Etiqueta: Pedro Almeida Vieira

  • Guimarães & Froes, Lda., delegados de propaganda médica da 6ª vaga dos lucros das farmacêuticas

    Guimarães & Froes, Lda., delegados de propaganda médica da 6ª vaga dos lucros das farmacêuticas


    Miguel Guimarães, circunstancial presidente de uma associação profissional denominada Ordem dos Médicos, veio ontem escrever no diário Correio da Manhã um artigo de opinião intitulado “6ª vaga”. Não consta que Maria do Céu Machado, presidente do Conselho Disciplinar Sul na Ordem dos Médicos – investida de inquisidora-mor dos seus colegas que, desde 2020, “mijam fora do penico” da doutrina de discurso único –, venha questionar o seu amigo urologista sobre os palpites ali esparramados.

    É pena; até porque o bastonário não opinou; andou a fazer descarado “lobby” a favor de produtos farmacêuticos. Não andou a dar a recomendações de médico; andou sim, com toda a ardileza de um delegado de propaganda médica (mas munido do bastão de líder máximo dos médicos), a pressionar o Infarmed e o Estado português para se comprar fármacos caros e de custo-benefício mais que duvidoso – sobretudo se compararmos com a eficácia de outras medidas fulcrais, como seja a de haver médico de família para mais de um milhão de portugueses que não o têm.

    Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos.

    Escreveu, portanto, Miguel Guimarães que “está a acontecer o expectável: o alívio das medidas contra a pandemia, nomeadamente a eliminação do uso obrigatório de máscara, tem levado ao aumento de casos”.

    Esta lógica bacoca – que, aliás, foi o alimento da “Narrativa Única”, e unificadora, por pressão do senhor Guimarães – devia ser automaticamente criticada e censurada pelo Conselho Disciplinar do Sul da Ordem dos Médicos por não-científica. O senhor doutor Guimarães deveria, sim, divulgar todos os pareceres dos diversos Colégios da Especialidade, em vez de apenas divulgar os que lhe interessam e armar-se em dono da Verdade Médica. Aqueles que ele quer esconder é que são científicos; não as suas “opiniões” comprometidas, e comprometedoras para uma profissão (ainda) respeitável.

    Vamos ser claros. Não existe sexta vaga coisíssima nenhuma em Portugal – na verdade, ao longo da pandemia, tivemos uma única onda digna desse nome (no Inverno de 2020-2021, cf. imagem) –; tudo o resto que se anunciam como vagas são ficção, foram “ondinhas”. Basta olhar para os gráficos.

    Mortalidade atribuída à covid-19 em Portugal desde 2020 até 24 de Maio de 2022. Fonte: Our World in Data.

    Por outro lado, a defesa de uma relação “máscaras, logo menos casos” não está consubstanciada na realidade nem na Ciência. Em finais de Janeiro deste ano, na época da “loucura dos testes” – onde se despendeu milhões de euros em testes por dia, quando a letalidade da covid-19 já equivalia à dos surtos gripais –, chegámos a ultrapassar os 60 mil casos positivos em 24 horas.

    E isto numa altura em que havia máscaras obrigatórias em todos os espaços fechados e impôs-se a discriminação dos não-vacinados. Por exemplo, eu, que tinha valores de imunidade (IgG) muita acima do valor mínimo (mais de 400 BAU/ml em testes serológicos realizados em Dezembro do ano passado e Março deste ano), não podia sequer entrar num restaurante ou ir a um espectáculo.

    Na verdade, alguém com dois pingos de inteligência (mas necessariamente sem ligações à “indústria da pandemia”), deve sim questionar-se sobre as razões de ainda subsistir tanto burburinho em redor de uma doença (covid-19) que já nada tem a ver com aqueloutra com o mesmo nome (da qual até eu padeci há um ano), e que por cá andou antes da dominância da variante Omicron (que até Bill Gates, num momento de lucidez, veio confessar que fez mais contra a pandemia do que a própria vacina).

    Como se compreende a retomada do pânico sobre uma doença que, por exemplo, em Janeiro do ano passado teve uma taxa de letalidade em Portugal de 1,90%, e que em Janeiro deste ano já só registou uma letalidade de 0,08%, compatível com um surto gripal? A covid-19 de 2021 era quase 24 vezes mais perigosa do que é a covid-19 de 2022.

    woman in black tank top with white face mask

    Pode o senhor doutor Guimarães dizer que as vacinas são as (únicas) responsáveis por esta situação. Já dou tal de barato. Mas, vendendo-se bem as vacinas, não pode é, através de uma artificial promoção do pânico, baseando-se somente em casos positivos, vir promover ainda mais as ditas vacinas, mas à boleia, como quem não quer a “coisa”, opinar que se deve “garantir acesso às terapêuticas com antivirais e anticorpos monoclonais neutralizantes, já disponíveis em outros países”.

    Na verdade, o que ele diz é muito simples: o Infarmed deve autorizar a comercialização e o Estado deve comprar. O dinheiro não é dele, mas as vantagens de “estoirar” dinheiro público (escasso para a solidez do Serviço Nacional de Saúde) parecem ser.

    Não sejamos ingénuos – e eu não sou, pelo menos, neste capítulo.

    Não existem, neste momento, quaisquer sinais que justifiquem a aposta num fármaco que custa 500 euros por cada tratamento completo de um doente vulnerável que já estará muito provavelmente vacinado com três e quatro doses, e numa fase inicial de sintomas (leves ou moderados). Mais ainda sabendo-se que esses antivirais são de eficácia ainda longe de ser evidente.

    E mais ainda quando estamos, a nível mundial, numa evidentíssima e claríssima fase endémica da covid-19. Anteontem, a mortalidade atribuída ao SARS-CoV-2 em todo o Mundo situou-se em 1.590 óbitos (média móvel de 7 dias), o valor mais baixo desde 23 de Março de 2020 – ou seja, o mês da chegada em força da pandemia ao Hemisfério Norte.

    Mortalidade atribuída à covid-19 no Mundo desde 2020 até 24 de Maio de 2022. Fonte: Our World in Data.

    A queda da mortalidade da covid-19 é indesmentível. Desde o início do presente ano, a descida da mortalidade tem sido contínua: em 9 de Fevereiro atingiu um máximo de 10.918 óbitos. Ou seja, caiu 85% em três meses! Sem descanso.

    Porém, apesar disso, o senhor doutor Guimarães confirmou, nesta sua “opinião” no Correio da Manhã, a existência clara de uma medonha e diria mesmo criminosa operação de promoção dos antivirais contra a covid-19, sobretudo do Paxlovid da Pfizer, sobre o qual já aqui escrevi a pretexto de uma suposta notícia da Visão Saúde – na verdade, a mais pura peça de jornalismo ao serviço das farmacêuticas que já vi, e que contou com a participação despudorada de um marketeer travestido de médico, o pneumologista Filipe Froes.

    O dito Filipe Froes não satisfeito em servir de “porta-voz” do Paxlovid naquela peça da Visão Saúde, promovendo explicitamente, um fármaco – algo que as regras deontológicas proíbem, e ainda mais o decoro, sabendo-se das suas ligações à Pfizer e mais de duas dezenas de farmacêuticas –, veio no passado fim de semana perorar também na CNN Portugal a favor, hélas, dos antivirais.

    Disse ele, a partir do minuto 9:30, com aquela sua desavergonhada cara de quem recebeu já mais de 400 mil euros de farmacêuticas: “(…) e, finalmente, nós temos de acelerar, para o nosso país, o acesso a dois fármacos que já têm muito impacte nos outros países em termos de controlo da doença, que são os novos antivíricos”.

    Filipe Froes

    Ora, esse dois “novos antivíricos” são, obviamente, o Paxlovid (nirmatrelvir e o ritnonavir), da Pfizer – e o Lagevrio (molnupiravir), da Merck Sharpe & Dohme (MSD).   

    Nem de propósito – oh, coincidências –, a Pfizer e a MSD são as duas farmacêuticas que mais dinheiro encaminharam para a conta bancária do senhor doutor Froes: entre 2013 e 2021, a primeira transferiu 134.574 euros e a segunda 85.522 euros. Isto atendendo ao que foi declarado no Portal da Transparência e Publicidade, que como sabemos é feito voluntariamente, sem introdução de comprovativos e sem qualquer auditoria posterior.

    Receitas de Filipe Froes das farmacêuticas entre 2013 e 2021. Fonte: Infarmed.

    Por tudo isto, pelos sinais de “fim de festa da pandemia”, percebe-se a acção deste duo  de marketeers de alto gabarito, destacados ou contratados, para meter todas as fichas – leia-se, promover a mensagem de uma falsa necessidade – para pressionar o Governo a comprar aqueles antivirais.

    E então, se os marketeers, como os Guimarães & Froes, Lda., forem bem-sucedidos, estarão depois dispostos a garantir-nos que os tais fármacos da Pfizer e da MSD são mesmo miraculosos.

    E fá-lo-ão com a mesma convicção do tipo que, assobiando estridentemente pelas ruas, afiança que serve para afugentar tubarões, sendo que a prova da eficácia do seu método é não se verem aí tubarões.

