Em dia de S. João se festejou em Palacio o nome de S. Mag, & houve Serenata no quarto da Rainha Nossa Senhora. Quinta feyra 16, do passado teve primeira audiência de Sua Mag. Mons. De Montagnac Consul da Naçaõ Francesa.
De portas totalmente fechadas, sem declarações à imprensa, nem respostas aos jornalistas. Foi assim o encontro “informal” entre os 17 ministros que António Costa chamou para a Base Naval do Alfeite, em Almada, durante toda a tarde deste sábado. Os governantes chegaram de barco, com partida de Lisboa, e estiveram juntos durante mais de cinco horas. Na sua conta de Twitter, o primeiro-ministro falou de uma reunião “extremamente útil e produtiva”, mas não esclareceu o que esteve em cima da mesa de trabalhos. Segundo informações recolhidas pelo PÚBLICO junto de fonte do executivo, o encontro serviu para “fazer ponto de situação” antes das férias de Verão “e perspectivar os próximos meses”.
A Rainha nossa Senhora tomou a novena da gloriosa S. Anna na Igreja do Espirito Santo dos Padres da Congregaçaõ de S. Filippe Nery. O Senhor Infante D. Carlos foy hontem para a quinta, que Antonio Leyte Pacheco Malheyro Macedo, Alcayde mór da Fronteira, tem no sitio de S. Sebastiaõ da Pedreira, para convalescer de algumas leves queyxas, & alli lhe assistem a Senhora Marqueza de Santa Cruz, Aya de Suas Altezas, & D. Christtovaõ Joseph da Gama, Vedor da Casa da Rainha nossa Senhora.
Na mesma publicação, António Costa partilhou imagens da viagem de barco e surge ao lado da ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, do ministro da Educação, João Costa, e do ministro das Finanças, Fernando Medina. Numa segunda publicação, o primeiro-ministro afirma que estes quase quatro meses de mandato do XXIII Governo, o seu terceiro como primeiro-ministro, “têm sido muito activos e exigentes” e que por isso “este dia de reflexão e de análise política e prospectiva para os próximos meses foi muito enriquecedor”.
Terça feira da semana passada foy a Rainha N. Senhora com os Principes, e o Senhor Infante D. Pedro à Villa de Bellas,e jantàraõ na quinta dos Condes de Pombeiro. Na quinta feira foy a mesma Senhora, com a Princeza, e o Senhor Infante D. Pedro à Igreja dos Religiozos Carmelitanos, que celebravaõ solemnemente a festa de N. Senhora do Monte do Carmo. Na seta feira foraõ dar principio à Novena da Gloriosa Santa Anna, na Igreja dos Padres da Congregaçaõ do Oratorio, e no Sabbado se divertiraõ na Real Taoada de Alcantara; onde também concorreo o Principe nosso Senhor.
Minutos depois da publicação do primeiro-ministro seria a conta oficial do Governo a partilhar um vídeo que resumiu o “dia de trabalho em equipa, focado na preparação dos próximos meses e na resposta aos desafios que se colocam ao país”.
ElRey nosso Senhor, que Deos o guarde, com o Principe, e o Senhor Infante D. Pedro, foram na tarde de segunda feira primeiro do corrente à Ermida de Nossa Senhora do Rosario da Restauraçam, onde estava o Lausperenne; e depois de haverem feito a oraçam, fizeram a honra a Luiz Gonçalves da Camera Coitinho, Padroeiro da mesma Capella, de lançar agua benta na sepultura de seu pay Gastam Jozé da Camera Coutinho, Estribeiro mór que foy da Rainha nossa Senhora.
O encontro entre a equipa de António Costa terminou já depois das 19h30 e o primeiro a abandonar o local foi o ministro das Infra-estruturas e da Habitação, Pedro Nuno Santos, só depois António Costa saiu.
Perante as sucessivas recusas do Ministério da Saúde, e particularmente da Direcção-Geral da Saúde, em ceder qualquer tipo de informação fidedigna e factual em redor da gestão da pandemia e do Serviço Nacional de Saúde durante a pandemia, tomei uma decisão. Simples, legal e constitucionalmente: solicitar arquivo aberto ao Ministério da Saúde.
Requeri assim, em 2 de Junho passado, à ministra da Saúde, Marta Temido, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), toda a “correspondência oficial, pareceres, relatórios e outros documentos escritos ou em formato audiovisual, na posse do Ministério da Saúde (e respectivas Secretarias de Estado), por si elaborados ou elaborados por outras entidades públicas e privadas, ou mesmo por particulares (incluindo assessores e consultores), produzidos desde Janeiro de 2020 até à data.” E elencava um conjunto de entidades a quem esses documentos tivessem sido remetidos ou que tivessem enviado para o Ministério da Saúde.
É muita informação? Claro que é! Mas essencial para conhecer os meandros de um Governo opaco que nos faz viver numa Democracia do faz de conta.
Ora, que fez a senhora ministra?
Cinco dias depois, a Secretaria-Geral do Ministério da Saúde respondeu-me, dizendo que considerava “manifestamente excessivo, abusivo e, logo, inexequível”, acrescentando que assim “não nos é possível satisfazer o solicitado”. Retorqui, explicando ser temerária essa postura num Estado de Direito recusar pedidos dessa natureza a jornalistas.
A senhora Marta Temido – que, aliás, tutela entidades que sistematicamente obstaculizam acesso à informação – mudou de estratégia. E, assim, no dia 15 de Junho informou-me que tinha feito um pedido de parecer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos – uma entidade supostamente defensora do arquivo aberto da Administração Pública, mas muito ciosa de interpretações enviesadas quando se trata de matéria delicada.
Nada contra, porém, o Ministério da Saúde pedir esse parecer.
Mas, obviamente, sucede que, sabendo eu como a CADA “trabalha” em matérias delicadas – ao que acrescenta a morosidade na emissão de pareceres e ao facto de os seus pareceres não serem vinculativos –, tomei a decisão de avançar de imediato com um processo de intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa, no passado dia 24 de Junho.
Uma “chatice”, suponho, para o Ministério da Saúde, mas que, na verdade, se resolveu facilmente. A CADA, que costuma fazer “marinar” os seus pareceres longos meses, desde o pedido até à emissão do parecer, demorou apenas 24 simples dias para elaborar um parecer a preceito para o Ministério da Saúde. Acredito que deve ter sido um recorde de produtividade para aqueles lados.
E também quis ganhar tempo no Tribunal Administrativo alegando que ainda não recusara o acesso e que aguardava o parecer da CADA, como se isso fosse relevante para a decisão.
Ah, e a CADA nem se incomodou a ouvir a minha perspectiva; somente me enviou hoje o dito parecer.
E o que diz o parecer? Muita coisa, que prova como são esguios e enviesados os campos da transparência e da ética, mas deixo aqui as conclusões.
“A dimensão do acesso solicitado implicaria, para a entidade requerida [Ministério da Saúde], procedimentos ou consequências que parecem exceder o limite aceitável, à luz de um são e avisado critério ético-jurídico do que é o direito de acesso. Assim, não se afigura que a entidade requerida tenha que satisfazer o pedido nos termos em que foi inicialmente formulado”.
Em trocados: a CADA defende que, não se conhecendo detalhes da documentação de um Ministério, não se pode ter acesso. Portanto, eis a receita: esconda-se tudo, porque assim se justifica não se conhecer nada.
Ou, se não defende, fez um rico frete.
Obviamente, este parecer – que deve ir para os anais da pouca-vergonha democrática – poderá ter um peso nulo no Tribunal Administrativo de Lisboa. Confiemos na juíza que recebeu o processo, e na sua (assim espero) independência.
Aliás, este é um daqueles processos que, ganhando-se ou perdendo-se, serve muito para responder a uma questão fundamental, que é a seguinte:
Somos mesmo uma Democracia Plena ou uma Democracia Fantoche?
Tenho medo que a resposta seja a segunda opção, mas não me surpreende se for.
