Etiqueta: Pedro Almeida Vieira

  • Um guia sobre quem nos olha de cima para baixo

    Um guia sobre quem nos olha de cima para baixo

    Título

    Aves de Portugal Continental

    Autores

    GONÇALO ELIAS e JOSÉ FRADE

    Editora (Edição)

    Arena – Penguin Random House (Maio de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Um qualquer citadino, talvez fique surpreendido pela grossura do livro Aves de Portugal Continental – que se subintitula Guia Fotográfico, embora seja mais um guia de campo, e tenha mais, muito mais do que fotografias.

    De facto, aos tais citadinos – e há cada vez mais, infelizmente, habituados a ver, nos jardins urbanos, quando muito, uns pardais, uns melros e, no seu tempo, umas andorinhas – pode causar pasmo vislumbrar a necessidade de se usarem 448 páginas para catalogar todas as aves portuguesas, e ainda por cima excluindo as dos Açores e da Madeira.

    Na verdade, até serão poucas. Até se poderiam dispensar mais, porquanto temos contabilizadas, entre nós, 466 espécies de aves selvagens, havendo 172 cuja observação é rara (ou acidental) e outras 294 bem mais frequentes. É sobretudo sobre este segundo grupo que os autores, Gonçalo Elias e José Frade se debruçam. Ou melhor dizendo, são 294 as aves retratadas através da câmara fotográfica de José Frade, e sob a “pena” de Gonçalo Elias, dois dos mais conhecidos ornitólogos do país.

    Mais do que um simples guia de campo – embora numa dimensão necessariamente compacta,  em papel resistente de excelente qualidade, como convém a um exemplar que se quer mais a deambular no campo do que parado na estante –, esta é uma obra de divulgação científica e didáctica, que mereceria, talvez, uma outra versão alternativa, mais alargada, dir-se-ia em tamanho “monumental”, para folhear no sofá. Não apenas para se destacarem melhor as excelentes fotografias de José Frade, mas também para dar mais “espaço” e detalhe às notas pedagógicas e esclarecidas de Gonçalo Elias.

    Em todo o caso, neste formato compacto, o leitor não fica mesmo nada mal servido com tudo aquilo que este livro – lançado em Maio deste ano e já com segunda edição – lhe oferece. Agrupadas por ordens taxonómicas, as espécies são identificadas pelo nome comum e científico; além de fotografias (uma das quais em tamanho maior), são apresentadas algumas das suas características (dimensão, envergadura, frequência e abundância), bem como informações complementares e breves referências ao habitat e distribuição. De grande utilidade é o mapa de Portugal, dividido por regiões, indicando onde se pode encontrar cada espécie, em função do respectivo estatuto (residente, invernante, estival ou migradora de passagem).

    Para passear pelo campo, munido dos sempre necessários binóculos, ou para folhear em casa, este é, sem dúvida, um livro de consulta e leitura obrigatórias – e servirá também  para não esquecermos que não andamos aqui sozinhos, e que, pelos céus, há quem nos olhe de cima para baixo. Mesmo quando nós não os respeitamos, e nem sequer conhecemos a sua grande utilidade.

  • China: é a ditadura, estúpido!

    China: é a ditadura, estúpido!


    Na China, a Matemática vale aquilo que Xi Jinping quiser. Se 1+1 tiver de ser 3; ou for decidido que 1 é igual a 1.000.000, assim se determina sem questionamentos. Ou, quando muito, sob pena de castigos ou morte, com papéis em branco após meses de clausura sem falar, sem protestar, sem comer, mas a ter de calar à mesma.

    Isso é na China, que é uma ditadura. Bem gostaríamos que não fosse. Talvez fosse sensato não terem as potências mundiais – chamemos assim à Europa e Estados Unidos – andado ao longo das últimas décadas hipocritamente esperançosos a negociar com a China – e a vender-lhes dívida como se não houvesse amanhã para continuar o regabofe da impressão de moeda –, pensando que, com jeitinho e comércio, se “convencia” os políticos chineses a respeitarem os direitos humanos.

    Rotundo fracasso ou exercício hipócrita – qualquer que seja a possibilidade, certo é que aqui temos agora, para o Mundo, uma China que se tornou uma superpotência económica e militar, que domina o mercado internacional e que, hélas, tem 1,5 mil milhões de almas, quase 20% da população mundial, a viverem subjugadas a uma elite.

    A China é, portanto, uma ditadura – e acredito que, se antes do “despertar do dragão”, nenhum de nós, quer como cidadão individual quer em grupo, poderia mudar este estado de coisas, penso que agora nenhum político, incluindo Joe Biden e qualquer líder europeu, consegue fazer com que Xi Jinping mude o que quer que seja. Não dá: a China, desejando os seus líderes, continuará uma ditadura, continuará a ser uma ditadura. E vai ser muito difícil mudá-la.

    E vai ser ainda mais difícil mudá-la se o mundo democrático continuar a achar que aquilo que se passa actualmente na China são manifestações contra a política “zero covid”; como se, de um lado, tivéssemos uma entidade governamental preocupada em “vencer o vírus” – o alcançado sonho húmido do almirante Gouveia e Melo, lembram-se? – e, do outro, grupos de “negacionistas” egocêntricos e desumanos que, a despeito de um inqualificável desrespeito pelas vidas de outrem, querem ir laurear a pevide. E não uma inqualificável opressão do povo que já luta sem medo da morte, porque a vida assim já é pior do que tal sorte.

    white light in tunnel during night time

    Olhem para os números, pelo menos. Não sejam estúpidos, e já que tiveram a sorte de não nascer na China, não queiram aceitar que vos digam que 1 é igual a 1.000.000 – e não aceitem a manipulação da imprensa mainstream, mais as suas agendas. Já nem quero, neste caso, abordar a cobertura da lusitana indigente imprensa, porque, enfim, já se sabe, comporta-se como abjecta caixa de ressonância das agências internacionais ou, na melhor das hipóteses, agrega em si redacções com patentes défices de literacia matemática, que está ao nível de uma primeira classe das antigas – ou seja, olham para um número e vislumbram um gatafunho.

    Vejamos então o que tem saído sobre a China na imprensa internacional mais “credenciada” sobre os “números da pandemia” que, aparentemente, justificam os lockdowns. A Reuters, há dois dias, titulava “China records drop in new daily COVID cases for Nov. 28”. A CNBC titulava, no sábado passado, “China reports third consecutive daily record for new Covid cases”. Ontem, a Sky News titulava “China expands lockdowns as COVID cases soar to daily record high”. E poderia continuar, sempre na mesma toada de justificativos para as medidas governamentais chinesas.

    Recordes, recordes, recordes. Casos, casos, casos. Números, números, números.

    silhouette of person standing near window

    E as mortes não contam? Já não contam como o indicador mais fundamental de uma política de saúde? Onde estão esses números de óbitos para se confrontarem, de modo a se avaliar se as medidas governamentais chinesas são proporcionais ao risco da covid-19 para a saúde pública? Onde estão esses números e esse enquadramento nas notícias, pelo menos da imprensa de países democráticos?

    Pois, se não estão; eu digo-vos: nos últimos seis meses morreram sete chineses por covid-19. Todos este mês de Novembro, é certo, mas são 7. Atente-se a este número: 7. Num país com uma população de 1,41 mil milhões de pessoas e uma taxa anual de mortalidade de 0,77%, significa que, desde finais de Maio até finais de Novembro (seis meses), terão morrido, contas feitas, cerca de 5.544.000 de chineses por todas as causas. Sete foram de covid-19. Sete: repito. Em termos relativos, neste último semestre, a covid-19 foi responsável por 0,00013% das mortes. Uma morte por covid-19 por cada 775.500 mortes.