  • A caricatura perfeita de um país imperfeito

    A caricatura perfeita de um país imperfeito

    Título

    Caricaturas portuguesas dos anos de Salazar

    Autor

    JOÃO ABEL MANTA (Pedro Piedade Marques)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Abril de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    A justiça, como forma de reconhecimento, deve ser concedida em vida. E, de facto, seja reconhecido, a multifacetada obra de João Abel Manta tem estado bem viva e bem-vinda se tem mostrado, agora que ele acaba de perfazer 94 anos.

    Formado em Arquitectura na Escola de Belas Artes de Lisboa, em 1951, João Abel Manta tem obra feita nesta área – onde o exemplo mais emblemático é o conjunto de edifícios da Avenida Infante Santo, na capital –, mas foi sobretudo como artista plástico, no desenho e arte pública – por exemplo, o desenho em calçada portuguesa da alfacinha Praça dos Restauradores ou o painel de azulejos da Avenida Calouste Gulbenkian –, e na pintura e no cartoon político que mais se destacou.

    Para uma geração mais jovem – ou mesmo para aqueles com idade inferior aos 60 anos –, João Abel Manta pouco poderá dizer – e é pena. Mas, nas décadas de 50 e 60 – e em especial nos anos imediatamente anteriores e posteriores ao 25 de Abril foi ele um dos mais proeminentes cartoonistas, primeiro no Diário de Lisboa e depois sobretudo n’O Jornal.

    Caricaturas portuguesas dos anos de Salazar, obra originalmente publicada em 1978 e agora reeditada pela Tinta da China, faz jus à excepcional obra de João Abel Manta, não apenas por ser a “visão” de um cartoonista durante um período conturbado da nossa sociedade, mas sobretudo por mostrar um processo de “exorcismo” do autor perante os fantasmas do fascismo que sobrevoavam então a sua mente no pós-25 de Novembro de 1975.

    Preparados num período de auto-exílio em Londres, os cartoons de João Abel Manta, revolucionários para a época, não retratam apenas Salazar – muito pelo contrário; mostram, sim, a mentalidade do país de um ditador – de um país secular sempre pouco livre –, sempre omnipresente, sempre retrógrado, sempre lamentável.

    Num traço inconfundível, intrigante, por vezes de uma violência sádica (como nos cartoons sobre a Guerra Civil de Espanha), muitas vezes a necessitarem de reflexão para um melhor entendimento, os 139 cartoons que constituem este livro – num esmerado trabalho gráfico em papel que destaca as cores e num necessário formato oblongo – mostram-nos uma “procissão” de figuras históricas ou populares, patéticas, grotescas, tétricas, lúbricas, sinistras e, enfim, com todos os adjectivos que se queiram.

    Neste cortejo podemos assim assistir a nadadoras expondo-se ao lado de um lascivo D. Henrique; aos retratos de vice-reis congregando um passado colonial pouco edificante, à omnipresente religião católica – com a Nossa Senhora de Fátima protegendo a Selecção de futebol ou sendo a esperança de uma trupe de aleijados e frankensteins – ou ainda à veneração de um Santo António, ora famélico, ora bonacheirão, ora inquisitorial, ora sedutor.

    Todos os cartoons vivem muito das expressões, dos pormenores, das dimensões escolhidas com propósitos claros por João Abel Manta, quase nunca “normais”, explicitamente caricaturadas, porque nada surge ali por um acaso – e muito menos quando os diferentes cartoons constituem séries, como as dos cupidos no bloco Idílio, ou os diversos Camões.

    Mas, claro, o fantasma de Salazar “corporiza-se” em pleno na sequência final, em que o ditador surge, primeiro, a comandar a Universidade, depois os militares, a seguir a Igreja, homens engravatados, e por fim, crianças. Aqui, apenas um Salazar, envelhecendo-se neste percurso, tem o seu característico perfil, bem desenhado e perfeito, sempre o mesmo, estático como o país; todos os que o vão acompanhando possuem meras cabeças disformes, dir-se-ia acéfalas. Como o país.

    O esclarecedor e esclarecido posfácio de Pedro Piedade Marques – historiador, designer gráfico, tradutor e editor, e principal responsável por esta reedição – é de grande utilidade para o entendimento desta obra-prima do cartoonismo político português do século XX.

  • Do nojo e da desvergonha: os fretes da Visão Saúde e o mercantilismo de Filipe Froes

    Do nojo e da desvergonha: os fretes da Visão Saúde e o mercantilismo de Filipe Froes


    Será difícil, nos tempos vindouros, encontrar peça jornalística mais infame. Ademais, complementada pelas balelas do mais mercantilista “vendedor da banha da cobra do país” que ostenta (ainda) uma cédula passada pela Ordem dos Médicos.

    Este é um sinal dos tempos modernos, do Novo Normal: do conluio entre uma imprensa sem escrúpulos e vergonhosa, alicerçada em médicos que mandaram Hipócrates à merda e que se vendem por 29 dinheiros, porque até se comercializam abaixo da cotação de um Judas.

    Hoje, pelas 10h15 horas, na edição online da revisa Visão Saúde, a jornalista Mariana Almeida Nogueira – que, pelo seu número elevado de carteira profissional (CP 8227), não deve ter tido ainda tempo de ler o Código Deontológico – escreve o mais descarado artigo de propaganda de marketing de que tenho memória. Ou melhor dizendo, publicidade pura e dura. E tenho (ainda) muito boa memória.

    Para sustentar esta peça: as opiniões de um vendedor encartado pela Ordem dos Médicos, e não investigado a preceito pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS): o pneumologista Filipe Froes.

    Qual o tema?

    Notícia de hoje na Visão Saúde, assinada pela jornalista Mariana Almeida Nogueira.

    Já viram na imagem em cima: Paxlovid, um antiviral contra a covid-19 da farmacêutica Pfizer, apresentado logo no título como o “antiviral campeão de vendas nos EUA”, e que, acrescenta-se ainda, “pode [sempre a velha questão do pode, que pode significar o contrário, ou seja, pode não] pôr a salvo os doentes de risco”.

    O lead não seria melhor escrito por uma agência de comunicação; e mal não lhe ficaria.

    Mas a imprensa, e um(a) jornalista não pode ser uma agência de comunicação.

    O texto da Visão Saúde, através de uma (suposta) jornalista encartada, não pode ter um lead assim: “E se existisse um antiviral capaz de complementar a ação da vacina e de reduzir a probabilidade de estes doentes de risco irem parar ao hospital, terem doença grave e morrerem? E existe mesmo. Chama-se Paxlovid, mas ainda não está disponível no nosso País, nem se sabe quando estará”.

    Se fosse a Cristina Ferreira ou o Manuel Luís Goucha a dizer isto do Calcitrin, a gente até aguentava. Mas isto não é “banha da cobra”: é um medicamento que arrisca custar-nos, se levados por esta intrujice de vendedor, muitos milhões de euros sem préstimo. Na melhor das hipóteses.

    De facto, toda esta (alegada) notícia é escrita como se fosse inexplicável o não-aproveitamento deste milagre da Pfizer.

    Como se estivéssemos perante uma inexplicável negligência do Estado.

    Não é o caso. Na verdade, a notícia é puro marketing para favorecer (sem aspas) uma farmacêutica, criando pressão mediática sobre o Governo e o Infarmed para a concretização de um negócio de milhões.

    girl in front of cake

    Mas, afinal, do que falamos quando falamos do Paxlovid – questão de pouca relevância para a Visão Saúde, mais preocupada em panfletar o fármaco milagroso da Pfizer?

    O Paxlovid é, na verdade, uma combinação antiviral, de toma oral, constituída por dois medicamentos: o nirmatrelvir e o ritnonavir. O primeiro destes medicamentos já tinha sido criado em 2002 para combater o primeiro SARS, mas sem qualquer utilidade prática. Com o advento do SARS-CoV-2, a Pfizer começou então a testá-lo, em conjunto com outros. Apenas em Novembro do ano passado, a Pfizer anunciou um ensaio provisório envolvendo 774 pacientes com sintomas ainda leves ou moderados de covid-19, sobre os quais se avaliava o seu risco de internamento e morte. Em menos de um mês e meio, a farmacêutica apresentou então os resultados finais e, sem grandes demoras, em 16 de Fevereiro passado, saiu um artigo na revista científica New England Journal of Medicine.

    Se acham estranha a rapidez da publicação deste artigo – assinado por investigadores da Pfizer (que admiração!) – numa revista científica, que dizer então da celeridade na autorização de comercialização pela Food and Drug Administration (FDA)?

    Apenas 11 dias após a imprensa – que passou a constituir a fase crucial para convencer Governos e reguladores – ter divulgado os resultados obviamente extraordinários do Paxlovid, a Pfizer pediu autorização à FDA. Estávamos em 11 de Novembro do ano passado. No dia 22 de Dezembro, quase sem pestanejar, a FDA concedeu uma “autorização de uso de emergência”.

