Etiqueta: Pedro Almeida Vieira

  • Amílcar Falcão: As universidades e os medíocres (que não podem vencer)

    Amílcar Falcão: As universidades e os medíocres (que não podem vencer)


    Nos últimos três anos – a bem dizer, desde que eclodiu a pandemia da covid-19 –, aquilo que mais me surpreendeu não foi tanto a irracionalidade das massas – ou melhor dizendo, a cedência do pensamento individual, no torpor do pânico, ao seguidismo de uma narrativa imposta pela máquina estatal (nacional e internacional) auxiliada pelos media –, mas sim o conformismo, a covardia e a conivência (perante o poder e os interesses económicos) das elites.

    De elites falo aqui dos académicos – ou, melhor dizendo, dos universitários.

    Bem sei, todos sabemos, como, tanto a nível nacional como internacional, as universidades tiveram de fazer pela vida quando se lhes impôs (ou elas quiseram) a sua autonomia financeira, deixando de ser apenas centros de excelência na formação e na investigação pura para passarem a ser centros de captação de financiamentos para projectos de investigação e desenvolvimento (I&D), e sobretudo de investigação aplicada.

    Por esse motivo, hoje, as universidades integram uma importante componente de marketing, e quem fala de marketing, fala de relações públicas; e quem fala de relações públicas, fala de diplomacia; e quem fala de diplomacia, fala de cortesias; e quem fala de cortesias, fala de fretes; e quem fala de fretes, fala de lambe-botas; e quem fala de lambe-botas, fala de medíocres. No meio disto, vai-se perdendo a ética e vai-se mercadejando a Ciência ao cinzel que melhor paga.

    Vejam, hoje, malgrado termos investigadores de primeira água, naquilo que se tem transformado a academia: cérebros que medem as palavras, que refreiam opiniões, que se auto-censuram e censuram, que manipulam e obscurecem factos, que defendem uma verdade indicada por terceiros (Governo, empresas, opinião pública), que seguem padrões de catavento.

    Nunca mais me hei-de esquecer da forma como se procedeu ao silenciamento para uma discussão participada durante a pandemia.

    Não me esquecerei do unanimismo silencioso das universidades e dos académicos quando o Governo, ignorando comissões independentes que estavam previstas na lei (p. ex., o Conselho Nacional de Saúde e o Conselho Nacional de Saúde Pública), foi escolhendo a dedo os “peritos” e os “especialistas” que ousavam assumir-se como os arautos de uma Verdade Científica Imaculada e Inquestionável.

    Não me esquecerei, por exemplo, do subsequente silêncio de uma das mais prestigiadas cientistas portuguesas, Maria Manuela Mota, directora executiva do Instituto de Medicina Molecular, quando afirmou ao Expresso em Abril de 2020: “Não entrem em pânico. Vírus [SARS-CoV-2] é relativamente bonzinho”. Compreende-se: na altura, alimentava-se o pânico como estratégia, e perante a sua posição isolada (por cobardia dos pares), não se lhe pode censurar o auto-silenciamento posterior quando se dirige um centro de investigação a carpir financiamentos para mais de 700 trabalhadores.

    grayscale photo of woman doing silent hand sign

    Foi esta dependência – alicerçada na ascensão de pessoas sem perfil ético para compreender o papel das universidades e dos académicos numa sociedade democrática, por mais extraordinariamente inteligentes que sejam – que causou o sequestro da Ciência pela política. Não apenas pela política governamental, mas também pela política empresarial – leia-se, neste caso, também farmacêutica, mas não só.

    Foi alicerçado neste tipo de nefasta dependência que, por exemplo, o Instituto Superior Técnico – e particularmente o seu presidente, Rogério Colaço – acabaram compondo uns miseráveis relatórios epidemiológicos alarmistas a partir do Verão de 2021, para gáudio de uma néscia imprensa (que nada questiona), e tão vergonhosos foram esses ditos relatórios que até recusaram facultá-los, vendo-se envolvidos, por mor do PÁGINA UM, num deprimente processo de intimação no Tribunal Administrativo que só pode obrigar que cedam aquilo que voluntariamente tinham o dever ético de mostrar.

    Acabada a pandemia – ou cronologicamente, no epílogo da pandemia –, a indecência da academia, como um vírus, pareceu alastrar-se à invasão da Ucrânia. Sem prejuízo de estarmos perante um acto inadmissivelmente hostil da Rússia e de este país não ser propriamente dirigido por um Governo democrático (costumo dizer que Putin não está à frente dos destinos daquele país há meia dúzia de dias), não há inocentes políticos nesta guerra (a começar no chamado Ocidente) nem se deveria, em Estados democráticos, responder à barbárie com censura, hostilização, ostracismo e perseguição apenas por razões de cidadania.

    Vladimir Pliassov numa reportagem de 2018 para a RTP2 sobre o Centro de Estudos Russos da Universidade de Coimbra.

    Não ouvi – e pode ter sucedido por distracção – nenhuma universidade com abertura para ser o palco de debates em redor da guerra da Ucrânia, com centro de reflexão para se encontrar uma forma de pacificação, sem colocar premissas nem condicionamentos. Não ouvi – e pode ter sucedido por distracção – nenhuma universidade a criticar a censura a órgãos de comunicação social da Rússia nos países ocidentais, ao mesmo tempo que se alcandora a Ucrânia a um patamar de democracia que nunca teve (e não tem).

    Na verdade, as universidades seguiram o mesmo padrão da pandemia: atentas às consequências dos seus actos, seguiram o que o Governo e as instâncias europeias (seus principais financiadores) foram ditando.

