar a nossa democracia, e que dentro de si não tenham alas fascistas. No caso do Chega, não duvido que haja imensas pessoas que possam ser classificadas como fazendo parte do fascismo puro, embora como partido político, eu não considero o Chega um partido fascista.

    Entretanto, no Brasil, a direita radical perdeu as eleições…

    Eu não tenho uma opinião muito formada sobre a derrota de Bolsonaro, mas diria que a população brasileira não reagiu bem aos grandes problemas do regime, incluindo a forma como a pandemia foi gerida. Ainda assim, é preciso lembrar que Bolsonaro teve um grande resultado com quase 50% dos votos. Acrescento ainda uma ideia: o “Bolsonarismo” veio para ficar, e mesmo que não seja o Bolsonaro, haverá alguém a representar esse espaço político.

    E no caso de Trump? Como se explica a ascensão de alguém como ele?

    Desde já, a reacção à identity politics da esquerda, a ideia da “nossa” América já não é o que era, a tomada do poder por parte de movimentos antirracistas e a criação de uma identity politics de direita para a raça branca. Depois, há as insatisfações económicas, a revolta contra as elites que a direita tão bem sabe aproveitar, que estão separadas do povo. Trump dizia muito isso, que Washington não conhecia o verdadeiro povo americano do interior, e no fundo ele também não conhece. Mas há também a identificação com Trump, porque ele cria muito aquela imagem do homem de sucesso que faz e não perde tempo a falar, e tornou-se rico por mérito próprio, vendendo a ideia de que nós podemos ser como ele, e que ele tem os nossos valores.

    Salazar e Óscar Carmona, à esquerda.

    Acha que ele pode ganhar outra vez?

    É melhor não fazer previsões, mas sim, acho que há essa possibilidade, até porque, tal como Bolsonaro, Trump não teve um mau resultado em termos de números de votos.

    Relativamente à guerra na Ucrânia, na sua opinião qual é a origem deste conflito uma vez que há muitas narrativas?

    Respondendo de uma forma simples: são as ambições imperialistas da Rússia numa guerra tipicamente colonialista. No nacionalismo russo sempre existiu essa ideia de que a Ucrânia era uma parte subalterna da Rússia. São vistos como os pequenos irmãos dos russos, e a partir do momento em que se querem afastar do seu grande irmão, não pode correr bem. Estarão a ser, digamos, corrompidos pelo Ocidente.

    Há também a questão do perder o comboio com a China e os Estados Unidos…

    Sim. Aliás, eu acho que a lógica das ameaças nucleares, assim o espero, sejam nesse sentido: de não darem a Rússia como um poder geopolítico perdido, e ser ainda considerada uma potência mundial. Não penso que o Putin seja propriamente um comunista, mas tenta, sim, recuperar a grandeza de outrora. Talvez a época dos Czares seja a maior fonte de inspiração para ele.

    Regressando a Portugal. É notória uma fragmentação política, com o aparecimento de pequenos partidos, tanto à direita como à esquerda. Pensa que irá continuar, que estes partidos ainda estão em crescimento?

    Esse crescimento é mais notório na direita, concretamente no caso do Chega. No entanto, o Livre tem algumas posições europeístas, em alguns assuntos até mais do que o próprio PS. Devido ao desastre que foram as últimas eleições tanto para o BE e o PCP, e embora não goste de fazer previsões, é bem possível que o Livre possa crescer, e ir ainda tirar votos de pessoas que votaram no PS e estão descontentes com esta maioria absoluta. E, além disso, os mais radicais dentro do BE podem ir para um partido que começa agora a aparecer, o MAS. Porém, penso que o crescimento de novos partidos é mais notório à direita, e que estamos a assistir a uma reconfiguração da direita portuguesa. O Chega é aquele que tem mais possibilidades de crescimento. Acho que ainda não esgotou o seu potencial para crescer, dependendo um pouco dos eleitores do PSD, que é daí que eu diria que estão a vir os votos no Chega, até porque grande parte do eleitorado do CDS foi para a Iniciativa Liberal, e este pode até substituir o BE como o partido “jovem”.

    grayscale photo of concrete bridge

    Faço-lhe agora uma pergunta um pouco idealista: qual é, para si, o regime político mais eficaz?

    Como cidadão, penso que, em termos de sistema político propriamente dito, é uma democracia parlamentar, como a que temos em muitos países na Europa. Eu diria que uma democracia puramente parlamentarista é melhor do que uma semiparlamentar, como ainda é o caso da portuguesa, embora se aproxime mais do parlamentarismo do que, por exemplo a França. Ou então as democracias nórdicas, embora estas sejam monarquias constitucionais, e eu não admiro muito a monarquia, mesmo que constitucional. Em termos de sistema económico subjacente seria um misto, que não exclui a Economia de Mercado, mas com uma forte componente de Estado Social. Um pouco como o sistema económico depois da Segunda Guerra Mundial.

    Para terminar. Dedica este livro à sua mãe. Alguma razão especial?

    Eu nunca teria feito esta investigação sem o apoio dela, eu não sei é se ela ficará muito contente de ter uma dedicatória num livro chamado Fascismos com o Hitler na capa [riso].

  • ‘Na Suécia temos um fascínio profundo pelo crime, mas não queremos estar expostos a isso na vida real’

    ‘Na Suécia temos um fascínio profundo pelo crime, mas não queremos estar expostos a isso na vida real’

    Em Gelo sob os seus pés, a sueca Camilla Grebe, propõe aos leitores uma viagem pelos mistérios do crime psicológico, distribuída por três personagens que estão destinadas à colisão. Vencedora do Glass Key Award, para Melhor Policial Nórdico e também por Melhor Policial Sueco do Ano, o romance tornou-se um best seller em diversos países europeus. Actualmente a viver em Cascais, o PÁGINA UM conversou com esta escandinava de 54 anos sobre o seu percurso literário, o género policial e a sua vinda para Portugal.


    Como é que uma economista acaba a escrever romances policiais?