    Nunca outro medicamento teve aprovação tão rápida. E isto não é uma boa notícia.

    Israel seguiu logo os passos dos Estados Unidos, com uma autorização em 26 de Dezembro. E depois foi em cascata: Reino Unido em 31 de Dezembro e, por fim, a Agência Europeia do Medicamento (EMA) recomendou a autorização de comercialização condicional em 27 de Janeiro passado, deixando aos reguladores dos países europeus solicitar ou não mais testes.

    red apple fruit beside clear plastic bottle

    A euforia com que o Paxlovid foi recebido nos últimos meses somente encontra paralelo com o anúncio das vacinas contra a covid-19. Lembram-se?! Daquelas que iriam ter uma eficácia de quase 100%, que concederiam imunidade de grupo e até maior protecção contra as infecções. Lembram-se? Pois bem, os resultados são bem mais modestos, e tanto assim que as autoridades de Saúde – incluindo a nossa DGS – os escondem para uma avaliação independente.

    Mas para escoar o Paxlovid, a máquina de marketing da Pfizer ainda está mais oleada, mostrando uma “eficácia” extraordinária na perspectiva de obtenção dos máximos lucros no mais curto espaço de tempo.

    De facto, sem uma justificação plausível – e muito menos transparente –, o preço de cada tratamento de cinco dias de Paxlovid nos Estados Unidos custará quase 530 dólares, ou seja, aproximadamente 510 euros. Este deverá ser o preço estabelecido para a Europa.

    Os preços dos medicamentos já não reflectem, em grande parte dos casos, os custos de investimento, mas sim os previstos benefícios para a saúde individual e colectiva. Como o Plaxlovid está a ser “vendido” como um fármaco milagroso – apenas com base em ensaios clínicos realizados pela empresa e sem uma análise independente de longo prazo –, anunciando-se uma redução de 88% das hospitalizações, então a farmacêutica pode pedir um valor elevado desde que inferior ao custo de internamento dos doentes que seriam hospitalizados se o medicamento não existisse.

    Mas isso é fazer futurologia. O Paxlovid é um medicamento que não mostrou ainda provas. Não justifica compras massivas.

    Aliás, em epidemias, muitos medicamentos prometeram muito, e deram pouco, mas custaram muito. Tamiflu, há uma década, ou o Veklury (remdesivir), na pandemia da covid-19, surgem logo à lembrança. Milhões entregues de bandeja às farmacêuticas; resultados zero. Aliás, sobre o Tamiflu, da farmacêutica suíça Roche, corre ainda um processo judicial nos Estados Unidos por falsificação de dados que sobrestimaram efeitos benéficos.

    Artigo científico que “explica” como a Roche actuou para vender o Tamiflu em 2009.

    Aliás, quem quiser entender como funcionam as estratégias de marketing farmacêutico em tempos de pandemia, basta ler o artigo científico de 2017 intitulado “Pharmaceutical lobbying and pandemic stockpiling of Tamiflu: a qualitative study of arguments and tactics”, no Journal of Public Health.

    Mas a máquina da Pfizer quer mais do que vender aos países ricos. Sabe que pode maximizar o lucro se vender o Paxlovid aos países pobres com suposto preço de saldo. Até, supostamente, fica bem na fotografia. Não sejamos ingénuos: as margens de lucro serão muito menores, mas muitas mais vendas sempre dará mais lucro.

    E assim, sem perda de tempo, vimos a Pfizer a querer inundar os países pobres com Paxlovid. No passado dia 17 de Março, o Pool de Patentes de Medicamentos, apoiado pelas Nações Unidas, assinou acordos com 35 fabricantes de medicamentos genéricos na Europa, Ásia e América Central e do Sul para fabricar este fármaco e fornecê-lo em 95 países mais pobres.

    Dois dias mais tarde, os Centros Africanos de Controle e Prevenção de Doenças assinaram um memorando de entendimento com a Pfizer para fornecer Paxlovid com um preço de 25 euros.

    No início de Maio, a Pfizer estimava conseguir vender 22 mil milhões de dólares, até final deste ano, de Paxlovid, aproximando-se das receitas da vacina Cominarty (32 mil milhões de dólares).

    Obviamente, para esta estratégia ser bem-sucedida, além de uma imprensa ao seu serviço, a Pfizer precisa de pessoas como o Doutor Filipe Froes, um marketeer travestido de médico, que foi “chamado” para a peça da Visão Saúde.

    O pneumologista – que já foi o maior “impingidor” de remdesivir, da Gilead, que nos custou 20 milhões de euros sem préstimo algum, a troco de uns bons milhares de euros – está agora vocacionado para vender – e aqui sem aspas – o Paxlovid da Pfizer, tal como virá, certamente em breve, a vender também o Molnupiravir da Merck Sharpe & Dohme (MSD). Ele não é esquisito.

    Para que não se tenha dúvidas sobre a índole mercantilista de Filipe Froes – contra todas as regras éticas, deontológicas e até legais, tanto mais que é médico do SNS e consultor da DGS, integrando a equipa que define as terapêuticas anti-covid –, atente-se nas frases usadas pela (suposta) jornalista Mariana Almeida Nogueira (e mais ainda nas aspas que são declarações textuais deste pneumologista; os parêntesis rectos são meus):

    1 – Segundo o pneumologista Filipe Froes, perante o que está a acontecer agora em Portugal, a aposta deveria ser feita, precisamente, nas medidas que diminuem o impacto da gravidade da doença, “nomeadamente, o reforço da vacinação e um acesso mais fácil a outras terapêuticas, que já existem noutros países, como os anticorpos monoclonais neutralizantes e os novos antivíricos, dos quais o Paxlovid é um deles”.

    2 – Filipe Froes sublinha que “este tipo de medicamentos [novos antivíricos, como o Paxlovid] é muito bem vindo em Portugal e necessário nesta fase de combate à pandemia, que é diferente da fase inicial”.

    Filipe Froes

    3 – Segundo o médico, o fármaco [Paxlovid] “é essencial, sobretudo na altura em que nos encontramos, por contribuir significativamente na diminuição do impacto da gravidade e da mortalidade nas pessoas mais vulneráveis”.

    4 – Perante a importância do Paxlovid, surge a dúvida: Por que razão não está ainda disponível no nosso País? Desde janeiro, que a DGS estará a preparar uma norma “para a utilização o mais racional e equitativa possível deste medicamento”, afirma Filipe Froes [que integra a equipa da DGS que define as terapêuticas anti-covid].

    5 – O pneumologista considera o medicamento [Paxlovid] “essencial para controlar a circulação do vírus na comunidade e, sobretudo, para diminuir a gravidade da pandemia na população, sobretudo na mais vulnerável”.

    Acrescento eu, por fim, apenas mais uma nota: corre na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) uma queixa contra mim e contra o PÁGINA UM accionada pelo presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP), onde Froes tem um lugar de destaque. António Morais – o dito presidente, que também é consultor da DGS e do Infarmed, e não deveria ser por incompatibilidades legais – escreveu que “a SPP é uma associação sem fins lucrativos e não faz publicidade ou comércio de produtos farmacêuticos”, e que “a sua actividade é de natureza científica, recolhendo patrocínios e donativos para os seus objectivos estatutários, no escrupuloso cumprimento das normas em vigor”.

    É tudo “gente séria”! Neste caso, as aspas é porque, obviamente, estou a ser irónico.

  • Lei de Protecção em Emergência de Saúde Pública: um aborto antidemocrático ou um golpe de Estado?

    Lei de Protecção em Emergência de Saúde Pública: um aborto antidemocrático ou um golpe de Estado?


    Numa democracia não se deve proibir de discutir nada. Mas, em abono da verdade, deve haver temas que teremos mesmo de descartar para um debate aos primeiros sinais. Logo ao lermos as primeiras linhas. À cabeça deve estar a possibilidade de regressarmos à ditadura, ao regime de um homem-só, salvífico, protector e redentor.

    Ora, ler e aceitar a possibilidade de aprovar, a partir do anteprojecto conhecido, uma Lei de Protecção em Emergência de Saúde Pública (LPESP) é predispormo-nos a regressar à ditadura.

    Nem sequer me apetece discutir demasiado as minudências e consequências deste anteprojecto – de onde se destaca a possibilidade de uma autoridade de saúde, a mando de um Governo, impôr restrições às liberdades individuais e colectivas, sob pena de prisão.

    Apetece-me, sim, abordar conceitos, porque a democracia também são conceitos e princípios.

    red vehicle in timelapse photography

    O dito anteprojecto da LPESP começa logo mal. Diz que tem “por objeto o conjunto de procedimentos e ações, regulamentares, científicas, organizativas e materiais, com a finalidade de conter, tratar e eliminar as causas e as consequências de doenças que tenham por efeito gerar elevado risco ou provocar danos severos na saúde pública”.

    Note-se: inclui procedimentos científicos – os procedimentos da Ciência a serem regulamentados por legislação política. Começa bem, mesmo – ou melhor, começa mal.