    Por isso, não surpreende demasiado que, neste cenário, o reitor da Universidade de Coimbra, Amílcar Falcão tenha demitido, sem apelo nem agravo, o director do Centro de Estudos Russos da Universidade de Coimbra, Vladimir Pliassov, apenas porque dois alegados activistas ucranianos decidiram acusar aquele cidadão russo de “propaganda russa” nas suas aulas. Amílcar Falcão não ouviu sequer o docente, radicado em Portugal desde 1998 e com nacionalidade portuguesa desde 2002, e que até dava agora aulas (de Literatura) em regime gracioso.

    O caso é tão lamentável que causa dó.

    Olga Filipova (à esquerda) e Viacheslav Medvediev (à direita). Bastou um artigo de opinião num jornal regional para espoletar uma demissão-relâmpago por iniciativa do reitor da Universidade de Coimbra sem apelo nem agravo.

    Eis que tivemos um Falcão, aspirando aos voos do populismo, tornando medíocre uma universidade, e com os seus actos resgatando das tenebrosas páginas negras da Inquisição o estilo “caça-bruxas” com aplicação de sanções antes sequer de uma inquirição, quanto mais um julgamento justo.

    Eis que tivemos a mediocridade mais uma vez no topo de uma universidade, em todo o seu esplendor, com o seu fautor talvez almejando comendas pela prontidão de um acto de justiceiro em prol das “vontades do vento”.

    Bem sei que os tempos não andam fáceis para quem, minoritário, rema contra a corrente – no seio de um Jornalismo decrépito e em perda de princípios, sei por experiência própria, os custos da ousadia –, mas há um sinal de esperança quando o vil acto de Amílcar Falcão está finalmente a ser contestado dentro da própria Universidade de Coimbra. Primeiro de uma forma mais discreta (e ainda minoritária), mas nos últimos dias de um modo mais substancial e impossível de se silenciar.

    Porém, isto sabe a pouco. Até se poderia chegar à (porventura absurda) conclusão de que Vladimir Pliassov era o mais empedernido putinista, mas um reitor não pode arvorar-se de polícia, de procurador de acusação, de juiz e de executor, e tudo isto feito no reduto dos seus neurónios. Se pensa que poderia fazer tudo isto perante um caso desta delicadeza, não pode continuar a ser reitor. Se sabia que não poderia fazer isso e fez, não pode continuar a ser reitor.  

    Depois de tudo isto, e independentemente de quem é, na essência, Vladimir Pliassov, temos apenas como certo que Amílcar Falcão não tem estaleca – digamos assim, de sorte a soar mais popular – para ser reitor da Universidade de Coimbra.

    Manter-se nesse posto será a vitória da mediocridade – o que tornará medíocres os demais. Mesmo daqueles académicos que, agora, o criticam em abaixo-assinados, porque dos outros que se mantêm, mesmo assim, em silêncio, não rezará a História.

  • PÁGINA UM: 20 meses que são 20 vitórias

    PÁGINA UM: 20 meses que são 20 vitórias


    O PÁGINA UM faz hoje 20 meses. Eu conto os meses de existência. Não apenas por serem as primeiras fases da infância o período mais crítico de qualquer ser, mas sobretudo porque, neste modelo deste projecto jornalístico independente, se mostra obrigatório definir o futuro a curto prazo. O PÁGINA UM nasceu pelo apoio financeiro dos seus leitores, com donativos desde 1 euro até algumas centenas de euros, e 20 meses depois vivemos da mesma forma.

    Não quisemos publicidade nem parcerias comerciais: e sabemos que estamos no fio da navalha, mas com a possibilidade impagável de fazer jornalismo sem concessões nem constrangimentos nem medos. Essa liberdade é inexcedível, e não acreditem que seja coisa vista por aí na chamada imprensa mainstream. Aliás, por esse motivo, o PÁGINA UM é tão criticado.

    Mas sabemos que o nosso sucesso não depende apenas das notícias. Depende sobretudo dos nossos leitores e da suas capacidades para avaliarem dia a dia o nosso trabalho, e dar um apoio concreto que não seja só aplausos (lembram-se dos aplausos aos médicos?).

    Ao longo destes 20 meses, já ganhámos muitos apoiantes pontuais ou regulares; fomos perdendo muitos outros, alguns por dificuldades, outros por discordância, outros talvez porque, enfim, consideram que não conseguiremos fazer a diferença. Para estes últimos, e na verdade para todos, gostaríamos de os convencer que queremos fazer a diferença. Podemos mesmo ser a diferença, se meios houver.

    Cada novo apoio e cada saída de um antigo apoiante do PÁGINA UM não me é indiferente: o meu desejo é ver o PÁGINA UM com um maior desafogo financeiro para permitir uma maior aposta no jornalismo de investigação, de pressão, de denúncia. Por agora, temos conseguido muitas vitórias, mas queremos muitas mais.

    A principal vitória parece óbvia; aos fim de 20 meses somos a prova viva de que a qualidade do jornalismo independente é mesmo valorizada pelos leitores, mesmo quando o acesso é completamente livre, ou seja, acesso aberto. Isto vai até contra os modelos clássicos da Economia.

    blue bird on gray rock

    Manter por 20 meses (ou um pouco mais, porque houve dois meses de preparação) um jornal nestas condições é o mais nobre reconhecimento que os nossos apoiantes (financeiros) nos concedem: mesmo sabendo que poderiam ler o PÁGINA UM gratuitamente, assumem que o jornalismo independente necessita de recursos para fazer um bom trabalho. Contribuem também para que os leitores de menores posses possam aceder aos nossos artigos noticiosos e outros conteúdos.