N.D. A partir de hoje o PÁGINA UM deixará de recorrer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, essa inutilidade. Não apenas por este caso, mas porque nenhuma entidade, até agora, cumpriu os pareceres (não-vinculativos) que dali saíram, mesmo quando nos foram favoráveis. Por esse motivo, passámos a recorrer directamente ao Tribunal Administrativo. Continuaremos a fazê-lo enquanto tivermos o apoio financeiro dos leitores para pagamento das taxas de justiça, dos honorários de advocacia e gastos administrativos. Como sabem, as verbas recolhidas pelo FUNDO JURÍDICO, na plataforma MightyCause, destinam-se exclusivamente para este propósito. Até este momento apresentámos sete processos de intimação.
Pode Vossa Excelência, como procuradora-geral da República Portuguesa ficar na História como mais um cinzento magistrado a ocupar o órgão superior do Ministério Público. Ou pode ser alguém que, meio século depois de militares terem “imposto” a democracia, contribuiu para reverter o estado comatoso deste quase quinquagenário regime.
Escolher a primeira opção implica o caminho mais fácil. Basta manter-se silenciosa ou tartamuda, fazendo de conta que altos e mais superiores preocupações se sobrelevam, e que o termo gerontocídio não existe sequer no léxico lusitano e, muito menos, no enquadrado jurídico nacional.
No segundo caso, é assumir que está em curso um gerontocídio, e agir em conformidade.
O termo é, efectivamente, estranho em Portugal, mas é palavra da língua de Camões. No outro lado do Atlântico, por exemplo, a Academia Brasileira de Letras define gerontocídio como “delito de homicídio praticado contra pessoa idosa decorrente de violência doméstica ou familiar e/ou por motivo de menosprezo ou discriminação em relação à condição de idoso” e ainda como “extermínio de idosos”. E está mesmo previsto, desde 2019, o agravamento das penas por este crime, por iniciativa da Câmara dos Deputados brasileira.
Em Portugal, nada. Mas há, neste preciso momento, a decorrer, cobarde e nojentamente, um extermínio de idosos. Não se vê. Não há gritos. Não há sangue literalmente em jorros. Não é carnificina, porque muitos, pela sua avançada idade, até já estão caquéticos. Mas há.
E pior – como se tal fosse possível: há negacionistas. Estes, sim.
Comparação da mortalidade média diária nos maiores de 85 anos por quinzena para os anos de 2017 a 2022. Fonte:: SICO. Análise: PÁGINA UM.
Atente-se: Portugal está a caminhar para o nono mês consecutivo com mortes sempre acima dos 10.000 óbitos. Recorde absoluto em Maio e em Junho. A probabilidade de nada de incomum se passar em tanto tempo seguido é virtualmente de 0%. O PÁGINA UM denunciou. Provou.
O PÁGINA UM também alertou que, desde finais de Fevereiro, morreram a mais 5.700 pessoas do que o expectável, sendo uma estimativa feita por um professor de Estatística e Investigação Operacional da Faculdade de Ciência da Universidade de Lisboa. E não foi em tempo quente.
O PÁGINA UM também noticiou que, desde 10 de Julho, a mortalidade acumulada este ano nos maiores de 85 anos ultrapassou o já funesto 2021. E isto quando a diferença em 25 de Fevereiro era favorável a 2022 – ou seja, tinham morrido menos – em 4.828 vidas. Apresentamos análises rigorosas sobre tudo isto.
Que sucedeu depois destas notícias do PÁGINA UM – para além da “usurpação” da sua investigação por certa comunicação social?
Comparação da mortalidade média diária na faixa etária dos 75 aos 84 anos por quinzena para os anos de 2017 a 2022. Fonte:: SICO. Análise: PÁGINA UM.
O secretário de Estado-adjunto da Saúde, o médico Lacerda Sales – aquele que deixou cair lágrimas de crocodilo porque em certo dia de Agosto de 2020 não morreu ninguém de covid-19 – diz candidamente que “perante um excesso de mortalidade não atribuível a uma causa específica, a investigação das razões tem de ser feita em períodos longos, não em períodos pontuais, e deve ser feita entre cinco a dez anos exactamente para excluir que esse aumento possa ser um fenómeno pontual”. Leia-se: sacudamos a água do capote de qualquer responsabilidade política do actual Governo.
A ministra da Saúde, Marta Temido, seguiu o mesmo diapasão, garantindo hipocritamente que “queremos chegar a conclusões céleres”, mas que “elas não são possíveis quando são sobre fenómenos complexos e necessitam de tempo e de análise técnica”.
Por sua vez, a médica Graça Freitas – que apenas denota sagacidade para se manter num cargo, a de directora-geral da Saúde, para o qual não foi talhada – veio já tentar tapar o sol com a peneira, culpando uma putativa onda de calor (veja Vossa Excelência as de 2013 e 2018, as mais recentes e compare) como a responsável pelo excesso de mortes desde… Fevereiro?! E vai sempre, para todo o sempre, culpar o “tempo quente”.
Comparação da mortalidade média diária na faixa etária dos 65 aos 74 anos por quinzena para os anos de 2017 a 2022. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.
E, para ajudar na festa deste gerontocídio, veio um inclassificável burocrata, também outro médico, Fernando Almeida de seu nome – circunstancial presidente do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (coitado do Ricardo Jorge que deve andar a dar voltas à tumba) – a defender que se deve evitar falar de excesso de mortalidade comparando apenas números. E também ele, para agradar à tutela política, afiançou ser impossível fazer uma análise séria e cientificamente consistente em dois ou três meses.
Estes, doutora Lucília Gago, são quatro suspeitos. Haverá mais, por certo.
São suspeitos por omissão. Por obstaculização de informação. Por acção. Provavelmente, por ocultação de provas. As suas tarefas não incluem espetar facas, mas morrem pessoas à mesma.
Estes e outros responsáveis políticos sabem aquilo que está a suceder. Têm, por exemplo, acesso aos dados bruto do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), que permitem diariamente, e desde 2014, observar todos os óbitos e suas causas. Há sete anos de dados para comparar com o que se passa este ano. Existem sistemas informáticos e peritos que conseguem detectar, num piscar de olhos, quais as causas para esta anormalidade.
Eles sabem que eu sei que eles sabem. Mas eles não querem que se saiba. Por isso, existe neste momento um processo no Tribunal Administrativo de Lisboa para intimar o Ministério da Saúde a divulgar esses dados em bruto ao PÁGINA UM.
Mas mesmo que não existissem esses dados em bruto – e existem esses e muitos mais, incluindo uma base de dados que deixou de ser pública porque um amigo de longa data da senhora ministra da Saúde decidiu expurgá-la para impedir as investigações do PÁGINA UM –, bastaria observar os singelos gráficos que se apresentam ao longo deste texto. Veja, Vossa Excelência, como está o gerontocídio, sobretudo nos maiores de 85 anos.
Não perca mais tempo. Não acredite nas palavras de quatro suspeitos deste gerontocídio em curso, que nos dizem que não há gerontocídio nenhum, que é necessário muito tempo para se apurar se houve ou não houve um gerontocídio.
Na verdade, doutora Lucília Gago, eles querem ser como aquele ladrão que, apanhado em flagrante, defende que se tem de avaliar a sua acção em função de uma análise a ser feita apenas no dia de São Nunca à tarde para, depois, se divulgarem as conclusões na manhã do enterro da solteira Culpa.
Que vai Vossa Excelência fazer? Fazer-nos… Fazer-lhes…
O tonto do Luís Osório escreve, para gáudio das senhoras que suspiram com as suas palavras – ui, tão duras mas ternurentas – e para agradecimento dos (ir)responsáveis políticos, garantindo que estamos numa “tempestade perfeita, quase 50 graus, vento e uns filhos da puta que mandam incendiar florestas para conseguir ganhar mais dinheiro”.
E vai ele ainda mais longe nas acusações: “Dinheiro, ganhar dinheiro, engordar cartéis que lucram com os incêndios porque têm produtos ou serviços para vender, por que querem despojar as florestas ou pela maldade pura que também existe como um abcesso humano.”
De permeio, muitos elogios à abnegação dos bombeiros, “muitas centenas (…) extenuados”, onde “há os que enganam o corpo com fugas para a frente, com mais uma chama para apagar, com mais uma pessoa para proteger, mais uma casa, mais um animal. Há também os que já não conseguem mais, os que desmaiaram de cansaço ou que tombaram com a cabeça às voltas pelo fumo, pelo cheiro de queimado, pela pressão.”