    Depois, seguimos para o artigo 2º, referente às definições. Ler aquilo, deveria logo levar-nos a devolver ao remetente estas desgraçadas páginas. Portanto, uma “emergência de saúde pública” é, para os doutos autores desta lamentável peça, apenas uma manta de retalhos sem indicadores, sem métricas, sem Ciência, acabando por ser definida como uma “ocorrência extraordinária, ou a ameaça iminente, de uma doença ou condição de saúde (…) que constitua um risco para a saúde pública ou com efeitos graves no funcionamento de sectores críticos da sociedade e da economia”?

    Não admira que, desde as Descobertas, a Ciência nunca foi bem tratada em Portugal.

    Ademais, o conceito de “pandemia” e “epidemia” – que constituem factores para desencadear a suposta “emergência de saúde pública”, a par, entre outros, do bioterrorismo, de acidentes radiológicos ou nucleares, e de uma enigmática “ocorrência ambiental” – seria risível, se não configurasse um enorme perigo. No anteprojecto surgem como sinónimos e definidos, simplesmente, como “surtos de doenças de natureza e localização disseminada”.

    Minhas senhoras e meus senhores, aqui cabe tudo.

    traffic light sign underwater

    Um surto de gripe, num qualquer Inverno, pode transformar-se numa “emergência de saúde pública”. Até uma constipação.

    Uma nova variante do SARS-CoV-2 – das centenas e centenas que já se formaram, e mais haverá – pode alcandorar-se, num estalar de dedos, a uma “ameaça iminente” e lá temos a “emergência de saúde pública”.

    A própria possibilidade imprevista no tempo, mas previsível do ponto de vista histórico de surgir uma nova pandemia (tantas que já houve) pode sempre encaixar-se no conceito (não especificado) de “ameaça iminente”, e portanto pode accionar-se uma “emergência de saúde pública” hoje, amanhã, para a semana, quando o Governo estiver em queda de popularidade…

    Os serviços secretos “desenterram” uma sempre secreta ameaça de bioterrorismo? Hélas, aqui vai uma redobrada “emergência de saúde pública”.

    Um anúncio de “onda de calor” no Verão? Meta-se tudo dentro de casa e encerrem-se as praias.

    Extraordinário é ver que, de acordo com o artigo 6º do tal anteprojecto, é o Governo que decreta a “ocorrência extraordinária”, e somente tem de apresentar os “elementos disponíveis” e uma “análise de risco”. E em que deve consistir isso? Nada se diz. A Doutora Graça Freitas há-de inventar qualquer coisa.

    Sabendo como sabemos o obscurantismo da gestão da pandemia da covid-19 – com a recusa sistemática da Direcção-Geral da Saúde e do Infarmed, a par de uma “imprensa mansa” –, já se antevê que “elementos disponíveis” nos preparam, e que “análise de risco” nos mostrarão. Se for como os famosos e vergonhosos “relatórios de monitorização das linhas vermelhas”, estamos conversados.

    Mas o mais espantoso neste anteprojecto – que deveria envergonhar qualquer pessoa com uma sinapse de pendor democrático – é que todas estas decisões políticas – apenas políticas – desencadeiam depois a constituição de um Conselho Científico. Pasmo absoluto: uma decisão que deveria ser baseada sobretudo em Ciência – ou previamente ratificada por cientistas –, acaba por ser uma decisão política de um Governo que depois vai procurar “cientistas” que digam ámen.

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    A fantochada anti-democrática chega ao ponto de determinar, no artigo 39º e seguintes, que o Conselho Científico, sendo um “órgão pluridisciplinar de apoio à decisão”, é nomeado imediatamente pelo Governo, sendo que seis dos nove membros são escolhidos pelo próprio primeiro-ministro. E outros três por entidades políticas (Assembleia da República e Governos Regionais). Coisa nunca vista em democracia.

    Gente sem escrúpulos e ausentes de “coluna vertebral”, como uns Filipes Froes ou umas Raquéis Duarte, terão certamente, nestes Conselhos Científicos, a sinecura que ambicionam. E farão todos os fretes políticos que lhes solicitarem. Serão mais papistas do que o papa.

    Aliás, serão cooperantes, até porque o anteprojecto não se esquece de vincar o direito a mordomias – leia-se “regime de compensação pelo exercício de missão” – determinadas por despacho do primeiro-ministro, e com a possibilidade de perpetuarem o posto, porque o dito Conselho Científico “mantém-se em funções até à declaração de cessação da emergência de saúde pública”.

    Posto tudo isto, escalpelizar o articulado deste anteprojecto de “aborto antidemocrático” – que, em súmula, aplica aquilo que foi a gestão da pandemia – acaba por ser exercício desnecessário.

    Isto não pode sequer chegar ao nível de uma discussão em Assembleia da República. E aprovar um diploma deste jaez equivale a Golpe de Estado; é accionar um mecanismo que pode transformar uma democracia numa ditadura quando o primeiro-ministro quiser.

  • O dilema de Augusto Santos Silva: assumir-se falhado ou ser ditador?

    O dilema de Augusto Santos Silva: assumir-se falhado ou ser ditador?


    O novo presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, esteve muito bem quando, no dia 8 de Abril, passado interrompeu um habitual discurso xenófobo de André Ventura contra os ciganos, para lhe dizer: “Permita-me que o interrompa para lhe dizer que não há atribuições coletivas de culpa em Portugal e, portanto, solicito-lhe que continue livremente a sua intervenção, como tem direito, mas respeitando este princípio.”

    Perante o ar escandalizado do líder do Chega por esta inusitada interrupção, Augusto Santos Silva justificou-a com o n.º 3 do artigo 89º do Regimento do nosso Parlamento: “O orador é advertido pelo Presidente da Assembleia da República quando se desvie do assunto em discussão ou quando o discurso se torne injurioso ou ofensivo, podendo retirar-lhe a palavra”.

    Augusto Santos Silva no passado dia 8 de Abril, enquanto repreendia André Ventura.

    Há, porém, um detalhe neste artigo que, em democracia, estando previsto, acaba por ser um abuso se usado. Com efeito, nenhumas dúvidas sequer éticas ou morais assistem a que Ventura, ou outro qualquer deputado de qualquer partido, seja advertido pelo Presidente da Assembleia da República “quando o discurso se torne injurioso” – como, e muito bem, repita-se, fez Augusto Santos Silva. Porém, se o presidente do Parlamento avançar com a parte final do artigo – “podendo retirar-lhe a palavra” –, já consubstancia, mesmo se previsto no regimento, uma “possibilidade” de abuso.

    Eu acho que Ventura deve ser advertido e contestado as vezes que forem necessárias. E serão muitas. E muitos outros também devem ser advertidos se for caso disso. Mas, numa democracia, retirar a palavra, impor o silêncio, ainda mais num Parlamento, é algo contra-natura; aí “derrotam-se” ideias ou argumentos com palavras; não com imposições de silêncio.

    Julgar que se derrotam ideias, mesmo se más ou nefastas, com silêncio em vez de ser com palavras é um erro.

    Numa sociedade democrática jamais se pode impor ideias ou argumentos restringindo a liberdade de expressão e de opinião. Isso fazem as ditaduras. A diferença entre uma ditadura e uma democracia não se estabelece apenas pela questão do sufrágio; isso é quase um pormenor.

    Por isso mesmo, fico extremamente preocupado perante uma pergunta “retórica”– mas não ingénua – do mesmo Augusto Santos Silva, anteontem num encontro com jovens, em que abordou a velha questão da “desinformação”. Disse ele, passo a citar: “A pergunta que se coloca hoje é saber se o nível de ódio, de desinformação e até de violência que assaltou as redes sociais nos obriga ou não a ser um pouco menos minimalistas e um pouco mais avançados nesta regulação dos conteúdos das redes sociais”.

    aqui defendi que a “desinformação” é uma externalidade negativa da existência da democracia; e que se uma democracia anunciar o fim da “desinformação” por decreto – passando a definir o que é verdade, podendo transformar as “verdades incómodas” em “desinformação” –, então passa a ser uma ditadura. Sem tirar nem pôr.

    Ora, numa democracia pouco sólida – o mesmo se aplicando a uma ditadura –, facilmente se cai no abuso de rotular “desinformação” uma simples opinião minoritária, não necessariamente errada. Uma democracia pouco sólida tende assim a decretar o fim da “desinformação” usando, mesmo que eufemisticamente, as mesmas armas das ditaduras para controlar a liberdade de expressão: a censura e o silenciamento, através de leis ou comissões.

    Ao invés, numa democracia sólida, a “desinformação” é auto-regulada – se for mesmo sinónimo de “falsa informação” –, e tende a ser reduzida ou eliminada pelo debate de ideias e pela liberdade de expressão. E sucede através de um processo pacífico – e não político ou governamental –, porque a sociedade tem, per si, e de forma inculcada na esmagadora maioria das pessoas, elevados padrões de Educação e de Cultura. E de convivência democrática, passe o pleonasmo.

