Etiqueta: Pedro Almeida Vieira

  • A Cultura no Página Um

    A Cultura no Página Um


    Não será necessário, julgo, explicar ao leitores do PÁGINA UM a relevância e importância da Cultura, nem das Artes nem da Ciência e do Conhecimento.

    A Cultura é aquilo que nos faz humanos, mesmo no meio da desumanidade. A Cultura nos separa dos animais, mesmo quando, ou sobretudo quando, a selvajaria nos rodeia.

    Este projecto jornalístico não poderia, assim, descartar-se da Cultura.

    Até por ser ter um lugar especial no meu coração, no meu cérebro, em todo o meu corpo e alma.

    Durante uma fase importante da minha formação como pessoa, sobretudo entre os 35 e os 45 anos, dediquei-me com paixão à escrita, publicando quatro romances e três livros de crónicas de carácter histórico. E, além de ensaios na área do Ambiente, fiz algo que muito me honra: redescobri, para a História da Literatura, o pioneiro do romance moderno português, o injustamente esquecido Guilherme Centazzi, com o seu O Estudante de Coimbra.

    Mesmo se, nos últimos anos, por vicissitudes e escolhas várias, me “ausentei” da escrita literária, a Cultura tem-me acompanhado, nem que seja através da minha biblioteca e dos ensinamentos para a vida.

    Por esse motivo, a Literatura será um dos temas fortes da secção de Cultura do PÁGINA UM.

    Além da Estante de novidades que as diversas editoras nos enviam, farei pessoalmente uma selecção daquelas obras que considero mais relevantes, podendo estas serem novidades ou reedições.

    De igual modo, e tendo em consideração o meu carinho especial pelo romance do género histórico, procurarei revelar obras e autores que o foram praticando desde o século XIX. Tenho, para tal, uma vasta bibliografia que me dará para mais de mil títulos e centenas de autores.

    O PÁGINA UM tem também o prazer de contar já com diversos colaboradores neste secção para a recensão de livros (ficção e não-ficção), a saber: Ana Luísa Pereira, Bruno Anselmi Matangrano, Conceição Carneiro, Isabel de Almeida, Luís Serpa e Zuraida Guedes.

    Em breve serão publicadas as primeiras recensões, algumas também da minha safra.

    Na medida das possibilidades, e da abertura das actividades culturais à normalidade, o PÁGINA UM tentará também fazer a divulgação e “análise” em outros sectores.

    Nessa medida, esta secção de Cultura do PÁGINA UM também é vossa; e assim estamos desde já abertos à colaboração daqueles que se considerarem úteis e capazes.

    Obrigado por nos acompanharem.

  • Mais uma lição de jornalismo: tenham dó, mas não!, não! e mais não!; ‘isso’ não é ser jornalista

    Mais uma lição de jornalismo: tenham dó, mas não!, não! e mais não!; ‘isso’ não é ser jornalista


    Na noite passada, fui relembrar o texto integral do Código Deontológico dos Jornalistas. Convém sempre, mesmo que se tenha os princípios na ponta da língua. A tentação de transigir em determinados contextos – como sucedeu na pandemia desde 2020, e agora ocorre com a nova invasão da Rússia à Ucrânia – é sempre muito elevada. Os jornalistas são humanos, emocionam-se, agem como humanos.

    Começa logo assim o dito Código, no primeiro ponto:

    “O jornalista deve relatar os factos com rigor e exatidão e interpretá-los com honestidade. Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso. A distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público.”

    Há mais 10 “mandamentos”, alguns deles redundantes, mas dois são fundamentais, e obrigam-me mesmo a invocá-los por imperativos de consciência, e como instrumento, enfim, talvez inglório, para defesa de um jornalismo independente. E quando falo de independência não pode significar dependência das vontades circunstanciais, e por vezes caprichosas, dos leitores.

    books over green trolley bin

    [Tem sido, aliás, muito interessante observar que alguns, felizmente muitíssimo poucos, dos meus leitores não compreendem o significado de “jornalismo independente”, reivindicando mesmo que lhes devolva pequenos donativos ao primeiro sinal de desagrado sobre algo que surge no PÁGINA UM. É, em escala micro, aquilo que sucede na imprensa mainstream, mas com entidades económicas e financeiras de muito maior relevo.]

    Num desses “mandamentos” fundamentais refere-se “o jornalista deve combater a censura e sensacionalismo”, enquanto no outro se recomenda que “o jornalista deve lutar contra as restrições no acesso às fontes de informação e as tentativas de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar”, acrescentando ainda ser sua “obrigação (…) divulgar as ofensas a estes direitos.”

    Neste contexto, é uma regra sem excepção: um jornalista jamais pode aceitar a existência de qualquer tipo de censura, mesmo se dirigida a terceiros, mesmo se alegando benefícios para um evidente bem comum.

    Nem que seja porque o bem comum é conceito difuso e escorregadio, geralmente definido pelo poder. Ora, a ética é a alma do jornalista; e não há bem comum que justifique um apoio à censura, seja qual for o “tipo” que a impõe, seja qual for o tipo e circunstâncias da sua aplicação.

    Sejamos claros: nenhuma censura é boa; nenhuma ditadura sobrevive sem censura; nenhuma democracia vive com censura.

    Mas o Código Deontológico nem deveria ser necessário: bastaria uma dose de bom senso e equilíbrio, para um jornalista ser aquilo que deve ser: isento, rigoroso, buscando a verdade, sem tomar aprioristicamente partido de um lado, sobretudo em conflitos. Sobretudo nestas últimas circunstâncias, e no conflito russo-ucraniano, não deve um jornalista comportar-se como um adepto de futebol, ou como um comentador na passadeira vermelha da feira das vaidades.

    Vou ser mais concreto.

    Parece por demais evidente que, no conflito russo-ucraniano, Putin é o agressor, independentemente das causas, que, em todo o caso, num trabalho jornalístico, devem ser sempre enquadradas. E é ele também um agressor violento, que merece forte e evidente reprovação – e eu, como jornalista, separando de forma clara (e muito clara mesmo) a opinião da notícia, posso e devo dizer que ele é um criminoso.

    I want you for U.S. Army

    Porém, tanto na opinião como na notícia, um jornalista deve trabalhar “com rigor e exactidão”, e não serve de desculpa não o fazer “só” porque Putin é um facínora.

    Um jornalista não é um cidadão comum.

    Alguns, esquecem-se.

    Muitos leitores, também.

    Um jornalista não é um simples adepto, que observa, relata, instiga as hostes em função de um objectivo: a vitória da sua facção. Um jornalista não serve facções: é um relator e um árbitro dos acontecimentos. Não tem sequer de intermediar nem influir nos acontecimentos, nem deve.

    O jornalista não é um agente dos acontecimentos, e daí que deve fazer um esforço suplementar para não ser instrumentalizado, nem instrumentalizar os leitores – como, aliás, se observou durante a pandemia que, por certo, não teria “terminado” assim tão de repente se não fosse o conflito russo-ucraniano.

    Numa guerra, a informação e a propaganda confundem-se, muitas vezes. Se houver censura ou condicionamento psicológico – fruto de um sentimento intenso de pertença ou afeição incondicional –, e o jornalista se deixar levar na onda, perde a sua independência e objectividade, e o seu trabalho descamba facilmente para a propaganda.

    Pode não ser intencional, mas se um jornalista não for zeloso na verificação de factos, no rigor da informação que transmite, porque enfim a “Rússia é a má da fita”, abre uma caixa de Pandora. Se uma parte que procura manipular o jornalista – e não sejamos ingénuos, mesmo em tempo de paz e assuntos mais comezinhos, as fontes sempre procuram levar água aos respectivos moinhos – observar que consegue uma primeira vez passar propaganda como notícia, e mesmo sendo “apanhado”, continua a ser aceite, jamais deixará de fazer propaganda. Mentirá, porque a mentira passará por verdadeira; a verdade será a mentira.

    A propaganda, diga-se, faz parte das regras do jogo – e, por vezes, cai-se na esparrela –, mas um jornalista que entre num jogo onde voluntariamente sabe que está a participar na propaganda, deixa de ser jornalista. Deixa de fazer notícias. E isto não é uma notícia que eu esteja a dar-vos, embora devesse ser: é claramente a minha opinião, que deveria levar a uma reflexão qualquer jornalista.

    A coragem no jornalismo não se mede apenas em percorrer estradas sem nexo nas imediações de um “teatro de guerra”, mas, sim, também em enfrentar poderes instalados, em investigar e escrever sobre assuntos delicados, mesmo quando se pode sair prejudicado na sua imagem e na sua vida – ou perdê-la mesmo – por mor da sua independência.

    person in blue denim jeans and orange backpack walking on street during daytime

    Isto também escrevo a propósito da “mensagem de solidariedade a congéneres ucranianas” feita pelo nosso (e meu) Sindicato dos Jornalistas, onde aliás se consulta o Código Deontológico. Acho bem uma mensagem de solidariedade, mas esta tem um “pecado capital”: denota um enviesamento incompatível com os princípios que atrás enunciei.

    Com efeito, é um erro e uma injustiça que os jornalistas ofereçam o seu apoio e solidariedade “apenas” aos jornalistas ucranianos; primeiro, porque não são os únicos potencialmente visados em conflitos armados – que já mataram, desde 1992, um total de 2.128 jornalistas e outros profissionais dos media, de acordo com o Committee to Protect Journalists (CPJ). Aliás, na verdade, o SJ está atrasado alguns anos: os jornalistas ucranianos já precisavam de ajuda pelo menos desde 2014, no decurso da invasão da Crimeia e dos conflitos em Donbass.

    [Sobre estes perigos, e as semanas que antecederam o actual conflito, aconselho vivamente a leitura destas breves entrevistas no CPJ aos jornalistas Anastasiya Stanko e Sergiy Tomilenko, este último que ocupa a liderança do União Nacional de Jornalistas da Ucrânia.]

    De facto, tanto ou mais que os jornalistas ucranianos, são os jornalistas russos independentes que mais apoio e solidariedade precisam – e de incentivo para não caírem na propaganda e para perseverarem na sua coragem. E não se diga que não há jornalistas independentes na fria Rússia, excepto se a memória for mesmo muito curta: no passado dia 10 de Dezembro foi entregue em Oslo o Prémio Nobel da Paz ao fundador e editor-chefe do Novaya Gazeta, Dmitry Muratov. Já se esqueceram do que ele passou, e os seus camaradas (termo usado entre jornalistas) para receber esta distinção? Se não se recordam, o PÁGINA UM relembra aqui.

    Sejamos mais uma vez claros.

    A Rússia não é, e muito menos foi antes desta invasão de Putin, um país para jornalistas independentes.

    A Rússia ocupa o 11º lugar no triste ranking da Global Impunity Index da CPJ relacionada com homicídios, raptos e aprisionamentos de profissionais dos media. Mesmo não havendo mortes de jornalistas desde 2017 – mas desde 1992 já caíram 58 e há sete desaparecidos há vários anos –, ao longo de 2021 contabilizam-se 14 presos (um recorde): Abdulmumin Gadzhiev, Aleksandr Dorogov, Aleksandr Valov, Alla Gutnikova, Armen Aramyan, Igor Kuznetsov, Ivan Safronov, Natalia, Vladimir Metelkin, Yan Katelevskiy, Osman Arifmemetov, Remzi Bekirov, Rustem Sheikhaliev, Vladislav Yesypenko – os quatro últimos na invadida Crimeia.

    Mensagem de solidariedade do Sindicato dos Jornalistas apenas às suas congéneres ucranianas.

    O público português pode até ignorar isto; um bom jornalista português não pode, não deve.

    Por isso, pasmo ao ver jornalistas, ou responsáveis na imprensa, a apoiarem (nem que seja pelo silêncio) a censura de órgãos de comunicação, e a incentivarem (nem que seja por omissão) a perseguição sobre aqueles que não seguem princípios maniqueístas, como se estivesse em causa um mero despique futebolístico, em que é obrigação de todos vestir a camisola do mais fraco, e se a não veste merece apupos (ou pior ainda) porque estará infalivelmente a favor do inimigo.