    Em todo o caso, sabemos que este modelo – uma independência extrema e quase estóica – traz enormes limitações de crescimento, porque o orçamento do PÁGINA UM não tem chegado, nos últimos meses sequer aos 5.000 euros mensais, e a gestão do jornal tem uma regra: não há empréstimos bancários e não há dívidas ao Estado.

    Apesar da empresa gestora do PÁGINA UM ter o mesmo capital social da Trust in News, a dona da revista Visão e de outras publicações, não queremos (nem nos permitiriam) viver com um passivo de 11,4 milhões por via de calotes fiscais ou por empréstimos da banca. Ter empresas de media com endividamentos de milhões e dívidas ao Fisco pode ser fácil e cómodo, mas não se faz aí verdadeiro jornalismo. Pelo contrário, mata-se o jornalismo.

    Pedi ao Midjourney para imaginar uma reunião na sede do PÁGINA UM daqui a 20 meses… Na verdade, pode ser qualquer uma destas quatro alternativas… Excepto a gravata.

    Por esse motivo, sabemos o “custo da independência”. E não é apenas o de sofrer os ataques de alguns colegas de profissão – e sobretudo da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (que mantém há um mês um vergonhoso frete sob a forma de falsa deliberação, votada fora das reuniões ordinárias, feita à margem de qualquer ética, na homepage do Sindicato dos Jornalistas).

    Esse “custo da independência” é o de mantermos uma dimensão pequena, com uma redacção minúscula e com um (extraordinário) punhado de colaboradores (quase todos pro bono) que oferece uma diversidade ao PÁGINA UM que muito me orgulha.

    Mas, na verdade, aquilo que me orgulha mais é o reconhecimento dos leitores. E mais não digo, que amanhã é um novo dia e há mais notícias para revelar. Sempre para os leitores. Sempre com os leitores. Obrigado por tudo. E continuem a ler e a apoiar o PÁGINA UM.

  • As civilizações empilhadas num mar

    As civilizações empilhadas num mar

    Título

    Atlas histórico do Mediterrâneo

    Autor

    FLORIAN LOUIS (tradução: Luís Filipe Pontes)

    Editora

    Guerra & Paz (Janeiro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Em cada novo número, a Guerra & Paz merece todos os elogios pela colecção que começa a compor, por contribuir, digamos assim, para se recuperar o amor perdido ao livro físico perante a avalanche tecnológica assente no digital.

    aqui tivemos a oportunidade de abordar, no caso sobre a água, esta coleccção Atlas, que já conta agora com 12 temas, criteriosamente escolhidos e sabiamente escritos, abordando quer períodos históricos (Primeira Guerra Mundial, Holocausto e Guerra Fria, por agora, presume-se), quer países ou impérios (Antigo Egipto, Império Romano, Estados Unidos), quer regiões (África, Médio Oriente), quer temáticas “globalistas” (Água, Escrita e Fronteiras).

    Claramente, o objectivo destas obras não é apresentar um tratado sobre estes assuntos, até pela sua vastidão, e porque, por regra, não passam das 200 páginas. O interesse desta colecção é, exactamente, o oposto: depurar a vastidão para apresentar o essencial, aguçando o apetite para se poder buscar mais. E aí, no final, é apresentada uma extensa lista de referências bibliográficas, sobretudo de índole académica.

    Porém, aquilo que mais se destaca nos livros desta colecção, e este Atlas histórico do Mediterrâneo não constitui excepção, é o detalhe da cartografia que acompanha os curtos mas informativos textos que se vão sucedendo ao longo das páginas. 

    Mas independentemente desta parte mais “lúdica” do livro, este Atlas histórico do Mediterrâneo tem também o condão de relembrar o magistral trabalho histórico de Fernando Braudel, que durante décadas estudou o Mediterrâneo, não como um simples mar banhando o sul da Europa, o Norte de África e uma pequena parte ocidental da Ásia, mas sim um mar “no meio de terras” (mediterraneus, com “várias civilizações empilhadas umas em cima das outras”.

    E são essa “pilhas” de História que nos são presenteadas, desde o berço da Civilização na Mesopotâmia (embora Eufrates e Tigre desaguem no Golfo Pérsico), passando pelo Egipto e pelos Fenícios, até aos nossos dias.

    Distribuído por cinco grandes capítulos temáticos ou por períodos históricos (até à queda do Império Romano; desde a expansão islâmica na Europa até à dominância dos territórios marítimos pelos povos europeus; desde a expansão otomana às guerras e pilhagens de corso dos séculos XVI, XVII e ainda XVIII; os processos independentistas e de unificação de importantes países como a Grécia e a Itália; e, por fim, os tempos mais recentes da História, isto é, o século XX), este livro confirma-nos como o Mediterrâneo assistiu, quer pelas armas quer pelo comércio, às glórias e às derrotas de muitos povos, à ascensão e queda de outros tantos, dando naquilo que hoje conhecemos na complexidade do Sul da Europa, Norte de África e mesmo Médio Oriente.

    E permite-nos concluir que, enfim, e na verdade, estamos, aqui, em Portugal, com mais raízes mediterrânicas do que propriamente europeias, mesmo se nos localizamos um pouco na extremidade desta vasta região, e, por ser tão ambicionada, tivemos, para crescer, de olhar ainda mais além, para o grandioso Atlântico, cujo Atlas esperamos que também venha um dia a ser publicado pela Guerra & Paz.