    Assim, quanto mais bem-sucedidas tiverem sido as políticas públicas de um país na área da Educação e da Cultura, menor será a probabilidade de proliferação de “desinformação”, e maior será a probabilidade de termos debates de ideias onde até as opiniões minoritárias tenham oportunidade de dirimir argumentos – e serem justamente sublimadas como verdades, ou eliminadas como falsidades.  

    Ora, nem de propósito, o senhor Professor Doutor Augusto Santos Silva – com um impressionante currículo académico e político – já foi tanto ministro da Educação (2000-2001) como ministro da Cultura (2001-2002). Pertenceu a Governos durante 14 anos.

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    Os seus Governos, e ele, falharam em incutir melhores padrões de Educação e de Cultura. Não conseguiu ele, por essa via, reduzir (ou eliminar) a “desinformação”.

    A pergunta retórica do presidente da Assembleia da República só demonstra o quão débil se encontra a nossa democracia.

    Não queiramos, não permitamos que ele, Augusto Santos Silva, por eventualmente se sentir um falhado político como membro de tantos Governos, queira acertar agora como presidente da Assembleia da República promovendo a eliminação da “desinformação” por decreto. E deitando fora, nesse nefasto processo, os princípios democráticos, e brindando-nos com uma ditadura. Sem tirar nem pôr.

    Estou, em todo o caso, esperançoso que Augusto Santos Silva – com a sua proposta de controlar a “desinformação” através de uma alteração da Constituição da República – tenha tido apenas uma má ideia no sítio certo, na Assembleia da República. Afinal, lembremo-nos das suas palavras no passado dia 29 de Março, aquando da sua tomada de posse: “Todas as ideias podem ser trazidas, mesmo as que contestam a democracia. Essa é a mais óbvia vantagem da democracia sobre a ditadura”. Touché.

  • Um guia desperdiçado

    Um guia desperdiçado

    Título

    Lisboa em 10 histórias

    Autores

    JOKE LANGENS e DIRK TIMMERMAN (tradução: Pedro Branco e Marta Jacinto)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Março de 2022)

    Cotação

    10/20

    Recensão

    Por vezes, são os estrangeiros que, pelos seus olhos, nos revelam o quão bela e pitoresca é a nossa cidade. São eles que, amiúde, nos convencem, no entusiasmo dos seus encómios e deslumbres, a desfrutar de pequenas maravilhas que, por tão presentes no nosso quotidiano, nos escapam, se esfumam no bulício das nossas trepidantes e alheadas vidas.

    Por esse motivo, aprecio sempre a visão dos estrangeiros sobre Portugal e, particularmente, Lisboa. Na historiografia portuguesa e olisiponense, sobretudo dos séculos XVIII e XIX, são célebres os relatos dos costumes e paisagens por olhos estranhos, para o nosso bem e para o nosso mal, pela visão de estrangeiros como Charles Fréderic de Merveilleux, Charles Brockwell, Joseph Baretti, Charles François du Périer (conhecido por Dumouriez), James Murphy e, em especial, Lord Byron.

    Não se exigiria que Lisboa em 10 Histórias, da belga Joke Langens (em parceria com Dirk Timmerman, que curiosamente não aparece na capa), publicada pela Casa das Letras, viesse refazer essa tradição do quotidiano de uma cidade desvendada por olhos estrangeiros para surpreender também os nativos.

    Mas, convenhamos, sendo este livro, como todos, uma aposta editorial – que assim “condicionará” a possibilidade de outro projecto similar nascer nos tempos mais próximos –, esperar-se-ia que fosse exigido muito mais. Dos autores e da edição.

    Com efeito, Lisboa em 10 histórias anuncia na badana que na capital “não existe esquina, passeio ou recanto (…) que não esteja repleto de histórias por contar”, mas depois reduz-se a um mero repositório, em quase toda a sua extensão, de descrições como que retiradas de um qualquer vulgar compêndio histórico, cheio de lugares-comuns ou mesmo baseando-se em mitos sem sustentação na História.

    Um dos casos mais marcantes (ou chocantes, pelo menos para mim) surge no capítulo sobre o terramoto de Lisboa, onde o papel supostamente pragmático do futuro marquês de Pombal é, também aqui, artificialmente sublimado. Um erro crasso. E também erradamente se salienta uma falsa rapidez na reconstrução da chamada Baixa Pombalina, que, na verdade, demorou décadas.

    Isto já sem falar na questão religiosa, que também de forma errada é abordada: na verdade, nunca houve, naqueles tempos, uma visão científica sólida que defendesse a causa natural dos terramotos, e uma das primeiras medidas régias pós-terramoto até foi o pedido ao Papa para que o jesuíta São Francisco de Borja fosse “tido como patrono e protector” do Reino de Portugal contra novas calamidades deste género. Só a queda em desgraça dos jesuítas, após o atentado ao rei D. José I, terminaria com esta veneração.

    Enfim, não ajuda na apreciação desta obra que logo a seguir, na sua quarta história, seja apresentada uma temerária tese logo no título: “Como Napoleão criou de forma involuntária o Fado”. A sequência de acontecimentos que os autores associam Napoleão ao fado são, na verdade, risíveis, e no mínimo são mais fracos do que aqueles que aliariam, se alguém assim quisesse, D. Afonso Henriques à nossa mais célebre forma de canto. Dizer que a História do Fado aqui retratada é demasiado forçada é um eufemismo.

    Com estas duas “maleitas”, o livro tem depois dificuldades em se redimir. Embora a escrita seja escorreita, o registo nunca excede o tom jornalístico, demasiado descritivo, sem rasgos nem chama, mesmo quando o tema é a calçada portuguesa, a recuperação do Chiado, a Lisboa dos hotéis e seus espiões, a frente ribeirinha da Expo, os elevadores e eléctricos que dominam as colinas, ou a arte urbana – capítulo, aliás, de uma inaceitável pobreza franciscana, por se ater somente às obras do artista plástico Bordalo II.

    O livro tem também uma enorme, enormíssima falha, pouco compreensível numa editora prestigiada. A escolha das fotografias é fraca, do ponto de vista qualitativo, os locais não estão identificados em legenda (portanto, impossível de ser visitado numa edição com pretensões a ser um guia), e existem falhas gritantes.

    Não se compreende, por exemplo, que o capítulo do terramoto não tenha a foto de um dos seus símbolos – as ruínas do convento do Carmo –, e depois surjam três fotos distintas deste monumento no capítulo referente à recuperação do Chiado após o incêndio de 1988. O fogo não chegou às imediações do Largo do Carmo, ó céus! E, no capítulo do fado, nem um(a) fadista ou uma casa de fado com o seu ambiente nocturno para amostra.

    O livro terá tido editor?

  • A imoralidade da CNN Portugal, uma espécie de ‘escalracho’ que abafa a Democracia

    A imoralidade da CNN Portugal, uma espécie de ‘escalracho’ que abafa a Democracia


    Cinquenta dias depois de uma deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, e 132 dias após um pedido formal, ao abrigo da Lei da Imprensa, a CNN Portugal publicou finalmente, ontem, o meu direito de resposta em reacção ao seu artigo difamante de 23 de Dezembro do ano passado em que acusou o PÁGINA UM de ser uma “página negacionista”. Em causa estava um isento, rigoroso e irrepreensível artigo de investigação jornalística do PÁGINA UM sobre o verdadeiro impacte da pandemia nas crianças, usando dados oficiais mas anonimizados.

    Se a notícia ultrajante da CNN Portugal tivesse sido obra parida apenas pela verve de um desastrado e imberbe jornalista-estagiário, de seu nome Henrique Magalhães Claudino, ainda eu admitiria que, enfim, estaríamos apenas perante um futuro mau jornalista, o resultado sinérgico de uma inadequada supervisão e de evidentes deficiências estruturais de formação ética e deontológica.

    Apenas 50 dias após a deliberação da ERC, a CNN Portugal publicou direito de resposta do PÁGINA UM.

    Mas, comportando-se a CNN Portugal como se comportou, não podemos ser ingénuos: foi a direcção editorial que usou um jornalista-estagiário para fazer o “jogo sujo”, um frete, uma tentativa de assassinato de carácter do PÁGINA UM, de um órgão de comunicação social que nascera com um cunho de inquebrável e inquebrantável independência. E que já então estava a incomodar, e mais incomodou ao longo dos últimos meses, uma certa clique da imprensa mainstream e do sector médico (que, aliás, profusamente debitou ataques à investigação do PÁGINA UM).

    A CNN Portugal – que tem, na sua direcção tripartida, três jornalista que não nasceram ontem: Nuno Santos, Frederico Roque de Pinho e Pedro Santos Guerreiro – portou-se, neste lamentável episódio, com uma inqualificável arrogância, com a arrogância parola de um franchise televisivo falho e falhado de valores éticos e deontológicos.

    Recusaram, primeiro, a publicação voluntária do direito de resposta em finais de Dezembro do ano passado.

    Recusaram assumir que difamaram um colega de profissão e nem esboçaram um pedido de desculpas nem arrependimento nem vergonha.

    Mantiveram uma postura lastimável no processo levantado pela ERC ao longo dos primeiros meses deste ano de 2022.