    Ainda acham que aquilo que se passa na China é uma questão de saúde pública?

    É a ditadura, estúpido!

  • Marcelo é lelé da cuca

    Marcelo é lelé da cuca


    Em 5 de Agosto de 1978, na secção Gente do semanário Expresso, o então seu director, Marcelo Rebelo de Sousa, escreveu uma frase, completamente desinserida de qualquer contexto, que se tornou célebre: “Balsemão é lelé da cuca”. Pinto Balsemão – fundador daquele semanário e actualmente presidente da Impresa – era então o primeiro-ministro português, e para justificar esta boutade, o então irrequieto Marcelo de 30 anos desculpou-se dizendo ter sido aquilo um teste aos revisores do semanário, por haver queixas sobre as suas qualidades. “Infelizmente, verifiquei que era verdade”, assim disse. Balsemão nunca lhe perdoou, porque foi um insulto gratuito e destituído de fundamento.

    Pois bem, não tendo o PÁGINA UM uma equipa altamente profissional de revisores para testar – estando essa tarefa inglória mas fundamental a ser agora desempenhada, com abnegação, pela Mariana Santos Martins, a quem não posso exigir mais –, não tenho assim qualquer alegação atenuante para vir a desmentir que não tinha o propósito de escrever o seguinte, que até já surge bem escarrapachado do título deste editorial:

    MARCELO É LELÉ DA CUCA!

    Assim: até com ponto de exclamação. Até para reforçar a intencionalidade, contundência e veracidade da minha afirmação.

    Sejamos claros: como no conto de Hans Christian Andersen, Marcelo Rebelo de Sousa é hoje, e não é só de hoje, um presidente completa e tragicamente desnudado de sensatez – e só já se lhe pedia isso, apenas, sensatez –, mas ninguém se atreve a dizer-lhe.

    Para mim, bastou vê-lo “nu” em 18 de Junho de 2017, quando no ainda quente rescaldo do trágico incêndio de Pedrógão Grande nos disse que “o que se fez foi o máximo que se podia fazer”. Tal insensibilidade e impreparação como estadista, desde logo mostrando preocupação apenas em desresponsabilizar políticos enquanto as brasas nem tinham arrefecido e cadáveres ainda fumegavam, foi para mim o bastante. Nesse dia, Marcelo “morreu” como político, e perdeu o meu respeito.

    Mas, no meio das suas constantes selfies e exposições egocêntricas, a que nos foi brindando desde 2016, nada me preparava ainda para o que veio de si a partir de Março de 2020: um presidente da República simultaneamente catedrático de Direito Constitucional a pactuar, por mor da sua célebre hipocondria, com sucessivas violações da Constituição, incluindo discriminação de cidadãos em função de uma opção legítima e legal, bem como o incitamento a pais para inocularem filhos por uma não-causa social e sanitária. Mesmo se estivesse em causa proteger idosos num hipotético objectivo (não possível) de imunidade de grupo, jamais poderia ser aceitável condicionar a segurança dos mais jovens para proteger os mais idosos. Em tempos de decência geracional, costumava ser ao contrário.

    Por isso, já não surpreende vê-lo agora como paladino de uma inconstitucional alteração constitucional, de uma chinenização da República Portuguesa, ou assistir às suas declarações sobre abusos sexuais de padres – ao estilo de “o que se fez foi o máximo que se podia fazer” – ou ouvir os seus comentários no flash interview de um jogo de futebol para sugerir que nos esqueçamos das violações dos direitos humanos no Qatar, pois é hora de andar a chutar bolas.

    Mas algo fica já fora da sanidade institucional quando, em pleno século XXI, de tantos avanços sociais e tecnológicos, vemos o mais alto dignitário de uma quase milenar Nação discursar perante uma jovem elite – recém-licenciados em Medicina, antes do Juramento de Hipócrates –, avisando-a que “fazer sopa de pedra e fazer omeletes sem ovos, vai ser muito a vossa vida”.

    Esta visão não é apenas miserabilista – de alguém que, aliás, já conta com mais de uma centena de viagens oficiais ao estrangeiro envolvendo 47 países –; é miserável.

    Um Presidente da República somente se estiver (ou for) lelé da cuca pode dizer, a quem vai começar uma via profissional fundamental para um país (Saúde), que “o ideal seria (…) que tivésseis horas para ir ao cinema, ao teatro, para estar com a família, para ter almoços e jantares que não fossem não-almoços nem jantares”, mas que isso não lhes vai ser possível, porquanto aquilo que terão de enfrentar “, para não terdes que enfrentar aquilo que “é totalmente imprevisível”, uma espécie de “missão” do tipo dos missionários combonianos. E que ainda se apresta a ser o portador da “má notícia”, com ares de quem nada tem a ver com o estado da res publica: “a vossa vida vai ser o contrário daquele modelo para que apontou, de forma muito razoável e esperançosa, o senhor bastonário. Vai ser a surpresa, o inédito, o desconhecido, o ignoto. E vai ser como missão”.

    Mas o que é isto?! Ensandeceu mesmo?!

    No final da alocução, quero acreditar que as palmas que lhe dedicaram tenham sido pela comiseração que certas afecções mentais nos suscitam. Idem, com as habituais selfies, que ele tanto gosta. Convém, dizem, não contrariar certos caprichos de certas pessoas, mesmo quando as suas capacidades feneceram, mesmo se a cadeira onde se encavalitam no poder, até ao limite, se encontra em processo de esboroamento. Por podridão.

    No limite, ninguém o levou a sério no discurso. Neste e em muitos outros.

    Assim, não havendo esperanças numa resignação, acalento apenas alguma esperança de que lhe arranjem melhores conselheiros de comunicação, não o deixem falar tanto de improviso, e ajudem-no a terminar com o mínimo de dignidade o seu mandato, como disse certa vez António Costa sobre Cavaco Silva – que, aliás, a esta distância, e com algum estremeção na minha consciência, se me afigura agora como um estadista que, pelo menos, soube minimamente comportar-se enquanto Presidente da República.

  • Mortes súbitas? Efeitos adversos? Cancros fulminantes? Eles não querem saber…

    Mortes súbitas? Efeitos adversos? Cancros fulminantes? Eles não querem saber…


    Todos os dias, sou confrontado com alertas, avisos, denúncias, alarmes, suspeitas, receios. Dizem-me que há por aí um aumento de mortes súbitas. Que há um inusitado número de pessoas com problemas cardíacos, mesmo em atletas de alta competição. Que há uma escalada de casos de tumores galopantes e surpreendentemente metastizados. Que há cada vez mais crianças (do sexo feminino, claro) de tenra idade com menstruação. Que há abortos com maior frequência.

    Para todos estes casos, sempre defendo: sempre houve mortes súbitas; sempre houve pessoas com problemas cardíacos, mesmo em atletas de alta competição; sempre houve cancros galopantes; sempre houve meninas com menstruação demasiado precoce; sempre houve abortos.

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    O problema é que o advérbio “sempre” e o verbo “haver” dizem pouco. Ou nada. Não conseguem quantificar; e a quantificação é a única forma que se tem de avaliar se estamos perante uma anormalidade, quer por défice quer por excesso.