Por sua vez, o pusilânime director do Público, Manuel Carvalho, surge com a lengalenga agora habitual de que nada pode ser politicamente feito porque, enfim, tudo ou quase tudo se restringe ao aquecimento global, e que isto “na floresta não se resolve com mangueiras ou roçadoras de mato, mas com o controlo de emissões de carbono”, desresponsabilizando o Governo pelas tragédias.
Por fim, temos o primeiro-ministro António Costa – que já assistiu, como líder do Governo ou como ministro da Administração Interna a duas catástrofes florestais (2005, com 350 mil hectares, e 2017, com 540 mil hectares e mais de uma centena de mortes) – a dizer que tudo é ”mãozinha humana” e que o fraccionamento fundiário (o minifúndio) é a causa estrutural na base dos incêndios rurais.
Podia continuar com a compilação de boutades e/ ou fazer uma antologia dos disparates. Canso-me.
Após ter escrito um livro de 472 páginas em 2006 – vão já longos 16 anos e mais de 1.700.000 hectares ardidos –, causa-me algum enfado fazer arder no queimado.
Portugal viveu e sempre viverá sob o manto irresponsável dos mitos.
O mito de ser um país de vocação florestal, quando sempre tivemos mais jeito para dar cabo das árvores. Portugal foi, durante praticamente a sua origem, um país escalvado, de charnecas, até quase finais do século XIX. Somente por condições políticas (não muito elogiáveis) e sociais (população maioritariamente rural e com o interior ocupado) se conseguiu, sobretudo na I República e no Estado Novo, fazer surgir uma floresta “artificial” e economicamente rentável.
O mito de ser um país que sofre as agruras dos incêndios por causa do excessivo fraccionamento das propriedades rurais, ou seja, do minifúndio. É de uma atroz ignorância histórica dizer que o minifúndio é um fenómeno recente. Particularmente na região a norte do Tejo, intensificou entre a Monarquia Constitucional, a partir dos anos 30 do século XIX, até um pouco antes da instauração da República.
Entre 1877 e 1909, o número de prédios rústicos mais que duplicou, passando de 5,06 milhões para 10,48 milhões, mantendo depois um crescimento muito moderado, inferior a 0,2% ao ano. No início dos anos 40 do século XX, atingiu-se um pico de 11,1 milhões de prédios rústicos, registando-se depois variações negativas numa primeira fase, até 1970, e positivas numa segunda fase, posterior a esse ano, cifrando-se actualmente em cerca de 11,6 milhões de prédios rústicos. Portanto, não houve uma mudança relevante nas últimas décadas em termos de estrutura fundiária, quando os incêndios se intensificaram.
Na verdade, o grande problema advém da redução populacional do interior e sobretudo do êxodo rural e do abandono das culturas agrícolas. Abandonando-se os espaços agrícolas, perdem-se as zonas tampão para “estancar” ou controlar os incêndios nas suas fases iniciais. Além disso, sem pessoas a trabalhar a terra também se deixa de ter vigilantes activos dos espaços florestais. No interior, agora, pode-se vaguear quilómetros a fio sem ver vivalma.
Temos ainda depois o mito das alterações climáticas, ou seja, de que os incêndios florestais derivam do aquecimento global e do aumento na frequência dos eventos meteorológicos que aumentam o risco de grandes incêndios. Sendo certo, e sendo uma evidência para mim, com base em estudos científicos, que o risco de incêndio aumentou nos últimos anos, também é certo que a tendência observada em Portugal – periódicos anos de catástrofe autêntica -seguido de anos de alguma acalmia – não se observa nos outros países.
Nas últimas duas décadas, Portugal já teve três anos com áreas ardidas superiores a 3% do seu território: em 2003, em 2005 e em 2017. Neste último ano, foram 6%. Nenhum outro país mediterrâneo, “sofrendo” do mesmo clima, apresenta tal estado de destruição. Ao invés, em média arde agora menos na Espanha do que nos anos 80 do século passado, o mesmo se verificando na França, Itália e Grécia.
O grande problema, nesta parte, é que Portugal não tem apostado de forma inteligente numa estratégia que tenha em conta um “inimigo” que se pode tornar mais perigosos nas actuais condições climáticas. Uma política ausente durante anos, que se resume a despejar dinheiro, com uma estrutura sempre em contínua mudança (para pior) – os serviços florestais foram completamente desmembrados – não vislumbra qualquer solução. Não houve nenhuma mudança perceptível desde 2017 que nos garanta que não se repita tudo.
Até porque está sempre omnipresente um outro mito: o dos incendiários, que foi sempre aquele que sempre me suscitou maior compaixão. Existem incendiários? Claro que sim. Mas serão eles, e apenas eles, que justificam a actual situação, ou o que sucedeu em 2017, ou em 2005 ou em 2003? Serão os incendiários desses anos terríveis diferentes daqueles que “actuam” nos anos em que arde pouco? Haverá algum factor que faça com que uma ignição causada por um incendiário seja diferente daquela que foi causada por actos de negligência? Vai um fogo mais depressa se for metido por um incendiário?
Além disto tudo, a tese de os grupos de incendiários contratarem bêbedos e pessoas com atrasos mentais para atear fogos é risível. Luís Osório, enfim, até lamenta, no seu lamentável texto, que “quem são presos são os pobres diabos que se vendem por uma grade de minis. Os mentalmente perturbados, os indigentes, os que podem ser carne para canhão.”
Vamos lá ver: imaginem uma corporação de malfeitores, pessoas que, vamos assumir, são estrategas, pensam para benefício próprio. Ora, alguma vez, na iminência de chorudos lucros por uma actividade criminosa – e, portanto, com risco –, eles contratariam “pobres diabos que se vendem por uma grade de minis”? Ou pessoas perturbadas? Claro que não! Seria estúpido. Nem o Luís Osório eles contratariam. Na verdade, sempre acreditei que se houvesse mesmo um grupo criminoso para fazer arder o país todo, ele já teria ardido todo. Como não há, assim “só” arde quase todo.
De facto, independentemente da estupidez do mito dos incendiários, o problema está sobretudo na ausência de acções preventivas eficazes ou eficientes. Ninguém deixa valores elevados num carro para depois culpar um ladrão. Um banco tem mecanismos de segurança e de gestão de valores para minimizar um eventual assalto. Uma cidade decente tem um corpo policial e políticas de integração para evitar um recrudescimento da criminalidade. As cidades japonesas infra-estruturaram-se para aguentar agora terramotos.
Ou seja, o impacte do dano não depende somente do agente que o pode eventualmente causar, mas sim de factores com intervenção directa do Estado. Se há uma vaga de crimes, ou até de acidentes rodoviários por excesso de velocidade ou de álcool, a culpa não é apenas de quem o pratica, mas também do Estado que não cumpre a sua função de tornar uma sociedade regulada.
Por fim, temos ainda o mito que mais estragos tem causado à protecção da florestal: o mito dos salvadores bombeiros voluntários.
Recordo aqui, quando falo em bombeiros voluntários, sempre a luta de Miguel Bombarda, no início do século XX, quando quis que o sistema de saúde tivesse enfermeiras profissionais, que substituíssem as freiras que, com amor e carinho, mas também com fracos conhecimentos e treino, mais depressa enviavam almas para o outro mundo do que ajudavam os corpos a manterem-se neste.
O lobby dos bombeiros voluntários – que não são assim tão voluntários, e subsiste desde que os serviços florestais se desmembraram – tem sido a principal acendalha para a manutenção do frequente desastre dos incêndios rurais.
Não está aqui em causa a abnegação e o amor ao próximo desses bombeiros voluntários – embora eu acredite que um profissional possa e deva ter essas características. E acredito que muitos bombeiros voluntários até preferissem ser profissionais, recebendo melhor treino, estarem sempre disponíveis e receberem uma remuneração compatível com a sua excepcional tarefa. E não terem de descansar ao relento, na berma da estrada ou em cima de bancos de jardim – imagens mediáticas, empolgantes, que demonstram sobretudo uma péssima logística dos serviços estatais e municipais de protecção civil.