    Sempre tive um interesse em arte e na criatividade, e por isso fui para uma escola de Arte a seguir ao curso de Economia, para tentar pintura, mas cedo percebi que não ia conseguir viver disso. Fui depois trabalhar para uma editora, onde conheci muitos autores e após ter lido alguns manuscritos, entendi que preferia estar do lado criativo em vez de ficar na parte de gestão.

    Mas começou por escrever romances a quatro mãos, com a sua irmã. Como foi essa partilha?

    Foi tudo um pouco orgânico. Eu escrevi um primeiro capítulo, e ela o seguinte; e depois eu outra vez. A dada altura encontrávamo-nos e discutíamos a continuação da história. E, para nossa surpresa, o nosso primeiro livro [Någon sorts frid, em 2009] foi publicado [risos]. Devido a esse sucesso, tivemos que ser mais estruturadas e nos livros seguintes precisámos de concordar no enredo e personagens logo de início.

    Camilla Grebe. Foto: ©Anna Ahlström

    Quais as maiores diferenças face à escrita individual?

    Há aspectos positivos e negativos. Quando escreves com alguém, tens um amigo com quem podes falar sobre ideias, resolver problemas e apoiam-se mutuamente. E também se aplicas se precisas de fazer algum marketing ou ir em viagens promocionais. Por outro lado, pode haver complicações quando as ideias não coincidem, tanto no enredo como também no processo da escrita, no tempo que se dedica ao desenvolvimento da história. Eu descobri que sozinha, o meu tempo era mais produtivo e o processo de escrita mais rápido. De alguma forma, é mais eficiente, e sou eu que tomo todas as decisões.

    O seu percurso literário centra-se em policiais. O que mais a fascina neste género?

    Comecei a ler este tipo de livros muito cedo, ainda com sete ou oito anos, e logo nas primeiras páginas fiquei apaixonada. Mas para mim, este é um género onde podemos fazer o que quisermos. Há um contrato com os leitores: é suposto haver um mistério e, em certa altura, temos de os surpreender. Isto é obvio, mas, de resto, podemos fazer da história o que for; pode ser uma história de amor, podemos falar de problemas sociais, política, ou imprimir uma linguagem poética. Na minha opinião há poucas limitações.

    Qual foi a inspiração do romance que lançou agora em Portugal, Gelo sob os seus pés?

    Para mim, é muito difícil falar sobre este livro, teria de abordar o twist, o que seria decepcionante, mas eu gosto muito de crimes psicológicos. Posso dizer que este romance foi escrito para surpreender o leitor, esse foi o meu objectivo.

    Em todo o caso, em relação às personagens, como foi o processo de desenvolvimento que escolheu?

    De uma forma geral, eu sabia já, desde o princípio, quem seriam, mas houve também um crescimento orgânico ao longo do manuscrito. Eu gosto que as minhas personagens sejam de carne e osso, que sejam imperfeitas, tenham falhas e problemas. O caso de Hanna é um pouco assim: ela tem demência, que é uma doença horrível, mas interessante no contexto livro, porque se ela não pode confiar nela mesma, em quem poderá confiar? Essa dramatização pareceu-me muito interessante.

    O romance aborda temas como o arrependimento, a saúde mental, a inevitabilidade da morte. São temas de circunstância ou foram escolhidos com um propósito?

    São temas que fazem parte da condição humana. As questões eternas de vida, morte, amor, e por isso são importantes para mim, também porque são muito existenciais e acho isso muito interessante.

    Publicado originalmente em 2017, O gelo sob os seus pés foi editado em português em Abril passado.

    As protagonistas femininas passam por mudanças e transformações ao longo do romance. Considera que estas mudanças reflectem a evolução feminista na sociedade?

    Talvez a Hanna, sim. Ela é a personagem mais velha, e a geração dela era muito diferente. E embora ela tenha educação, na verdade ela pertence a um tempo em que o lugar da mulher era diferente. Por isso, apesar da sua doença, ela quer sair da relação abusiva onde se encontra.

    Este romance mostra-se bastante visual, havendo muitos pormenores mencionados como as roupas, as rugas, os cheiros. Sei que vai ser adaptado para o cinema. Já estava a pensar nesta possibilidade quando o escreveu?

    Não foi intencional, mas quando li o manuscrito apercebi-me que sim, que podia resultar, embora não fosse o meu objectivo.

    A Suécia é um dos países mais seguros do Mundo. Como se explica que este género seja tão popular no seu país?

    Eu penso que é pelo contraste. Na Suécia há muito de natureza, mais as casas vermelhas e todas estas características fazem-nos querer ler livros que reflectem os nossos medos, mas de uma forma segura. Na Suécia temos um fascínio profundo pelo crime, pela morte e pelo medo, mas não queremos estar expostos a isso na vida real. Portanto, os livros e filmes permitem-nos reter um pouco disso.

    Entretanto, vive em Portugal? O que a fez vir para cá?

    Combinei com o meu marido que, quando os nossos filhos saíssem de casa, íamos mudar para o sul da Europa. O clima sueco é muito frio e, além disso, também muito escuro. Depois de algumas discussões, decidimos visitar Cascais. No princípio era por um ano, e depois íamos para Espanha, onde eu já tinha estado anteriormente, mas senti que os portugueses são mais parecidos com os escandinavos. Os espanhóis são muito latinos e os portugueses parecem-me mais reservados, tal como os suecos. E mesmo em temos de população, nós também somos 10 milhões. Um ano e meio após a chegada a Portugal, decidi que não ia para mais sítio nenhum. Isto é a minha casa e até vou para uma universidade aprender português.

    Será possível que a sua inspiração para escrever policiais mude pelo facto de viver em Portugal?

    Não está nos meus planos [risos]. Eu preciso do ambiente escandinavo para escrever os meus romances, do escuro, do frio, e é também isso que os meus leitores, espalhados pelo Mundo, esperam de mim. Talvez as minhas personagens possam fazer férias em Portugal [risos].