    São estes os tempos que temos, e a culpa é dos jornalistas, que até metem mais álcool para a fogueira.

    Isto não faz esquecer o essencial. Jamais questionei e questionarei o óbvio: a Rússia invadiu a Ucrânia, e está a cometer atrocidades terríveis. Mas o jornalismo não é isto que se tem visto. O jornalismo deve, pelo menos, agir como o russo Novaya Gazeta promete – e aparentemente está a cumprir: “seguir o derramamento de sangue no país irmão e continuar apresentando apenas factos verificados sobre os horrores da guerra.”

    É isto que “basta” o jornalismo fazer, e os jornalistas executar. Comecem por ler, por exemplo, a cobertura noticiosa do Novaya Gazeta sobre os conflitos – aproveitando, ademais, as boas traduções já feitas pelos browsers – ou este texto de hoje assinado por Dmitry Muratov e Beatrice Fihn em nome da Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares (entidade que recebeu o Prémio Nobel da Paz em 2017).

    Leiam, já agora, também, por exemplo, o excelente artigo de opinião de Julia Latynina, intitulado “Eles não mentem. Eles pensam assim”. Ou então o lúcido e pacificador artigo de opinião de Petr Shelishch, presidente da União dos Consumidores da Rússia. Ou uma análise muito interessante sobre o efeito da desconexão do SWIFT aplicado ao sistema bancário russo e suas implicações directas no quotidiano dos cidadãos daquele país. Ou este artigo do cineasta Vladimir Mirzoev. E tantos outros.

    E vejam onde há coragem, onde há jornalismo. Onde há esperança. Onde há gente também a precisar de ajuda e alento para combater a barbárie humana, mesmo se intentada por alguém da sua nacionalidade.

    Se acharmos que devemos censurar, estaremos ao mesmo nível de Putin, que começou já a encerrar órgãos de comunicação social classificando-os com “agentes de media estrangeiros”. Hoje foi silenciado canal televisivo Dozhd e a rádio Eho Moskvy. Reparem: o Novaya Gazeta não perdeu tempo a criticar esta medida. E continuará, talvez, até ser silenciada, se deixarmos que a censura até no Ocidente prolifere e seja defendida. A imprensa do regime e os jornalistas russos “dependentes” devem ter achado bem, presumo.

    Onde está, enfim, e por fim, a verdade, pergunto-vos?

    Estará em jornais independentes russos, como o Novaya Gazeta?

    Dmitry Muratov, editor-chefe do Novaya Gazeta, com a jornalista filipina Maria Ressa, na cerimónia de entrega do Prémio Nobel da Paz em Oslo, no dia 10 de Dezembro do ano passado (© Nobel Prize Outreach. Foto: Jo Straube)

    Ou estará apenas e só na imprensa ocidental?

    Naquela que, por exemplo, noticiava a chacina de 13 soldados ucranianos numa pequena ilha do Mar Negro – revelando mesmo que o presidente ucraniano os agraciaria com medalhas póstumas –, mas que, três dias mais tarde, anunciava que afinal estavam vivos, dando este volte-face acompanhada com uma mera menção de ser uma “actualização” à informação primitiva.

    Eu, por mim, fiz já uma escolha. Como jornalista e como leitor. Não quero censura, e quero apoio a todos os jornalistas. Sei serem escolhas pouco simpáticas nestes tempos continuamente distópicos. Mas se alguém quer ser simpático, não deve jamais querer ser jornalista independente. Está a mais. E a fazer mal às democracias.

  • Porque estando eu a 3.806,3 quilómetros de Kiev tenho raiva de Putin e medo de Helena Ferro de Gouveia

    Porque estando eu a 3.806,3 quilómetros de Kiev tenho raiva de Putin e medo de Helena Ferro de Gouveia


    Há uma grave tragédia na Ucrânia, à escala mundial, humanitária, política, geoestratégica, psicológica. Mais grave ainda por suceder no culminar de dois anos de uma pandemia que criou uma psicose colectiva – formatada por políticos, imprensa e indústria farmacêutica –, e que permitiu transformar um evento grave de Saúde Pública em prenúncio de um cataclísmico Armageddon vírico.

    Desde 2020, pasmo com a mudança das mentalidades, mesmo em espíritos abertos. Ressurgiu, como em sombrios tempos passados, um pensamento unívoco e dogmático, baseado num mundo maniqueísta: o altruísta e o egoísta; o bondoso e o maldoso; o santo e o pecador; o humano e o desumano; o anjo e o demónio; o imaculado e o hediondo; o generoso e o sovina; o insigne e o abjecto; o puro e o impuro; o elevado e o rasteiro; o herói e o vilão.

    Obviamente que, neste mundo, e desde que o mundo é mundo – que, neste contexto, se situa desde que o ser humano surge com as suas imperfeições –, há homens e mulheres egoístas, maldosos, pecadores, desumanos, demoníacos, hediondos, sovinas, abjectos, impuros, rasteiros, vilões. Porventura, ou “malventura” nossa, Putin será alguém que bem se encaixa em todas estas adjectivações. Se lhe faltar alguma, será, por certo, compensada por todas as outras.

    Porém, o maior problema do mundo nem é a existência de Putins – porque houve piores ou iguais em séculos passados (e não apenas Hitler), e os haverá em séculos futuros. E no futuro sobretudo se pensarmos que ele é único, e fruto de um acaso ou de um azar genético.

    Na verdade, a grande causa das piores desumanidades da Humanidade (lembremo-nos que a desumanidade é algo apenas dos humanos) foi a incapacidade colectiva em prevenir e precaver a existência desses maldosos, pecadores, desumanos, demoníacos, etc. – e, pior ainda, que estes fossem concebidos e crescessem na base, ou sob a assistência ou apatia, de pessoas que até se assumem como altruístas, bondosas, santas, humanas, anjos, imaculadas, generosas, insignes, puras, elevadas e heróicas.

    Talvez uma leitura da Divina Comédia de Dante ajudasse a compreender os erros deste pensamento maniqueísta, mas se tal não for possível bastará a máxima popular, “de boas intenções está o Inferno cheio”.

    Desse modo, colocar o conflito russo-ucraniano – ou, para se ser mais rigoroso, a invasão da Rússia à Ucrânia, porque é disso que se trata – numa esfera simplista, maniqueísta, é esquecer tudo aquilo que sucedeu antes. Até porque esquecer o que aconteceu antes impede compreender o que está a suceder. E o que mais virá.

    Para que não seja uma interpretação minha dos acontecimentos, cito a excelente base de dados do Departamento de Pesquisa da Paz e Conflitos da Universidade de Uppsala, para termos presente o que tem sido a Rússia das últimas três décadas:

    “Após o colapso da União Soviética, a recém-criada Federação Russa reprimiu uma tentativa de golpe das forças parlamentares em 1993. Também lutou contra movimentos pró-independência no norte do Cáucaso. No contexto do conflito na Chechênia, iniciado em 1994, o Governo russo usou violência unilateral em grande escala. As brutais guerras chechenas contra a República Chechena de Ichkeria arrastaram-se até 2007, quando o líder da República Chechena de Ichkeria declarou o estabelecimento do Emirado do Cáucaso. No final de 2015, o grupo estava praticamente extinto, com seus membros mortos ou capturados pelas forças de segurança, ou desertando para se juntar ao Estado Islâmico em seu conflito para estabelecer um Estado Islâmico no Cáucaso, que ainda está em andamento como uma insurgência de baixa intensidade.

    Os governos da União Soviética e da Federação Russa também forneceram apoio secundário de guerra a vários governos e grupos não estatais na sua esfera de interesse. Tais conflitos incluíram: Irão (1946), Coreia (1949–1953), Tajiquistão (1993–1996), Afeganistão (1979–1988 e 2001), Ucrânia (a partir de 2014 até à actualidade) e Síria (a partir de 2015 até à actualidade)”.

    Ou seja, Putin não saiu assim do nada, de repente, de forma surpreendente.

    Os conflitos da Ucrânia, associados à Rússia, também não. Não começaram este mês. Se não antes, começaram pelo menos em 2013, nos protestos pacíficos (EuroMaidan) em Kiev que, depois causaram a morte de 88 pessoas entre Janeiro e Fevereiro do ano seguinte.

    Sucederam-se depois com a anexação da Crimeia, e com as intermináveis lutas na região de Donbass, que constituíram uma consequência directa da viragem da Ucrânia para o Ocidente, com a participação activa da Rússia.

    Os dados da sueca Universidade de Uppsala, do departamento acima citado, ajudam-nos, tristemente, a compreender o caminho até aos dias de hoje, apenas pelo registo detalhado dos eventos e número de baixas nos últimos sete ou oito anos: Donetsk e arredores, 2.618 mortos, Horlivka 140, Debaltseve 238, Volnovakha 720, Ilovaisk 601, Mariupol 200, Hrabove 2.215, incluindo o abate de um avião civil da Malasya Airlines com 298 passageiros e tripulantes, em 17 de Julho de 2014. Os quatro suspeitos, actualmente a serem julgados à revelia na Holanda, têm óbvias ligações à Rússia.

    Desde a Crimeia – ou mesmo antes disso –, a Rússia de Putin apenas “sofreu”, como consequência mais nefasta, deixar de ser convidada para as reuniões do G7. Ninguém quis perceber o que estava por detrás da decisão de Putin em descartar há três anos, por completo, uma readmissão a estas reuniões dos orgulhosos países com as economias consideradas mais desenvolvidas do Mundo.

    Desdenharam Putin e a Rússia: os livros de História estão cheios de ensinamentos passados sobre o que, em muitos e trágicos casos, resulta disto.

    Porém, há quem faça agora de conta que não se estava a ver crescer o “papão”; na verdade, a fazer crescer o “papão”. E que muitos contribuíram para aguçar a vontade do “papão”.

    Os supostos e autodenominados altruístas, os bondosos, os santos, os humanistas, os anjos, os imaculados, os generosos, os insignes, os puros, os elevados e os heróis – que assobiaram anos a fio para o ar, enquanto concordavam com os negócios e investimentos da Rússia, aceitando-os como cidadãos de visto gold, graças a investimento sujo, com homicídios e perseguições de Estado –, surgem agora como paladinos da democracia e da paz. E contra o Mal, corporizado em Putin.

    Putin é o Mal, sem dúvida. Mas não está sozinho. E, pior, do lado do suposto Bem, está outro mal.

    [escrito em minúsculas para que não se queira interpretar, hélas, que estou a colocar tudo ao mesmo nível]

    O mal (em minúsculas) está naqueles que agora, céleres, rotulam quem diz “mas” – como já tinham feito durante a pandemia com quem colocava críticas à gestão política – com epítetos, impondo um pensamento único.

    person holding umbrellas on road at daytime

    Hoje, cada vez mais se nota, que quem disser um “mas” ao conflito da Ucrânia, não seguindo a lógica dos demais, corre o risco de ser olhado de soslaio, de ser ostracizado e renegado.

    Eis aquilo que agora temos, enfim, em democracias: paladinos do maniqueísmo. São pessoas que, aproveitando circunstâncias especiais, de emoção, de forte cunho psicológico e atrelados à Comunicação Social – que vê agora a crise ucraniana com o mesmo apetite por clickbaits que usou na pandemia –, promovem em cada indivíduo um futuro sacerdote dogmático.

    Um povo que só veja preto e branco, que assimila uma linha narrativa única, sem investigar nem questionar. Obediente.

    É esse o nosso mal, que pode medrar até ter um M maiúsculo disseminado por todo o Mundo.

    São esses perigosos e nefastos paladinos do maniqueísmo, que encontramos na nossa imprensa, de que o expoente, não sendo isolado, é Helena Ferro de Gouveia, uma persona que se fez administradora caída do céu na Lusa, a agência noticiosa do Estado português.

    Ver alguém como ela, a defender num país democrático (e como fez ontem na CNN Portugal), o condicionamento da informação – hoje da Rússia, amanhã, se calhar, cá de dentro, desde que fuja da narrativa oficial –, porque “nem toda a gente tem capacidade e o conhecimento e a literacia mediática para poder desconstruir” uma determinada narrativa externa, é de uma extrema perigosidade para um português, para um democrata, para uma democracia.