Em Portugal sempre se confundiu conceitos: amor e amadorismo são palavras antagónicas quando o tema é incêncios rurais. Julga-se que onde há amor pela vida das pessoas e pelos seus bens, que se deve usar o voluntariado, porque esse amadorismo é mais genuíno a essas causas. Uma parvoíce. Se eu amo uma causa não devo fazer o que posso, mas devo fazer o que devo. E isso, no caso dos incêndios rurais, consegue-se melhor com profissionais do que com supostos voluntários, até porque uma parte destes segundos até recebe dinheiro.
Aquilo que verdadeiramente está em causa é a existência de uma estrutura corporativista, mal preparada e mal localizada (o risco diferenciado de incêndio não se compadece com a distribuição geográficas das corporações), e que se recusa a se profissionalizar, porque, dessa forma, não é regulada, não é convenientemente monitorizada nem sequer é responsabilizada quando algo corre mal. E corre muitas vezes mal.
Não existe,na sociedade portuguesa, nenhuma outra tarefa vitar que não seja exercida por profissionais. Temos militares profissionais. Temos médicos profissionais. Temos – e Miguel Bombarda haveria de gostar de saber – enfermeiros profissionais. Temos professores profissionais. Temos polícias profissionais. Temos cobradores de impostos profissionais. Temos tudo profissionalizado. Até políticos profissionais… Que motivos temos para contnuar com bombeiros denomiados voluntários? Ninguém questiona a quem interessa este status quo?
Já escrevi e repito: no dia em que – como, aliás, se fez na Andaluzia, por exemplo – se decidir colocar os bombeiros voluntários apenas a proteger os perímetros urbanos e casas (onde podem dar largas às mangueiras), e se constituir uma estrutura fortemente equipada e treinada de sapadores florestais – com funções de prevenção (criação de faixas de protecção, etc.), vigilância e combate – teremos a primeira batalha ganha desta guerra.
Se isso não suceder, continuaremos a ter de ler e ouvir pessoas como Luís Osório, Manuel Carvalho e António Costa a explicarem-nos que a culpa é disto e daquilo, menos dos políticos. E tudo seguirá o seu curso, com o país a ir variando do vermelho ao negro, entremeado por um efémero verde que se esfuma de tempos em tempos.
Previsível: o Conselho Superior da Magistratura (CSM) recorreu da sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa que determinou a obrigatoriedade em conceder ao PÁGINA UM o acesso aos documentos do inquérito à distribuição da Operação Marquês em 2014.
O recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, que pode ser aqui lido na íntegra, foi apresentado no passado 4 de Julho, e o PÁGINA UM tem agora 15 dias para contra-argumentar.
Mais trabalho e despesa para um David – cuja funda se funda somente no apoio dos seus leitores, através do FUNDO JURÍDICO, e do trabalho abnegado do advogado Rui Amores – contra verdadeiros Golias, ainda mais contra um gigante como o Gabinete do Vice-Presidente do CSM, que tem em mãos este processo, contando com quatro juízas como adjuntas e mais três assessores a tempo inteiro e demais apoios e mordomias, tudo bem pago com dinheiros do Estado.
Eu até compreendo a atitude dos membros do CSM: do alto da sua Torre de Marfim, alheados das preocupações terrenas – como sejam a democraticidade de uma sociedade e a transparência da Administração Pública –, eles rangem agora dentes e brandem argumentos para não perderem uma causa contra um simples cidadão, contra um singelo jornalista. Custou-lhes perder na primeira instância, eu sei. Até porque não saíram nada bem na fotografia da sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa que, para bom entendedor, lhes chamou obscurantistas e mentirosos.
Conselho Superior da Magistratura continua a lutar para não ceder documentos administrativos, depois de um parecer da CADA e uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa.
Lutam eles agora como ciclopes, apenas a vitória é o seu objectivo, vençam como vencerem, sejam quais forem as consequências, até porque, como sabemos, a Justiça é dos Homens, e não da Verdade; e eles, julgando-se serem o corpo da Justiça, têm a justa esperança, pelo poder que os assiste, em moldar a dita justiça aos seus intentos. Custe o que custar, mesmo que nos custe a Democracia.
Em Novembro do ano passado, o PÁGINA UM – ou eu, como seu director – quis conhecer o inquérito arquivado, sem qualquer acusação, à distribuição do processo da Operação Marquês. Nada de mais natural e normal: são documentos administrativos, sem qualquer margem para dúvida, e o seu interesse público parece-me inquestionável, tanto mais que, oito anos depois, continuamos sem conhecer detalhes sobre aquilo que se passou para a Operação Marquês ter ido parar às mãos do juiz Carlos Alexandre.
Apesar disso, e apesar do próprio José Sócrates ter andado em similar “guerra” para a obtenção desses documentos, o CSM recusou o acesso ao PÁGINA UM, com argumentos estapafúrdios. A primeira vez em Dezembro do ano passado. Recusou uma segunda vez após a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), presidida por um juiz conselheiro (Alberto Oliveira), ter dado um parecer favorável aos direitos do PÁGINA UM em finais de Janeiro passado. E quer agora recusar uma terceira vez, por esse motivo recorreu da sentença histórica do Tribunal Administrativo de Lisboa conhecida no final do mês passado.
O CSM e os seus membros têm todo o direito de esbanjar recursos financeiros, porque o Estado lhes dá essa possibilidade, e têm legitimidade para recorrerem sucessivamente aos tribunais superiores, mesmo quando um parecer da CADA, uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa e uma leitura atenta da Constituição da República Portuguesa e da Lei da Imprensa lhes recomenda outra via: a simples entrega de um inquérito para um escrutínio jornalístico à sua acção.
Mas essa via – a da transparência –, eles parecem não querer percorrer. É um “calvário” que os horroriza.
Primeira página do recurso do Conselho Superior da Magistratura ao Tribunal Administrativo Central Sul.
Certamente, pensarão os membros do CSM, que podem encontrar num tribunal superior alguém mais simpático com as suas teses e argumentos, ao contrário do que sucedeu com a CADA, com o Tribunal Administrativo de Lisboa e com o poder legislativo que aprovou, hélas, a Constituição da República Portuguesa e a Lei da Imprensa.
A CSM tem, quiçá, a esperança de vencer a causa.
E isto, saliente-se, mesmo quando o próprio juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa, exigindo que o CSM lhe enviasse os documentos em causa, confirmou, com os seus próprios olhos, que não se estava perante dados nominativos.
A Justiça em Portugal transformou-se numa lotaria. E, por isso mesmo, o CSM estará esperançoso de vencer ainda a causa – e dessa forma continuar a recusar o acesso aos documentos administrativos ao PÁGINA UM.
E, por isso, recorreu, o que desde já tem uma função mui pedagógica: recomenda já que todas as outras entidades que perderem causas contra o PÁGINA UM também recorram, donde resulta isto que desejam também vencer pelo cansaço, pelo dispêndio de energia, até porque o dinheiro e meios para dirimir questiúnculas em tribunais superiores são, para essas entidades, inesgotáveis, porquanto provêm dos impostos dos portugueses.
Sucede, porém, que se o CSM vencer a causa, não é apenas a mim que me derrota.
A vencer, o CSM derrotará toda a Imprensa, toda a Sociedade, porque vencerão teses anti-democráticas a favor do obscurantismo.
Os argumentos do recurso do CSM junto do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa são aterradores – e diria que constituem um libelo contra a Democracia, porque mostram uma magistral mas perigosa apologia ao obscurantismo. E é esse o motivo pelo qual, sendo uma parte interessada no processo, mas sabendo ser eu um pequeno David contra um colossal Golias, me vejo na obrigação moral e ética de denunciar um ataque à Democracia.
É certo que podem julgar ser demasiada presunção assumir-me como defensor da Democracia perante uns supostos malvados. Concedo: não sou então um defensor da Democracia, nem o CSM é um antro de malvados.
Mas não sendo o CSM um antro de malvados anti-democráticos, vejamos então os seus argumentos para – contrariando o que defenderam já duas entidades: CADA e Tribunal Administrativo de Lisboa – evitar que um jornalista de uma Democracia, com direitos consagrados na Constituição, tenha direito de acesso a documentos administrativos.
Comecemos pela página 5 do recurso para o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa. Aí, o CSM defende que os documentos em causa integram “o conceito de documentos nominativos, [somente] por conter múltiplos dados pessoais designadamente os nomes de juízes de direito e de funcionários judiciais (alguns dos quais não são, tão-pouco, visados nos processos de averiguações e de inquérito em causa), bem como os números dos processos (através dos quais é possível identificar as respetivas partes).”