  • O PÁGINA UM: um ano e meio de vida em prol do verdadeiro jornalismo

    O PÁGINA UM: um ano e meio de vida em prol do verdadeiro jornalismo


    Nascemos há um ano e meio, era o dia 21 de Dezembro de 2021.

    Nascemos para mostrar que pode haver jornalismo independente, com princípios e incómodo, e por isso mesmo perseguido.

    Em 18 meses fizemos o que todos não fizeram em 18 anos: exigir em tribunais administrativos o acesso à informação.

    Denunciámos as promiscuidades da imprensa mainstream, que está a aniquilar os princípios do jornalismo, e por isso tenho à perna três “reguladores”; e pelo menos dois processos judiciais em que sou arguido (e ainda sem acusação).

    Com uma pequena redacção, publicámos já 1.444 textos, entre artigos de investigação jornalística, entrevistas, opinião e recensões.

    Somos o único jornal que tem como único activo a sua credibilidade, que a expõe apenas ao leitores, que são a nossa única fonte de financiamento. Não escrevemos para agradar aos nossos anunciantes, porque não os temos; nem para agradar aos nossos potenciais parceiros comerciais, porque não os queremos; nem para agradar ao poder, porque só os queremos sindicar.

    Em 18 meses, continuamos e continuaremos sem publicidade nem parcerias comerciais. Pelos nossos leitores. Para os nossos leitores. Obrigado pelo vosso apoio.

  • Não suportemos a normalização do pântano

    Não suportemos a normalização do pântano


    Temos mais um escândalo com Medina. Ou melhor dizendo, este também mete Duarte Cordeiro. E também o inefável Luís Filipe Vieira. E mais ainda umas cunhas para tachos.

    Coisas banais nos tempos que correm, num Governo que já não é Governo se não tiver um escândalo semanal. Cada novo escândalo dos membros do Governo Costa é mais um elefante a passar desapercebido no meio de uma cidade: esse novo escândalo consegue esse feito porque segue em manada, rodeado de outros elefantes, de outros escândalos.

    Começa a ser necessário fazer uma lista para não esquecer de se enumerar todos os escândalos dos últimos meses com membros do Governo, ou seus adjuntos.

    Quem se recorda ainda de Miguel Alves, secretário de Estado-adjunto do Primeiro Ministro, que se demitiu em Novembro do ano passado, acusado de crime de prevaricação?

    E do marido de Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial, que, além de receber uns subsidiozitos que não eram para todos, se associou a um chinês acusado por corrupção activa?

    E já agora, de Tiago Cunha, o assessor de Mariana Vieira da Silva, 21 aninhos, saído da Universidade directamente para um gabinete ministerial a facturar 3.700 euros?

    De Alexandra Reis, demitida de secretária de Estado do Tesouro em Dezembro do ano passado, provavelmente todos se recordam. Bem como das consequências que a sua indemnização da TAP teve na demissão de Pedro Nuno Santos, de super-ministro das Infraestruturas e Habitação, bem como da saída do secretário de Estado Hugo Mendes.

    Aliás, ao pé do caso TAP – que teve “ondas” com a inenarrável cena do novo Ministério de Galamba & Companhia –, já nem sequer damos importância a todo um rol de pequenos e grandes escândalos.

    Como, por exemplo, a contratação (gorada) de Rita Marques, secretária de Estado do Turismo até Março do ano passado, por uma empresa que obtivera benefícios enquanto ela fora governante.

    Ou ainda o caso de Manuel Pizarro, que aceitou ser ministro da Saúde enquanto se mantinha como gerente de uma estranha empresa de consultadoria sobre a qual se ignora quem tenham sido os clientes.

    Também pouca repercussão já tiveram as habilidades de João Gomes Cravinho, ministro dos Negócios Estrangeiros, na renovação da sua carta de condução caducada, sem contar já com a empresa onde partilha sociedade com um sócio condenado por fraude fiscal.

    E já poucos se recordam da fugaz Carla Alves, secretária de Estado da Agricultura por 24 horas, por conta de contas arrestadas do seu marido, antigo autarca de Vinhais.

    Enfim, talvez esteja a escapar-me algum caso, mas todos estes são a ponta de um icebergue da cultura de corrupção moral – certamente não apenas moral, ainda mais sabendo-se que os três últimos anos os ajustes directos se tornaram uma prática banal na Administração da res publica – que tem sido alimentada e estimulada por António Costa.

    A operação Tutti Frutti, onde de novo surge o nome de Medina como peça principal, terá, do ponto de vista político, o mesmo tratamento por parte de António Costa que deu a todos os escândalos anteriores: deixa andar.

    O país transformou-se num couto de imoralidades, numa mina de saque, onde a indecência se banqueteia alarvemente. Em menos de um ano, Costa apenas saltita de escândalo em escândalo, como pedras, no meio de um pântano. Não governa; governa-se e os seus apaniguados assumem os escândalos com naturalidade. É só mais um antes do seguinte.

    Como se o seu objectivo deles fosse atapetar o pântano com tantas pedras como escândalos para não se afundarem. O problema é que podem eles não se afundarem, mas o ar fétido é insuportável.

    Não podemos admitir a normalização do pântano.

  • A morte do Jornalismo pela pena de dois carrascos

    A morte do Jornalismo pela pena de dois carrascos


    Este editorial estava simplesmente para se intitular Quo vadis, Jornalismo?, mas soou-me demasiado reflexivo. E não poderia ser. É mais um manifesto. Um manifesto a favor da sobrevivência da nobre profissão do Jornalismo e da função primordial da Comunicação Social, e contra aqueles que eliminam sorrateiramente, como lobos vestidos de pele de ovelha, a independência dos jornalistas, enquanto batem muito no peito com o cravo na lapela.