    Na verdade, estando eu a 3.806,3 quilómetros de Kiev, as palavras de Helena Ferro de Gouveia – e de muitos e muitos outros que, na imprensa, defendem as suas teses, incluindo muitos jornalistas – têm trejeitos de Putin.

    E têm, porque são estas posturas anti-democráticas, censórias, que alimentaram poderes como os de Putin, que se impôs na Rússia enquanto implantava, em simultâneo, supostas medidas para o Bem Comum contra um “inimigo externo”. E eliminando opositores, em sentido figurado ou literal.

    brown tree trunk on brown rock

    As palavras de Helena Ferro de Gouveia não são balas nem mísseis, mas corroem uma democracia, sobretudo porque nem são irrealistas. São exequíveis – e foram mesmo agora aplicadas em sites noticiosos (mesmo se propagandísticos da Rússia) –, até porque socialmente aceites em contextos como os que vivemos há dois anos.

    Saibamos compreender que a ausência da democracia pode não matar já, como as balas na Ucrânia. Mas mata a prazo. Aliás, como se constata pela invasão decidida por Putin, só possível porque Putin conseguiu manter-se mais de duas décadas no poder de um país com eleições mas nunca sendo um democrata. E conseguiu porque começou por impor uma imprensa condicionada e restrições de acesso à informação.

    Ora, Helena Ferro de Gouveia trata de nos dizer que, em Portugal e no Ocidente democrático, a imprensa e a informação devem também estar condicionadas a uma narrativa – aliás, como já esteve durante a pandemia.

    E isso é dramático.

    Contudo, também muito mais facilmente resolúvel: basta demiti-la da administração de uma agência noticiosa pública, e deixá-la, enfim, manifestar as suas parvoíces antidemocráticas nos canais que lhe derem acolhimento.

    Se se fizer isso, pelo menos ficaremos um pouco mais afastados de termos sósias de Putin no mundo ocidental. O mundo não ficará perfeito, como nunca foi, mas um pouco menos imperfeito.

  • Difícil é mobilizar portugueses para salvar Portugal

    Difícil é mobilizar portugueses para salvar Portugal


    Não pode ninguém decente com o mínimo espírito humanista e civilizacional aceitar as atrocidades perpetradas pelas tropas russas a mando de Vladimir Putin nem tão-pouco considerar que estas se devem, em exclusivo, às suas paranoias, à sua maldade e aos seus sonhos de czarismo.

    O Mundo, e as suas guerras, nunca foram coisas simples nem fáceis de explicar, nem de entender. E quem conheça um pouco de História saberá, ainda mais no Leste da Europa, que batalhas sanguinárias se fizeram por aspectos bem mais comezinhos do que certo país não apreciar que um seu vizinho, ainda mais “irmão”, ande em namoros com quem não aprecie, neste caso os países da NATO. Foi por razões de fé (religião), por disputas de famílias, por traição, por desaforo, por dinheiro, por coisas mundanas e do Mundo, humanas.

    people gathering on street during daytime

    Aliás, convém recordar que se Olivença se perdeu para Espanha – ainda hoje não oficialmente reconhecido por Portugal – foi por razões de alianças: o nosso país recusou aceitar em 1801 aliar-se à Espanha e França contra a Inglaterra, nosso parceiro histórico. A Guerra das Laranjas seria mesmo o prenúncio das invasões napoleónicas anos mais tarde.

    Em todo o caso, não pretendo aqui, e agora, tecer grandes considerações sobre a génese e as razões e desrazões do conflito russo-ucraniano, excepto considerar que a única solução, para evitar um banho de sangue ou um recrudescimento para um nível de guerra mundial, seja a via negocial.

    Por muito que nos custe, nas actuais circunstâncias – e isso já sucedeu milhentas vezes –, a via militar maciça para fazer recuar a Rússia de Putin parece a pior solução, mesmo sendo aquela que nos mais reconfortaria a consciência e o coração.

    person raishing his hand

    De igual modo, as sanções prometidas e em execução – desde censurar pessoas da Cultura pelo “crime” de serem próximas de Putin até “expulsão da Rússia do sistema bancário internacional SWIFT (que afectaria tanto aqueles países como todos os negócios do “lado bom” –, não parecem ser instrumentos muito eficazes para uma solução pacífica.

    Derrotar Putin agora é virtualmente impossível; e a prazo apenas através de uma guerra fraticida; e não é isso que ninguém deseja (e se for não está do “lado bom”). Por isso, a solução é fazê-lo sair com uma aparente vitória.

    Mas, perguntam, quem sou eu, no meio deste enorme conflito internacional, para tecer estas considerações?

    Ninguém.

    E é exactamente por isso que escrevo este texto. Num conflito desta natureza, mesmo em países ditos democráticos, valemos cada vez menos – e muito por nossa culpa -, até porque, nos últmos tempos, deixámos que os movimentos sociais e a contestação pública fossem ostracizados e maltratados.

    Veja-se, aliás, como foram tratadas pela imprensa mainstream as contestações públicas à gestão da pandemia, entre o menosprezo e a colocação de rótulos, completamente descabidos, como sucedeu recentemente no Canadá.

    Por isso, olho agora para os apelos nos jornais e nas redes sociais, e pasmo com as campanhas de mobilização dos portugueses para a crise na Ucrânia.

    Por exemplo, o Expresso e o Público fazem eco dos movimentos ucranianos, e colocam mesmo ligações para donativos. Alguns desses financiamentos aparentam servir para a compra de armamento, e não propriamente para acções humanitárias. E pasmo. É esta a função da imprensa portuguesa?

    O politólogo Nuno Rogeiro faz um apelo para um “cordão humano pela Paz na Ucrânia”, insistindo para que “não fiques em casa a ver a guerra na TV; intervém, vem para a rua pela PAZ”. E eu pergunto: é essa a função de um comentador português de política?

    A Juventude Socialista (JS), a Juventude Social Democrata (JSD), a Juventude Popular (JP), o Livre, a Iniciativa Popular e o Partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) juntam-se para organizar amanhã uma manifestação pela paz e contra a invasão da Ucrânia em frente à embaixada da Rússia. E eu pergunto: é esta a função das juventudes partidárias e dos partidos políticos?

    E eu respondo, já: é (com excepção de apelos para armamento da “resistência” ucraniana).

    grayscale photo of man and woman holding hands

    Também é.

    Porém, lamento que esta capacidade de mobilização, este direito à indignação, esta demonstração colectiva de repúdio seja “apenas” para este tipo de causas. Para as causas boas, para as causas politicamente consideradas boas; contudo, boas sobretudo para as consciências, mas irrelevantes, hélas, para o desenrolar do conflito russo-ucraniano.

    Não é no “tabuleiro das ruas” de Lisboa ou de qualquer outro lugar do mundo ocidental que se encontrará uma solução.

    De facto, esta mobilização pela Ucrânia faz-me também olhar para o nosso país. Infelizmente, não se vê, em Portugal, este tipo de atitude activa e proactiva, militante mesmo, para outras necessidades domésticas : para uma Justiça melhor; para uma Educação melhor; para um Serviço Nacional de Saúde melhor; para uma Economia mais justa; para um investimento sério na investigação e uma maior penalização da corrupção; para uma gestão política mais equitativa e justa; para uma maior participação pública nas estratégias de investimento; para um país que adopte políticas não discriminatórias; para um melhor país.

    Para isso, não vejo jornais mobilizados, comentadores mobilizados, partidos e suas juventudes mobilizadas, pessoas mobilizadas para um “cordão humano”.

    E, contudo, ao invés daquilo que sucederá com tudo aquilo que os portugueses fizerem e disserem sobre a Ucrânia – incluindo o português António Guterres na ineficaz Organização das Nações Unidas –, porque no xadrez político tudo isto será irrelevante, se tivéssemos em Portugal metade da ora mobilização, porventura teríamos uma melhor democracia, vidas mais felizes, umas quantas salvas, por certo.

    Mas isso parece ser irrelevante. Por norma, preferimos lutas para descansar consciências – porque estamos afastados dos problemas – às lutas pelos nossos verdadeiros direitos, porque nessas lutas os “inimigos” estão próximos, e podem ficar chateados connosco.

    É muito mais fácil mobilizarmos portugueses para salvar a Ucrânia do que para salvar Portugal.

  • Dos ataques à liberdade de imprensa: o caso da Ordem dos Médicos vs. Página Um (e a sua investigação às farmacêuticas e à pandemia)

    Dos ataques à liberdade de imprensa: o caso da Ordem dos Médicos vs. Página Um (e a sua investigação às farmacêuticas e à pandemia)


    Por indicação da Ordem dos Médicos – e à laia de argumento por uma queixa minha à Comissão de Acessos aos Documentos Administrativos (CADA) pela recusa daquela associação profissional de direito público em ceder acesso aos documentos sobre um donativo da Merck no valor de 380.000 euros –, uma sociedade de advogados, com procuração do bastonário Miguel Guimarães, lançou-me um ataque pessoal ao longo de sete páginas. Tive apenas hoje acesso integral a este ofício, porquanto antes somente surgiam pequenos extractos num parecer da CADA que me foi favorável.

    O ofício integral escrito em nome da Ordem dos Médicos pode ser consultado AQUI.

    Poderia isto ser visto apenas como um ataque pessoal, mas dá-se o caso de eu ser jornalista e de esse ataque pessoal ser feito em consequência, e apenas por causa, de actos no exercício da actividade de um jornalista: solicitação de acesso a documentos públicos a uma associação de direito público, pedido de informação e escrita de trabalhos informativos.

    Há sempre formas para “justificar” estas atitudes da Ordem dos Médicos, incluindo que eu sou um “ista” daquilo ou daqueloutro, mesmo não sendo verdade, mas procurando que os outros pensem que seja. Temos visto isso mesmo, nos últimos dois anos, e mesmo no meio jornalístico.

    Ora, para mim, queira-se ver isto da perspectiva que se queira, é pura tentativa de silenciamento, intolerável numa democracia, da Liberdade de Imprensa. Estamos perante um ataque à liberdade de expressão, estamos perante uma soez ofensiva aos direitos a uma imprensa independente, consagrada na Constituição da República.

    Não é pouco, sendo feita por uma ordem profissional representativa de uma classe prestigiada como são os médicos; e executada por advogados.

    Primeira página do ofício em nome da Ordem dos Médicos enviado à CADA (ver aqui o texto integral)

    No ofício desta sociedade – A. de Freitas Gomes e Inês Folhadela Sociedade de Advogados R. L. – enviado à CADA, além da acusação de eu estar, “desde há vários meses”, a “adotar um comportamento suscetível de integrar a prática de crimes para com a Ordem dos Médicos, o Bastonário Dr. Miguel Guimarães e alguns dos Médicos seus membros” – mas não identificando as normas do Código Penal que estarei a violar –, o advogado signatário (de assinatura ilegível) insinua sistematicamente de eu estar a agir com interesses inconfessáveis, e mesmo de pretender “instrumentalizar a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos para atingir os [meus] objectivos”.

    E insinua também sistematicamente de eu mentir e de usurpar funções de jornalista, solicitando mesmo que a CADA “se digne oficiar a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista para informar a partir de que data, no presente ano [2021], o Sr. Pedro Almeida Vieira ‘recuperou’ a sua carteira profissional de jornalista”.

    Além disso, fazendo sistematicamente alusões desrespeitosas às minhas legítimas pressões num Estado de Direito e democrático para obtenção de documentos de carácter público – que a Ordem dos Médicos continua sem facultar, mesmo após parecer favorável da CADA às minhas pretensões –, a dita sociedade de advogados a mando da Ordem dos Médicos requereu também à CADA que considerasse “abusivos os pedidos formulados pelo Sr. Pedro Almeida Vieira”.

    Ou seja, a Ordem dos Médicos pretendeu que eu, como cidadão e jornalista, e por decisão da CADA, ficasse excluído de exercer direitos como jornalista e como cidadão, de poder solicitar informação e documentos à Ordem presidida pelo Sr. Miguel Guimarães.