    Que existem sinais, durante a pandemia – e no pós-pandemia – de um excesso de mortes, não parece existir qualquer dúvida. O SARS-CoV-2 desestruturou directa e indirectamente os sistemas de saúde, e a ele já se atribuíram muitas mortes – mais de 6,6 milhões em todo o Mundo em quase três anos e cerca de 25.300 em Portugal –, embora se eternize a discussão sobre se “com” ou “por” covid-19.

    Para mim, cada vez mais, a discussão sobre o impacte da pandemia – e houve uma pandemia – não pode, porém, cingir-se aos impactes directos do coronavírus, mas também à estratégia de gestão política – que inclui, neste âmbito, o próprio processo de aplicação das medidas não farmacológicas – e aqui englobando a decisão de secundarizar o diagnóstico e tratamento das outras doenças – e, de forma indubitável, à própria vacinação.

    Ninguém com um pingo de seriedade e com uma gota de rigor científico pode assumir como hipótese que um excesso de mortalidade advenha, por exemplo, de sequelas da covid-19 – a famigerada long covid – e excluir, em simultâneo, na análise, a hipótese de eventuais efeitos adversos das vacinas contra esta doença ou de impactes da secundarização das outras enfermidades desde 2020.

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    Aquilo que, verdadeiramente, me irrita no debate sobre as causas do excesso de mortalidade que se vem assistindo desde 2020, é falar-se sem estar disponível informação estatística séria. E ela existe.

    Portugal é, na verdade, um dos países mundiais com maior quantidade e melhor qualidade de informação estatística para apurar, de forma praticamente imediata, as causas para o excesso de mortalidade por faixa etária.

    Tem bases de dados para isso, mas o Governo tudo faz para não as ceder, e mesmo as iniciativas do PÁGINA UM – o ÚNICO órgão de comunicação social que aparenta preocupar-se com isso – têm esbarrado com um muro de silêncio e de obstáculos à transparência que nem os processos de intimação, até agora, têm quebrado.

    E quando digo tem bases de dados, quantifico quantas são: 6 (seis), pelo menos. E vou dizer quais são.

    Vejamos.

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    Portugal tem desde 2014 o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), uma base de dados geralmente usada pela comunicação social para relatar o número de óbitos por todas as causas num determinado dia ou período. Porém, esta base de dados incorpora uma riqueza de informação inimaginável, não disponível ao público, como seja a causa de morte atribuída pelo médico legista para cada óbito. Para todos os óbitos. De forma imediata, à distância de um clique, e com a devida anonimização, pode saber-se se existem desvios em qualquer enfermidade, por grupo etário, por região. Tudo.

    Mas a Direcção-Geral da Saúde não quer disponibilizar essa base de dados, nem o Ministério da Saúde deseja usá-la para apurar as causas do excesso de mortalidade, remetendo um estudo para as calendas, como se fossem necessários meses para algo que levaria, numa equipa independente, alguns dias. O PÁGINA UM está, desde há meses, a tentar obter acesso a essa base de dados – protegida por legislação especial –, estando neste momento a decorrer um recurso no Tribunal Administrativo Central do Sul.

    De igual modo, e no que diz respeito ao impacte da covid-19, também o Estado tem disponível o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE), que já existia muito antes da pandemia, e onde estão registados também todos os casos positivos de covid-19, com os respectivos desfechos, bem como informações sobre a vacinação. Também para este caso, a Direcção-Geral da Saúde não quer revelar, e também para este caso decorre um recurso no Tribunal Administrativo Central do Sul.

    person using laptop

    Outra base de dados fundamental é a relativa aos Grupos de Diagnósticos Homogéneos (BD-GDH), que consiste num sistema de classificação de doentes internados em hospitais de agudos, agrupando assim doentes em grupos clinicamente coerentes. Consegue-se assim analisar a evolução dos internamentos por doenças e grupos etários, possibilitando comparações, e identificando assim os desvios mais relevantes em todas as doenças e enfermidades desde 2020.

    Além disso, nesta base de dados pode fazer-se a “prova dos nove” relativamente ao verdadeiro impacte da covid-19 na gestão hospitalar – e até à verdadeira quantificação dos doentes por aquela doença e onde esta teve origem. No entanto, a Administração Central do Sistema de Saúde também não quer disponibilizar esta base de dados, correndo assim mais um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    A quarta base de dados fundamental para avaliar os efeitos da pandemia é o Portal RAM do Infarmed, relativa à notificação de reacções adversas e efeitos indesejáveis de medicamentos, que incluem também, obviamente, as vacinas contra a covid-19. No site do Infarmed diz-se que “o Portal RAM permite a inserção da reação adversa suspeita de forma fácil, acessível e rápida, sem intermediação de terceiros”, colocando uma ligação. Mas a facilidade é só para inserir dados, porque para consultar a base de dados mostra-se mais difícil.

    silhouette of woman holding rosary while praying

    Desde Dezembro do ano passado, o PÁGINA UM tenta obter acesso aos dados detalhados das reacções adversas das vacinas contra a covid-19 (e também do remdesivir), sem sucesso. Nem depois de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. O processo está no Tribunal Administrativo de Lisboa desde Abril deste ano, onde o Infarmed move mundos e fundos para convencer a juíza a não ceder a possibilidade do PÁGINA UM aceder à dita base de dados.

    Além destas quatro bases de dados, o PÁGINA UM requereu recentemente o acesso a duas outras com informação fundamental: o Registo Nacional de Oncologia e o Registo Oncológico Pediátrico Português. Com a devida anonimização – uma tarefa corriqueira em programas informáticos –, estas bases de dados possibilitam também avaliar desvios na incidência dos diferentes tipos de neoplasias, um ponto de partida fundamental para encontrar causas e debelar efeitos futuros.

    O PÁGINA UM apresentou um requerimento ao Instituto Português de Oncologia – que gere ambas as bases de dados –, mas parece-me quase certo que, pelo comportamento das entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde, o processo acabará também por ser dirimido em tribunal.

    Eis, portanto, por esta amostra – porque existem ainda mais bases de dados – que o problema em Portugal em se desconhecer o que se está a passar não se deve a qualquer tipo de lacuna informativa nem sequer dificuldade de compilação e tratamento de dados.

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    Basicamente, os políticos – e os burocratas da Administração Pública, que os protegem, em vez de protegerem os cidadãos e a nossa saúde individual e colectiva – não estão interessados em saber. Ou melhor, não querem que saibamos.

    Não estão interessados que saibamos se há mesmo por aí um aumento de mortes súbitas. Se há mesmo um inusitado número de pessoas com problemas cardíacos, mesmo em atletas de alta competição. Se há mesmo uma escalada de casos de tumores galopantes e surpreendentemente metastizados. Se há mesmo cada vez mais crianças (do sexo feminino, claro) de tenra idade com menstruação. Se há mesmo abortos com maior frequência.

    Querem os políticos – e os burocratas da Administração Pública – que estejamos e nos mantenhamos na ignorância. Querem que vejamos e aceitemos a perda dos nossos próximos na mais completa ignorância. Querem, enfim, que morramos sem saber, caladinhos, em silêncio. Sem incómodos.

    E porquê? E até quando?

    Até os tribunais começaram a decretar sentenças lúcidas que “convençam” os políticos que vivemos numa democracia?

    Espero que sim; mas espero também que não seja tarde demais para demasiados.