    Detesto hipócritas – e é sobre dois hipócritas que quero escrever. Como um é mulher e outro homem, está aqui consagrada a paridade, e confirmado que o deslustre não escolhe géneros.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Pois bem, depois de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) sobre pedidos de documentos administrativos feitos pelo PÁGINA UM, e recusados pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), houve dois jornalistas que integram o Secretariado da dita entidade que ontem deram a sua decisão.

    Destaco uma frase – toda ela um tratado – como argumento para manter a recusa do acesso a actas – a simples actas, ó Céus! – das suas reuniões, assinadas pelos jornalistas Licínia Girão e Jacinto Godinho, que formam o Secretariado da CCPJ:

    Não existindo a concretização de uma finalidade específica para aceder às atas do Plenário (que, sobretudo, contém informação relativa a jornalistas, apreciações e ou juízos de valor sobre estes e, ainda outros dados suscetíveis de pôr em causa o seu bom nome) sendo, como se demonstrou, insuficiente evocar a qualidade de jornalista para aceder a documentos que pela natureza do seu conteúdo são nominativos, é legítima a avaliação da CCPJ no que respeita aos eventuais fins para que possam ser usados os documentos caso a eles o requerente tivesse acesso.

    Há momentos em que sinto vergonha alheia. E também incredulidade. E falta de empatia. Tenho dificuldades de me colocar na pele de Licínia Girão e de Jacinto Godinho – ainda mais neste, outrora reputado repórter de investigação premiado da RTP e professor de Comunicação Social numa universidade pública, que até aprecia contar histórias contra a PIDE – para compreender como o seu azedume ao PÁGINA UM, e a mim, os pode fazer escrever tamanha monstruosidade atentatória da Liberdade de Imprensa.

    Licínia Girão

    Agora um jornalista tem necessidade de concretizar a “finalidade específica” para aceder a documentos públicos, como simples actas?

    E sobretudo se esses documentos contêm “informação relativa a jornalistas”? São agora os jornalistas insindicáveis? Podem eles cometer as maiores barbaridades e corporativamente ser tudo escondido?

    Se assim é, porque não conceder similar benesse a políticos, magistrados, administradores públicos, funcionários públicos, enfim, a todos?

    Ademais, se a CCPJ assume ser legítimo a sua avaliação “no que respeita aos eventuais fins para que possam ser usados os documentos”, por que não considerar então legítimo que o Governo implemente um Serviço de Exame Prévio aos pedidos de jornalistas, recusando liminar e discricionariamente se estes não forem “simpáticos”?

    Só esta frase de Licínia Girão e Jacinto Godinho merecia que jornalistas com um pingo de decência nesta pobre democracia se insurgissem e os corressem a pontapé do Palácio Foz. Mais não seria necessário; mas também nunca menos. Merecem. São gente desta jaez que assassina, literalmente, o Jornalismo; que já perderam os escrúpulos e a vergonha por um par de vinténs, ou já perderam a noção do que escrevem, das posturas que tomam, das consequências dos seus actos e das suas mesquinhas raivas.

    Jacinto Godinho

    A frase acima exposta é o corolário daquilo que nenhum jornalista pode aceitar – porém, é uma frase escrita por jornalistas, defendida por jornalistas e aplicada por jornalistas. E apenas porque assumem eles que os ando a “perseguir” e a fazer pedidos “manifestamente abusivos”.

    E, no entanto, estou a fazer no PÁGINA UM a essência do Jornalismo: perguntar, sindicar, expor, denunciar, informar – usando todos os expedientes legais, incluindo judiciais. Livremente. Sem agendas. Sem interesses económicos, financeiros, partidários e ideológicos. A minha independência mete-lhes medo, porque imprevisível e incontrolável. Por isso, fazem-se de vítimas de perseguição se lhes faço quatro pedidos de documentos. A hipocrisia em seu esplendor.

    Que achará então o Governo e outras entidades quando o PÁGINA Um, perante recusas similares a pedidos de documentos, apresenta intimações no Tribunal Administrativo?

    Devem essas entidades – listemo-las: Conselho Superior da Magistratura, Infarmed, Ordem dos Médicos, Ordem dos Farmacêuticos, Ministério da Saúde, Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, Administração Central dos Sistema de Saúde, Entidade Reguladora para a Comunicação Social, Banco de Portugal, Instituto Superior Técnico, Presidência do Conselho de Ministros e Parque Escolar –, algumas já com mais do que um processo de intimação nos tribunais, juntarem-se, em coro aos jornalistas Licínia Girão e Jacinto Godinho, e promoverem um clube anti-PÁGINA UM para me meterem em ordem? Talvez pelourinho?

    Presumo que seria dia de festa numa Comissão que acredita os títulos (carteiras) de uma profissão cada vez mais desacreditada aos olhos dos cidadãos.

    Não foi para assistir a vergonhosas atitudes destes pequenos ditadores travestidos de jornalistas que se estabeleceu a democracia.

    Fico por aqui, poupando a análise do argumentário de 11 páginas – que pode ser lido aqui, na íntegra –, onde os ditos Licínia Girão e Jacinto Godinho expõem os seus motivos salazarentos para recusar, entre outros documentos, o acesso a processos concluídos a jornalistas em violações da ética profissional e aos ganhos em senhas de presença e outros rendimentos para gerirem um organismo público.