    O ofício da sociedade de advogados a mando da Ordem dos Médicos também expõe os apelos que fui fazendo, nas redes sociais, ao apoio financeiro necessário à criação e consolidação do PÁGINA UM, numa lamentável tentativa de depreciar o meu trabalho e de menorizar a minha independência e rigor.

    Não tenho muitos comentários a fazer nesta matéria, mas não posso deixar de fazer duas breves considerações.

    black and gray wireless microphone

    Primeiro: pessoalmente, já recebi telefonemas de empresas de marketing a trabalhar para jornais nacionais (e.g., Público e Expresso), tentando convencer-me a fazer uma assinatura ou a renovar assinaturas outrora por mim anuladas, e considero isso legítimo; e, neste contexto, não tenho memória da Ordem dos Médicos andar a criticar estratégias de comunicação, nem me parece que, entre as suas competências, ou atributos do Sr. Miguel Guimarães, se incluam a análise de estratégias comerciais de entidades, como o PÁGINA UM, registadas na Entidade Reguladora da Comunicação Social. Sempre poderei acrescentar que o PÁGINA UM opta por fazer apelos ao apoio financeiro dos leitores para, desse modo, não ter de recorrer a publicidade institucional ou privada, por considerar que poderiam condicionar a acção. São opções legítimas.

    Segundo: faço notar que a Ordem dos Médicos, sendo uma associação profissional, está porém isenta de pedir apoios, de forma pública ou privadas, aos seus sócios para funcionar, porquanto, por imperativos legais, os seus sócios apenas podem exercer a profissão de médico se pagarem as devidas quotas.

    Este ofício em nome da Ordem dos Médicos , e no decurso de uma investigação jornalística, constitui mais uma prova de uma degradação do sistema democrático em Portugal, de uma inusitada mudança no paradigma das relações entre as instituições e a imprensa independente – que nunca foi popular, quando se pretende exercer um “jornalismo incómodo, irritante para os poderes, denunciador de injustiças, comprometido apenas com a verdade” (palavas minhas, destacadas pela sociedade de advogados a mando da Ordem dos Médicos como se fosse um “crime”).

    Antes, as pressões existiam, mas eram mais discretas e mantinham-se as relações cordiais. As instituições compreendiam o papel incómodo, mas essencial, do jornalismo. Agora, pessoas como o Sr. Miguel Guimarães não apenas não gostam de uma imprensa livre e de jornalistas independentes como mostram as pressões de forma clara, impetuosa, agressiva, ameaçadora, numa evidente tentativa de limitar e condicionar direitos da imprensa.

    Querem calar-me e não escondem já as suas intenções.

    Veja-se: perante um mero pedido de consulta de documentos administrativos à Ordem dos Médicos sobre um inédito donativo de 380.000 euros de uma farmacêutica para uma campanha que angariou 1,4 milhões de euros, e da qual não se conhecem documentos da sua gestão, aquilo que a sociedade de advogados diz à CADA é que o “Sr. Pedro Almeida Vieira age deliberadamente contra a Ordem dos Médicos, o Bastonário, alguns Médicos, e agora também, o Chefe de Gabinete, o que justifica que, quer a Ordem dos Médicos, quer todas as demais pessoas, não tenham que continuar a sujeitar-se a serem espezinhadas ou vilipendiadas na página do Facebook do Sr. Pedro Almeida Vieira que, quanto mais não seja, sempre poderia obstar a que comentários ofensivos do bom nome, honra e reputação das pessoas, fossem objeto das afirmações que lhes são dirigidas”.

    green and white typewriter on blue textile

    Faço, entretanto, notar que, como se pode confirmar AQUI (printscreen da extranet da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista), a minha carteira profissional foi revalidada com efeitos a partir de 16 de Setembro de 2021. Nunca antes dessa data, e posteriormente a 28 de Abril de 2011, quando solicitei suspensão temporária da actividade (que nem sequer seria necessário, porque tinha mais de 10 anos de profissão de jornalista, podendo assim mantê-la para todos os efeitos), fiz uso desse título em qualquer contacto pessoal ou institucional. Comecei a minha actividade jornalística em 1995, e tenho carteira profissional desde 1996, e tenho mais de 15 anos de profissão, conforme pode ser confirmado AQUI.

    Por todos estes motivos, e por ser orquestrado por uma instituição como a Ordem dos Médicos, e por ser executada por advogados – que têm o dever de conhecer e reconhecer leis e direitos constitucionais, e devem assumir que não vale tudo para defender os seus clientes –, enderecei uma participação à Ordem dos Advogados para as diligências consideradas pertinentes.

    Enderecei também uma carta à Entidade Reguladora para a Comunicação Social, à Provedoria da Justiça, à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e ao Sindicato dos Jornalistas para as diligências que considerarem pertinentes.

    E faço, obviamente, esta publicação. E esta denúncia

  • Ivermectinagate: que fazer com estes jornalistas?

    Ivermectinagate: que fazer com estes jornalistas?


    A CNN Portugal, através do jornalista-estagiário Henrique Magalhães Claudino (TP 886), adiante tratado por HMC, fez mais uma das suas, depois de em Dezembro me ter feito esta. E o pior é que, mais uma vez, foi seguido fielmente por outros media, como o Correio da Manhã, Público e Sábado, pelo menos.

    A “bomba” de HCM até parece possuir todos os ingredientes para um escândalo em redor da ivermectina, para um Ivermectinagate, igual ou pior ao Remdesivirgate, da Gilead, que ontem sugeri.

    Na suposta “bomba de HCM, temos um médico – António Pedro Machado – que, segundo o título da CNN Portugal, “defende antiparasitário de piolhos contra a covid-19 [e que] recebeu 224 mil euros da farmacêutica que o produz”.

    Contudo, não tem. Tem sim motivos suficientes, e demasiados, para nos benzermos sobre o estado da imprensa em Portugal, e, hélas, sobre a formação dos jovens jornalistas e sobretudo sobre a ética e a deontologia dos jornalistas seniores da chamada legacy media ou imprensa mainstream.

    Ivermectina, na sua versão original, da Merck Sharpe & Dohme.

    Vamos lá ver então como o suposto Ivermectinagate é, na verdade, sim, uma montanha a parir um camundongo – aqui mais apropriado do que um rato, por estarmos a falar de fármacos, dado este roedor ser comummente usado em ensaios clínicos.

    O título de HCM, na sua peça da CNN Portugal, daria logo para uma pergunta: mas qual farmacêutica?

    Mas, calma! HCM explica no corpo do seu texto: é a A. Menarini, uma farmacêutica italiana.

    HCM explica que “segundo a Plataforma de Comunicações – Transparência e Publicidade do Infarmed, na edição de 2021”, um evento organizado pela empresa detida por António Pedro Machado (Update em Medicina, Lda.) “recebeu 119.802 euros da farmacêutica A. Menarini Portugal”, uma sucursal do grupo italiano, acrescentando que “em 2020, este valor chegara aos 32.035,10 euros.”

    E diz ainda HCM que “o maior patrocinador em 2021” da Update em Medicina Lda. foi a A. Menarini Portugal.

    Henrique Magalhães Claudino (HMC), jornalista-estagiário da CNN Portugal.

    Primeira “argolada”, ou mesmo mentira de HCM: a A. Menarini não foi, na verdade, a principal empresa patrocinadora em 2021 da Update em Medicina Lda.: foi sim a portuguesa BIAL, que entregou 170.799 euros naquele ano.

    Um pormenor? Não.

    Na verdade, HCM omitiu que a Update em Medicina Lda. foi até pródiga em receber apoios de farmacêuticas para os seus cursos médicos. De forma directa, e sobretudo em 2021, a empresa de António Pedro Machado recebeu financiamentos de mais 20 empresas do sector farmacêutico, para além da A. Menarini Portugal.

    HCM omitiu, de igual modo, que estes apoios das farmacêuticas visavam também o pagamento de formadores dos médicos inscritos nos cursos organizados pela Update em Medicina Lda., muitos dos quais com a inscrição paga pelas mais diversas empresas deste sector.

    De acordo com o relatório e contas de 2020 (último ano fiscal), a Update em Medicina Lda. teve receitas de 499.087 euros e gastos com pessoal e serviços externos de 298.375 euros, acabando com um lucro líquido de 71.479 euros, após pagar 38.380 euros de impostos ao Estado.

    E por que razão não terá HCM gastado uma letra sobre tudo isto? Talvez porque sabia que lhe estragaria a tese: a de que António Pedro Machado – efectivamente um declarado defensor do uso de ivermectina contra a covid-19 – recebera dinheiro para fazer lobby a favor de uma empresa interessada em vender aquele produto.

    Montantes recebidos (em euros) pela Update em Medicina Lda. das farmacêuticas em 2020 e 2021. Fonte: Infarmed.

    Se HCM escrevesse que, por exemplo, na lista de patrocinadores da Update em Medicina Lda. encontra-se a Pfizer – que lhe concedeu apoios de 18.450 euros, em 2020, e de 12.300 euros, no ano passado –, a coisa soava estranha.

    De facto, sendo António Pedro Machado um suposto lobbista – na tese de HCM –, não faria então muito sentido que fosse um dos subscritores de uma carta aberta a pedir à Direcção-Geral da Saúde a suspensão das vacinas contra a covid-19 em crianças saudáveis, uma vez que estas são comercializadas pelas Pfizer.

    Teria a Pfizer “contratado” António Pedro Machado para fazer lobby ao contrário? Ou António Pedro Machado mostrou, ao co-assinar a carta aberta, a sua independência, criticando uma decisão política, a qual, havendo um recuo (suspensão da vacinação em crianças), prejudicaria uma empresa que o patrocinava?

    Nunca saberemos a interpretação de HCM.

    Mas mais curiosa, ou sintomática de patetice, ou sinal de má-fé ou de má formação (profissional e cívica), é ainda a tese de HCM de que António Pedro Machado estaria, com a sua defesa da invermectina, a ser “pago” pela A. Menarini, de modo a beneficiar a “Menarini Group, empresa que, na Índia, produz um medicamento à base de Ivermectina (o Ivecop), utilizado para combater infecções parasitárias do trato intestinal, da pele e dos olhos”.

    Além de HCM ignorar, enfim, o que faz a ivermectina – um fármaco que só por lamentável asnice pode ser olhado como um mero “antiparasitário de piolhos”; pelas suas potencialidades, já fez dois investigadores receberem o Prémio Nobel da Medicina em 2015 –, tudo isto encaixa numa tese estapafúrdia.

    Edição do Correio da Manhã de 10 de Fevereiro deste ano, um dia após a publicação da peça da CNN Portugal.

    E a tese é esta: uma empresa italiana “compra” um médico português, através da sua sucursal portuguesa, para que este faça lobby em Portugal e assim beneficie uma sucursal indiana que produz aquele fármaco, que nem sequer exporta para Portugal.

    Caramba!

    Bom, mas dirão que poder-se-ia dar o caso de haver interesse da A. Menarini em expandir negócio em Portugal, intento agora denunciado por este novo “Woodward & Bernstein português”, de seu nome HCM.

    Seria má ideia, garanto.

    Primeiro, porque a ivermectina em Portugal, se fosse negócio a expandir-se por conta da covid-19, tal já se tinha verificado, e nem sequer pela mão da A. Menarini.

    Em Portugal existe já uma autorização de introdução no mercado (AIM) obtida pela sucursal portuguesa da Laboratoires Galderma, uma joint-venture da Nestlé e da L’Oreal – que, aliás, nunca financiou a empresa de António Pedro Machado. É certo que essa AIM se aplica a uma pomada de ivermectina, para tratamento da rosáceas, mas se o negócio fosse assim tão florescente, por certo seria fácil usar o princípio activo para passar a produzir comprimidos.

    Na verdade, e isso já terá sido vislumbrado pelos leitores mais atentos ao longo deste meu texto (pelas fotografias que o acompanham), a tese de HCM é obtusa – e lamentável a forma acrítica, mais uma vez, como os outros jornais (re)pegaram no tema (o Correio da Manhã, inclusive, fez manchete) – sobretudo porque, enfim, a ivermectina nunca poderia fazer enriquecer a A. Menari nem outra qualquer farmacêutica na Índia, em Portugal ou resto do Mundo.