Atenção: fala-se apenas em nomes e funções de funcionários públicos, bem como das suas acções como funcionários públicos. Nada mais. Não está em causa saber a morada nem detalhes da vida pessoal nem íntima.
Mas qual a razão desta postura? Ora, enviesando o que está previsto no Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD), o CSM quer que se considere que todo e qualquer documento em sua posse seja visto como contendo dados nominativos, bastando até simplesmente a assinatura de alguém. E nem precisava de provar. Alargando-se isto a toda a Administração Pública, passariam a ser documentos com dados nominativos todos aqueles que tivessem pelo menos o nome de um ministro, de um secretário de Estado, de um presidente de instituto, de um director-geral, de um presidente da Câmara, de um presidente de autarquia, de um técnico, ou de toda e qualquer pessoa ou entidade aí referidos.
E porquê? Porque assim pode-se aplicar um regime mais restritivo de acesso, pois apenas as pessoas titulares “de um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante” podem aceder a documentos com dados nominativos.
Ora, mas, por norma, e pela Constituição, os jornalistas são legítimos detentores desses direitos. E podem assim aceder a esses documentos, com excepção de informação médica, documentos classificados (em condições muito concretas) ou integrados em processos em curso. Uma chatice! Isso é demasiado, pensarão os membros do CSM, que andarão certamente esquecidos de que com mais um par de anos e estamos com meio século em Democracia.
Porém, o CSM considera que esse direito dos jornalistas não é legítimo por lei; tem de ser legitimado caso-a-caso. E por quem e quando? Na página 7 do seu recurso, o CSM responde: compete “à entidade pública [requerida] apurar a necessidade de vedar ou permitir o acesso, segundo critérios de proporcionalidade”.
Acrescenta ainda que “deverá ser analisada a possível afetação do direito à privacidade do titular dos dados, devendo a informação a fornecer cingir-se ao estritamente necessário no âmbito da finalidade invocada, podendo ser objeto de comunicação parcial ou expurgando-se os dados pessoais que não relevem para essa finalidade.”
Ou seja, para o CSM deve ser a entidade requerida, geralmente pouco atreita a dar documentos a jornalistas, que deve analisar se deve ou não dar o acesso que não quer dar. Fantástico! Ou então que o requerente sistematicamente recorra aos tribunais, com a rapidez que se lhes reconhece.
Mas ainda mais temerário, por causar tremores nos alicerces da Democracia, é a tese do CSM sobre a necessidade de se exigir aos jornalistas que confessem a finalidade da consulta requerida. Por outras palavras, o CSM quer que se pergunte sempre a um jornalista: “para que raio quer, vossemecê, ver documentos públicos? Vai escrever alguma coisa? É apenas para leituras de desfastio? Quer ter juízo ou ir a juízo?” Tudo esclarecimentos necessários, e obrigatórios, a Bem da Nação, certamente.
De facto, como se pode admitir (vd. página 13 do recurso) que um jornalista, no Portugal do ano da graça de 2022, pretenda “a consulta, sem critério e sem concretização de qualquer finalidade específica, do acervo de informação contida em decisão de averiguações de natureza disciplinar, a qual (…) contém apreciações, juízos e valorações acerca de pessoas concretas, as quais assumem a natureza de dados pessoais à luz do RGPD, que não são de acesso público e que se encontram arquivados no CSM”? Era o que faltava! Agora vivemos em Democracia e os jornalistas fazem o que querem, é?
Qual cereja em cima de bolorento bolo – que julgávamos colocado na lixeira em Abril de 1974 –, ainda consegue o recurso do CSM, na página 21, criticar a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa ao dizer que “mal andou, pois, a Sentença recorrida, ao não efetuar um juízo de proporcionalidade suscetível de conciliar o princípio da transparência e da administração aberta, com o princípio da proteção de dados.”
Portanto, para o CSM, proteger simples pessoas de serem identificadas pelo nome – imaginemos, impossibilitando assim a identificação de pessoas que causam dano à res publica – é mais relevante do que a existência de uma administração aberta, daquela que permite aos cidadãos e sobretudo aos jornalistas escrutinarem a acção de políticos e de magistrados.
Se as teses, se esta argumentação do CSM – na sua ânsia de não perder a causa e a face – vingar num qualquer tribunal superior, saibam que não serei o único derrotado.
Saibam sobretudo que caminhamos para um insanável precipício de obscuridade, em que os Senhores da Torre de Marfim nem sequer aceitarão, certo dia, que lhe conheçamos nomes e funções. Viveremos sob as suas ordens, sob os seus caprichos.
Por isso, no dia em que os cidadãos de uma Democracia deixarem de poder sindicar a Administração, e se os jornalistas deixarem de ter o poder de aceder à informação pública, façam um requiem pela Democracia.
Não se duvide que se joga aqui mais do que um simples processo de acesso a documentos administrativos. Joga-se à Democracia na barra dos tribunais, infelizmente apenas por entre papéis que andam por aqui e por ali, porque se trata de um Tribunal Administrativo.
Na verdade, nem sequer podemos olhar, olhos nos olhos, os senhores e as senhoras do CSM, e dizer-lhes: “Tenham vergonha!, não foi para estes vossos lastimáveis procedimentos que se fez o 25 de Abril”.
N.D. – Os custos e taxas dos processos desencadeados pelo PÁGINA UM são exclusivamente suportados pelo FUNDO JURÍDICO financiado pelos seus leitores. Rui Amores é o advogado do PÁGINA UM neste e nos outros processos administrativos em curso. Até ao momento, estão em curso sete processos administrativos e mais dois em preparação.
Li hoje uma notícia da TSF – inicialmente intitulada: “É algo que nos preocupa.” Fármaco Paxlovid só foi prescrito a um doente com Covid-19 em Portugal – em que surgia o presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP) a promover um medicamento específico de uma farmacêutica (Pfizer), e perguntei-me por onde anda a vergonha.
E li ainda o lead, onde se dizia que a SPP “acredita que a mortalidade associada à doença podia ser muito menor se o país apostasse mais neste medicamento [Paxlovid]”, e questionei-me por onde anda a Ciência. Acredita? Isto agora já é uma questão de Fé. Ou antes de fé no dinheiro? E o Infarmed, perante esta descarada publicidade, onde anda? E a Ordem dos Médicos, perante esta prostituição, onde anda? E a Imprensa? Ainda ouve esta gente, ainda lhe dá créditos?
Paxlovid: mais do que usar o antiviral, seria útil investigar os meandros da sua aquisição pelo Estado português.
O título da notícia da TSF foi depois alterada – para um menos comprometedor “Combate à Covid. Pneumologistas querem maior aposta em comprimido antiviral” –, mas a mensagem está feita: a SPP e muitos pneumologistas estão ao serviço das farmacêuticas, mesmo, ou sobretudo, com o “fim da festa”, em que há muito para esclarecer sobre os rios de dinheiros que andaram de mão em mão, e sobre os atropelos contra a Saúde Pública e contra a Democracia que se cometeram.
Nunca neguei a perigosidade da pandemia, tanto assim que esta doença foi a primeira, tirando talvez a tosse convulsa poucos meses após o meu nascimento, que colocou em risco (bem real) a minha própria vida. Mas sempre soube distinguir o caso pessoal (e as particularidades dos riscos distintos da doença em função das comorbilidades, da idade e do acaso) e a forma como governos, farmacêuticas e muitos médicos empolaram uma pandemia em prol do negócio e do poder.
Durante a pandemia, agudizou-se um problema ético entre muitos médicos que se transformaram, fomentando o medo, em porta-estandartes das farmacêuticas. Os milhões de euros – sim, são milhões de euros – que passaram das mãos das farmacêuticas para os bolsos de médicos que falaram mais a pensar nas suas finanças do que na saúde dos seus doentes, deveriam merecer investigação judicial.
Mais ainda porque o Portal da Transparência do Infarmed é uma anedota, uma vez que ninguém controla nem valida essa base de dados de registo dos apoios e patrocínios. Pouco ou nada se fiscaliza. Aprofundarei o tema muito em breve. E isto assumindo que não existem pagamentos por debaixo de uma TAC.