  • Santo António de Lisboa: ‘Nada é mais falso do que a imagem dos santos que ornamentam as nossas igrejas’

    Santo António de Lisboa: ‘Nada é mais falso do que a imagem dos santos que ornamentam as nossas igrejas’

    Aos 63 anos, e com vasta experiência cinematográfica e televisiva, o italiano Nicola Vegro dá-nos uma visão diferente do santo que une Portugal e a Itália, Lisboa e Pádua: Santo António ou, para o mundo, Fernando de Bulhões. No romance António secreto: a força de um santo, e lançado agora em Portugal pela Paulinas Editora, conhecemos sobretudo o lado humano de alguém que não se coibiu até de lançar desbragadas críticas aos vícios da Igreja, como fez num seu escrito em Coimbra, em Junho de 1219: “Quantos são hoje os bispos que pregam a pobreza e, entretanto, são avarentos! Quantos são hoje os bispos que pregam a castidade e, entretanto, vivem na luxúria! Quantos são hoje os bispos que pregam o jejum e a abstinência e, entretanto, são glutões e gulosos. (…) Como anel de porco em focinho de porco, assim são os padres frouxos e bem ataviados; são como prostitutas que se entregam por dinheiro (…).” O PÁGINA UM esteve em conversa com Nicola Vegro durante a sua passagem por Lisboa.


    Tem-se a ideia de que sobre Santo António já praticamente tudo foi dito. Dois grandes escritores portugueses – Aquilino Ribeiro, com Humildade gloriosa, e Agustina Bessa-Luís, com Santo António – ficcionaram a sua vida. Porque decidiu escrever agora sobre ele?

    Existem muitos pontos em comum entre a situação social do tempo em que viveu Santo António e os dias de hoje. No seu tempo, a Igreja vivia um período de instabilidade, o Mundo estava no meio de guerras.

    Como hoje…

    Diria que se vivesse agora, António repetiria, por exemplo, a Embaixada de Paz que organizou quando Pádua estava em guerra, e iria ao encontro de Putin e Zelensky para lhes pedir que suspendessem o conflito de imediato. Escutava as duas partes. E fomentava o diálogo. António era uma figura de primeira linha, destemido, corajoso, contra corrente. Jamais seria passivo numa situação como esta que estamos a atravessar. Então, por isso mesmo, parece-me muito oportuno seguir as pisadas deste homem que a Igreja acabou por canonizar. Enfatizo no romance o homem culto, oportuno; o ser humano que atacava ferozmente a sociedade hipócrita e corrupta do seu tempo, mas que oferecia as soluções para a mudança. Apontava o caminho.

    Nicola Vegro, autor de António secreto: a força de um santo.

    No entanto, não é exatamente essa a imagem que o povo guarda dele… O casamenteiro e o milagreiro…

    Todos conhecem o nome de Santo António, conhecem a figura, mas não conhecem o seu pensamento nem a sua personalidade. Nada é mais falso do que a imagem dos santos que ornamentam as nossas igrejas, e que invadem a nossa imaginação, com as suas atitudes patéticas com um ar melancólico, com aquele toque anémico e evanescente que emana de todo o seu ser, como se fossem eunucos… Ele enfrentou todo o tipo de batalhas, principalmente pedindo apoios sociais, combatendo contra a pobreza e as desigualdades. Mas, também tocava em feridas profundas da Igreja, tais como a corrupção, a luxúria, as incongruências…

    Era então uma espécie de activista?

    De certo modo, sim. António obrigou a que se mudassem algumas leis, assegurou a criação de uma efectiva segurança social, deu a cara pela libertação de reclusos – muitas vezes injustamente condenados. Neste romance, António surge como um crítico, um pensador, um homem proactivo que deve ser redescoberto nos dias de hoje. Por exemplo, o custo do pão ou o custo da gasolina… são situações lamentáveis que não passariam despercebidas ao santo. Estou certo de que ele estaria ao lado do povo, a reclamar por preços mais justos apontando o dedo aos tiranos que fingem nada poder fazer quanto à descida dos preços.

    Quis então desconstruir a imagem do santinho milagreiro…

    Este livro é uma proposta e uma oportunidade para conhecer o pensamento de António. A força dele está na sua obra em vida, nas suas ideias. O seu legado não está propriamente na aparência simpática de um homem vestido de franciscano que sorri como se estivesse tudo bem. Não está tudo bem, nunca esteve!

    O que mais destaca então na figura de Santo António?

    Destaco o seu exemplo, a rectidão e o comportamento. A sua grande humildade… Foi capaz, em simultâneo, de apontar erros e soluções. Vejamos: como orador podia limitar-se a falar bem – tinha todos os dons para isso – e apontar todos os erros da sociedade. Mas ele fez muito mais do que isso. E não se limitou a atacar os pecadores ou os hereges, apontou sim para dentro da sua própria Igreja, para os bispos, para os padres, para os frades…

    Onde e em que é que se baseou para escrever este romance?

    Li os seus sermões e as cartas. Aliás, os discursos e as ideias no meu romance são o reflexo desses sermões. Apesar de ser uma obra de ficção, o livro não se trata de uma pura invenção da minha cabeça; pelo contrário, fui o mais fiel possível à sua palavra, ao seu carácter, à sua personalidade. A melhor forma de entender Santo António é lendo os seus textos originais e, depois, fazer uma espécie de destilação, tal como se faz com os licores, para no final recolher o mais precioso. Considero esta obra uma destilação das palavras de Santo António.

    Nicola Vegro (ao centro), no passado sábado, durante o lançamento do seu romance, no Museu de Lisboa – Santo António.

    Veio a Portugal para o lançamento do livro. Sentiu que a capital portuguesa tem o espírito de Santo António de Lisboa, que é também Santo António de Pádua?

    Santo António encarna o espírito português. A minha visita a Portugal ajudou-me a entender a garra deste povo que foi capaz de se aventurar pelo mar, por exemplo. Pensei nisso esta manhã ao visitar Belém. Este espírito de aventura também estava no coração de Santo António. Aliás, é necessário olhar o horizonte e desejar ir mais além. É uma característica bem portuguesa!