    Nem com mil Machados, mesmo se António Pedros, espalhados por todos os continentes e ilhas.

    Nem que agora se descobrisse que a ivermectina, afinal, tinha mesmo um efeito anti-viral contra a covid-19.

    Marcas de genéricos da ivermectina.

    Por um simples motivo: a ivermerctina não tem patente, sobretudo por via da disponibilidade, a partir de 1987, da Merck Sharpe & Dohme (MSD) em doar ivermectina para controlo de duas devastadoras e incapacitantes doenças tropicais: a oncocercose (ou cegueira dos rios) e a filariose linfática.

    Essas doações encaixam-se no Programa de Doação de Mectizan, nome pelo qual é mais conhecido este fármaco, sendo co-administrado com albendazol, também doado, mas pela GlaxoSmithKline (GSK). Este programa de beneficência é, aliás, a coqueluche (não do sentido de sinónimo de tosse convulsa) da indústria farmacêutica.

    Apesar disso, a MSD continua a comercializar a ivermectina para uso humano, sob a marca Stromectol – que pode ser usada para a sarna, incluindo a de jornalistas pouco atreitos a códigos deontológicos.

    Mas há mais multinacionais interessadas neste agora genérico. Para uso humano, encontramos a helvética Sandoz e as norte-americanas Abbott e Mylan. No continente africano também se identifica a sul-africana Aspen, que comercializa ivermectina sob a marca Ivermax. Portanto, já não é só a italiana A. Menarini!

    Porém, e na Índia? Como é?

    Ivecop, marca da ivermectina produzida pela A. Menarini India.

    Lamento, ou regozijo-me (?), imenso em informar HCM – e mesmo a Direcção Editorial do Público que fez um acrescento deplorável, de pedantismo ridículo e ignaro, ao direito de resposta de António Pedro Machado – que, além da Ivecop produzida pela A. Meranini Índia, temos por lá a vender ivermectina em comprimidos – preparem-se! – as seguintes farmacêuticas indianas: Abia Pharmaceuticals (sob a marca Ermect), Abod Pharmaceuticals (Abodmec), Agron Remedies (Iverag), Ajanta Pharma (Ivrea), Akumentis Healthcare (Ivervirl), Alicanto Drugs (Ivopi), Ankran Biotech (Iveran), Arlak Group (Aver), Bennet Pharmaceuticals (Isco), Biochemix Healthcare (Paranix e Tinbest), Biorex Healthcare (Ividoc), Blubell Pharma (Dinzo), Brinton Pharmaceuticals (Scabover), Canbro Healthcare (Ivercan), Canixa Life Sciences (Itin), Care Formulation Labs (Ivertac), Connote Healthcare (Scabivert), Cubit Healthcare (Iverise), Dellwich Healthcare (Vernt), Dermawin Pharmaceuticals (Ivel), Dewcare Concept (Vermin), Domagk Smith (Ivermect), Dr D Pharma (Ivercet), E Derma Pharma India (Iviturn), East West Pharma (Ivercid), Efedra Pharmaceuticals (Fedramect), Ethinext Pharma (Ivscab), Evans Healthcare (Evitin), FDC (Ivsit), Finecure Pharmaceuticals (Iverfine), Gary Pharmaceuticals (Imec H ), Genpharma International (Ivamer), Globetus Therapeutics (Globetin), Healing Pharma India (Iverheal), Helios Pharmaceuticals (I), Heramb Healthcare (Iverfast), Household Remedies (Hvtek), Ikon Remedies (Iverzide), Innovative Pharmaceuticals (Ivernex), Intra Life (Iverlife), Iris Biosciences (Iverhub), JB Chemicals and Pharmaceuticals (Ivernock), Johnlee Pharmaceuticals (Iverjohn), Kaizen Research Labs India (Zen Mectin), Kivi Labs (Jetta), Knoll Healthcare (Imrotab), Lakssha Pharmaceuticals (Ivelak), Macleods Pharmaceuticals (Iverhope e Ivernew), Macro Labs (Ivercop), Mankind Pharma (Iverkind, Vermact e Vermikind), Medichi Biocare (Iverchi), Mediispecs (Ivermed), Medishri Healthcare (Iverscan), Mefro Pharma (Verpin), Megma Helathcare (Votrin), Meridian Medicare (Mectin), Merion Care (Ly Mectin), Micro Labs (Vermectin), Nidus Pharmaceuticals (Nectol), Noel Pharma India (Iverwar), NuLife Pharmaceuticals (Iverscab), Oaknet Healthcare (Combactin), Olcare Laboratories (Avertol), Organic Laboratories (Ivory), Palson Derma (Orascab), Panzer Pharmaceuticals (Iverpan), Psychotropics India (Iverpil), Psyco Remedies (Iversol), Pulse Pharmaceuticals (Imectin), Remedial Healthcare (Iverdon), Roussel Labs (Iverwon), Rowan Bioceuticals (Scaberase IF), Rowlinges Life Sciences (Scabsafe), Santo Medi Sciences (Ivy), Satven and Mer Pharma (Iverin), Schwitz Biotech (Evert), Sigma Softgel and Formulation (Zeoriser), Sun Pharmaceutical (Ivermectol), Symbiosis Pharmaceutical (Iver, Ivernorm e Ivozol), Synergy Pharmaceuticals (Ecomectin), Systopic Laboratories (V Sys), Taj Pharma (Iverotaj), The World Wide Pharma (Wormectin), Tripada Biotech (Ivert), Will Impex Pharmachem (Impect), Wish Life Pharmaceuticals (Iverwish), Worth Medicines (Ectover), Zee Laboratories (Iroshell e Evertin), Zenlabs Ethica (Ivcol), Zuventus Healthcare (Scavista) e Zydus Healthcare (Iveloc e Ivertreat).

    Contaram todas? Não?! Eu digo então: são 92 empresas farmacêuticas, só na Índia, a produzir genéricos de ivermectina.

    A A. Meranini é apenas uma; só é mais uma; somente mais uma, o que a faz uma, mais as outras 91.

    photo of shouting horse under cloudy sky

    Será que o médico António Pedro Machado se “vendeu” para beneficiar a A. Meranini Índia e mais 91 farmacêuticas indianas para venderem um medicamento genérico?

    Teremos um Ivermectinagate? Ou apenas uma Ignorânciagate na nossa imprensa?

    Ah, e já agora, há mesmo uma loção para piolhos, sob a marca Sklice, contendo ivermectina. É produzida pela Arbor Pharmaceuticals, farmacêutica norte-americana. Para que HCM tome boa nota dessa informação. Pode precisar dela!


    Disclaimer: Nunca tomei ivermectina. Não tenho opinião formulada sobre os seus efeitos contra a covid-19, além do conhecimento da leitura de diversos estudos científicos que a colocam ainda com incertezas sobre a sua eficácia.

    Considero-a, porém, um fármaco milagroso (pela sua acção contra outras doenças) que não merecia a campanha “difamatória” feita pela imprensa mainstream.

    Não sou favorável à ligação de farmacêuticas com médicos que exerçam funções públicas (em hospitais do SNS, por exemplo). Julgo mesmo que a formação contínua dos médicos deveria ser uma actividade regulada e completamente financiada pelo Estado, independentemente de poder ser produzida por empresas não-farmacêuticas.

    Conheço e, salvo erro, falei quatro vezes com o médico António Pedro Machado no último ano, a última das quais em Janeiro, ou seja, antes do artigo de HCM.

    Para a elaboração deste texto não contactei este médico, e recorri à compra da Certidão de Contas Anuais, no portal do Estado, para aceder às contas de 2020, último ano fiscal, da Update em Medicina, Lda.. Para tal, foram gastos cinco euros.

    Para conferir os dados usados por HCM, recorri à consulta da Plataforma da Transparência e Publicidade, onde pode ser confirmado o seu erro relativo ao maior patrocinador da Update em Medicina Lda..

    Pensei e trabalhei para a pesquisa e execução deste texto.

  • Vacinas covid-19: um negócio da China visto pela bolsa de (falta de) valores

    Vacinas covid-19: um negócio da China visto pela bolsa de (falta de) valores


    Diz-se que a expressão “Negócio da China” surgiu a partir das viagens do famoso explorador italiano Marco Polo ao Oriente, durante o século XIII. Com as descobertas portuguesas, em particular no século XVI, após a descoberta da Rota do Cabo, o Oriente tornou-se mesmo um grande “Negócio da China”, atendendo às oportunidades de negócio altamente lucrativas, tão bem descritas no livro “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto.

    Para as principais farmacêuticas, em particular as que se dedicaram ao desenvolvimento de vacinas covid-19, os dois últimos anos foram um grande “Negócio da China”. Tudo começou com chineses a cair redondos no chão, acompanhados de gente vestida com indumentária Chernobyl – que se tornou muito popular na imprensa desde então –; depois, foram filas de camiões militares carregados de caixões no norte de Itália. O terror estava instalado. Entretanto, a Organização Mundial de Saúde (OMS) informava-nos da existência de uma “pandemia”: circulava um vírus chinês!

    Num ambiente crescentemente plangente e distópico, encerraram-nos em casa e impeliu-se a falência compulsiva de milhões de pequenos negócios. Ao mesmo tempo, surgia um teste para detectar o vírus chinês: o famoso PCR – o teste que, no final de 2020, até teve a sua fiabilidade posta em causa por sentença do Tribunal da Relação de Lisboa. Outras histórias.

    grayscale photo of statue of man

    Nesta pandemia tivemos uma absoluta novidade: antigamente, no caso de vírus respiratórios, bastava os sintomas e o bom senso para sabermos se estávamos doentes. Desde Março de 2020, tudo mudou. Para conhecermos o nosso estado de saúde, os Governos ordenavam que nos testássemos a toda a hora e entrássemos em quarentena apenas porque podíamos estar infectados mas assintomáticos, porque mesmo assim poderíamos infectar. O “poderia” sempre.

    Ao mesmo tempo, através de uma imprensa obnóxia, anunciavam-se milhões de casos positivos, instilando o terror em toda a população. Para os que acusavam positivo: prisão domiciliária sem um mandado judicial; a ordem de um conspícuo funcionário administrativo tornava-se suficiente.

    A degradação da nossa liberdade individual não terminou por aqui: obrigaram-nos a usar uma máscara em praticamente todos os lugares – sem uma cabal evidência científica que suportasse o seu uso universal –, que se designou pomposamente por equipamento de protecção individual (EPI).

    Mascarados, passámos a desconfiar uns dos outros; na nossa mente, quando olhávamos o próximo, dávamo-nos conta da existência de uma “pavorosa pandemia”. Mesmo nas ruas, livres e arejadas. O fim do Mundo aproximava-se!

    Apenas uma vacina podia salvar a Humanidade, garantiam-nos, apesar de há décadas não existir qualquer vacina suficientemente eficaz para doenças causadas por vírus respiratórios.

    Porém, no Novo Normal, numa questão de meses, enquanto tratamentos alternativos eram ocultados, apareceram diversas vacinas contra a covid-19, usando em diversos casos tecnologia inédita para seres humanos, e muitas dezenas de projectos, alguns de multinacionais farmacêuticas, ficaram pelo caminho. Designaram esta corrida contra o tempo por Warp Speed.

    3 clear glass bottles on table

    Em Abril de 2020, na Alemanha, a BioNTech, uma participada da Pfizer, realizou o primeiro ensaio clínico de uma vacina Covid-19, com tecnologia experimental mRNA. Apenas oito meses depois, no dia 2 de Dezembro, o Reino Unido, o primeiro país, autorizou a vacinação Covid-19 à sua população. Seguir-se-iam vários países, com destaque para os Estados Unidos, que emitiu a autorização de uso de emergência no dia 11 de Dezembro.