Primeiro título da notícia da TSF
Sobre os novos antivirais, e sobretudo sobre o Paxlovid, já aqui escrevi, e volto a escrever: Filipe Froes é o expoente da promiscuidade médica que apenas se justifica porque a nossa imprensa – que se vendeu também às maravilhas dos eventos pagos pelas farmacêuticas – deixou de ser pilar do Quarto Poder. Arruinou-se, auto-mutilou-se, já nem uma ruína é.
Na Primavera passada, Froes andou como “delegado de propaganda médica” a vender à imprensa o Paxlovid, da Pfizer, e um outro antiviral, para que, dessa forma, fossem comprados milhões de euros de um fármaco, pelo Estado português, que está longe de provar alguma utilidade. Froes ajudou a justificar a sua aquisição, integrando a equipa de peritos da Direcção-Geral da Saúde que elabora as normas terapêuticas. Aliás, a mesma equipa manteve o remdesivir – um outro antiviral sobre o qual o Infarmed continua a querer esconder dados sobre os efeitos adversos – como terapêutica anti-covid. E Froes continua ser membro da comissão consultiva da Gilead (que bem lhe paga), que vendeu o remdesivir.
Mas não tem sido ele o único.
A SPP, com o seu presidente à cabeça – e que está supostamente a ser alvo de um processo (também ainda sem resultados não revelados) pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde –, mostra agora um despudorado empenho em vender produtos da Pfizer. Já nem esconde. Quase arrisco sugerir que a Pfizer desinvista no seu departamento de marketing em Portugal. Para que servirão marketeers quando se tem médicos tão bons para essa função, que chegam tão facilmente à imprensa e ao poder?
Esta sofreguidão em vender o Paxlovid mostra como este último negócio da Pfizer não está a correr nada bem. Apenas nos Estados Unidos, a Administração Biden se rendeu ao medicamento, que é agora dado livremente a quem tenha teste positivo, mesmo se a lista de contra-indicações é imensa, embora o valor monetário despendido seja pornográfico para os fracos desempenhos.
Título definitivo (depois de alterado) da notícia da TSF
Mas como nem todos os países podem livremente imprimir dólares, em muitos outros países os médicos têm sido cautelosos, pelo que os novos antivirais contra a covid-19 não estão a merecer a mesma adesão, o que coloca a Pfizer – e seus marketeers – com nervoso miudinho.
Aliás, em cada novo estudo, surge um novo desapontamento. A Pfizer, que previa uma facturação, com este medicamento, de 20 mil milhões de dólares até ao fim do ano, já anda a fazer contas à vida e a mudar de estratégia. Agora, é vender e vender, vender à fartazana, quilos e paletes, até que já não se consiga mais esconder que aquilo não vale um chavo. Ou pior: que faz mais mal do que bem.
A estratégia para vender mais Paxlovid passou por arranjar uns “vendilhões do templo” vestidos de bata branca a elogiar o uso de “banha da cobra” a preço de caviar.
Perante a fraca prescrição pelos médicos do Paxlovid – que é fármaco demasiado caro, de eficácia ainda muito duvidosa, com um vasto conjunto de contra-indicações e somente se aplica na fase inicial (muito curta) da infecção em doentes com sintomas ligeiros –, não surpreende assim ver saltar, como pulgas sedentas de sangue, diversos pneumologistas a perorar sobre a necessidade de se salvarem mais vidas tiradas pela covid-19. E a promover que se use mais Paxlovid. Mais Paxlovid. Mais Paxlovid.
Eu acho é que se deveria mesmo investigar a razão de estarem a morrer tantos idosos com mais de 85 anos após a toma da terceira e quarta dose da vacina. Ninguém quer saber? É tabu ou heresia colocar sequer a hipótese de estarem associadas a efeitos adversos de tantos boosters contra a covid-19?
Curioso também, para mim, tem sido ver que, com a saturação mediática de Froes, surge agora um médico do Hospital de São João do Porto, João Carlos Winck, a fazer as maiores “despesas da casa”, cantando loas e ditirambos aos antivirais, sobretudo ao Paxlovid. Nos dois artigos que li, não consta qualquer referência aos seus proveitos vindos da Pfizer quer na sua actividade em Portugal quer na European Respiratory Society. Esta gente nunca revela conflitos de interesse.
Certo é que nada é por acaso. Ontem, Marques Mendes, no seu espaço na SIC, cita João Carlos Winck e ajuda o marketing da Pfizer. E hoje surgiu António Morais, o presidente da SPP, a prostituir a associação científica que preside desde 2019, em clara violação do regime de incompatibilidades, em acção de descarada e ilegal promoção de um fármaco específico (Paxlovid) num órgão de comunicação social (TSF).
Ilegal, por três motivos: os médicos não podem fazer promoção pública de um medicamento, uma sociedade médica também não, e uma farmacêutica não pode fazer publicidade a um medicamento com prescrição médica. E até a TSF, que deveria saber que não pode fazer, numa notícia, publicidade específica a um medicamento. Ainda mais nas circunstâncias que envolvem o Paxlovid, um medicamento que teve uma aprovação de rapidez inaudita pelos reguladores.
Mas, no país da falta de vergonha, tudo fica impune, tudo se esquece. Ou se calhar, não: por exemplo, eu ainda me arrisco a um processo judicial. Desavergonhados para me meterem um processo andam por aí uns quantos.
Fossem os nossos políticos tão exímios em implementar políticas públicas eficazes como em encontrar bodes expiatórios, e Portugal seria um país exemplar. Assim não sendo, espera-nos o inferno. Ontem, como hoje; agora como no futuro, se não atalharmos caminho.
Sabemos hoje como foram os dois últimos anos. Há duas semanas, o próprio presidente do Tribunal Constitucional (TC) elencava que, a pretexto da pandemia, Portugal conheceu “15 declarações do estado de emergência, 11 declarações de situação de alerta, 11 declarações de situação de calamidade, duas declarações de situação de calamidade, contingência e alerta, três declarações de situação de contingência e alerta e três declarações de situação de contingência”.
Tamanha “barbaridade constitucional” (as aspas são minhas), que até surpreendeu o responsável máximo pela defesa dos nossos direitos constitucionais, não teve como escopo principal criar (ou contribuir para criar) condições para se ser mais eficaz e eficiente nas medidas de controlo da covid-19, de uma forma equilibrada dentro das políticas de Saúde Pública.
Foram sobretudo aplicadas pensando em dois objectivos. O primeiro, o próprio presidente do TC refere: fomentar o medo.
Tem lógica, foi assim mesmo, e sabemos. Alimentando o medo (de morte, neste caso), os políticos invocaram para si o papel protector do Estado perante uma agressão externa sobre-humana, retirando de si a responsabilidade de solucionar o problema, e ademais justificando a possibilidade de exigirem, como exigiram, aos seus cidadãos uma subordinação às suas ordens – e levá-los a que eles mansamente as aceitassem e controlassem os “insurrectos”.
O segundo objectivo foi criar uma conjuntura no ambiente social – o medo colectivo instigado pelos interesses dos media mainstream – que lhe garantisse um resultado do tipo win-win.
Ou seja, se por circunstâncias diversas, e exteriores ao Governo, a pandemia amainasse – por exemplo, pela natural evolução para uma fase endémica, como a que vivemos –, a “vitória” teria um dono. Ainda mais gloriosa porque a imprensa garantiria o selo.
Caso o Governo falhasse – como falhou no controlo da pandemia, em determinada fase (Janeiro e Fevereiro de 2021) e sobretudo na gestão do Sistema Nacional de Saúde (como se constatou ao longo do tempo, e mais ainda agora, para cúmplice silêncio da imprensa mainstream –, nunca se lhes poderia, supostamente, assacar culpas.
Com efeito, como assacar responsabilidades a um Governo que, parafraseando o presidente do TC, decretou “15 declarações do estado de emergência, 11 declarações de situação de alerta, 11 declarações de situação de calamidade, duas declarações de situação de calamidade, contingência e alerta, três declarações de situação de contingência e alerta e três declarações de situação de contingência”?