    Ainda que este seja o seu primeiro romance, mas tem já larga experiência em cinema e televisão. Essa experiência teve influência no momento de o escrever?

    Este livro foi pensado como preparação para um filme. A minha esperança e o meu empenho é o de chegar à produção cinematográfica. Acredito que seja um mote para uma união entre vários países como Portugal, Itália, França, Espanha… e até Marrocos. Seria um investimento com retorno garantido. Divulga História, Cultura… é universal.

  • ‘A Geórgia pertence à Europa e ao mundo civilizado, moderno, liberal e democrático’

    ‘A Geórgia pertence à Europa e ao mundo civilizado, moderno, liberal e democrático’

    Aproveitando o lançamento em Portugal do romance Onde as pêras caem, pela Dom Quixote, o PÁGINA UM conversou com a premiada argumentista e realizadora georgiana Nana Ekvtimishvili. A realidade da Geórgia, após o desmembramento da União Soviética, marca a literatura deste país onde, tal como na Ucrânia, continuam a confluir conflitos de difícil resolução e elevada imprevisibilidade.


    Onde as pêras caem conta a história de órfãos e crianças com necessidades especiais que vivem numa residência em Tbilisi. Sei que cresceu perto de uma dessas instituições. Inspirou-se naquelas crianças para criar personagens como a protagonista Lela?

    Sim. Enquanto eu escrevia, imaginava visualmente algumas personagens, tinha-as em frente aos meus olhos, e depois mudei ou inventei alguns nomes. A Lela, por exemplo, é uma espécie de “híbrido”, inspirada em várias crianças que conheci e, talvez, também em algumas partes de mim, como o meu lado rebelde ou anárquico. É uma mistura… Mas não consigo fazer uma divisão entre o que foi baseado na realidade e o que imaginei, porque na escrita há sempre uma conjugação das duas coisas.

    Lela então é um pouco de si…

    O romance foi escrito sobretudo na perspectiva de Lela, por isso, apesar de [eu] estar presente como autora, acho que não há espaço para mim, apenas para estas crianças. Eu queria, acima de tudo, manter-me fiel à personagem de Lela.

    Sabendo da sua experiência de argumentista e realizadora de cinema, quando eu estava a ler este seu romance consegui facilmente imaginar esta história a desenrolar-se num ecrã. Gostaria de ver este romance a ser adaptado a filme?

    Eu nunca tornaria este romance num filme. Se alguém quisesse fazê-lo, eu não recusaria, mas não sinto necessidade de vê-lo num ecrã. O trabalho e o esforço que investi no livro, e a forma como me expressei nele, não foi com esse objectivo em mente. Por isso, não preciso de o ver no cinema.

    Este romance aborda a maldade humana, retratando os abusos de crianças vulneráveis às mãos daqueles que as deveriam proteger. Como escritora, é fácil para si distanciar-se e compreender as personagens mais cruéis? Ou, como todos nós, também as julga?

    Eu tento apenas descrever as situações, e abster-me do papel de julgar. No entanto, mesmo que não queira julgar, há um lado na História que o torna difícil. Eu queria mostrar este “mundo” sem tomar um partido, e sem a dicotomia do que é bom e do que é mau. Tentei apenas dar espaço a estas crianças e deixá-las serem como são. Acho que a única parte em que fui incapaz de não julgar é a da violência sexual e do assédio contra a Lela, porque é um crime hediondo contra uma jovem. Quando se trata de abusos em relação a crianças pequenas, só o podemos ver como algo mau, não existe meio-termo. E, nesse caso, é muito difícil compreender ou ter compaixão por quem faz algo assim.

    Este foi o seu romance de estreia, e tem algumas similitudes com o seu filme In bloom (2013): ambos retratam a juventude de raparigas no início dos anos 90, na Geórgia, após o desmembramento da União Soviética. Este tema é, obviamente, muito próximo, certo? Cresceu nesse ambiente…

    Algumas pessoas na Geórgia queixam-se de os artistas locais, escritores ou realizadores georgianos, como eu, abordarem frequentemente os anos 90 nas suas obras, e cingirem-se muito a este período temporal. O meu próximo livro também vai ser sobre uma família nos anos 90, e é um bocado por razões autobiográficas. Eu nasci em 1978, e foi na parte final do século XX que comecei a desenvolver-me como mulher e a decidir a minha vida. Portanto, essa foi um período extremamente importante a nível pessoal, e eu tenho muita coisa para contar sobre esta época. Além disso, “transportar-me” para essa época ajuda bastante a colocar-me na pele de uma criança e a contar a sua história, porque me lembro bem da minha infância e da minha perspectiva do mundo nessa altura.

    Sei que está a escrever um novo romance, mas sobre a sua outra paixão – haverá também um novo filme de Nana Ekvtimishvili no horizonte?

    Neste momento, para além do livro, estou a trabalhar em vários guiões, alguns em alemão e outros em georgiano. Quando os meus dois filhos estiverem mais crescidos, terei então mais disponibilidade para me dedicar inteiramente ao trabalho, e para terminar os meus projectos. No caso dos filmes, é preciso mais tempo e também financiamento.

    Vive agora em Berlim, mas o seu país tem vivido nos últimos anos em sucessivos conflitos entre a “herança soviética” e o Bloco Ocidental. Enquanto as regiões separatistas da Ossétia do Sul e da Abcásia parecem querer recuperar o Bloco Soviético, o resto da Geórgia assume a intenção de se juntar à União Europeia e à NATO. Como é que se posiciona no meio deste braço-de-ferro?

    Para mim, não há qualquer dúvida de que a Geórgia pertence à Europa e ao mundo civilizado, moderno, liberal e democrático. E não é assim apenas porque eu quero que seja, mas porque, de facto, a História, o estilo de vida e a cultura dos georgianos são muito parecidos com os dos europeus dos outros países. Até mesmo a literatura é muito impregnada por valores liberais. A Rússia tenta incutir ao povo georgiano a ideia de que há pessoas, no meu país, que não se querem aproximar do bloco ocidental e que preferem fazer parte da Federação Russa. Na Geórgia, nós temos, por exemplo, canais de televisão que fazem propaganda pró-Putin, e apenas repetem o que ele diz. Mas, na verdade, o estado da Geórgia moderno identifica-se muito com a Europa.