  • Esboço embrionário em envelope lacrado

    Esboço embrionário em envelope lacrado


    Já se encontra no Tribunal Administrativo, entregue em mão em envelope lacrado, o famoso “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”, a peça de elevada Ciência do Instituto Superior Técnico sobre o impacte das festas populares de Junho na mortalidade.

    Cabe agora à juíza do processo saber se o “esboço embrionário” é semelhante a uns rabiscos num guardanapo de papel que, enfim, acabou como notícia alarmista na Lusa (e a viralizar na imprensa mainstream, que o publicou sem nunca o ver), ou se estamos perante um “estudo” (independente da sua qualidade) que deverá ser escrutinado do ponto de vista científico.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes na sede do Ordem dos Médicos, em Julho do ano passado, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico recusa divulgar os estudos e os dados, e tem agora defendido que, em Julho passado, fez apenas um “esboço embrionário”, que foi noticiado pela imprensa mainstream como um estudo científico credível.

    Se o Tribunal Administrativo de Lisboa considerar que se está perante um “esboço”, o PÁGINA UM não terá acesso, mas fica-se a saber que a Lusa fez uma notícia alarmista vendendo a “notícia” como tendo por base um relatório (que não existia), fazendo mesmo supostas citações. E que toda a imprensa mainstream viralizou uma fake news.

    Mas se o “esboço” for afinal uma péssima desculpa para não mostrar um mau estudo científico, então teremos uma excelente oportunidade de esquadrinhar o modus operandi da investigação em Portugal nos estranhos tempos que correm, onde a ausência de rigor e a falta de transparência e humildade convivem com maus cientistas.

    Este caso é exemplar: que saiba, esta será a primeira vez que uma instituição universitária se vê pressionada pela imprensa a prestar contas públicas sobre a qualidade científica daquilo que sai sob sua chancela.

    A questão central, saliente-se, não é a idoneidade do Instituto Superior Técnico; pelo contrário: é em defesa desta instituição que o PÁGINA UM está nesta cruzada.

    Não é aceitável que determinados investigadores, ainda por cima encabeçados pelo seu presidente, usem a credibilidade científica de uma centenária instituição universitária para passarem, activa ou passivamente, informação não validada.

    E ainda mais quando se estava perante um assunto da máxima sensibilidade social. E nem sequer já vale a pena salientar a postura com que os investigadores do Instituto Superior Técnico, e em particular o seu presidente, Rogério Colaço. A indisfarçável soberba com que recusaram prestar quaisquer contas a um jornalista que lhes solicitou provas das conclusões que estavam a circular em nome daquela instituição é o paradigma daquilo que não pode ser a Ciência, daquilo que não deve ser a relação entre os cientistas e a sociedade.

    Note-se que no pedido do PÁGINA UM estão incluídos também os anteriores relatórios do Instituto Superior Técnico desde Junho do ano passado, que nunca foram classificados como “esboço embrionário”; e por isso, independentemente, da decisão da juíza, certamente haverá possibilidade de analisar criticamente os outros relatórios elaborados desde Junho do ano passado em articulação com a Ordem dos Médicos.

    Isto é a democracia a funcionar. E o jornalismo independente e sem medo a trabalhar. Incomoda? Claro. Mas se não incomodasse não seria jornalismo.

  • Conhece a história da primeira vacina contra o vírus sincicial respiratório? E mesmo assim acha bem a promiscuidade entre farmacêuticas e imprensa?

    Conhece a história da primeira vacina contra o vírus sincicial respiratório? E mesmo assim acha bem a promiscuidade entre farmacêuticas e imprensa?


    A farmacêutica francesa Sanofi, em articulação com a anglo-sueca AstraZeneca, conseguiu, no passado dia 4 de Novembro, a aprovação pela Comissão Europeia da sua vacina contra o vírus sincicial respiratório (RSV), que causa uma das mais banais infecções em crianças e idosos, que só constitui preocupação relevante para um grupo muito restrito com comorbilidades (e onde já existia medicamento preventivo).

    Também a Pfizer, a Moderna e a GlaxoSmithKline se encontram em fase avançada de testes, muito interessadas neste novo filão de negócios das vacinas, “empurradas” pela covid-19, que levam a saltarem-se fases à boleia de uns políticos menos prudentes e de uma imprensa histérica.

    Obviamente, as farmacêuticas com as suas novas vacinas contra o RSV querem repetir a “dose” do SARS-CoV-2. Desejam um ambiente de pânico e de interesses promíscuos com os diferentes “autores sociais”, que, tal como se observou na covid-19, aliado a um voluntarismo irracional, resultou numa estratégia de vacinação maciça e praticamente coerciva, injectando quem se devia (por razões de verdadeira emergência e relevância) e quem não se devia nem era prudente fazê-lo, de que os jovens adultos, adolescentes e até crianças são exemplo.

    Nada agora é por acaso.

    Por exemplo, não é por acaso que a imprensa lançou profusas e alarmantes notícias nos primeiros dias de Novembro sobre surtos de RSV. No Google News surgem 190 notícias na última semana quando se pesquisa pelo termo VSR.

    Também não foi por acaso que o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge começou inopinadamente a divulgar os números de internamentos por RSV (que sempre ocorreram em outros anos) apenas a partir de meados de Outubro passado. Foi para preparar a “cama” e assustar pais.

    E também não foi por acaso que o Expresso, certamente em prol do bem comum, se associou esta semana à Sanofi – leia-se, estabeleceu um acordo comercial, que terá (?) de constar no Portal da Transparência do Infarmed – para fazer uma tertúlia em redor do RSV. Pomposamente, chamaram à “coisa” RSV Summit.

    Teve isto tudo presença de uma jornalista (Ana Patrício Carvalho, da SIC Notícias), como mestre-de-cerimónias, do CEO da Impresa, Francisco Pedro Balsemão, e da directora-geral da Sanofi Portugal, Helena Freitas, e até, hélas, a moderação de Carolina Patrocínio.

    No vídeo de marketing desta iniciativa meteu-se, obviamente, umas imagens de ventiladores e máscaras em crianças… Nada é inocente.

    Que as farmacêuticas desempenham um papel crucial na sociedade, que são responsáveis por avanços fundamentais no combate às doenças e na melhoria das condições de vida, não tenhamos dúvidas. Que podem e devem ter lucros, não sejamos invejosos.

    Porém, não cabe à imprensa “aliar-se” às farmacêuticas, como se acentuou pornograficamente nos últimos anos, e que retirou e retira ao jornalismo a visão crítica, isenta e independente à gestão da pandemia da covid-19.

    VSR Summit: uma parceria da Sanofi e do Expresso, não inédita, promíscua e contraproducente.

    A pandemia da covid-19 não pode jamais ser o “abre-se, sésamo” para a entrada definitiva na caverna do tesouro que se julga poder salvar a imprensa mainstream do fracasso da má qualidade jornalística.

    Era bom, aliás, que a prudência e mesmo a desconfiança – grandes virtudes do jornalismo, a par da memória e da investigação – levassem a um olhar distante sobre as novas vacinas contra a RSV, tal como deveria existir face às vacinas contra a covid-19.