Não estiveram eles, o Governo, a trabalhar incansavelmente, sempre a aparecer, sempre a parecer que faziam coisas? Como se pode, nestas circunstâncias, responsabilizar o Governo português pelo imparável excesso de mortes nos últimos 53 meses? Se tal houve foi porque o “monstro” da pandemia não permitiu mais. Era inevitável, e mais: até seria pior se não fossem as tais 15 declarações do estado de emergência, & etc.
Para que esta narrativa fosse politicamente bem-sucedida – como foi durante a pandemia –, o controlo da informação mostrou-se essencial. O Governo esteve sempre na crista da onda mediática, a legislar – esteve e está na moda as Resoluções de Conselho de Ministros, que, do ponto de vista legislativo, valem quase nada –, a dar ordens, a comentar, a inundar a comunicação social de suposta informação (muita dela filtrada e manipulada, porque nunca se divulgam dados em bruto para evitar surpresas).
Misture-se isto com um presidente da República, um primeiro-ministro, uma ministra e directores-gerais sem independência partidária a debitarem opiniões e a fazerem comentários sobre uma estratégia de combate a uma calamidade, e nunca ninguém poderá apontar-lhes que são eles uma calamidade – que foram eles a contribuir para a calamidade.
Esta estratégia de diabolizar ameaças, hiperbolizando problemas – como sucedeu com a covid-19 –, não é, na verdade, inédita. Tal sucedeu sempre nos incêndios rurais. Em 2003 foi assim, quando arderam mais de 400 mil hectares; em 2005 também, quando arderam 350 mil hectares; em 2017, idem, quando arderam 540 mil hectares e morreram mais de 100 pessoas em dois eventos catastróficos, em Junho e em Outubro.
Nada disto foi culpa de qualquer Governo, claro! Foi tudo culpa de um “monstro” externo – o fogo, “primo” mais antigo do SARS-CoV-2 como bode expiatório – nunca das políticas públicas desastrosas.
Nada será, portanto, culpa do actual Governo se os próximos dias transformarem o país em chamas. Já vi esse passa-culpas muitas vezes, já escrevi muito sobre isso: mais de 400 páginas há 15 anos, com Portugal: o vermelho e o negro.
Com a pandemia ainda morna, vejo-me assim perante um déjà vu, agora que se está na iminência de mais um desastre num quente e seco no Verão, como se fosse anormal tempo quente e seco no Verão.
Tenho para mim – que acompanho essa temática, na função de jornalista, desde os anos 90 – como certo que as alterações climáticas são uma evidência, independentemente de alguns desconfiarem que não são de origem humana (erradamente, na minha opinião). Porém, estou muito longe de aceitar que, a pretexto de uns dias mais quentes de Verão – e é bom recordar que no ano passado Julho foi “fresco” –, se venha, logo, invocar as alterações climáticas com o objectivo de fomentar, desde logo, um “clima” de imprevisibilidade nas consequências.
Portugal é o único país da Europa mediterrânica que, desde 1980, aumentou a sua área ardida em termos absolutos. Desde o início do presente século, só dois países registaram anos com uma área ardida superior a 1% do respectivo território: Grécia e Portugal. Mas enquanto a Grécia viu isso suceder apenas duas vezes (2000 e 2007; um pouco menos de 2% de área afectada), tal já sucedeu por 17 vezes em Portugal, das quais 10 vezes no presente século, com um pico de 6% em 2017.
Variação da área ardida por ano nos países mediterrânicos europeus (JRC, 2010-2019)
Foi isto culpa das alterações climáticas? Foi, se se considerar que seria lícito armarmo-nos as Forças Armadas de arco e flecha em pleno século XXI para enfrentarmos uma eventual invasão estrangeira…
Ou foi a culpa será antes das políticas de desinvestimento agrícola? E das políticas de promoção da desertificação do interior (porque o interior não dá votos)? E das erradas estratégias florestais que não se adaptaram face às alterações climáticas e as mudanças sociais-culturais do mundo rural? E da criminosa manutenção de um modelo de prevenção e de combate aos incêndios florestais assente em pseudo-voluntarismo em detrimento de um modelo profissional holístico (gestão, prevenção e combate) e responsável?
Nada disto conta? É tudo culpa de um bode expiatório, de uma força incontrolável, sobre-humana? Culpa de todos em geral, e nunca do Governo em particular, que pode livremente puxar-nos as orelhas, porque por detrás de cada português estará um transmissor de SARS-CoV-2 como está também um incendiário?
Suspiro, por isso, ao ver agora a Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil dizer que estamos perante uma “meteorologia quase inédita” (confesso que não sei o que é um “quase” ineditismo), ao ver o Governo a decretar mais um “estado de contingência”, ao ver o Presidente da República a dissertar sobre fases dos incêndios como se estivesse com comentários no final dos jogos de futebol da Selecção Nacional, e ao ver o reitor do Santuário de Fátima a apelar para que se reze pelo fim dos fogos.
Enquanto se andou entretido com o monkeypox, obstetras, aeroporto e outras coisas de similar relevância, a imprensa mainstream não tugiu nem mugiu com os 10.000 óbitos em Junho. O Governo agradeceu.
Para eles não teve qualquer importância. Os directores da nossa imprensa têm coisas mais relevantes a tratar, muitas conferências a organizar, conteúdos comerciais a escrever para farmacêuticas, bancos, consultoras e para o que der dinheiro, as férias a organizar, a praia a esperar, as banhocas a tomar. Merecem porque se têm portado muito bem.
Anuncia-se, entretanto, temperaturas elevadas para os próximos dias com um pico junto ao fim-de-semana. Pela amostra do calamitoso estado de saúde dos mais idosos, e daquilo que se passou em muitos dias de Junho, anuncia-se novo morticínio.
Anteontem, o calor de domingo já deu para 341 mortes. Numa situação normal seriam 270-280. Com termómetros acima dos 35 graus e se tivermos várias noites com mais de 20 graus vai ser um “ver se te avias”.
Não há plano de contingência montado, não há uma estrutura preventiva, os centros de saúde andam às aranhas com falta de médicos, os militares só servem para dar vacinas e vestir camuflados, a DGS não existe, a ministra inexistente, para o calor não serve para nada ter zaragatoas nem testes PCR.
Nem vacinas, porque não há vacinas contra a incompetência.
Nem punição para os culpados.
Importem caixões. Vamos precisar deles durante este mês.
Um florescente negócio se tem vindo a desenvolver na imprensa mainstream. É já um novo paradigma onde já não há necessidade de apresentar uma distinção clara entre notícias e anúncios, entre publicidade e informação. Na verdade, os praticantes deste novi-jornalismo – não confundir com o Novo Jornalismo, onde o jornalista emerge dentro da notícia, dando um cunho literário – são pessoas pragmáticas: afinal, sendo os leitores simultaneamente consumidores, por que não lhes transmitir, em dose única, notícias e publicidade, informação e anúncios?
Muitos são os exemplos que se poderiam usar, mas para efeitos pedagógicos escolhemos as relações entre o Público e a Merck – uma farmacêutica alemã. Não se deve confundir esta empresa com a norte-americana Merck Sharp & Dohme, que, aliás, também teve recentes relações comerciais com o Público. Aliás, tal como a GlaxoSmithKline, a AstraZeneca, a Boehring Inglheim, Takeda… Nos últimos dois anos, as farmacêuticas têm sido um “ventilador financeiro” da imprensa mainstream.
Mas peguemos na Merck – até porque, enfim, justifica o título, que não é gralha.
Merck 1…
Ora, por valores que estarão sempre no “segredo dos deuses”, porque comerciais, o Público e a Merck selaram um acordo para a produção de conteúdos comerciais. Variados. Sobre saúde, e apenas este ano, já vão quatro, que deram origem a outros tantos textos, a saber:
Dirão, em sua defesa, que são mesmo conteúdos comerciais. E assim é: encimando e finalizando a página onde surgem os textos, lá consta o nome do “patrocinador”. Sucede, porém, que nem aparece o autor do texto – há muitos ghost writers nas redacções – nem o Público tem a preocupação de fazer a distinção entre esses textos comerciais no Google News.
… Merck 2…
Para os internautas, se procurar no Google por “cancro da bexiga” e “Público” na secção das Notícias, lá lhe surgirá escarrapachado conteúdo comercial travestido de notícia. Um equívoco que convém tanto ao Público como ao seu cliente.