    Nana Ekvtimishvili e Maria Afonso Peixoto, jornalista do PÁGINA UM, na passada quinta-feira na Livraria Bucholz, em Lisboa.

    Tenciona regressar um dia à Geórgia, para aí viver?

    Sim. Na verdade, a minha ideia nunca foi deixar a Geórgia de forma definitiva. Eu mudei-me para a Alemanha para estudar, e conheci lá o meu marido, que é alemão, e com quem tenho filhos. Mesmo depois de terminar os meus estudos, ainda voltei à Geórgia com o meu companheiro e vivemos lá durante dez anos. Tenciono lá voltar, gostava de dar aos meus filhos a oportunidade de estudarem numa escola georgiana. A não ser que o país perca a independência e seja ocupado pelos russos. Nesse caso, que, infelizmente, considero ser uma possibilidade, não fará sentido regressar. Teremos que esperar e ver o que acontece agora com a Ucrânia.

    Mudando de tema, e para terminar a conversa num tom mais leve. Falemos sobre descontração [risos]. O cinema e a leitura são formas que as pessoas têm de se distraírem, mas para si também são um trabalho. Consegue relaxar a ler e a assistir a um filme, sem estar a fazê-lo como escritora e realizadora?

    Eu sou uma leitora voraz e uma cinéfila. Adoro literatura e cinema. Não quero ser o tipo de pessoa, de cineasta, que se senta a ver um filme, e depois o vê a pensar em como o teria feito enquanto realizadora; ou de uma romancista que pega num livro de outro e se questiona sobre como é que o teria escrito. Aí, quando vejo um filme ou leio um livro, é a minha vez de relaxar e apenas assistir, ou de ler, é o meu momento de lazer, e gosto de aproveitar para desfrutar.

    Aos 43 anos, já tem uma carreira consolidada. O seu filme In bloom foi escolhido para representar a Geórgia na categoria de Melhor Filme Internacional na edição de 2023 dos Óscares, e entretanto Onde as pêras caem foi nomeado para o International Booker Prize no ano passado. Profissionalmente, há alguma coisa que ambicione muito conquistar?

    Eu não me movo por “conquistas”, apenas por executar e concluir os trabalhos que empreendo. Não tenho grandes desejos ou ambições. A vida é demasiado curta, e tenho receio de definir metas demasiado altas. Sempre fui assim. Nunca fui uma pessoa muito ambiciosa. Há, contudo, uma parte de mim que é obstinada quando começa um projecto, e que não descansa enquanto não o termina. Quando tenho uma ideia para um trabalho, agarro-a e empenho-me. Sou muito dedicada naquilo que faço; seja um livro ou um filme. Assim continuarei: a seguir o que sinto e à minha voz. Veremos aonde me leva.

  • ‘Numa guerra, tudo é decidido no momento’

    ‘Numa guerra, tudo é decidido no momento’

    Distinguida com vários prémios literários internacionais – Prémio de Literatura Heimito von Doderer, Prémio 3sat e Prémio de Literatura Kranichstein –, a alemã Anne Weber (n. 1964) retrata, em tom épico, a vida de Anne Beaumanoir (1923-2022), uma heroína francesa da II Guerra Mundial, uma dos Justos entre as Nações, que se tornou médica e se envolveu no movimento de luta pela independência da Argélia. O PÁGINA UM esteve à conversa com esta autora bilingue, em Lisboa, a pretexto da edição em Portugal de Annette, epopeia de uma heroína, romance publicado pela Dom Quixote, e que venceu o Prémio de Livro Alemão 2020, o maior galardão das letras da Alemanha.


    A Anne escreve fluentemente em duas línguas – francês e alemão –, mas quando pensa, as palavras surgem em que idioma?

    Os sonhos são essencialmente imagens, mas o pensamento e as ideias, nem sempre. Quando penso estou consciente e, por isso, acabo por pensar através das palavras… É uma pergunta curiosa que me acaba de fazer, nunca tinha pensado nisso. Quando estou em França, penso em francês; mas se estiver na Alemanha durante algum tempo, começo a pensar em alemão.

    Qual é o critério para decidir em que língua vai escrever um livro?

    A razão pela qual escrevo numa língua ou noutra não está relacionada com o tema, com a história ou com o assunto em questão. Aliás, quando comecei a escrever era adolescente, e como vivia na Alemanha, escrevia em alemão. Entretanto, quando fui para França continuei a escrever em alemão. Somente depois de alguns anos é que comecei a escrever em francês. As palavras surgiam na mente em francês. Publiquei um primeiro livro em França, escrito em francês e alguns familiares e amigos perguntavam-me: “mas sobre o que é este livro?” – eles não percebiam francês! Então eu própria preparei uma tradução, e editei em alemão – para que eles pudessem ler o livro.

    Anne Weber

    Mas regressou também ao seu alemão como escrita original?

    Sim. Entretanto, uma editora alemã começou a querer publicar os meus textos, e acabei por retomar o alemão como primeira língua. Aliás, já escrevi sobre a história de uma francesa, e escrevi primeiro em alemão. Contudo, fez-me muito bem a distância que houve entre mim e a minha língua materna no princípio, depois de ter ido para França. A literatura exige manter uma certa distância. Essa distância foi mesmo muito útil.

    O livro que veio apresentar em Lisboa, aborda a desobediência de Annette [Anne Beaumanoir] como uma virtude. Devemos, por isso, educar as nossas crianças a serem desobedientes?