    O caso seguirá, obviamente, em breve, para as instâncias judiciais. Até lá, espero que os jornalistas decentes não se calem agora, pois se assim procederem, um dia, quando quiserem falar, talvez o “trabalhinho sujo” de tipos como Licínia Girão e Jacinto Godinho tenha já contribuído para lhes tirarem a língua. Ou as mãos. E até também as pernas. Ou mesmo a cabeça.

  • 60-0: a cabazada da aldrabice contra a decência num país pestilento

    60-0: a cabazada da aldrabice contra a decência num país pestilento


    Sente-se a podridão no ar, nojenta, exalando odores. A falta de ética transforma uma sociedade numa lixeira, num salve-se quem puder, em benefício de quem tiver artimanhas, e não arte. Vence o espertalhaço, não o inteligente. Vence o canastrão, não o artesão.

    E essa podridão, insidiosa e mesquinha, que forma e deforma uma sociedade, vê-se até ao jogo de berlindes, até num campeonato distrital de futsal, nome pomposo para o futebol de salão, onde este fim-de-semana a aldrabice espetou uma “cabazada” à decência.

    Foto: Luís Ribeiro / Médio Tejo

    A história conta-se em breves palavras. Em igualdade pontual com o Vitória de Santarém, a equipa do Mação Futebol Clube partia com uma desvantagem de 33 golos para a última jornada. E como esperado, ambas as equipas venceram os respectivos jogos, mas enquanto o Vitória de Santarém superou o seu adversário por uns escassos 7-5, o Mação massacrou o seu adversário, Benavente, por 60-sessenta-60 golos sem resposta, o que significa um golo em cada 90 segundos. Resultado: o Mação Futebol Clube foi campeão.

    Dois pormenores, relevantes. Primeiro, o Benavente jogou apenas com três jogadores – mínimo regulamentar – face aos cinco do Mação. Segundo, mesmo sabendo-se que o Mação não conseguira antes mais do que sete golos de vantagem numa partida, sendo assim mais do que remota a probabilidade de ultrapassar o Vitória de Santarém em caso de vitórias destas duas equipas –, houve quem se lembrou de estampar coloridas camisolas de campeão.

    O Mação Futebol Clube – e em paralelo a equipa de Benavente (que nos 19 jogos anteriores sofrera 68 golos) – é a imagem trágica de um país. A imagem de um país sem ética, consolidando os seus objectivos em trapaças, custe o que custar; em esquemas, aqueles que a imaginação aprouver mesmo se fraca; em compadrios, mais que muitos; em manipulações, as que forem necessárias; em corrupção, se não financeira, pelo menos moral, para quem assim se seduzir sem escrúpulo.

    selective focus photography of dried fruits on field

    Independentemente das provas, estamos perante uma pouca-vergonha, uma desavergonhice, que seria apenas risível se não fosse grave, por ser o espelho daquilo em que se transformou Portugal.

    Hoje, sentimos – todos sentem, e os “responsáveis” pelo Mação Futebol Clube sentiram – que, mesmo com trafulhice, mesmo com manipulação, mesmo com aldrabice e mesmo com esquemas ínvios, vale a pena tentar, é justificável tentar, porque basta congeminar ser possível iludir a verdade para que se tente que a mentira se transmute na realidade, proveitosa para o seu autor, mesmo que tal seja profundamente injusto e prejudique quem não deveria.

    Caricaturando a paráfrase de Fernando Pessoa, em Portugal, num país de aldrabões, a obra nasce, quando o homem sonha, mesmo se Deus não quer. E assim se ganha por 60 a 0, com a mesma decência da vitória do Mação Futebol Clube sobre o Benavente Futsal Clube.

    Foto: Luís Ribeiro / Médio Tejo

    E assim se sente a desonestidade na política, no Governo, na Administração Pública, nas escolas, nas forças armadas, nas forças de segurança, nas empresas públicas e nas empresas provadas, em muitas das nossas relações sociais. Em tudo, já.

    Portugal pode continuar a gabar-se de ganhar sempre na recta final por 60-0, sermos os melhores de tudo e da Cantareira; pode sempre erguer-se a taça, que de ouro seja. Mas no seu âmago está lá dentro uma pestilência que não se aguenta.

  • Boa noite, e até para a semana…

    Boa noite, e até para a semana…


    Olho para os títulos de três dos meus editoriais no PÁGINA UM em Abril:

    O pântano de uma república de mentiras: a pretexto de Manuel Pizarro e suas aldrabices

    Medina: o pináculo de um Governo de aldrabões

    Do pântano à cloaca”.

    Bem sei que tenho, por vezes, uma verve mais desbragada, mas não menos verdade o Governo fez, desde 28 de Abril – data do terceiro destes textos –, muito mais para justificar cada palavra acintosa que escrevi.

    Se há apenas uma semana, como escrevi, “É altura de puxar o autoclismo. Fim de ciclo”, mais motivos temos para encerrar este pesadelo, mesmo sabendo que pode vir pior. Pode sempre vir pior, mas no processo de mudança há sempre algo que vem: a esperança de melhor. Mesmo se ténue, mesmo se incerta, mesmo se pouco provável.

    Marcelo Rebelo de Sousa sublinhou diversas vezes, no seu patético discurso desta noite – patético no sentido de pena, até pelo show off que foi criando nos últimos dias, incluindo o gelado do Santini –, quatro palavras: responsabilidade, credibilidade, confiabilidade e autoridade.