    Os directores da CNN Portugal: Frederico Roque de Pinho, Nuno Santos e Pedro Santos Guerreiro.

    Borrifaram-se durante 50 longos dias na deliberação da ERC, conhecida em 13 de Março passado, mesmo sob o risco de pagarem uma multa de 500 euros diários.

    E só agora publicam o direito de resposta, após o PÁGINA UM pressionar a ERC para que fizesse cumprir a sua deliberação de Março passado.

    Todo este episódio é lamentavelmente revelador do estado da imprensa mainstream.

    Esta gente conspurca uma nobre profissão.

    Uma democracia não os merece. Uma democracia amadurecida não deveria suportar tê-los.

    O PÁGINA UM nasceu também por causa deste tipo de jornalismo, deste jornalismo da CNN Portugal. Porque uma má imprensa é o escalracho da Democracia: é erva daninha que, parecendo viçosa, a infesta; e deve ser arrancada para que possamos ambicionar melhores ares, uma melhor paisagem.


    TEXTO INTEGRAL DO DIREITO DE RESPOSTA PUBLICADO PELA CNN PORTUGAL EM 4 DE MAIO DE 2022

    Publicado por determinação da Deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social n.º ERC/2022/78 (DR-TV), adotada em 9 de março de 2022, nos termos do disposto no art.º 69.º da Lei n.º 27/2007, de 30 de julho

    1. Apesar de ostensivamente ser omitido na notícia da CNN Portugal “Covid-19: dados confidenciais de crianças internadas em UCI partilhados em página negacionista”, da autoria do jornalista-estagiário Henrique Magalhães Claudino, alvo posteriormente de comentários/entrevista de um médico em antena a partir das 9:12 horas no dia 23 de Dezembro de 2021, em causa está um trabalho jornalístico da minha autoria — jornalista com carteira profissional (CP 1786) — publicado num órgão de comunicação social registado na Entidade Reguladora para a Comunicação Social sob o número 127661. O site do PÁGINA UM encontra-se no sítio https://srv700518.hstgr.cloud, e o artigo em causa está no seguinte endereço: https://srv700518.hstgr.cloud/2021/12/10/covid-19-em-criancas-zero-mortes/. O PÁGINA UM, como outros órgãos de comunicação social, possui uma página específica na rede social Facebook.
    2. Como jornalista trabalhei em órgãos de comunicação social como o semanário Expresso e Grande Reportagem, além de colaborações regulares no Diário de Notícias. Embora com um interregno de 10 anos, que agora reactivei, sempre pautei a minha actividade jornalística pelos mais elevados padrões éticos e deontológicas, e de isenção e rigor. O PÁGINA UM pauta-se por estritas regras deontológicas e de independência, tendo publicado no seu site um Código de Princípios e uma Declaração de Transparência. Possuo, além disso, e para além de formação académica diferenciada (três licenciaturas e um mestrado), formação na área em apreço, sendo até sócio aceite pela Associação Portuguesa de Epidemiologia.
    3. Qualquer acusação, explícita ou implícita, de eu e/ou o PÁGINA UM seguirmos movimentos ou grupos ditos de negacionismo em redor da pandemia é profundamente difamatório e lesivo do meu nome e do jornalismo independente.
    4. Fui, aliás, membro eleito no Sindicato dos Jornalista para o seu Conselho Deontológico no biénio 2007-2008. Conheço, reconheço e sempre coloquei em prática, com escrúpulo, todas as regras deontológicas e éticas, seguindo o interesse público. As informações que transmiti no artigo noticioso em causa são manifestamente de interesse público numa democracia.
    5. A CNN Portugal, através do seu jornalista-estagiário Henrique Magalhães Claudino (TP886), contactou-me ontem pelo meu e-mail profissional pavieira@paginaum.pt, não podendo assim ignorar que o texto em causa era de um jornalista e de um órgão de comunicação social (PÁGINA UM), e jamais poderia, de forma difamatória e ultrajante, rotulá-la de “página negacionista”. Não lhe fiz declarações formais.
    6. A seu pedido, a jornalista da CNN Portugal Catarina Guerreiro teve também acesso, por um intermediário (que é jornalista), ao meu contacto telefónico, sabendo assim ela também que eu sou jornalista. Apesar disso, esta jornalista da CNN Portugal nunca me contactou.
    7. Não há memória, na História recente da Imprensa Portuguesa, de um órgão de comunicação social claramente independente (sem publicidade e sem parecerias comerciais) ser atacado de forma tão vil, e apelidado de “página negacionista” por um órgão de comunicação social de um importante grupo empresarial. E ser ainda acusado de propalar alegada informação falsa, ademais omitindo, intencionalmente, elementos essenciais.
    8. Como jornalista, a informação que revelei na notícia publicada agora no site do jornal PÁGINA UM é factual e fidedigna, anonimizada, cumprindo os preceitos de interesse público e de reserva da vida privada, cumprindo escrupulosamente o código deontológico dos jornalistas. Ademais, a própria Comissão Nacional de Protecção de Dados já admitiu, na notícia da CNN, que “a informação, embora detalhada do ponto de vista clínico, não parece de per si permitir identificar os titulares dos dados.” Aliás, os dados em causa são oficiais, e chegaram-me já anonimizados, podendo (e devendo até) ser divulgados publicamente, por constituírem uma base de dados, cujo acesso é previsto pela Lei de Acesso aos Documentos Administrativos.
    9. A notícia da CNN destaca a opinião de cinco médicos que criticam a divulgação dos dados pelo PÁGINA UM, mesmo se anonimizados, entre os quais um dirigente da Ordem dos Médicos. Saliente-se que o PÁGINA UM está, neste momento, com uma queixa na Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos perante a recusa da Ordem dos Médicos em ceder informação sobre um donativo da farmacêutica Merck no valor de 380.000 euros. O PÁGINA UM tem estado, também, a preparar a publicação de uma investigação sobre o financiamento de mais de seis dezenas de sociedades médicas, sendo que todas o sabem, porquanto foram atempadamente contactadas para esclarecimentos.
    10. O PÁGINA UM considera estranho que nenhum outro órgão de comunicação social, nem a Ordem dos Médicos, tenha criticado a Direcção-Geral da Saúde por revelar, na passada semana, dados clínicos sigilosos (situação vacinal) de uma jovem de Braga, esta sim perfeitamente identificada pelo nome, que sofreria de síndrome de Dravet, e que morreu com covid-19. Isso sim foi uma revelação de dados clínicos sigilosos por uma entidade estatal. O PÁGINA UM nunca revelou qualquer nome nem local de residência de crianças internadas em cuidados intensivos.
    11. Informo ainda que irei entrar com processos de difamação — crime neste caso agravado por ser cometido através da Imprensa — contra o senhor Henrique Magalhães Claudino, jornalista-estagiário da CNN Portugal, e contra os directores de informação da CNN Portugal, senhores Nuno Santos, Pedro Santos Guerreiro e Frederico Roque de Pinho.
    12. Alerto ainda que qualquer órgão de comunicação social e/ou pessoa que divulgue os artigos acima referidos, ou que faça referências difamatórias contra mim e/ou contra o PÁGINA UM — numa tentativa vergonhosa de condicionar a liberdade de imprensa constitucionalmente defendida —, colocando em causa a minha honra e bom nome, poderá vir a ser alvo de similares processos judiciais.

    Lisboa, 23 de dezembro de 2021
    Pedro Almeida Vieira
    Diretor do PÁGINA UM

  • A desinformação só não existe em sistemas não-democráticos; portanto: Viva a Desinformação!

    A desinformação só não existe em sistemas não-democráticos; portanto: Viva a Desinformação!


    A desinformação é uma externalidade negativa da democracia, prejudicial para as sociedades. Mas também é um indicador da saúde de uma democracia. A sua existência, visível e “palpável”, indicia que a democracia existe. E a sua existência é benéfica para as sociedades.

    Explico melhor: a desinformação – sendo um desvio da verdade e da realidade – advém exclusivamente da possibilidade de existir liberdade de expressão e informação livre, e estas só podem ser concebidas numa democracia. Sem liberdade não existe diversidade de opinião; sem diversidade de opinião, não existe possibilidades de alcançarmos a verdade, que nem sempre é óbvia, nem sempre surge pelo caminho mais fácil e comummente observável.

    Basta-nos hoje olhar para a verdade em torno da teoria heliocêntrica: se acreditamos agora que a Terra roda à volta do Sol, e não o contrário, não é porque a esmagadora maioria de nós confirmou esse fenómeno (pelo contrário, o Sol aparentemente move-se de este para oeste), mas sim porque houve provas científicas que o comprovaram e, embora demorando séculos e séculos, se inculcaram como Verdade.

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    A dificuldade que essa Verdade teve em se impor deveu-se exactamente à ausência de liberdade de expressão e de informação livre; à ausência de um sistema democrático livre. De facto, a teoria heliocêntrica de Galileu foi, em tempos, considerada uma heresia, uma falsidade. Nem sequer era desinformação, porque nem poderia circular. Não tinha sequer existência.