    Talvez poucos saibam quais as razões pelas quais uma doença respiratória como a causada pelo VSR não teve nenhuma vacina nas últimas décadas. Talvez seja importante recordar, tanto mais que, apesar de ser doença banal causa mais de 100 mil mortes por ano, sobretudo em países subdesenvolvidos. Está tudo contado, em detalhe em dois artigos científicos: em 2011 na Expert Review of Vaccines, e em 2016 na Clinical and Vaccine Immunology. Em 1967, após anos de ensaios, uma vacina RSV inactivada com formalina combinada com alúmen foi administrada em bebés nos Estados Unidos. Ao contrário daquilo que os ensaios apontavam, a vacina não foi eficaz; e pior, aumentou a gravidade da doença. As hospitalizações foram muito mais prevalentes no grupo vacinado do que entre o grupo de controlo, “vacinado” com placebo: 80% contra 5%. Duas crianças morreram por causa da vacina.

    Estes, e outros artigos científicos, explicam os processos microbiológicos, citoplasmáticos e outros que tais que levaram a este fracasso e a uma exacerbação da doença após a toma daquela vacina.

    Não significa que as novas vacinas contra o RSV – e, por maioria de razão, contra o SARS-CoV-2 – tenham problemas similares, em dimensão àquela vacina. Na verdade, as vacinas são uma história de sucesso no desenvolvimento tecnológico da Humanidade, sobretudo a partir da segunda metade do século XX.

    Mas, para isso, e sobretudo, para que nenhuma má vacina seja a nódoa que cai no melhor pano, estragando-o irreversivelmente, convém muito que o jornalismo e as farmacêuticas joguem em bancos diferentes, não comunguem do mesmo repasto.

    Isso não está a suceder com a vacina contra a VSR. Veja-se a título de exemplo com a Sanofi. Além de conteúdos patrocinados sobre a VSR, o Expresso também tem uma parceria comercial com esta farmacêutica francesa para a gripe (Flu Summit), e este ano encontramos também as mesmas relações comerciais sob a forma de artigos comerciais escritos em estilo jornalístico em outros órgãos de comunicação social, como no Observador, ou ainda sob a forma de patrocínios para prémios, como sucede com o Jornal de Negócios.

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    Se se fizer uma rápida busca nos sites da imprensa mainstream de âmbito nacional enco9ntramos uma profusão de eventos e outras iniciativas patrocinadas – leia-se, financiadas – pelas mais distintas farmacêuticas, sempre apresentadas sob a forma de parcerias.

    Só um ingénuo não consegue concluir que este tipo de eventos – onde, ademais, participam dirigentes das farmacêuticas, responsáveis do regulador (Infarmed), médicos, jornalistas e administradores dos media, e até por vezes políticos – condicionam fortemente a saída de notícias isentas e independentes sobre farmacêuticas e os seus produtos. A forma como (não) houve debate em torno da eficácia das vacinas contra a covid-19, ou o tom quase sempre encomiástico com que estas foram abordadas pela imprensa, são exemplos claros. E isso pode suceder, ou estar a suceder, com muitos outros medicamentos. Nos últimos anos abriu-se uma caixa de Pandora.

    A falta de análise crítica aquando da vacinação dos adolescentes e crianças – de que são exemplos a despublicação do artigo de opinião do médico Pedro Girão no Público em Agosto do ano passado e a cobertura mediática das campanhas inquisitoriais da Ordem dos Médicos sobre clínicos que contestavam a vacinação universal – foi particularmente chocante, e não pode ser vista como algo alheio à dependência financeira da imprensa mainstream com as farmacêuticas.

    black framed eyeglasses on top of white printing paper

    Hoje, no quadro desta dependência, seria impensável que fosse publicado um artigo a destacar que um determinado país retirara 800 mil lotes infantis de vacinas de uma farmacêutica por ser fraca. Por um lado, porque as autoridades reguladoras se politizaram, e os media mainstream se sujeitaram a essa dependência em relação às farmacêuticas.

    Veja-se, aliás, como políticos, farmacêuticas e imprensa apresentam agora as vacinas contra a covid-19: não são ineficazes contra a variante Ómicron; o SARS-CoV-2 é que consegue escapar aos anticorpos criados pela “vacina eficaz”. Hoje, temos “consensos sociais” criados e impostos pelos jornalistas, enquanto os departamentos de marketing da imprensa mainstream onde trabalham esses jornalistas abrem as portas dos cofres para a entrada de dinheiro das farmacêuticas. Isto não é apenas promiscuidade; em Portugal, pela Lei da Imprensa, é ilegal.

    A prazo, esta promiscuidade nem sequer será útil para ninguém: nem para as farmacêuticas – que “compram” uma comunicação favorável, o que as incentiva a serem gananciosas e também negligentes em aspectos cruciais até ocorrer uma “explosão” – nem para a imprensa mainstream, que em cada uma destas parcerias, e com tão dengosa postura, definham cada vez mais a sua credibilidade. E a sociedade deixa de a considerar o seu watchdog. Com isto, perde também a sociedade.

    Por isso, termino com as duas questões do titulo. Conhecendo a história da primeira vacina contra o VSR e perante as agora promíscuas relações da imprensa com as farmacêuticas, não me sinto nada seguro. Mesmo se o “consenso social”, que agora se exige, me diga que nada há para temer.

  • Primeiro mandamento da decência: não invocarás as alterações climáticas em vão!

    Primeiro mandamento da decência: não invocarás as alterações climáticas em vão!


    O ministro da Saúde, Manuel Pizarro, veio esta tarde – e usando, como já é habitual no Governo, os “pés de microfone” da agência Lusa, o Pravda lusitano, que depois trata de viralizar na imprensa mainstream –, declarar que os fenómenos climáticos extremos tiveram “um profundo efeito” nas causas de doença e de mortes dos portugueses e pediu urgência no combate às alterações climáticas.

    E adiantou ainda não querer “antecipar o estudo que está a ser feito, designadamente sobre as diferenças de mortalidade dos últimos anos, mas parece óbvio, numa avaliação preliminar, que para além do impacto terrível da pandemia – e esse impacto da pandemia não está desligado das mudanças climáticas – há também nas causas de doença e de morte dos portugueses um profundo efeito dos fenómenos climáticos extremos”.

    brown and green grass field near body of water under cloudy sky during daytime

    Não sei se os estremeções que estas declarações me causam se devem especificamente às declarações do ministro da Saúde ou se ao deplorável trabalho do jornalista da Lusa que escreveu isto – e que em boa hora se mostra anónimo –, do editor da Lusa – que fez seguir para a imprensa mainstream um textículo digno de uma agência de comunicação, e não de uma agência noticiosa – e dos directores da Lusa – que, em suma, estão a “assassinar” a dignidade de uma profissão.

    Mas deixemos a imprensa mainstream aniquilar-se, e foquemo-nos nas declarações do ministro.

    As alterações climáticas – tenho assumido desde os anos 90, como homem da Ciência e como jornalista, e até como antigo dirigente ambientalista – são uma realidade que, independentemente da causa (antropogénica e/ ou outras), coloca e colocará problemas e desafios diferenciados, e mais ou menos graves, nos diferentes territórios do Mundo. É, contudo, um problema sobretudo político – e de políticas – e diplomático – esqueçam qualquer medida de fundo se não tiver a anuência da China e da Índia.

    Porém, sendo um problema – e permitam-se que não queira agora debater se a estratégia política de combate às alterações climáticas visa retirar direitos aos cidadãos –, jamais pode ser uma desculpa política; uma forma cruel de passa-culpas para um ente invisível e sobrehumano, quando as responsabilidade pela actual situação é inteiramente dos políticos.

    Manuel Pizarro, ministro da Saúde.