    Em resumo, em apenas oito meses, as farmacêuticas recebiam uma autorização de uso de emergência que as escudava de qualquer acção judicial e do pagamento de indemnizações, atendendo que não existiam quaisquer tratamentos alternativos certificados pelas autoridades – por essa razão, a ivermectina, por exemplo, foi um dos fármacos vilipendiados pela maioria da imprensa e autoridades de saúde. Ao contrário, outros, como o remdesivir, comercializado pela Gilead, foram “acarinhados” e comprados por muitos países, como Portugal, apenas dias antes de a OMS recomendar que não fossem usados em doentes-covid.

    A rapidez da aprovação das vacinas em contexto de emergência, mesmo para grupos etários onde claramente a covid-19 não constituía um perigo em pessoas saudáveis (e.g. crianças e adolescentes) manteve-se para todas as vacinas. Os Estados Unidos estão tão obcecados que se aprestam para vacinar até bebés.

    Mas vejamos como correu a “vida”, a partir de 2020, para as principais farmacêuticas, em particular para as envolvidas no desenvolvimento de vacinas covid-19, quer entre as comercializadas (e mais conhecidas) quer mesmo entre aquelas que ainda agora “nasceram” ou ainda se encontram em fase de ensaios clínicos.

    Podemos destacar, desde já, a Novavax, cuja vacina usa uma réplica da proteína S, sintetizada artificialmente do vírus, e que foi apenas aprovada na União Europeia em Dezembro do ano passado. Esta empresa norte-americana viu a cotação das suas acções em bolsa subir 2.450%! De 3,98 USD por acção para 111,51 USD por acção, num espaço de apenas um ano. Um investimento de 100 USD no final de 2019 valeria 2.550 USD no final de 2020.

    A Vaxart também subiu 1.386%, fruto do desenvolvimento de uma vacina oral para a Covid-19, ainda em fase de ensaios clínicos.

    Em particular nestas duas farmacêuticas, estas valorizações, ainda antes da sua comercialização, mostram o carácter especulativo em torno das vacinas, e que se estendeu às farmacêuticas mais conhecidas.

    Com efeito, a Moderna e BioNTech também participaram da festa: em 2020, a cotação das suas acções subiu 386% e 119%, respectivamente; tudo impulsionado por dinheiros públicos, na sua maioria provenientes da impressora de Bancos Centrais.

    Tudo isto foi muito estranho, atendendo que o desenvolvimento de uma vacina é um processo que demora entre cinco e 10 anos, segundo a insuspeita universidade John Hopkins, que taxativamente escreve o seguinte: “Um cronograma típico do desenvolvimento de uma vacina leva cinco a 10 anos, e às vezes mais para avaliar se a vacina é segura e eficaz em ensaios clínicos, concluir os processos de aprovação regulatórios e fabricar a quantidade suficiente de doses da vacina para ampla distribuição.”

    Isto era a Ciência antes de 2019: para certificar uma vacina como segura e eficaz, uma série de testes de longo prazo eram obrigatoriamente realizados. Este processo envolvia ensaios clínicos que abrangiam várias fases e estudos observacionais, envolvendo um grande número de indivíduos ao longo de períodos de tempo medidos em anos. Apenas 2% das vacinas propostas para aprovação superavam todos os testes. Hoje, nada disso acontece: as vacinas são consideradas seguras e eficazes ao final de oito meses.

    Anteriormente a 2020, mesmo após a aprovação formal, as vacinas continuavam debaixo de um escrutínio rigoroso, podendo inclusive serem retiradas do mercado, no caso do aparecimento de efeitos adversos, como foi o caso de diversas vacinas, como as contra os rotavírus e a doença de Lyme, entre outras.

    Com um processo de duvidosa credibilidade, entre o final de 2020 e Fevereiro de 2022, mais de 60% da população foi vacinada com injecções com aprovações em circunstâncias especiais, nunca antes assim concedidas. Com o negócio de vento em popa, 2021 foi novamente fantástico: Por exemplo, as cotações da BioNTech, Dynavax e Moderna subiram 243%, 243% e 164% respectivamente.

    Atentemos agora à evolução da capitalização bolsista destas empresas. Podemos observar que em 2020 e 2021 apenas 15 farmacêuticas registaram uma subida da sua capitalização bolsista superior a 300 mil milhões de Euros, 50% mais que o PIB português e cerca de seis vezes a capitalização bolsista de todas as empresas cotadas em bolsas nacionais.

    Destaque para a Pfizer, Moderna e Johnson & Johnson, que viram o seu valor em bolsa subir 99, 85 e 55 mil milhões de euros respectivamente.

    Em resumo: isto foi um opíparo banquete, servido pelos contribuintes da maioria dos estados ocidentais às farmacêuticas.

    Podíamos ainda aqui referir o fiasco da imunidade de grupo, que inicialmente, mas nunca alcançado, porque nenhuma vacina conseguiu eliminar a capacidade de a pessoa que a toma em transmitir a doença ou de ser infectada por outra pessoa, mesmo se vacinada.

    Podíamos ainda salientar os efeitos adversos das vacinas contra a covid-19, em dimensão nunca antes vista em outras, como se pode confirmar facilmente no OpenVAERS, e que deveria levar à aplicação dos princípios da prevenção e da análise de benefício-risco-incerteza.

    Ou poderíamos ainda destacar que a mortalidade atribuída à covid-19 durante o Verão de 2021, já com grande parte da população vulnerável vacinada, foi superior à contabilizada no Verão de 2020, ainda sem as vacinas.

    Ou poderíamos também acrescentar o efeito da Ómicron, uma variante mais transmissível, mesmo ou sobretudo entre os vacinados, mas com menor letalidade, pelo que a descida da mortalidade neste Inverno terá sido mais devido à singularidade da nova variante (menor agressividade por afectar sobretudo as vias respiratórias superiores) do que às vacinas.

    Mas depois de se ouvir aquilo que o “insuspeito” Bill Gates disse anteontem numa conferência na Munich Security Conference, está tudo dito.

    Atente-se às suas palavras, textuais: “Infelizmente, o próprio vírus, particularmente a variante chamada Ómicron, é um tipo de vacina. Ou seja, cria imunidade de células B e células T. E fez um trabalho melhor em chegar à população mundial do que as vacinas. Se pesquisar nos países africanos, algo como 80% das pessoas foram expostas à vacina ou a várias variantes. Isso significa que risco de doença grave, que está principalmente relacionada com a idade, obesidade ou diabetes, agora é drasticamente reduzido por causa da exposição à infecção. É triste, não fizemos um bom trabalho na terapêutica. Só daqui a dois anos teremos uma boa terapêutica. As vacinas levaram-nos dois anos para chegar ao excesso de oferta. Hoje há mais vacinas do que procura por vacinas. E isso não era verdade. Na próxima vez, em vez de dois anos, deveríamos tentar fazê-las em seis meses. Certamente, algumas das plataformas padronizadas, incluindo mRNA, nos permitiriam fazer isso. Levámos muito mais tempo desta vez do que deveríamos“.

    Nada acontece por acaso no mercado bolsista.

    E, por isso, não por acaso – e Bill Gates não será a única pessoa com bons conhecimentos antecipados –, desde o início de 2022 o mercado de capitais das farmacêuticas associadas à pandemia está a dar fortes sinais de que este processo de vacinação foi um absoluto desastre. Na verdade, que toda a estratégia política de gestão da pandemia foi um desastre absoluto.

    As quedas nas cotações das acções em bolsa da quase generalidade das farmacêuticas associadas às vacinas são disso prova. Podemos observar as quedas vertiginosas que se registam já no presente ano – até ao final da sessão de 17 de Fevereiro – da Moderna, Novavax e BioNTech: 43%, 42% e 39% respectivamente.

    Note-se que, por exemplo, uma empresa que suba 100% e depois tenha uma queda de 50%, volta à casa da partida, portanto atente-se à dimensão das quedas, em prazo tão curto.

    O descalabro tem sido de tal ordem, que o CEO da Moderna, Stéphane Bancel, vendeu há dias 10 mil acções na sua posse, por um valor equivalente a 1,6 milhões de euros. Trata-se do clássico rato a abandonar barco em pleno naufrágio; mas, neste caso, o flibusteiro transporta o tesouro consigo. O que mais se poderia chamar a este saque?

    Veremos os próximos tempos, os próximos episódios.

    Se ninguém da Justiça intervir, haverá, por certo, muitos mais que entraram bem no negócio, e que agora não querem sair mal na fotografia.

    Gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário

  • Como os jornalistas podem acabar com manifestações e com a democracia, e eu não quero

    Como os jornalistas podem acabar com manifestações e com a democracia, e eu não quero


    Durante mais de duas semanas, acompanhei com detalhe, mesmo se à distância, através de vídeos, da análise das redes sociais, das notícias de todo o tipo de imprensa, as manifestações do Freedom Convoy.

    Acompanhei-as com a visão de jornalista, mas também analisando o próprio trabalho dos jornalistas, na forma como tratavam ambas as partes em confronto: os protestantes e as autoridades.

    Nem sequer vou falar muito da cobertura da imprensa mainstream portuguesa, porque dela não rezará a História – e se rezar, não será por boas razões -, mas da cobertura internacional, incluindo a canadiana.

    Os protestos, como se sabe, decorreram durante quase 20 dias num confronto sobretudo de palavras. Perante a invasão dos camionistas das ruas de Ottawa, e de outras partes do Canadá, o Governo de Justin Trudeau respondeu sempre com acusações de se estar perante uma minoria extremista e violenta.

    E a imprensa relatava, e até aqui, tudo bem. A posição de uma autoridade é, em si mesma, uma notícia.

    Porém, com honrosas excepções, jamais observei os media tentarem confrontar a validade de muitas das acusações governamentais contra os manifestantes, desde a alegada violência até à presença massiva de extremistas, passando pelas ligações a Trump ou ao QAnon, e a interesses nunca bem explicados ao estrangeiro.

    Acolhendo como completamente verídicas as acusações do Governo, que sempre recusou dialogar com os porta-vozes dos manifestantes – o que não me parece algo muito democrático num país com os pergaminhos do Canadá -, os jornalistas permitiriam sim a radicalização da postura de Justin Trudeau.

    Primeiro, pressionando a plataforma GoFundMe para suspender a angariação de fundos (mais de 1o milhões de dólares canadianos), e depois dando ideia de todos os doadores (mais de 120 mil) estivessem a proceder à lavagem de dinheiro ou a financiar actos terroristas. E, por fim, criando o cenário político e social para a implementação de uma lei de emergência, que basicamente passa por dar direitos especiais aos governantes, retirando direitos aos governados. Basicamente, suspende-se a democracia, que é o que tem estado a suceder desde Março de 2020.

    Não tenho dúvidas algumas da elevada probabilidade de existirem, no meio dos protestantes, e até de algumas das suas figuras proeminentes, algumas pessoas com ideologia pouco recomendável. Porém, vai uma grande distância entre identificar, num movimento de cidadãos pacíficos, umas quantas pessoas dessa índole – mas não as vi em actos desordeiros, nem vislumbrei imagens de violência dos manifestantes, gravadas pelas autoridades, que seriam as mais interessadas em apresentar provas desses actos – e considerar, desde logo, que estamos perante manifestantes que devem ser difamados, vilipendiados e escorraçados.

    Comecei sim, a ver, mais de duas semanas após o início dos protestos, uma violência de Estado – sim, bem sei que a pandemia alimentou os “instintos” de muitos em se castigar fisicamente quem de si discorda -, com operações policiais musculadas e com detenções apenas porque as pessoas, ali estão, a manifestar-se. E a incomodar.

    Ver-se-á, nos próximos dias, nova descarada tentativa de “criminalizar” junto da opinião pública as pessoas que vão sendo detidas, colando-as a determinadas “linhas ideológicas”, para, assim, desmobilizar os milhares e milhares de protestantes que ali estão, apenas (e já é muito) a lutarem pela sua liberdade, pela racionalidade, pela justiça, pelos seus direitos.

    Essa desmobilização será um terrível perigo, porque, a ocorrer, será um ensinamento para “governos democráticos” sobre um método eficaz de calarem manifestações futuras, quaisquer que sejam a causa e a razão. Basta que digam, e que seja essa mensagem propalada pela imprensa “amiga”, que os manifestantes são isto, e aquilo, e mais aqueloutro.