    Não há, neste Governo, qualquer pingo de responsabilidade. Em nada. Os últimos três anos só agudizaram a postura de um partido no Governo que, com o beneplácito de uma imprensa colaborativa e uma sociedade amedrontada pela pandemia, usou e abusou a seu bel-prazer dos direitos dos seus cidadãos e do seu dinheiro (não no sentido clássico dos impostos, mas através da “maquina de impressão” do Banco Central Europeu que fez disparar a inflação e agora compramos menos com o mesmo).

    O Governo e seus apaniguados estão viciados em tudo fazer sem responsabilidade. Confundem o Estado com os seus interesses, porque conseguem sempre, através da mentira, da ocultação e da manipulação, transmutar a realidade para jamais serem responsabilizados.

    Não assumindo nunca responsabilidades pelos actos, o Governo sabe que a sua credibilidade anda pelas ruas da amargura. Pouco importa a António Costa e, na Assembleia da República, a Augusto Santos Silva. Usam-se uns soundbites, diaboliza-se a extrema-direita, e mesmo que se ouçam uns impropérios aqui e ali, para eles basta fazer passar, através da imprensa, que os “outros” são piores. António Costa não quer manter-se como político credível; quer apenas mostrar que os “outros” são mais incredíveis.

    Sem sentido de responsabilidade e sem qualquer pingo de credibilidade, já ninguém confia neste Governo. A recusa de Marcelo Rebelo de Sousa em dissolver o Parlamento neste momento, em simultâneo à sua manifestação de descrença neste Governo, serve apenas para que cada vez menos pessoas (e as poucas são talvez somente aquelas que vivem na “esfera” económica e dos interesses do Estado) tenham confiança em António Costa e no seu séquito.

    Sem sentido de responsabilidade, sem qualquer pingo de credibilidade e sem dose alguma de confiabilidade, nos próximos tempos resta uma arma ao Governo para se manter no poder, custe o que custar: a autoridade.

    E aí, até pela amostra de um Serviço de Informações de Segurança a “resgatar” um portátil de um assessor escorraçado para salvar o coiro de um inclassificável ministro, eu temo que a autoridade se transforme em autoritarismo.

    E enquanto tudo isto sucede, perante os nossos atónitos olhos, Marcelo come gelados e convida-nos a ouvi-lo às 20 horas pelas televisões para nos dizer: “Boa noite, e até para a semana…”

  • Caramba, ó Galamba!

    Caramba, ó Galamba!


    Em hipótese, pode um licenciado em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e na Université Sorbonne Nouvelle Paris III cometer um crime que justifique a intervenção do SIS para resgatar um computador com suposta “informação classificada pelo Gabinete Nacional de Segurança”?

    Pode!

    Pode, em hipótese, um putativo criminoso ser um mestre em Economia e Políticas Públicas, no ISCTE, com dissertação intitulada “Compreender a realidade: os fatores explicativos das notícias”?

    Pode!

    João Galamba, o ainda ministro das Infraestrutras.

    Pode, também em hipótese, um alegado ladrão de informação confidencial ter uma pós-graduação em Direito Fiscal pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa?

    Pode!

    Pode ainda, por hipótese, um presumido agressor de mulheres ser doutorando em Economia Política num programa conjunto do ISCTE, ISEG e Universidade de Coimbra?

    Pode!

    Pode ainda, por hipótese, um suspeitoso arremessador de bicicletas contra portas de vidro ter sido jornalista no Record, na Agência Reuters, na Rádio Renascença, no Sol e na Antena Um, além de investigador da Fundação Rosa Luxemburgo e assessor do Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda?

    Pode!

    girl covering her face with both hands

    Pode ainda, por hipótese, tudo isto se acumular na mesma pessoa, e ela ter sido um discreto técnico especialista no Gabinete do Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares entre 2017 e 2019, e adjunto no Gabinete do Ministro das Infraestruturas desde 2019?

    Pode!

    E pode João Galamba continuar a ser ministro?

    Não! Não pode.

  • Os saudosistas do 25 de Abril

    Os saudosistas do 25 de Abril


    Cada sociedade apega-se aos seus símbolos, aos seus totens, para os impor como referências, como modelos. Portugal tem, desde 1974, o seu totem: o 25 de Abril.

    Não haja mal-entendidos. A Revolução dos Cravos tem, no contexto histórico de um país quase milenar, uma relevância indesmentível. Talvez equiparável apenas à própria fundação de Portugal como nação no século XII, à recuperação da independência em 1640, à Revolução Liberal de 1820 ou à implantação da República em 1910.

    Porém, sem margem de dúvida, para as actuais gerações, e sobretudo para grande parte da elite política, a Revolução dos Cravos constituiu ainda mais do que uma referência histórica. Foi uma mudança drástica do quotidiano, começando pela afirmação de uma democracia plena que, além do direito de voto, trouxe liberdade de expressão, de associação, de intervenção cívica, criando-se também, num contexto europeu e mundial distinto – social, tecnológico, político e geoestratégico –, possibilidade de desenvolvimento de acordo com o primado dos direitos e garantias (e também deveres) individuais.

    Ou seja, a Revolução dos Cravos foi a “cozinha” que os capitães de Abril nos forneceram para cozinharmos uma democracia ao nosso bel-prazer.

    Ora, entretanto, passaram já 49 anos, para o ano estamos no meio centenário. Mais do que meia vida. Hoje, os tempos anteriores ao 25 de Abril de 1974 são somente História, literalmente História, para mais de metade da actual população portuguesa. A vida no passado – leia-se, durante o Estado Novo – “interessa-lhes” tanto como à minha geração a II Guerra Mundial, ou à geração dos meus pais a I Guerra Mundial ou mesmo a implantação da República ou os estertores da Monarquia portuguesa.