    Aliás, jamais pode ser aceitável que Manuel Pizarro queira adiantar já, para uma acrítica comunicação social, que o excesso de mortalidade ao longo dos últimos três anos – e sobretudo de 2022, já com a covid-19 endémica e a população supostamente vulnerável com sucessivos boosters – seja do tempo quente. Esfarrapadas desculpas. Como se a sucessão de meses infindáveis de mortalidade excessiva dos maiores de 85 anos, tanto no Inverno, como na Primavera, como no Verão, como no Outono, pudesse assim ser tão simplesmente explicada pelas alterações climáticas.

    Terão sido as alterações climáticas a matarem a mais de cerca de uma centena de jovens em 30 meses, conforme revelou hoje o PÁGINA UM?

    Terão sido as alterações climáticas a fazerem com que este Governo alimente uma postura de obscurantismo, recusando divulgar qualquer tipo de informação fidedigna?

    Na verdade, querer antecipar conclusões sobre o excesso evidente de mortalidade, empurrando as culpas já para alterações climáticas, é inqualificável.

    E inqualificável porque faz parte de uma estratégia do Governo para ocultar e a manipular a verdade. Nada mais. Não há esforço para mais do que salvar o coiro. Esconder a verdade, esconder a verdade e esconder a verdade: eis a tríade de objectivos do Governo sobre o excesso de mortalidade.

    black and gray cement tombs

    Ainda ontem, assisti a mais um lamentável episódio da Administração Pública na canina defesa de um Governo que anda há três anos (pelo menos) a manipular os portugueses, no decurso do processo de intimação que corre no Tribunal Administrativo, onde está em causa o acesso à base de dados nacional do Grupo de Diagnósticos Homogéneas, que constitui um sistema de classificação de doentes internados em hospitais. O acesso a esta base de dados pelo PÁGINA UM – a par dos dados em bruto do Sistema de Certificação dos Certificados de Óbito (SICO) – mostra-se fundamental para uma avaliação independente – que não atire as culpas para as alterações climáticas –, uma vez que permitirá estabelecer comparações fiáveis entre doenças em função da idade e outras variáveis ao longo dos anos.

    Ora, saber isto publicamente causa um temor enorme à Administração Central do Sistema de Saúde – presidido por Vítor Herdeiro, amigo de longa data da ex-ministra Marta Temido, e que fez “sumir” durante meses outra comprometedora base de dados (morbilidade e mortalidade). E, portanto, vale tudo na argumentação junto do Tribunal Administrativo. Desde Agosto tem sido um festival de mentira e de desavergonha.

    Em causa, na verdade, está apenas saber se a base de dados possui dados nominativos, isto, é se se encontram listados os nomes dos doentes que permita saber, por exemplo, que a D. Gertrudes da Anunciação Perpétua esteve internada no hospital de Guimarães com uma perna partida. Ora, qualquer base de dados moderna permite, com o simples carregar de umas teclas, seleccionar variáveis e suprimir campos, de sorte que o ficheiro de Excel sai limpinho sem qualquer nome mas apenas com códigos em sua substituição.

    Victor Herdeiro, presidente da ACSS, segundo a contar da direita, na sessão de apresentação dos novos Estatutos do SNS no passado dia 7 de Julho. Herdeiro foi companheiro da ex-ministra da Saúde, Marta Temido, durante três mandatos na Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares.

    Porém, começou a ACSS – através de uma sociedade de advogados especializada sobretudo em ganhar contratos por ajuste directo em instituições ligadas ao Ministério da Saúde, como hospitais – a procurar convencer o Tribunal Administrativo da impossibilidade de expurgar dados nominativos, que isso nunca foi feito.

    Atente-se no requerimento da ACSS em 10 de Outubro passado: “(…) Note-se que a natureza dos documentos em causa, documentos nominativos, no quadro de impossibilidade da respetiva anonimização, determina, em face da LADA, que o acesso aos mesmos por terceiro apenas seja admissível nos casos em que se verifiquem os requisitos previstos no artigo 6.°, n.° 5, da LADA, ou seja, a apresentação de autorização escrita do titular dos dados que seja explícita e específica quanto à sua finalidade e quanto ao tipo de dados a que quer aceder ou a demonstração fundamentada da titularidade de um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante, após ponderação no quadro do princípio da proporcionalidade, de todos os direitos fundamentais em presença e do princípio da administração aberta, que justifique o acesso à informação. Tais requisitos não se encontram, porém, verificados no presente caso.”

    Como o PÁGINA UM contra-argumentou dizendo, em síntese, que a ACSS estava a mentir – a anonimização, na verdade, não só é possível como até prevista em duas delegações de competências, em 2019 (Deliberação nº 673/2019) em 2021 (Deliberação nº 835/20921) – veio então a mais despudorada tentativa de atirar areia aos olhos da juíza e da nossa inteligência colectiva.

    Extracto do requerimento da ACSS, através da BAS Sociedade de Advogados, entregue ontem no Tribunal Administrativo.

    Apanhada em falso, veio a ACSS ontem, portanto, dizer isto: “(…) importa reiterar que, relativamente à Base de Dados de GDH, o expurgo dos dados pessoais da mesma, para que o Requerente pudesse ter acesso à mesma, implicaria a criação ou adaptação da base de dados com um esforço desproporcionado que ultrapassa a simples manipulação da mesma”, adiantando depois que isso “não implica que não haja situações em que se tenha de efetuar as operações referidas nos dois pontos anteriores, i.e., adaptar toda a base de dados de forma a expurgar os dados nominativos; porém, em função da grande afetação de recursos que tal operação acarretaria, essas situações têm de ser devidamente ponderadas e o seu benefício ser pelo menos proporcional ao seu elevado custo global.”

    Não dizendo sequer qual o “elevado custo global” – nem que seja ao nível de luvas de nitrilo vendidas, por exemplo, por uma oficina de escapes por ajuste directo ao hospital que foi gerido pelo actual director executivo do novel Serviço Nacional de Saúde –, a ACSS ainda teve a desfaçatez de afirmar que “o benefício de acesso à base de dados de GDH com expurgo de dados nominativos [deve ser] pelo menos proporcional ao elevado custo da operação de expurgo dos referidos dados”, pelo que, “não obstante a elevada consideração da ACSS pelo Requerente [director do PÁGINA UM] e pela sua profissão [jornalista]” não se justifica a “elevada afetação de recursos [para] efetuar as operações necessárias” para a tal anonimização.

    E é assim que as coisas se fazem (ainda) na Administração Pública. Com esta desfaçatez.

    Para salvar o coiro dos políticos.

    Para que os políticos continuem a meter um manto negro sobre os problemas.

    Para que os políticos continuem a manipular os portugueses com a conivência da imprensa “amigável” que não dignifica o jornalismo.

    Para que os políticos, como Manuel Pizarro, possam invocar as alterações climáticas como desculpa para omissões, negligências e crimes.

    Tudo em vão. Tudo (ainda) sem castigo.


    Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM está envolvido em 14 processos de intimação, quatro dos quais em segunda instância, e ainda em duas providências cautelares, uma das quais já ganha. Até ao momento foram angariados 12.222 euros, um montante que começa a ser escasso face à dimensão e custos envolvidos nos processos. Saliente-se que o PÁGINA UM tem de garantir uma “provisão” para as situações em que possa ter sentenças desfavoráveis, o que acarretará o pagamentos de custas que podem ser elevadas por cada processo perdido.