    No caso dela foi, de facto, uma virtude. Não quer dizer que essa atitude seja em todos os casos. Nas escolas em França, e em todo o Mundo, é importante ensinar a pensar e a educar de forma que todos aprendam a pensar pela sua cabeça, e a seguir a desobediência quando e sempre que for necessário. Quando um Estado ou algum grupo te pede algo, percebes se estás ou não diante de uma decisão injusta com a qual não podes colaborar. A Annette foi desobediente, porque não acreditava no regime que a rodeava. Ela queria um mundo diferente. Lutou e desobedeceu, porque acreditava numa alternativa mais justa, mais humana.

    Annette, epopeia de uma heroína, publicado originalmente em 2020, foi editado em Abril deste ano em Portugal pela Dom Quixote.

    Foi a literatura, entre outras coisas, que aproximou Annette à Resistência francesa. Acredita que a literatura guarda um poder curativo para a Humanidade?

    De facto, o romance de André Malraux levou-a a iniciar a sua atividade de resistência. Aquilo que mais a atraiu foi o retrato romântico de um herói que sacrificou a sua vida por uma causa maior. A literatura pode ter tantos propósitos! Acredito que não se reduz a um propósito único. O romance, por exemplo, abre um mundo inteiro ao leitor; mergulhamos nele e ficamos completamente absorvidos…

    Escreveu uma epopeia, daí o próprio título. Que razão a levou a escrever a narrativa, em prosa, mas num ritmo poético, tão diferente do que é comum?

    Quando comecei a pensar em escrever este livro, perguntei-me várias vezes até que ponto eu seria capaz de contar a história de alguém que realmente existe, que não é uma personagem fictícia, mas uma pessoa que me confidenciou a sua história. Foi uma ideia que inicialmente até me repeliu por breves instantes. Talvez tivesse passado pela minha cabeça algo mais próximo de um romance histórico, tradicional. Nesse ambiente nós inventamos cenários, detalhes, criamos uma atmosfera de suspense e até criamos diálogos.

    Seria mais fácil…

    Se assim fosse, teria posto na boca da Annette palavras que ela nem sequer diria na época. Então, teria mudado muita coisa, talvez até o nome. Seria outra história. Porém a batalha continuou dentro de mim. Eu não estava na condição de biógrafa, não pretendia isso. Foi então que me lembrei dessa forma literária muito antiga que é a epopeia. Finalmente podia contar ou cantar os feitos corajosos de uma mulher num ritmo muito próprio – as epopeias narram os feitos corajosos de heróis homens… até agora! Esta epopeia conta os feitos heroicos de uma mulher!

    As epopeias exageram – faz parte da sua natureza. Exagerou muito ao escrever o livro?

    Eu pensei muito sobre o ritmo que devia dar à história para que o leitor se envolvesse nela. Na verdade, não há exagero, como se dá por vezes quando se cria uma lenda. Pode haver, sim, uma simpatia da minha parte que me tenha levado a compor a história de um certo ponto de vista. Mas não há, neste livro, exagero para transformar a Annette numa lenda, ou para glorificar a sua vida. Li alguns textos épicos ao longo da minha vida: A Ilíada, a Odisseia… Não os reli, mas dei uma passagem rápida enquanto estava a escrever o texto.

    Com que cenas da vida de Annette mais se identifica?

    Não ouso identificar-me com a vida de Annette. Aliás, nem sei como seria a minha reacção se vivesse o que ela viveu. Mas há uma passagem que me toca muito: o resgate das duas crianças – na verdade, são adolescentes judeus – durante a ocupação de Paris, contrariando as regras do movimento de resistência de não se agir por iniciativa própria. Parece-me um episódio extraordinário e cheio de coragem, sobretudo para uma jovem, sozinha. Ainda por cima, tratava-se de gente desconhecida, de pessoas com quem nunca tinha falado. Quando penso em mim, aos 19, 20 anos… preocupada comigo mesmo, com as minhas questões pessoais, com as minhas pequenas histórias.

    Vida da francesa Anne Beaumanoir, nascida em 1923 e falecida em 4 de Março deste ano,, é retratada no romance de Anne Weber.

    Annette é fruto de um contexto de guerra. Também nós deveríamos mudar diante da actual guerra entre a Rússia e a Ucrânia?

    Da noite para o dia tudo mudou, a nossa vida também mudou. Aliás, já estive na Ucrânia e falei com uma amiga que conheci lá imediatamente antes da invasão ter começado. Ela não queria acreditar. Tudo mudou completamente. Para nós, que não estamos lá, é difícil imaginar o que é estar no meio de uma guerra. Espero que não tenhamos que passar pelo mesmo, espero que não chegue até nós. O cenário de guerra faz-nos tomar decisões que só quando passamos pela experiência é que sabemos e descobrimos um lado nosso, escondido até então. Numa guerra, tudo é decidido no momento. Foi isso que aconteceu com Annette. Aconteceria com cada um de nós ao viver na primeira pessoa esse acontecimento. Ao ler este livro, não há como não perguntar a ti mesmo: “o que faria eu no lugar dela?”.

    Quem é que fala com o leitor ao longo destas páginas: a Anne Weber ou Annette?

    R: A Annette escreveu as suas próprias memórias. Foram publicadas em francês, e agora também já foram publicadas em alemão. Aí é ela que fala com o leitor. Neste livro, é claramente o meu ponto de vista, sou eu quem interpela o leitor; a história é dela, os pensamentos são dela. Infelizmente sou eu quem fala… não é ela directamente.

    Como se conheceram?

    Conheci Annette Beaumanoir por acaso, há alguns anos atrás, quando fui convidada para um festival de documentários no sul de França. Ela estava na plateia e acabámos a conversar. Até então, eu nunca tinha conhecido ninguém que tivesse feito parte da Resistência. Queria saber mais – sobre ela, sobre sua vida. Algum tempo depois, creio que passaram poucas semanas, fui visitá-la e criámos amizade. Li a sua autobiografia e, entretanto, tive a ideia de lhe dedicar um livro, e contar a sua vida de uma maneira diferente.

    O que lhe disse Annette quando leu o seu livro?