    Actualmente, em países como a Coreia do Norte, a China, mesmo na Rússia, e em muitas outras partes do Mundo, a desinformação continua a não existir. Existe sim um controlo estatal ou institucional que impõe uma verdade única e absoluta: essa é a “informação”, inquestionável, dogmática, a qual pouco importa se se sustém sobre a realidade. A “informação” oficial sobrepõe-se à realidade; impõe-se perante a realidade; molda a realidade em si mesma.

    Ora, nesta linha de raciocínio, conclui-se que num sistema político que bloqueie a liberdade de expressão e de circulação de ideias não existe desinformação, porque, não havendo essa necessária liberdade democrática, não há lugar a “segundas opiniões”. A mentira (associada à desinformação, mas feita pelo poder), sendo imposta, passa a “verdade oficial”, logo é “informação”. E, perante isso, a realidade molda-se, e a verdade (e a realidade) arrisca-se a poder ser, numa bitola independente, a “desinformação”.   

    Contudo, na verdade – e perdoem-me o pleonasmo –, mesmo em sistemas democráticos a verdade tem vindo a arriscar surgir como uma imposição. Alguma verdade já não se plasma apenas com argumentos científicos, empíricos, etc.. Começa já a ser manipulada pelos poderes políticos, financeiros, económicos, por lobbies, por clubites.

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    Com a falácia de a “desinformação” ser agora um “bicho-papão” disseminado e incontrolável nas redes sociais, temos agora falsos arautos da democracia, até de cravo na lapela no 25 de Abril, a defender de forma tenaz, e com uma tenaz, uma linha, uma narrativa, uma orientação por vezes normativa para constranger alguém ou um grupo de assumir, sem sofrer um qualquer grau de censura, uma qualquer posição contrária.

    Vimos isso durante a pandemia.

    Vemos isso durante a Guerra da Ucrânia.

    Temo que vejamos isso nos tempos futuros, em outras circunstâncias e eventos, pelas marcas indeléveis que pandemia e Guerra da Ucrânia deixarão mesmo nas sociedades mais desenvolvidas.

    Caminhamos, sem nos apercebermos, para uma democracia distópica. Para uma democracia em que todas as nossas opiniões são bem-vindas desde que não colidam com temas sensíveis, mas se houver temas sensíveis, mediáticos e mediatizados até ao supremo absurdo, então passará a haver uma obrigação de opinar, embora apenas para dizer amén: sofreremos censura se discordarmos, se dissermos um simples “mas”, e até se calhar se quisermos não dar a opinião. Até o silêncio passará a ser suspeito.

    Mesmo correndo eu o risco de, escrevendo nos dias de hoje este simples texto, ser apelidado de um sem-número de epítetos por qualquer pessoa com a quarta classe e opiniões obtidas por osmose de um qualquer Rodrigo Guedes de Carvalho, não posso deixar de defender a existência da desinformação.

    Viva a desinformação, deverei gritar mesmo, porque ela é e será o principal sintoma da existência da democracia. E sobretudo, porque não quero correr o risco de termos um qualquer Galileu no século XXI que seja censurado e obrigado a abjurar porque as suas teses são contrárias a uma imposta narrativa oficial.

    Mas estou eu a defender que a desinformação é bem-vinda?

    Claro que não. Apenas que ela é intrinsecamente humana. É uma decorrência da democracia, da liberdade. Basta conhecer um pouco de História, ler alguns livros antigos, para constatar a existência de montanhas de mentiras e cordilheiras de absurdos, em muitos casos vistos e tidos como verdades na época, e por vezes sem maldade, mas apenas por ignorância. E boatos, rumores, balelas, atoardas e rumorejos sempre existiram antes sequer do surgimento da comunicação social ou das redes sociais.

    Aquilo que estou a defender é que não se elimina a desinformação com medidas anti-democráticas, com o silenciamento, com a censura, com a discriminação de pessoas ou grupos com pensamentos diferentes (mesmo se aparentemente obtusos), porque, parecendo à primeira vista benéfico, traz consequências terríveis a curto e a longo prazo.

    Não se pode correr o risco de a censura errar. Ou não podemos correr o risco de dar o poder da censura a ninguém, mesmo a alguém que jure a pés junto que é democrata.

    Aliás, um democrata que aceite um “bastão“ da Censura, que se assuma “bastonário da Verdade”, deixa automaticamente de ser um democrata.

    Em sistemas democráticos temos de saber conviver com a inconveniência da desinformação, da mentira, do logro, enquanto fazemos esforços para amenizar os seus efeitos nefastos, encontrando “medicamentos” para eliminar umas quantas “variantes”, mas sabendo que outras surgirão.

    selective focus photography of iPhone on MacBook

    Esses “medicamentos” passam pela Educação, pela informação, pela transparência da Administração Pública, pelo debate, pela argumentação, pela Ciência. Nunca por uma lei, nunca por um algoritmo, nunca pela censura.

    Na verdade, nunca eliminaremos a desinformação enquanto tivermos democracia. No momento em que alguém gritar, satisfeito, que acabámos com a desinformação, estará a congratular-se com o fim da democracia.

    Não caiamos, por isso, na tentação de considerar legítimo que algoritmos em computadores remotos ou em clouds censurem a suposta desinformação, que empresas privadas pré-censurem ou “expulsem” da comunidade aqueles que mentem, aqueles que enganam, aqueles que produzem discursos de ódios e de violência.

    Para esses, antes das redes sociais, antes das empresas como o Facebook ou o Twitter, existe um poder disciplinador e regulador: a Justiça. Não tem meios para os novos desafios? Que seja: forneçam-se. Não deixemos essa função social, que deve ser rápida e eficaz, mas moderada, aos algoritmos e às empresas privadas. Essas são funções que foram acometidas à Justiça pelos cidadãos de uma democracia. Não se privatizam nem se “desumanizam”.

    Mas, além disto, para lutar contra a desinformação em sociedades democráticas – nas outras, a questão coloca-se mais a montante: encontrar mecanismos para as tornar democráticas primeiro –, a comunicação social deve assumir o seu papel de regulador e de árbitro, com base em legitimidade assente na confiança.

    Porém, tem a imprensa aí falhado rotundamente nos últimos anos. Não apenas porque a sua independência (financeira, ética, etc.) há muito se questiona já, o que coloca em causa o seu papel de árbitro da verdade, por falta de credibilidade. Mas sobretudo porque deixou de questionar, de pressionar, de exigir justificações. E, em muitos casos, passou mesmo a ser adepta fervorosa de formas de censura. E a praticá-la.

    Por isso, quando leio, como crocodilos lacrimejantes, certos jornalistas queixarem-se da desinformação e a defenderem regras censórias, dá-me vontade de os mandar a um certo sítio.

  • Nova fase, mesmos objectivos: a independência do PÁGINA UM que depende(rá) dos leitores

    Nova fase, mesmos objectivos: a independência do PÁGINA UM que depende(rá) dos leitores


    A génese do PÁGINA UM foi fruto de um desafio, em Outubro do ano passado: saber se seria possível confiar-se num antigo jornalista – “inactivo” durante uma década e sem rede de influências, mesmo tendo passado por alguns dos mais importantes órgãos de comunicação social – para sozinho, ou praticamente sozinho, “refundar” a imagem do jornalismo como um dos pilares da democracia em Portugal.

    Poderia – e poderá – ser presunção considerar que um só jornalista, um só jornal, ainda mais sem um grupo económico na sua base, tenha capacidade para mudar alguma coisa.

    Porém, algo que a pandemia veio confirmar nos últimos dois anos, foi a crise estrutural – de preparação, de valores, de ética – da comunicação mainstream em Portugal. E não apenas em Portugal. E, nessa medida, sempre acreditei que, perante este “estado de coisas”, seria possível uma só pessoa fazer a diferença.

    Porém, quando se diz que uma só pessoa pode fazer a diferença, fica subentendido que a sua acção pressupõe mais acções (ou reacções).

    Pedro Almeida Vieira, Bartolomeu Costa Macedo, Rita Pinto Coelho de Aguiar, Luís Gomes e Nuno André, sócios da Página Um, Lda.

    E o PÁGINA UM tem sido isso: um fluxo de acções e reacções.

    Em 21 de Dezembro, cerca de dois meses após esse apelo de Outubro, o PÁGINA UM nasceu como jornal digital registado como jornal digital na Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Tinha já uma pequena redacção e sede em pleno Bairro Alto, começava a levantar muitos assuntos incómodos e a escrever sem temores nem reverências.

    E sobretudo tinha, tem e terá no seu ADN a “sequência genética” de uma independência inquestionável: um jornal sem publicidade, sem parcerias comerciais e apenas dependente dos apoios pontuais ou regulares dos seus leitores.

    Em quatro meses de existência, o PÁGINA UM tem tentado demonstrar que é um jornal diferente, incomodativo, intransigente na defesa dos valores democráticos e da transparência. Não tememos incomodar.

    E, por esses motivos, temos feito exigências de informação que outros órgãos de comunicação social não arriscam fazer (porque perderam os seus valores).