    Não quero, pessoalmente, como democrata, ver o meu direito de manifestação ou de opinião coarctado apenas porque, num determinado assunto ou movimento, está alguém que ideológica e/ou pessoalmente não merece a minha simpatia, e que em tudo resto, e em questões essenciais, se encontra nos antípodas das minhas posições.

    Por exemplo, para concretizar: durante a pandemia, não comunguei muitas opiniões, que considero infantis ou desprovidas de compostura e de Ciência, como aquelas que negavam até a existência do vírus e da doença, e o grau de gravidade em determinados grupos mais vulneráveis, mas isso jamais me impediu de contra-atacar a Narrativa Oficial baseada em manipulação de dados, na subversão dos princípios da Ciência, em alimentação de pânico e na promoção da discriminação.

    Sofri, e ainda sofro, dessa “ousadia”, e o próprio PÁGINA UM sofre e sofrerá desse lamentável estigma, que mostra mais a natureza de quem acusa do que a minha. Bem, na verdade, também mostra a minha…

    Outro exemplo: eu não quero ter de limitar a minha participação democrática se, em certo dia, num movimento contra a corrupção em que participe, estiverem presentes certos cidadãos, dos quais ideologicamente quero distância, e pessoalmente afastamento.

    Não estarei fisicamente a seu lado, mas não quero deixar de estar presente. E não quero, nem mereço, como até agora sucede, ser acusado de seguir uma certa ideologia apenas porque não concordo com certa tese oficial.

    Não devo fazer isso como cidadão, e muito menos como jornalista.

    Ainda menos como jornalista, repito.

    Não aceito, como cidadão e jornalista, e nunca aceitarei, que um Governo, seja o canadiano, seja o português, seja de outro qualquer país, me utilize, utilize jornalistas, para colar ferretes em manifestantes. Não embarco neste tipo de embarcações, ainda mais tendo a oportunidade de viver numa democracia e desejando continuar a viver numa democracia.

    A manipulação dos jornalistas, muitos deles por opção ideológica ou por ignorância ou por comodismo, é a mais grave ameaça à democracia nos países ocidentais.

    Quando um Governo acusa manifestantes de actos de extremismo e de vandalismo, tem necessariamente de apresentar provas imediatas. As palavras não bastam, até porque têm, devem ter, meios para mostrar essas provas.

    Se os jornalistas desistirem de ser os fiscalizadores da acção governativa, de fiscalização dos cidadãos que, circunstancialmente, estiverem com cargos políticos, acordarão, certo dia, numa ditadura. Numa ditadura que eles ajudaram a criar. Mostrarão então que foram sempre pequenos tiranetes. Não deixemos, por isso, que muitos deles, agora já tiranetes, andem vestidos com pelo de cordeiro, sendo lobos.

  • Quero o meu bife. E a minha salada. E também a minha democracia.

    Quero o meu bife. E a minha salada. E também a minha democracia.


    “Quero o meu bife”. Nos anais da pandemia, ficará certamente célebre este recente “grito de revolta” do virologista Pedro Simas, à porta do mítico Snob, clamando, e reclamando, pelo seu direito a entrar no restaurante para, enfim, deglutir uma refeição.

    O caricato deste episódio de Simas é que o impediram de entrar para comer o “seu” bife não por um imperativo da Ciência – por ele eventualmente constituir, mesmo que por hipótese académica, um perigo para outrem –, mas por uma questão administrativa. O virologista tinha tomado a terceira dose da vacina, mas ficou paradoxalmente em pé de igualdade durante duas semanas – enquanto o papel, sempre um papel, não fosse actualizado – como aqueles que tinham optado por não tomar qualquer dose. O “seu” bife acabou assim comido por alguém que tinha uma dose a menos, ou seja, por quem tivesse tomado duas doses.

    Faltou, portanto, a Pedro Simas um papel, que a máquina administrativa determinou servir como instrumento fundamental para controlo da pandemia; e a Política di-lo agora que sempre por mor da Ciência, exarada por “peritos” e por “especialistas”.

    black framed eyeglasses on top of white printing paper

    Mesmo quando esses “peritos” e “especialistas” andaram, como Pedro Simas, a fazer publicidade enganosa a lente de contactos;

    Mesmo quando esses “peritos” e “especialistas” são como Filipe Froes, avençados da indústria farmacêutica;

    Mesmo quando esses “peritos” e “especialistas” são como Raquel Duarte, “enterrada” no Partido Socialista até ao tutano;

    Mesmo quando esses “peritos” e “especialistas” são como Carlos Antunes, um engenheiro geográfico que andava a modelar correntes marítimas e se viu investido em modelador-mor de nunca acertadas previsões epidemiológicas;

    Mesmo quando esses “peritos” e “especialistas” são como os membros da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19, que escondem os seus pareceres e, afinal, se vai ver e baseiam as suas recomendações numa mão-cheia de nada que levariam seus alunos universitários a chumbarem com orelhas de burro;

    Mesmo quando esses “peritos” e “especialistas” são como todos aqueles que peroraram alarvidades e recusaram debater e bateram palmas ou assobiaram para o ar perante as perseguições ferozes de inquisidores-mores como o senhor urologista Miguel Guimarães, ou o opróbrio da imprensa mainstream a todos aqueles

    que, como eu, defenderam o reforço do SNS para as outras doenças, “abandonadas” pelos decisores políticos;

    que, como eu, ponderaram, desde muito cedo, ser a covid-19 uma doença sazonal, e que deveria ser abordada como tal;

    que, como eu, criticaram o alarmismo que afugentou pessoas dos hospitais, por vezes os únicos sítios onde podiam ser salvas;

    que, como eu, alertaram para a manipulação de dados pela DGS; que denunciaram o obscurantismo das autoridades no acesso a informação credível;

    que, como eu, tiveram de aguentar todos os dissabores e ofensas apenas por desejar transparência, informação e debate, mesmo se, eventualmente, para sair “derrotados” num confronto de ideias, limpo e com base em informação.

    concrete hallway

    Tudo o que se fez durante a pandemia foi executado por políticos, mas sempre com a bênção de supostos “peritos” e “especialistas”. Sempre em nome da sacrossanta Ciência, fizeram os segundos o trabalho sujo dos primeiros, de eliminar vozes dissonantes, sempre com a colaborante imprensa mainstream e seus sacerdotes-jornalistas.

    Ora, a Ciência não é sacrossanta, nem o conhecimento científico é estático. Muito menos dogmática. Se artificialmente presa, deixa de ser Ciência. Em tempos de antanho, quando o poder – administrativo e/ou religioso – a quis estacar, vivemos tempos de trevas, de que são exemplo a Idade Média ou os períodos de controlo da Inquisição, sobretudo nos países católicos.

    O Iluminismo veio emancipar de novo a Ciência, concedeu-lhe a liberdade para ser palco de estimulantes debates, “proibindo-a” apenas de ser dogmática. A Ciência não derrota uma tese pelo dogmatismo, mas sim pelo confronto de ideias, pelo escrúpulo, pela confirmação, pela abertura do espaço para qualquer um poder ousar estar certo em minoria, ou pela humildade de um “gigante” em aceitar a hipótese de se estar completamente errado mesmo se até em maioria.

    Porém, e essa foi a mais triste e trágica consequência da pandemia, a Ciência tornou-se dogmática, inflexível, arrogante, impositiva, punitiva. Ou melhor, muitos cientistas tornaram-na. E por um simples motivo: venderam a “alma” aos políticos; e imbuídos desse “canto da sereia” do poder político não quiseram depois admitir aquilo que a Ciência deve mostrar: dinamismo, e prontidão em se corrigir.

    view of floating open book from stacked books in library

    O caso dos certificados digitais – os tais que impediram Simas de comer o “seu” bife – constitui, porventura, o paradigma do uso e abuso da Ciência pelos políticos, com a reprovável cumplicidade e conluio dos tais “peritos” e “especialistas”.

    Recordemos sua história dos certificados digitais, e como agora a Ciência – com os seus “peritos” e “especialistas” – estão a contribuir para um retrocesso civilizacional, para um período de discriminação, para um assalto às democracias mesmo em países onde há muito está consolidada.

    O certificado digital foi uma “invenção” da União Europeia, em meados do ano passado, para que o controlo das fronteiras, e sobretudo das viagens aéreas, se fizesse de uma forma mais fluída. A ideia aparentava sensata à luz da Ciência da época, mas também, de forma paradoxal, censurável à luz da Ciência da época.

    Por um lado, pensava-se então – e sobretudo a Ciência feita pelas farmacêuticas e das entidades reguladoras dos diversos países – que as vacinas contra a covid-19 não só constituíam uma protecção muito relevante contra as formas graves da doença (falava-se em valores muito próximos de 100%) como também reduziam enormemente (acima dos 90%) a possibilidade de se ser infectado. E, nessa linha de raciocínio, fazia todo o sentido, do ponto de vista político, a adopção de uma medida para melhorar a fluidez burocrática entre fronteiras.

    Ou seja, nesse pressuposto, o certificado digital parecia ser um melhor instrumento de controlo da pandemia do que, por exemplo, os testes PCR, uma vez que, podendo estes ser realizados até 48 horas antes, nada garantia que uma pessoa com resultado negativo no momento do teste não estivesse susceptível de infectar no momento do embarque.

    Havia, contudo, um problema na implementação dos certificados digitais (dos vacinados), e que continua a existir: a Ciência não conseguiu até agora dar resposta às incertezas de longo prazo de uma vacina tão recente. Não há resposta científica para o longo prazo, ponto final. E não havendo, e sabendo-se, pela Ciência, que as vacinas contra a covid-19 têm diferentes níveis de benefício-risco-incerteza em função da idade, do sexo e da região, não seria eticamente prudente impor vacinas e certificados. Atenção que a prudência ética salva vida.

    Por isso, colocar a exigência de vacinação contra a covid-19 ao nível, por exemplo, da vacina contra a febre amarela, exigível em viagens para certos países africanos e sul-americanos, não tem qualquer sentido científico: o risco desta segunda doença é maior e mais generalizada; e essa vacina já tem quase 85 anos, mais do que suficiente para mostrar um bom perfil de segurança.

    assorted-title book lot on shelf

    Aliás, assumir que a vacina contra a covid-19 é segura porque existem outras vacinas seguras, ou apelar para acreditarmos na Ciência porque os cientistas integram um grupo de pessoas que já fizeram maravilhas pela Humanidade, é algo anticientífico.

    Por mais baixa que seja a agora a probabilidade de se errar em Ciência, é exactamente para manter residuais esses riscos que se devem manter padrões elevados de segurança e precaução. Por isso, mais precaução sobretudo em comunidades onde o risco da doença nem sequer é relevante.

    Na verdade, até vista na perspectiva da Ciência em relação à pandemia, foi exactamente por bons motivos científicos – por não serem seguros ou comprovadamente eficazes – que se abandonou ensaios clínicos de terapêuticas para a covid-19 como o uso de cloroquina e hidrocloroquina, mas também de muitos outros fármacos, como pamrevlumab, losmapimod, naproxeno, ruxolitinibe, acalabrutinib e rivaroxabana, apenas para citar alguns que se podem observar numa excelente base de dados na norte-americana National Library of Medicine.

    Antes de serem abandonados, todos estes fármacos descartados por diversas razões; e o último, um fármaco da Bayer, o estudo que mostrou ser ineficaz até foi financiado pela Fundação Melinda e Bill Gates. Significa isto que, mesmo tendo passado as três fases de testes, as actuais vacinas contra a covid-19 ainda não estão com certificação absoluta de segurança a longo prazo.

    Podem-me dizer que não haverá azar. E eu fico sempre a recordar-me de um acidente em 1999 na Petrogal de Matosinhos, com uma monobóia oceânica: a operação, só se faria uma vez, e a probabilidade de correr mal era de uma em um milhão. Correu mal, e morreu uma pessoa na praia de Leça da Palmeira. Por esse e outros motivos, não se mete uma petrolífera no meio de uma cidade por mais segura que possa parecer; e pelo mesmo motivo, a prudência (mesmo perante uma incerteza pouco provável), não se deveria assim vacinar crianças, adolescentes e jovens adultos saudáveis contra a covid-19.