    Assim que terminei o manuscrito, em francês, mostrei-lhe e ela disse-me que estava óptimo. Mas houve algo que me incomodou. Depois de me ter dito que estava muito bom, disse-me que não era ela que estava ali retratada no livro. Entendi, entretanto, o que ela queria dizer – ela não se via como uma heroína. Sentiu que eu tinha exagerado! É claro que quando escrevemos sobre alguém há sempre a influência do nosso próprio ponto de vista, e depois há ainda a nossa forma de contar. Imaginemos que alguém te pedia para escrever a história do teu pai ou da tua mãe… Seria sempre um ponto de vista diferente dos próprios. No entanto, sinto que ela disse aquilo porque estava a ser humilde. Porque viveu aqueles episódios com simplicidade e autenticidade.

  • ‘Muitos medicamentos foram comercializados sem se avaliar os impactos na fertilidade’

    ‘Muitos medicamentos foram comercializados sem se avaliar os impactos na fertilidade’

    Em Espermagedão, remetendo para o apocalíptico Armagedão, o jornalista e escritor norueguês Niels Christian Geelmuyden releva uma “epidemia silenciosa” que ameaça a espécie humana: a infertilidade masculina. Pouco falada na comunicação social, por um certo pudor masculino, esta condição não aflige apenas os homens – o mesmo fenómeno está a ser detectado em machos de espécies de peixes, insectos, répteis e mamíferos. Em conversa com o PÁGINA UM, por video-conferência, Geelmuyden aponta causas e soluções, antes que seja demasiado tarde.


    O tema da infertilidade masculina não é muito falado nos media. Qual foi a sua motivação, como jornalista, para pesquisar este tema?

    Este foi o meu 38º livro, e esta temática já a tinha abordado superficialmente em três deles. Já escrevi sobre alimentação, sobre o que beber, e por isso decidi terminar esta série abordando a infertilidade porque é, de facto, um problema grave. Há casais jovens que hoje não estão a conseguir engravidar. E é verdade: os media mainstream não abordam este problema com frequência. Acredito que seja por causa da velha ideia de que se um casal não consegue engravidar, a culpa é da mulher. Quase todas as pessoas ainda acreditam nisso, embora em dois terços dos casos se deva ao homem. Claro que as mulheres também sofrem de infertilidade: a endometriose, por exemplo. Mas o principal problema parece ser que a abundância de espermatozoides está em queda. Não só nos humanos, mas também em peixes, pássaros e insectos.

    Na Noruega, fala-se mais sobre este assunto?

    Não, mesmo aqui é muito difícil chamar a atenção das pessoas para esta questão. Mesmo depois do meu livro, até os meus amigos receiam mais que o problema esteja no excesso populacional, que a população mundial vá “explodir”, e que vamos ser muitos milhares de milhões. Mas não vai ser assim. Será o oposto. Eu não acho que os seres humanos vão desaparecer; acredito que haja uma solução. Mas, até lá, o sistema de segurança social que conhecemos vai acabar, não vai haver dinheiro quando chegarmos a uma situação em que 60% das pessoas tenham mais de 60 anos.

    Niels Christian Geelmuyden

    Geralmente, quando se falam de ameaças próximas para a Humanidade destaca-se a sobrepopulação e também cada vez mais as alterações climáticas. Mas nunca se refere a infertilidade…

    Sim. Eu acredito daqui a uns anos, as pessoas se interessem. Já existem países onde a fertilidade é tão reduzida que existe mesmo o risco de populações desaparecerem, se continuarmos assim.

    Na Europa, a taxa média de fertilidade é de 1,61 filhos por cada mulher. Já estamos abaixo do nível de reposição demográfica

    E deveria ser de 2,2. Na Coreia do Sul já só é de 0,80. Na China, o banco de esperma de Shangai tem de rejeitar 90% das doações porque não é fértil. Mas eu falo disso às pessoas, e elas até dizem: “boa!, que boas notícias, vamos ser menos, vai haver mais espaço na praia, vai ser mais fácil” [risos]. Mas acho que não estão a pensar bem. Não reconhecem que este é um enorme problema.

    Continua a propagar-se a ideia de que o mundo é demasiado populoso; que somos muitos. Mas a incidência de infertilidade também é um indicativo de uma saúde mais débil das pessoas, certo?

    Sim, é verdade. Há duas coisas que nem sempre se compreende: uma, é que o esperma é um espelho da saúde dos homens. Portanto, se um homem tem uma baixa contagem de espermatozóides, significa que terá uma menor esperança média de vida e uma maior susceptibilidade a doenças crónicas. Terá ainda uma maior probabilidade de desenvolver cancro e outras doenças. E, atenção, esta realidade não atinge só os seres humanos, mas todas as espécies na Terra. Em Inglaterra, descobriram certos peixes-machos já estão a pôr ovos. Não é um bom sinal. E isso poderá significar que o plástico ingerido pelos peixes é “estrogénico”, que os microplásticos têm um efeito “efeminizante”. Na Dinamarca, seis em cada 10 rapazes desenvolvem seios. E alguns, até com leite. É mesmo assustador.

    Mas se a fertilidade é um espelho da saúde, é importante que as pessoas tenham atenção a esse aspecto, independentemente de quererem ou não ter filhos, certo?

    Sim, eu digo sempre duas coisas para chamar a atenção. A nossa fertilidade reflecte o nosso estado de saúde, e, por outro lado, não somos apenas nós [humanos] que estamos mais inférteis. Os cães, por exemplo, também estão. A qualidade do esperma dos cães está a diminuir tão depressa como o dos humanos. E eles não usam telemóveis nem têm tatuagens [risos]. Escrever este livro foi como desvendar um crime. Algo está a tornar milhões de pessoas inférteis e descobrir o que é, foi o meu principal objectivo com este livro. Perceber o que está a causar tanta miséria e a destruir às pessoas o sonho de serem pais.

    Espermagedão, publicado originalmente em 2019, foi editado em Abril deste ano em Portugal pela Casa das Letras.

    No seu livro chega a comparar o processo de escrita com a descoberta do criminoso em Um crime no Expresso Oriente, da Agatha Christie. Sem querer entrar em teorias da conspiração, acha que o silêncio sobre esta crise é inocente?