    Por esses motivos, temos agora – e muito graças aos leitores – uma linha estratégica de obtenção de informação através dos processos de intimação no Tribunal Administrativo, recorrendo ao FUNDO JURÍDICO financiado por apoiantes individuais.

    Começámos logo com um processo contra o Conselho Superior da Magistratura para mostrarmos que confiamos na Justiça, mas sabendo que os mecanismos da Justiça devem também ser escrutinados numa democracia. E seguimos com outro sobre o Infarmed. E haverá mais, incluindo a Direcção-Geral da Saúde, um caso crónico e doentio de intolerável falta de transparência.

    E sabemos que seremos atacados por essa independência, como já sucedeu. E como vai suceder ainda mais.

     Para o crescimento e consolidação do PÁGINA UM – para que consiga dar um salto qualitativo e quantitativo, assente nos seus princípios de “jornalismo independente dependente dos leitores” – foi decidido que seria mais adequado constituir uma estrutura minimamente profissional para o jornal, mas cumprindo o Código de Princípios que então assumi perante os leitores e apoiantes: “até Junho de 2022, e tendo em consideração a sua evolução, comprometo-me a definir um modelo mais empresarial para o PÁGINA UM. Caso a solução encontrada seja a constituição de uma empresa, em nenhuma circunstância terei uma posição minoritária. A minha posição dominante no PÁGINA UM é um bem inalienável.”

    Ontem foi dado esse passo.

    O PÁGINA UM passará, no futuro, a ser gerido por uma pequena empresa denominada PÁGINA UM, Lda., com um capital social de 10.000 euros, e que me terá como sócio maioritário (70%). Os outros 30% do capital social estão distribuídos por Bartolomeu Costa Macedo (10%) Rita Pinto Coelho de Aguiar (10%), Luís Gomes (5%) e Nuno André (5%).

    Luís Gomes é um dos colunistas habituais do PÁGINA UM.

    Nuno André é um dos jornalistas “residentes” do PÁGINA UM, e do qual podem esperar, muito em breve, interessantes novidades.

    O Bartolomeu e a Rita são duas das pessoas que acolheram o PÁGINA UM desde o seu início, ainda como projecto embrionário, permitindo que pudesse ter um espaço físico para a sua consolidação em pleno coração de Lisboa.

    No futuro entrarão novos sócios, sempre com posições simbólicas, e uma garantia: enquanto eu estiver a dinamizar o PÁGINA UM, serei o seu sócio maioritário, como um pilar do desafio inicial de Outubro de 2021.

    Não esquecerei as circunstâncias especiais do nascimento deste projecto nem os apoios que me foram concedidos.

    Apesar da criação desta estrutura empresarial do PÁGINA UM continuará a viver do apoio dos seus leitores, mais ainda pela abertura das notícias mesmo para quem não o apoie.

    Mas isso vai exigir um esforço suplementar dos leitores que desejam um jornalismo independente.

    Neste momento, os recursos financeiros do PÁGINA UM são extremamente escassos, e não permitem mais do que até agora, e com um esforço pessoal que dificilmente tem sustentabilidade no futuro neste nível de exigência.

    Contamos, por isso, agora que teremos uma estrutura mais dinâmica, que os apoiantes do PÁGINA UM vejam no jornal uma aposta num projecto (ainda mais) sério, credível, consolidado mas também com os meios financeiros que lhe permita um desafogo para mais e novas lutas.

    O nosso lema é e será sempre “PÁGINA UM: o jornalismo independente DEPENDE dos leitores”.

    E isto para nós, para mim, significa que se o PÁGINA UM deixar de poder depender apenas dos leitores, porque não há um número suficiente, então preferiremos desaparecer. Ou, pelo menos, eu decidirei sair do projecto.

    Pedro Almeida Vieira, director do PÁGINA UM e sócio maioritário da PÁGINA UM, Lda.

    Nota: Quando diversos trâmites burocráticos forem concluídos, será publicada a escritura do PÁGINA UM, Lda.. Em todo o caso, esta alteração obrigará, dentro dos prazos estabelecidos, a alterar o registo do PÁGINA UM na ERC, o que implicará posteriormente o cumprimento de normas mais rígidas do que aqueles que existiam para um projecto editorial em nome individual.

  • As peripécias de quem não sabia (ainda) o que era uma guerra

    As peripécias de quem não sabia (ainda) o que era uma guerra

    Título

    A entrada na Guerra

    Autor

    ITALO CALVINO (tradução: Leonor Reis e Sousa)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Abril de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Aos 31 anos, Italo Calvino escreveu A entrada na guerra, uma das suas obras menos conhecidas, e que em boa hora, e de forma muito oportuna, a Dom Quixote agora edita, pela primeira vez, em Portugal.

    A oportunidade não se deve apenas por dar a conhecer aos leitores portugueses (por ser até agora inédita no nosso país) uma das primeiras obras deste escritor italiano – hoje merecidamente um dos grandes da Literatura europeia do século XX –, ainda mais autobiográfica.

    Nem por retratar o período inicial da II Guerra Mundial, que pode, aqui e ali, invocar os actuais acontecimentos na Ucrânia.

    Na verdade, deve-se a estes dois factores, mas sobretudo à sua qualidade literária, e por ser um retrato do início de uma guerra por alguém que, na verdade, está a iniciar a sua vida.

    Calvino, nascido em 1923 nos arredores de Havana (Cuba), por um acaso familiar, contava apenas 31 anos quando publicou, em 1954, as três breves memórias que constituem est’A entrada na guerra. Estava ainda longe das suas obras mais emblemáticas como Os amores difíceis (1970), As cidades invisíveis (1972) e Se numa noite de inverno um viajante (1979), mas já havia publicado O visconde cortado ao meio (1952), a primeira parte da magistral trilogia fantástica de Os nossos antepassados, completada ainda na década de 50: O barão trepador (1957), e O cavaleiro inexistente (1959).

    Mesmo sendo um livro de memórias, sem possuir, assim, a pretensão de contar uma história, esta obra tem dois fascínios. Primeiro, não aparenta ser escrito por um adulto de 31 anos, mas antes é a voz e o sentimento do adolescente Calvino a confrontar-se com a realidade de uma nova guerra que se avizinhava, mas que para jovens italianos parecia algo que somente quebrava o quotidiano, criando-lhes um mundo de aventuras. Segundo, já se lhe nota um amadurecimento da prosa, já bem visível em O visconde cortado ao meio, uma segurança na simplicidade como discorre a narrativa e a pontua com detalhes, por vezes desconcertantes. 

    A primeira parte, A entrada na guerra, que lhe dá título à obra, é datada no dia 10 de Junho de 1940. Encontra o jovem Calvino, como vanguardista (milícia juvenil homóloga à Mocidade Portuguesa), ajudando como pode (e quer e lhe apetece) a dar sopa aos refugiados que chegavam a uma escola, e onde o que mais “saltava à vista (…) era a presença de aleijados, de idiotas, de mulheres barbudas, anões, eram os lábios e narizes deformados por lúpus, era o olhar impotente dos doentes com delirium tremens: era este o rosto sombrio das aldeias de montanha, agora obrigado a revelar-se, a desfilar nas paradas o velho segredo das famílias camponesas à volta de quem as casas das aldeias se apertam umas contra as outras como as escamas de uma pinha”.

    A segunda parte, Os vanguardistas de Menton, temos um involuntário e imberbe Calvino a participar na pilhagem daquela pequena cidade francesa que caiu nas mãos de Mussolini em meados de 1940. Também aqui, jornalisticamente, o jovem Calvino revela a existência da máquina de propaganda, já então com as suas fake news: “Tínhamos visto recentemente no cinema um documentário que mostrava a luta das nossas tropas nas ruas de Menton; mas nós sabíamos que era falso, que Menton não tinha sido conquistada por ninguém, mas apenas abandonada pelo exército francês na altura do ataque e depois ocupada e pilhada pelos nossos.”

    O retrato de Calvino não chega a ser pungente nem sequer demasiado crítico da “selvajaria” das pilhagens, as quais acompanha e participa, para não ser considerado “estúpido”, mas sem qualquer entusiasmo.

    A terceira e derradeira parte, As noites da UNPA (Unione Nazionale Protezione Antiaerea, um corpo de voluntários para socorro da população civil em caso de ataques aéreos), retrata “tempos em que ainda não se sabia o que era o terror; pelas ruas viam-se apenas sinais do despertar geral e brusco: vozes nas casas, luzes que se acendiam e eram logo apagadas, e pessoas meio vestidas às portas dos abrigos olhando para o ar”. Por isso, o relato incide sobretudo nas aventuras, brincadeiras, partidas e descobertas de Calvino e dos seus amigos em San Remo durante um blackout.

    Nada, nesta obra, retrata o período posterior da vida de Calvino na sua chegada à fase adulta, com a entrada na Universidade de Turim e depois Florença – onde estudou a contragosto Agricultura, por pressão paterna –, e muito menos a sua entrada na Resistência italiana comunista. Não era preciso. Está muito, muito bom assim como ficou.