    Explico-me melhor. O “interesse” deve existir – somos o fluxo dos acontecimentos do passado. Um jovem de 30 anos ou menos deve saber como era o país antes de 1974 para que a sua geração não permita um retrocesso civilizacional. A minha geração deve saber o que foi a II Guerra Mundial para que se evite uma III Guerra Mundial. Todos nós deveríamos saber como se vivia nos tempos do feudalismo, antes mesmo desse período, durante a Inquisição, nas nossas antepassadas sociedades misóginas, esclavagistas, racistas, homofóbicas, segregacionistas, opressoras.

    Mas esse “interesse” é para saber de onde viemos e para onde não queremos regressar; não deve servir para comparar, para servir como bode expiatório dos nossos falhanços, ou para “revisitarmos” esse passado cada vez mais longínquo para exorcizar os nossos fracassos. Olhar o passado é uma referência, mas os olhos e as nossas acções devem estar focados no futuro e na ementa que queremos servir.

    As comparações entre períodos cronológicos são, aliás, muito falaciosas. E somos sempre péssimos avaliadores dos nossos antepassados. Para o bem e para o mal. É-nos fácil, e confesso que confortável, apresentarmo-nos sempre melhores do que eles, esquecendo que eles, tal como nós agora, foram frutos dos seus tempos. Do seu passado e das circunstâncias.

    Há três séculos, um português branco com posses seria, quase de certeza, machista, racista, fanático religioso (apoiante da Inquisição), defensor da pena de morte e possuiria naturalmente escravos ou serviçais que trataria sem respeito algum.

    Há seis décadas, a maioria da sociedade portuguesa aceitava, por medo ou resignação, o Estado Novo como uma inevitabilidade.

    Mas as sociedades, felizmente, evoluem. Sempre evoluíram, mesmo quando houve alguns retrocessos. E evoluíram não apenas porque houve homens e mulheres que criaram rupturas sociais – ou mesmo revoluções, como a dos Cravos de 1974 –, mas muito mais pelo sentimento comum da sociedade para aproveitar a tal “cozinha”, de modo a “confeccionar” metas e objectivos. Para termos uma sociedade mais desenvolvida, mais equilibrada, mais justa e mais equitativa. Aconteceu a Revolução dos Cravos em 1974; sucederia mais ano menos ano; era uma inevitabilidade política (a menos que alguém acredite que, nesta nossa Europa, ainda pudesse subsistir, isolada,uma ditadura à la Salazar em pleno século XXI.

    Olhar para o futuro, com o retrovisor no passado, deve ser aquilo que nos tem de nortear o presente.

    Contudo, aquilo que mais se tem visto nos últimos anos em Portugal – com uma cadência aflitiva – é olhar-se para a democracia como um facto consumado, como uma Conquista de Abril irreversível, revisitando-se ad nauseam o dia 25 de Abril como um totem, onde de cravo ao peito os políticos nos “mostram” os horrores do passado, para que, inebriados e agradecidos, aceitemos o miserável “estado a que chegámos”, parafraseando Salgueiro Maia, ao longo das últimas décadas.

    Não me “interessa” já – ou melhor dizendo, não me interessa na perspectiva de muitos – revisitar a Revolução dos Cravos ano após ano com os mesmos discursos, com as mesmas loas às “conquistas”, com a hipócrita idolatria aos heróis da democracia, quando o mais importante é saber o que fizemos com aquilo que nos ofereceram há 49 anos, que caminho soubemos trilhar em cinco décadas.

    A nossa avaliação da Revolução do 25 de Abril – ou seja, da democracia em Portugal – não pode continuar focada na comparação com o Estado Novo – deixemos já isso para os historiadores –, mas sim atenta à evolução da geopolítica internacional e aos novos perigos que se avizinham para as nações e para as sociedades, como a perda de soberania perante uma Comissão Europeia não-eleita (e com objectivos obscuros), a ameaça às liberdades individuais (incluindo a propriedade) e colectivas, o aumento da corrupção moral (raiz de todas as outras), a degradação da liberdade de expressão e até de imprensa, por via do oligopólio dos conglomerados tecnológicos e de media promíscuos.

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    Numa crescente cultura do obscurantismo e da auto-censura (por medo de represálias) – eu sei que o nosso colunista Tiago Franco acenará com o lápiz azul da Censura e com as prisões do Estado Novo, mas é suposto só nos preocuparmos se chegarmos a esse estado, porque até aí está (ainda) tudo bem? –, se quisermos salvar a democracia – e salvar significa manter ou melhorar os seus princípios –, deixemos de visitar o 25 de Abril como se fôssemos a uma romaria ou a uma feira onde os vendedores da banha da cobra nos tentam endrominar. E nós sabemos disso. 

    Não nos deixemos, por isso, anestesiar pelos saudosistas do 25 de Abril, porque se assim for, em desespero, quando tudo ruir, e vai ruir se assim continuarmos, acabaremos nas mãos de populistas de ideologia duvidosa, que a História, hélas, já nos mostrou ser caminho ainda mais insano.

    Como atrás escrevi, a Revolução dos Cravos foi a “cozinha” que os capitães de Abril nos forneceram para cozinharmos uma democracia. Ao que sabe o prato que nos estão a servir neste momento é o que nos deve preocupar mais. Hoje e amanhã. E em todos os amanhãs, mesmo aqueles que não cantam.