    Na secção TRANSPARÊNCIA começámos a divulgar todas as peças principais dos processos em curso no Tribunal Administrativo. Este processo específico da Administração Central do Sistema de Saúde ficará disponível nos próximos dias.

  • Que farei com este livro de Filipe Froes?

    Que farei com este livro de Filipe Froes?


    Chega a ser perturbador ler algumas passagens da magnum opus de Filipe Froes e Patrícia Akester, intitulada A pandemia que revelou outras pandemias: contributos para o conhecimento, que ontem juntou, no Grémio Literário, muitas figuras gradas da narrativa oficial da gestão da pandemia. Hoje, amanhã e quinta-feira está nas bancas, gratuitamente com o Diário de Notícias, permito-me a publicidade.

    Mas permitam-me também dizer, com generosa dose de ironia, que em boa hora a BIAL disponibilizou patrocínio conveniente para o livrinho sair do prelo, porque, de contrário, sem guito de farmacêuticas, o Doutor Froes parece nunca mexer uma palha quanto mais uma caneta, que é como quem diz, um matraquear de teclado.

    Filipe Froes, um dos médicos portugueses com mais ligações à indústria farmacêutica, mantém-se como consultor da DGS e com intenso palco mediático.

    Por outro lado, também em boa hora o Diário de Notícias, cometida a ousadia de permitir que o Doutor Froes & Ca. explanasse as suas opiniões, possibilitou que os textículos esparsamente publicados no periódico, ficassem agora gravados para a eternidade em lâminas de papel, entre capa e contracapa, incluindo generosas badanas. Um livro sempre se mete numa estante, e mesmo que o conteúdo possa ser – e é, neste caso – indigesto, pode-se sempre pegar num momento zen para aumentar a pressão arterial.

    Porém, melhor ainda – e impeliu a perturbação denunciada logo na primeira linha deste meu texto – é o prefácio do senhor almirante – então vice-almirante, o que, estranhamente, aparentava dar-lhe maior dignidade – Gouveia e Melo. Ou melhor dizendo, que assim é apresentado no prefácio, de “Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo, almirante”.

    Nas breves três páginas de auto-elogio do senhor almirante, destaco, contudo, o seu curto relato do episódio da suspensão da vacina da AstraZeneca, por decisão do Infarmed, em 15 de Março do ano passado com base no princípio da “precaução em saúde pública”. Aliás, em 8 de Abril, pouco mais de três semanas, a Direcção-Geral da Saúde passaria a recomendar a administração da vacina da AstraZeneca apenas a pessoas acima dos 60 anos. Na prática, a vacina da farmacêutica anglo-sueca praticamente deixou de ser administrada a partir daí.

    Gouveia e Melo assim relata: ”Muitas destas decisões foram tomadas em cima dos acontecimentos, sobretudo quando surgiam contrariedades. Recordo-me quando tínhamos tudo preparado para vacinar os docentes do ensino básico e secundário e, dois dias antes de se iniciar esse processo, a vacina que seria administrada foi suspensa. Refizemos planos, avaliámos riscos, consultámos stocks e, na semana seguinte, avançámos com a vacinação desse grupo.”

    Passando por cima deste modus operandi, aquilo que me interessa destacar é o facto de o então vice-almirante relatar este acontecimento no livro onde, páginas à frente, se expõe a doutíssima opinião do Doutor Froes por aquelas alturas sobre vacina da AstraZeneca. Com efeito, na página 16 da tal magnum opus, pode-se ler um artigo do Doutor Froes & Ca., publicado originalmente no dia 4 de Março de 2021 – ou seja, apenas 11 dias antes da suspensão da vacina da AstraZeneca –, no jornal Público (o único na obra que não saiu no Diário de Notícias), com o sugestivo título: “Das fake news nem a vacina está a salvo”.

    E que escreveu o Doutor Froes & Ca.?

    Além de defender que urgia “combater a desinformação mais do que nunca”, uma vez que o processo de vacinação estava em curso”, dissertavam eles sobre “duas pragas: (i) infodemia (um tsunami de informação no que respeita à pandemia, por vezes incorrecta e infundada, capaz de confundir e de induzir em erro, tendo na sua origem fontes pouco fidedignas) e (ii) desinformação (informação falsa ou imprecisa disseminada com a intenção deliberada de manipular e/ ou de induzir em erro), de que as Fake News são um dos principais expoentes.” E continuavam depois a batucar nas redes sociais, desinformação para aqui, fake news para ali.

    E depois isto: “Na Alemanha, os media passaram semanas a apregoar que a vacina AstraZeneca era ‘de segunda classe’ e que comportava efeitos secundários, pelo que uma parte não insignificante da população se recusa a ser inoculada com essa vacina, aguardando a chegada da vacina Pfizer Biontech. Consequência: tendo sido recebido, em terras de Merkel, um carregamento de 1,45 milhões de doses de AstraZeneca, em pleno estado de escassez de vacinas pelo mundo fora, apenas 270,986 mil pessoas aceitaram a administração proposta pelas autoridades de saúde em conformidade com o plano de vacinação nacional (New York Times). Resta saber o impacto da não-vacinação ou do seu atraso na população que deveria ter sido vacinada e não o foi…”

    E mais isto: “Agora que o processo de vacinação está em curso urge combater a desinformação mais que nunca. Para se atingir imunidade de grupo, para protecção do indivíduo e da comunidade e resolução progressiva do profundo impacto social e económico da pandemia, é crucial promover uma campanha de informação idónea no tocante à pandemia – divulgada responsavelmente por todos. A melhor forma de impedir que alguém adira ao movimento anti-vacinas, que pode impossibilitar a criação de imunidade de grupo é tolhendo a infecção…”

    Visto está o que sucedeu à AstraZeneca…

    Visto está o que sucedeu à quimérica imunidade de grupo…

    E vista está a base científica inexistente dos certificados digitais…

    E visto está quase tudo o resto que foi escrevendo o dizendo Froes & Ca., nos intervalos das consultadorias das farmacêuticas, a par do contínuo obscurantismo oficial em redor da informação mais sensível…

    E não visto está aquilo que ainda se vai descobrir, e que tornará esta magnum opus um tesourinho deprimente da “ciência pandémica”, digno de estudo futuro, de amostra daquilo que não se deve repetir.

    Resta-nos saber também, entretanto, qual será o impacte das alarvidades do Doutor Froes, mais as suas consultadorias… E resta-nos esperar que a imprensa mainstream deixe de viralizar os seus despautérios – como sucedeu nos últimos dias com o “anúncio” de uma “pandemia tripla”, rapidamente transmitida pelo Diário de Notícias, Observador, RTP, Correio da Manhã e Sapo.

  • Da pandemia tripla ou da tripla estupidez: um caso de ‘bola de cristal’ nas mãos do doutor Filipe Froes

    Da pandemia tripla ou da tripla estupidez: um caso de ‘bola de cristal’ nas mãos do doutor Filipe Froes


    No dia 1 de Novembro, de acordo com os dados do Worldometers, terão morrido 1.144 pessoas por covid-19 a nível mundial. A média móvel de sete dias está em tendência decrescente e, em breve, ficará abaixo dos mil, o que são os valores mais baixos desde 20 de Março de 2020, mesmo no início da pandemia.