    Eu não acredito que isto seja uma conspiração, não acho que o Bill Gates nos queira “eliminar” da Terra. Eu acredito que é o nosso estilo de vida moderno que nos está a pôr doentes. Se víssemos a forma como os porcos e os frangos são criados convencionalmente, os químicos no salmão de cativeiro… bom, deixaríamos de os comer. Eu escrevi um livro sobre esse tema em 2013, que vendeu quase 30 mil cópias na Noruega. A partir daí, mudei a minha vida. Sou tão estúpido que tive que escrever um livro primeiro para mudar. [risos]

    Em Espermagedão indica vários factores que podem ter desencadeado a crise da fertilidade masculina, como a proliferação do plástico, mas menciona outros. Quais são, realmente, as causas mais perigosas?

    Eu sou apenas um jornalista, por isso oiço os grandes especialistas desta área. Um deles é o Richard Sharpe, professor inglês da Universidade de Edimburgo. Ele indica os quatro motivos principais: a alimentação, o nosso estilo de vida, os medicamentos e as toxinas ambientais.

    Parece ser difícil evitar tudo isso, porque estamos rodeados por “maus alimentos”. Tudo é muito processado…

    Há luz ao fundo do túnel, no final do meu livro digo qual é.

    Não lhe vou perguntar em concreto que “luz” é essa, para que os leitores possam descobrir isso no seu livro, mas, em todo o caso, que pode um homem fazer para melhorar a sua fertilidade?

    Se um homem souber que tem esperma de má qualidade, ele consegue duplicar a contagem de espermatozóides através de uma alimentação biológica. E não é só porque os alimentos biológicos têm menos pesticidas, mas também por serem muito mais nutritivos. Possuem mais vitaminas, minerais e antioxidantes; e menos metais pesados e microplásticos.

    Recentemente, foi anunciado que em breve se iniciam testes em humanos para uma pílula masculina. Considera isso preocupante, uma vez que os homens já estão cada vez menos férteis?

    Eu já tenho 61 anos, já tenho dois filhos e não deverei ter mais. Portanto, não é por mim que eu escrevi este livro, mas pelos mais jovens. E o problema não é só eles estarem menos férteis. Na Noruega, e também no resto da Europa, muitos jovens já precisam de usar viagra. Precisam de comprimidos para terem erecções e possuem menos testosterona. Por exemplo, eu devo ter, provavelmente, metade da testosterona que o meu pai tinha na minha idade. Está a diminuir de geração para geração.

    Recentemente, um conhecido apresentador norte-americano, Tucker Carlson, falou desse problema no seu programa e foi ridicularizado. Ele recomendou que os homens bronzeassem os testículos para aumentarem os níveis de testosterona [risos]. Ouviu falar disso?

    Há coisas que me têm escapado porque ultimamente tenho estado muito ocupado com o meu novo livro, completamente diferente dos outros. E quando se está a trabalhar num novo livro, recolhemo-nos na nossa “concha”. Entreguei-o esta manhã.

    Niels Christian Geelmuyden

    E pode dizer-nos de que trata o livro?

    É um livro muito especial. Basicamente, imagino-me a falar com personalidades que já morreram há bastante tempo, como Edvard Munch e Picasso. Tudo com base no que eles escreveram ou disseram em vida.

    Há uma questão que lhe gostava de colocar, que é incontornável nos tempos que correm: a pandemia da covid-19 e as vacinas. Suscitou-se algum debate sobre eventuais efeitos na fertilidade. Houve muitas mulheres a reportarem irregularidades menstruais. Tem já uma opinião formada sobre este assunto?

    Eu tenho muitas opiniões sobre as vacinas. De acordo com alguns estudos que tenho lido, a própria covid-19 pode afectar a fertilidade. Pessoalmente, não tomei a vacina, porque recebi um transplante renal da minha mulher há 13 anos, e tenho de tomar medicamentação. E por isso, a vacina não funciona da mesma forma. Mas segundo sei, a covid-19 é pior para a fertilidade masculina do que as vacinas.

    Está optimista em relação ao “futuro” da fertilidade masculina?

    Sim, desde que as pessoas tomem consciência do problema. Nós temos a capacidade de resolvê-lo muito depressa. O problema é haver bastante dinheiro envolvido na indústria alimentar e farmacêutica. Muitos medicamentos foram comercializados sem se avaliar os impactos na fertilidade. O paracetamol, por exemplo, é um dos medicamentos que mais afecta o sistema hormonal, e as pessoas não sabem disso.

    A “Big Pharma” às vezes coloca o lucro à frente da saúde das pessoas…

    E manipulam os estudos, controlam a Food and Drug Administration (FDA) e os governos.

    É algo difícil de combater…

    Pelo menos, eu estou a tentar, e espero que as pessoas em Portugal leiam o livro, e acreditem. Mas, claro, é deprimente escrever este livro durante um ano e ver que a maior parte das pessoas não quer saber do assunto [risos].

    No ano passado, a cientista Shanna Swan lançou, também, um livro [Count Down] sobre a diminuição da fertilidade masculina.

    Sim, eu estava expectante que ela conseguisse mudar o rumo das coisas, porque é uma especialista. Mas não aconteceu nada. Ela integrou o grupo de investigadores de um grande estudo em 2017 que relatou que, desde 1973, a contagem de espermatozóides caiu 60% nas populações do Ocidente.

    Hoje em dia, há cada vez mais casais que não conseguem ter filhos naturalmente, mas os nossos pais e avós não pareciam ter dificuldades em engravidar.

    Pelo contário. Até tinham medo de se sentarem na sanita e poderem engravidar [risos]. Hoje, as pessoas também estão a querer ter filhos mais tarde. E vivem agora sobretudo em cidades, não precisam tanto das crianças, para as ajudar em trabalhos, como quando se vivia no campo. Depois, temos a guerra na Ucrânia, o clima. As pessoas sentem receio de trazer crianças a este mundo. Portanto, há todos esses aspectos, para além da fertilidade.