    Ora, mas voltando ao tema dos certificados digitais. Com o tempo, mesmo em tempo de pandemia, a Ciência evoluiu, obteve-se conhecimento científico sobre o vírus e sobre as vacinas. Mais e melhor. Não foram boas notícias. Afinal, mostrou que as vacinas não cumpriam uma das premissas essenciais da utilidade dos certificados digitais como “arma” de controlo da pandemia: não concediam uma significativa protecção contra a infecção, mesmo confirmando-se uma redução (um pouco menos significativa e mais curta no tempo do que também previsto) do risco de doença grave e morte, tendo em conta também as variantes.

    person in white jacket wearing blue goggles

    Ora, perante o conhecimento dinâmico da Ciência, o que fizeram os “peritos” e os “especialistas”?

    Calaram-se ou arranjaram jogos de cintura para manter o agrado dos políticos e dos jornalistas que bajulavam as suas sapiências. Deixaram de ser cientistas para serem meros políticos. Enfim, serviram os Governos dos países democráticos (ou outros não precisavam já disso) para abusarem até do objecto inicial dos certificados digitais, aplicando-os para práticas de discriminação e de segregação.

    O objectivo tornou-se claro: além de beneficiar as farmacêuticas, forçavam e coagiam os cidadãos a tomarem as vacinas. No limite, quanto mais se se vacinasse, se se vacinasse tudo, deixava de existir até um “grupo de controlo” (os não-vacinados). Ora, sem grupo de controlo não há Ciência que possa comprovar um efeito epidemiológico.

    O certificado digital – ou a obrigatoriedade de vacinação para o exercício de determinadas profissões ou acesso a certos locais – também representou uma janela de oportunidade para, de uma forma impensável numa democracia em funcionamento normal, aumentar o controlo da contestação e de movimentos sociais.

    man in blue jacket wearing blue mask

    O caso do Freedom Convoy, em que o Governo canadiano de Justin Trudeau coloca agora entraves aos donativos de mais de cem mil doadores, acenando com o fantasma do risco de terrorismo e lavagem de dinheiro, mostra-nos uma perigosa involução das democracias ocidentais. A China não faz pior.

    [E que se pode esperar em Portugal? Que António Costa possa, de repente, suspender os donativos ao PÁGINA UM para o estrangular e terminar assim com críticas?]

    E note-se, aspecto fulcral, que o certificado digital continua sem sequer deter qualquer base científica, porquanto a sua validação sempre dependeu não de um qualquer diagnóstico (por exemplo, o valor de um teste serológico), mas sim de um prazo meramente administrativo. Primeiro foi de seis meses; agora passou para nove meses, não se conhecendo, porém, estudos científicos que lhe dêem respaldo.

    [Como aqui já referi, tendo eu perdido a validade do meu certificado digital de recuperado no início de Dezembro do ano passado – que nunca usei –, o resultado de um teste serológico (anticorpos IgG) deu 427 BAU/ml, mas mesmo que assim desejasse usá-lo, não mo concederiam].

    Durante cerca de um ano, o certificado digital serviu assim como elogiado “prémio” para quem se vacinava, e como feroz “castigo” para quem tomava a decisão de não aceitar vacinar-se, por razões aceitáveis ou estapafúrdias – dentro de um contexto de direitos e liberdades que eram aceites numa comunidade democrática antes da pandemia.

    man in blue jacket holding red and white plastic cup

    Os certificados digitais, à luz da verdadeira Ciência, serviram, portanto, sobretudo, para criar dois grupos de pessoas, e dificilmente esquecerei quem apoiou activamente, ou através do silêncio, a aplicação deste modelo segregacionista. Até porque a pandemia, mais o seu certificado digital, foi um veículo de abuso de autoridade – proibir liberdades e direitos por um direito de opção, consagrado em lei e na Constituição –, e mesmo de impensáveis abusos nas relações sociais.

    Um empregado de bar ou de restaurante sentia-se ufano ao “exigir” a apresentação de um certificado digital a um seu cliente frequente ou fortuito, e investido desse inusitado poder até os escorraçaria de bom grado, esquecendo os seus prejuízos, ou ignorando que papel zelosamente requerido nada significa quanto ao risco de ser infectado, e menos ainda quanto ao risco de ficar gravemente doente se estiver vacinado.

    [Acredito sempre que as pessoas que se vacinam acreditam que a vacina basta para as proteger, de contrário paradoxalmente não acreditam na protecção dada pelas vacinas].

    Esta semana, em que caiu a necessidade de apresentar um certificado digital em Portugal para aceder a certos locais, mantém-se, porém, a segregação e os seus riscos. Os “peritos” e os “especialistas” ao serviço dos Governos – e que renegaram a Ciência, apesar de a apregoarem em cada frase – continuam a escudar decisões antidemocráticas de políticas, fazendo de conta que os certificados digitais garantem coisa alguma.

    Por exemplo, defender que são essenciais para proteger idosos em lares não é Ciência. Quem visita lares e hospitais com certificado digital pode infectar, tal como aqueles sem certificado digital poderão. Defender que são essenciais como uma arma de controlo da pandemia – e daí a Comissão von der Leyen estar interessada em prolongar a sua vigência por mais um ano – constitui sobretudo um atentado à democracia, nada têm de Ciência.

    Por tudo isto, a aprovação de mais um ano de certificado digital pela Comissão Europeia – que nem sequer é um órgão democrático, mas sim eleito por uma clique de políticos, muitos dos quais nem sequer vimos ao vivo no nosso país, e que nem a nossa língua falam [e isto não é ser nem nacionalista, nem patriótico e muito menos xenófobo] – constituirá não apenas a manutenção de uma discriminação de vantagens fúteis do ponto de vista da Saúde Pública, como também o reforço de uma espada cada vez mais próxima da nuca da democracia europeia.

    steak with broccolies

    Servirá um renovado certificado digital europeu – e a sua manutenção para uso doméstico – para agravar (ainda mais numa fase claramente endémica de uma doença sazonal com um perfil bem conhecido) uma discriminação de direitos, uma forma também de se identificarem cidadãos hipoteticamente “subversivos”, ou com capacidade de pensarem (mesmo que mal) pela sua cabeça, e não em “manada” com os demais.

    Mas, para mim, o grande perigo advém de estas políticas serem suportadas por zelosos “peritos” e “especialistas” que, invocando a Ciência, a cospem, e que com os seus vómitos ajudarão a destruir a democracia em prol dos seus interesses comezinhos e mesquinhos.

    Se estes e outros não quiserem ser cúmplices de um crime, não gritem apenas “Quero o meu bife”, quando um acto administrativo parvo não os deixar entrar num restaurante. Gritem antes comigo: “Quero a minha democracia!”, e depois podemos todos ir comer um bife. Ou uma salada.

    [Eu prefiro o bife e a salada].

  • A César o que é de Cesar: a Procuradoria-Geral da República e os abusos da Igreja

    A César o que é de Cesar: a Procuradoria-Geral da República e os abusos da Igreja


    No passado dia 15 de Janeiro, o pedopsiquiatra Pedro Strecht, nomeado pela Igreja Católica para presidir à Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja Católica (perdoem-me a redundância, mas serve para melhor salientar que o potencial criminoso escolhe a dedo uma comissão para avaliar os seus eventuais crimes, autodenominando-a de independente), anunciou que “validou, em menos de uma semana, 102 testemunhos”, que, segundo o dito, contêm “momentos de profunda dor e sofrimento”.

    E adiantou ainda que a dita Comissão – de que fazem parte Laborinho Lúcio (juiz conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça e antigo ministro da Justiça), Ana Nunes de Almeida (investigadora do Instituto de Ciências Sociais), Daniel Sampaio (psiquiatra e professor catedrático jubilado da Faculdade de Medicina de Lisboa), Filipa Tavares (assistente social e terapeuta familiar) e Catarina Vasconcelos (cineasta) – tinha já “situações agendadas para contacto pessoal”.

    man sitting on chair holding and surrounded by people

    Não colocando em causa a idoneidade destas personalidades, convém, contudo, relembrar que, desde Abril de 2019, Pedro Strecht é “membro convidado do Patriarcado de Lisboa na equipa de prevenção de abusos sexuais na Igreja”. O termo “comissão independente” surge-me aqui de utilização demasiado lata. Ou com lata.

    Esta semana foi também anunciada, pela Igreja Católica (claro!), a nomeação do ex-procurador-geral da República José Souto Moura para presidir à Coordenação Nacional das Comissões Diocesanas de Proteção de Menores. Segundo um comunicado da Conferência Episcopal Portuguesa, a dita Comissão “tem o objetivo de assessorar o trabalho de cada comissão diocesana, propor procedimentos e orientações comuns, ajudar em tudo o que possa proteger as vítimas e esclarecer sobre quadros normativos canónicos e civis relacionados com os processos de abuso sobre menores, tanto no que respeita ao acompanhamento da vítima como na atenção ao agressor”.

    Recorde-se também que José Souto de Moura – além de não ser recordado propriamente como um procurador-geral inflexível no seu mandato de seis anos (2000-2006) – foi, tal como Pedro Strecht, convidado pelo Patriarcado de Lisboa há três anos para integrar a equipa de prevenção de abusos sexuais na Igreja. E nessa altura, quando se jubilou, Souto de Moura anunciou que iria manter as suas ligações com “a revista Brotéria, dos jesuítas, com a Associação de Juristas Católicos [uma idiossincrasia portuguesa num Estado e numa Justiça que se quer laica, acrescento eu] e com a Comunidade Vida e Paz”.

    Enfim, já Cristo dizia, mas a Igreja Católica parece não aprender: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. Ora, sendo Portugal um Estado de Direito – ou, pelo menos, alegando-se que é –, havendo separação de poderes (e desde o século XVIII a Igreja Católica deixou de ser um Estado dentro de outro Estado), não se compreende (ou melhor, compreende-se, mas não se deveria admitir) que tantas e tão doutas pessoas, algumas da Magistratura e outras da área social, disponham da sua imagem, do seu talento e do seu trabalho para contribuírem, nem que seja indirecta e involuntariamente, para uma autêntica operação de lavagem de crimes no interior da Igreja Católica em Portugal.

    Note-se: em menos de uma semana, a dita Comissão Independente, com parcos meios investigativos, validou 102 testemunhos, alguns certamente documentados, mas sempre abafados ao longo dos tempos e tempos, tanto mais que as alegadas vítimas têm já idades compreendidas entre os 30 e os 80 anos. Não há inocentes. Quem cria agora estas comissões não está inocente.

    sliced of bread beside goblet

    Que a Igreja – como entidade humana – tente fazer sempre bem o seu trabalho para se perpetuar, sabendo ultrapassar momentos difíceis, isso sabe-se, porque assim sempre fez: quem conhece alguma História da Igreja sabe bem disso. Agora, que um Estado de Direito laico deixe agora isso suceder, de forma impune, não se pode aceitar. Não se deve aceitar.

    Não se deve assim aceitar ver uma Procuradoria-Geral da República a assistir impávida e serena à criação de comissões supostamente independentes e de coordenações também supostamente independentes dentro da própria Igreja Católica – e onde se assume já que se vai trabalhar em tudo aquilo que “respeita ao acompanhamento da vítima como na atenção ao agressor” –, sem gritar “alto!, e pára o baile!; isto não é assunto de Deus; é de César!”

    Que a Igreja Católica se entretenha e nos tente entreter com as diligências que bem entender com vista a eventuais castigos divinos ou eclesiásticos, está no seu direito como entidade privada.

    Porém, sobre aquilo que faz ou sobretudo não faz a Procuradoria-Geral da República, já é algo que nos diz respeito. E pessoalmente, julgo que já deveria estar no terreno para ouvir as 102 pessoas identificadas pela tal Comissão de Pedro Strecht, e outras mais. Deveria estar já a vasculhar toda a documentação da Igreja Católica onde possa constar informação com relevância penal para identificação de crimes, e dos respectivos criminosos e seus cúmplices (que também são criminosos). E ontem já era tarde.