Porém, quem “vende” indirectamente medicamentos – “vendendo” mensagens das farmacêuticas que os vendem directamente –, também vende a imagem da empresa. Ora, o Público, nesta senda do novi-jornalismo, trata também do branding dos seus clientes perante os seus leitores. Por exemplo, acoplando-se, sob a forma de prestação de serviços, à Merck para promoção da sua suposta – que pode ser mesmo efectiva – preocupação em matérias de igualdade de género.
Porém, uma coisa seria elaborar um artigo independente sobre igualdade de género onde até, concede-se, se poderia destacar o papel inovador da Merck – talvez com uma declaração de interesses por ser um parceiro comercial na área da saúde –; outra coisa, completamente diferente, é o Público promover um debate no dia 19 de Abril passado, que na verdade foi uma prestação de serviços – com a participação da sua editora-executiva Helena Pereira (estava inicialmente prevista a presença do director Manuel Carvalho) e moderação de uma jornalista da RTP – em que há três – repito: três – representantes da Merck a lançar loas e cantar panegíricos à própria empresa.
Vejamos: Rita Reis, apresentada como head of communications para o Mid Europe e Portugal; Marieta Jiménez, apresentada como senior vice-president Europe; e Pedro Moura, apresentado como managing director, que é o homem que paga as contas.
… Merck 3…
Para dar um lado sério, o Público conseguiu, como órgão de comunicação social, “sacar” para o debate, entre outros, a presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, Sandra Ribeiro. E, à boleia, a responsável para a Inclusão da Sonae MC, dona do Público.
Porém, tudo isto serviu basicamente para apresentar um suposto estudo nada independente, realizado para a Merck por uma empresa de market research ad hoc, a Spirituc, que conta com 22 farmacêuticas na vasta carteira de clientes, servindo assim o Público de veículo de (suposta) credibilidade na transmissão da mensagem para o seu (incauto) público.
Antes, a ingrata tarefa de “vender” este tipo de mensagens era das agências de comunicação – que se esforçavam, nem sempre com sucesso, em convencer os jornalistas da bondade dessa mensagem –, mas agora é feito directamente por novi-jornalistas. Isto paga ordenados, matando o jornalismo sério.
Aliás, na verdade, a seriedade de tudo isto é tão pouca que o Público, que recebeu dinheiro para promover o debate, acabou por antecipar as conclusões do estudo encomendado pela Merck, publicando uma notícia (no seu site), mesmo uma notícia (supostamente sem conteúdo comercial) no próprio dia do debate – porém, não escrita por um jornalista da casa, antes recorrendo a um take da Lusa. Perfeito na manipulação.
… e no próprio dia do debate, por si organizado e pago pela Merck, o Público antecipa os resultados do estudo. Porém, usando um take da Lusa.
Por fim, a cereja em cima do bolo da promiscuidade: desde o final do mês passado, o Público oferece uma assinatura semestral aos profissionais de saúde, uma campanha denominada P Profissional.
Na verdade, não é uma oferta: é “uma iniciativa com o apoio da Merck”.
Leia-se: paga a Merck.
Esta Merck está agora em todas. Mas poderia ser outra qualquer empresa.
Mas, aviso já, a conta da farmacêutica arrisca-se a ser choruda no caso de o contrato tiver sido estabelecido em função do número de assinantes cativados pelo Público.
Campanha de oferta de assinaturas para profissionais de saúde permitem uso generalizado. Paga a Merck.
De facto, apesar de a campanha se destinar apenas a enfermeiros, farmacêuticos, médicos, médicos dentistas, psicólogos, nutricionistas, técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica e técnicos de emergência pré-hospitalar – o que já daria potencialmente para umas valentes dezenas de milhares de novos assinantes –, não é preciso qualquer comprovativo para se fazer o registo.
Basta escolher uma qualquer profissão e dar o e-mail: nem é preciso enganar, inventando; pode ser um e-mail profissional. Como aquele que usei esta tarde, o do PÁGINA UM.
Não faz mal. O mercado manda, porque o mercado paga. A Merck paga aos jornalistas, como outras aos jornalistas pagarão. E se é agora directa, quando antes era indirectamente, por via de uma clara publicidade que não se imiscuía na linha editorial nem usava jornalistas, já pouco lhes importa. A muitos jornalistas, que já desistiram dos seus leitores, preocupa-os somente o rendimento mensal.
Por isso, os merckalistas não se importarão com este meu pequeno pecadilho com o leitor. Eles não são gente de se preocupar com minudências. Ganham sempre: neste caso, a Merck pagará a minha conta por seis meses, e tudo fica bem. E outras empresas haverá que lhes pagarão outras. E assim sucessivamente… até à morte da Imprensa. Amen.
Eu estive lá é um livro despretensioso – e essa característica poderá ser uma virtude, do ponto de vista comercial, mas também um defeito, como documento histórico, que bem poderia ser, porquanto fica muito aquém desse propósito.
Retratando sobretudo os concertos musicais realizados em Portugal nas últimas quatro décadas do século XX – os primeiros 20 anos do século XXI estão escassamente retratados –, esta é uma espécie de “colecção de cromos”, de provas de orgulho pela presença em espectáculos sobretudo em épocas em que a vinda de artistas e grupos internacionais a Portugal era um acontecimento único porque raro. Até aos anos 90, a periferia do país na Europa, o seu atraso económico e a complexidade logística para a realização de grandes concertos, deixava os portugueses a carpir por concertos de grupos mainstream.
Provar que “eu estive lá” – e sobretudo provar que se esteve lá – apenas através dos bilhetes (muitos com esmero gráfico), estropiados pelos porteiros, faz todo o sentido, uma vez que, além da memória, mais nada servia então. Antes dos anos 90 nem sequer existiam telemóveis nem se imaginariam câmaras fotográficas e de vídeo em smartphones. Aliás, convém referir que, por norma, pelo menos até aos anos 90, eram expressamente proibidas as fotografias em espectáculos musicais.
Embora com textos de apresentação, em cada década, de Luís Pinheiro de Almeida, Ana Cristina Ferrão, Pedro Fradique e Isilda Sanches, esta obra quase se esgota na simples exposição dos bilhetes dos concertos dos diversos espectáculos, identificando a data e artista(s), alguns dos quais históricos e marcantes numa determinada época. Nesse aspecto, é uma pena.
Talvez tivesse sido interessante um enquadramento de alguns desses espectáculos; ou uma explicação iconográfica; por exemplo, sobre alguns dos conteúdos de verso de alguns bilhetes dos anos 80, por exemplo, com piadas a gozar alentejanos ou com referências pouco politicamente correctas sobre homossexualidade.
Também porventura pedagógica teria sido uma explicação em redor da variação dos preços dos bilhetes, cujo aumento mais se sentiu na primeira metade dos anos 80 – por causa da inflação que então chegou a ultrapassar os 30% num só ano – e agora mais recentemente.
Em todo o caso, a inflação não explica tudo. Por exemplo, o célebre concerto de Genesis, com Peter Gabriel, em 6 e 7 de Março de 1975, custou 80 e 120 escudos, consoante o local, mas, mesmo aos dias de hoje corresponderia a 11,59 e 23,19 euros, respectivamente – uma pechincha.
Bom, mas, na verdade, estes são detalhes, que devem ser irrelevantes para a maioria dos leitores, até porque esta é uma obra não propriamente para ser lida mas para ser (re)visitada por pais e avós juntamente com filhos e netos para, a partir daí, sim, serem contadas memórias sobre, lá está, o que significou o “eu estive lá”. O livro é, assim, um pretexto para conversas intermináveis. E aí serve um bom propósito.
Pode o livro também ter outra utilidade, sobretudo para quem tem mais de 40 anos: rever o exacto momento, na década respectiva, em que se chegou à maioridade ou a uma situação económica mais folgada, e em que começam a aparecer no livro, de forma mais frequentes, os bilhetes dos concertos onde “eu estive lá”. No limite pode guardar os “seus” bilhetes entre as páginas deste livro,
Essa alegria e as memórias, que surgem quando deparamos com concertos onde “eu estive lá”, não eliminam, porém, a “raiva” por não se ter estado numa mão-cheia de outros fantásticos concertos, em grande parte porque a idade, então, não o permitiu. Fica a consolação, para esses casos, de não se estar tão velho agora.