    Recorde-se que, ao longo da pandemia, se atingiu o valor mais elevado em 25 de Janeiro de 2021, com 14.772 óbitos registados, ou seja, quase 13 vezes superior à situação actual. Ou, noutra perspectiva, os valores actuais representam uma descida de 92,3% face ao máximo. Desde 15 de Abril deste ano, a mortalidade por covid-19 esteve sempre abaixo dos três mil óbitos a nível mundial.

    greyscale photography of sheep

    Os valores actuais só podem assustar quem, durante mais de dois anos e meio, esteve a ser constantemente massacrado pelos media mainstream e por “peritos” (muitos financiados pelas farmacêuticas) com relatos pavorosos de uma doença omnipresente apresentada como se fosse o Armageddon. Ou seja, quase todo a gente.

    Mas, na verdade, sabendo-se que morrem, em média, mais de 180 mil pessoas por dia em todo o Mundo, mil óbitos por covid-19 representam cerca de 0,6% do total. Por outras causas, em cada 10 minutos, morrem mais pessoas (cerca de 1.280) do que num dia inteiro – que tem 144 períodos de 10 minutos – por covid-19.

    Somos mortais, já o sabíamos. Mas não podemos continuar irracionalmente a viver com medo de morrer.

    Por esse motivo, o que se pode dizer agora de um sujeito chamado Filipe Froes que, em entrevista ao Diário de Notícias –, a pretexto de uma colectânea de textículos (não confundir com testículos) para um livro financiado pela Bial –, responde da seguinte forma à pergunta sobre “que impactos da covid-19 antevê para este Inverno em Portugal:

    Capa da edição de 4 de Novembro de 2022 do Diário de Notícias.

    “É uma excelente pergunta, infelizmente não tenho uma bola de cristal, mas tenho sempre de fazer aquilo que me é exigido: preparar-me para o pior e esperar o melhor. Diria que vamos estar a viver aquilo a que se chama “pandemia tripla”, uma pandemia com covid, com gripe e com vírus sincicial respiratório. Ou seja, vamos estar numa situação em que, apesar das pessoas estarem vacinadas contra a gripe e a covid, vão progressivamente diminuir a sua imunidade. Com as novas variantes de covid, poderá haver alguma diminuição da eficácia contra a infeção e, portanto, vamos ter um aumento de número de casos, um acréscimo da afluência às urgências e, previsivelmente, teremos um aumento da gravidade traduzida em internamentos em enfermaria e cuidados intensivos. Além disso, necessariamente e infelizmente, vamos ter um aumento da mortalidade, nada que já não estejamos a ver lentamente noutros países.”

    Lá vem a conversa das variantes: minhas senhoras e meus senhores, estão identificadas, até agora, 2.204 variantes no Phylogenetic Assignment of Named Global Outbreak Lineages (PANGOLIN). Em 19 de Abril deste ano, listei 1.847 variantes. Em pouco mais de seis meses foram identificadas mais de 350 novas variantes. Num editorial, que então escrevi, intitulado “X: antes a Morte que tal Sorte”, para “o ‘marketing vírico’ em redor do surgimento (supostamente repentino) de novas variantes – que ‘podem’ ser sempre mais perigosas, mais transmissíveis, mais um ‘par de botas’, como propalam jornalistas ‘acéfalos’, porque acríticos e preguiçosos – mostra bem o grau de insanidade colectiva.”

    E propalam, porque acéfalos sem aspas, acreditam em palavras supostamente sábias do sabichão Filipe Froes. Ei-lo aqui, a alarmar:

    “Dentro destas novas variantes, tem havido um esforço muito grande a nível europeu, conjuntamente com o Reino Unido, para avaliar as duas grandes ameaças de variantes que se aproximam. Falo das variantes BQ1.1 e a XBB, sendo esta última conhecida por variante de Singapura por ter um acréscimo de atividade neste país, mas pensa-se que poderá vir a ser dominante no continente europeu, por volta de dezembro ou janeiro. Neste momento, estamos a assistir na Europa a um aumento da variante BQ1 e BQ1.1, e estas variantes significam uma maior capacidade de transmissão porque têm mecanismos de invasão [sic] à imunidade desenvolvida pela infeção, quer natural, quer pela vacina.”

    [N.D., na entrevista escrita, foi transcrita a palavra “invasão“, mas, na entrevista gravada pela TSF, Filipe Froes diz efectivamente “evasão”, no sentido de as novas variantes supostamente “contornarem” a imunidade]

    Música para os ouvidos. Jogos de semântica de encher ouvidos de papalvos. Reparem: não são as vacinas que são ineficazes. São as supostas novas variantes que têm “uma maior capacidade de transmissão porque têm mecanismos de evasão [palavra dita por Filipe Froes] à imunidade desenvolvida pela infecção”.

    white sheep on white surface

    Dito por outras palavras: segundo as palavras deste “doutor da mula ruça”, a vacina não serve para nada por causa das novas variantes, mas mais adiante ele não tem pejo de recomendar: “A meu ver, isto significa que temos de tomar algumas medidas essenciais: uma delas é aumentar rapidamente a vacinação contra a covid e contra a gripe – começando pelos mais velhos e depois alargando ao maior número de pessoas possível –, e temos de melhorar muito os sistemas de vigilância.”

    Enfim, alguém compre uma bola de cristal. Para lha darem… Não vale atirarem. E nem lha tirem: para nigromante, não há pior.

    P.S. Li também, pasmado, todo o editorial da directora da Diário de Notícias (DN), Rosália Amorim, sobre esta entrevista. Assustador, o título: “Guerra de pandemia vai juntar-se à guerra de Putin“. Não podia começar ao melhor estilo do “vamos todos morrer”: “O inverno aproxima-se e além do tormento do conflito na Ucrânia, de um eventual racionamento de energia, alta da taxa de inflação e subida sucessiva das taxas de juro, podemos viver, nos próximos meses, uma ‘pandemia tripla‘ (…).” E acaba este texto inclassificável desta forma: “Vale a pena lembrar os acontecimentos que marcaram as nossas vidas desde março de 2020 – e a esse propósito o DN e os autores Patricia Akester e Filipe Froes lançam um livro na próxima segunda-feira com o título A Pandemia que revelou outras Pandemias – Contributos para o Conhecimento – para que não nos esqueçamos do que passámos e de como a desinformação tentou, tantas vezes, toldar o conhecimento e as tomadas de decisão.”

    Ainda bem que Rosália Amorim fala em desinformação e conhecimento: a directora do DN não informa que o livreco é financiado pela farmacêutica BIAL; e também ficamos sem qualquer conhecimento do montante deste patrocínio. Esperemos que a BIAL o coloque no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed.

  • SNS: eu com prisão de ventre e o Governo a cagar para nós…

    SNS: eu com prisão de ventre e o Governo a cagar para nós…


    Hoje presenteio-vos com tema escatológico. Não no sentido filosófico (e teológico) da expressão, embora tenhamos de pensar seriamente no nosso iminente fim se sua Eminência o Serviço Nacional de Saúde não atinar com o seu fim, isto é, com o objectivo para o qual o seu criador – em minúscula, por ser ente político – o fez.

    Na verdade, é fezes – é, podemos assim dizer, na acepção coprológica da função terminal do processo digestivo, sobre fezes que eu aqui obro. Escatologia dura, portanto, confesso-vos.

    E assumindo ser questão que “mete nojo à vontade mais gulosa” – como glosou Bocage (ou terá sido o Abade de Jazente?) no soneto Cagando estava a dama mais formosa –, mesmo assim, sendo “fedentinosa” coisa, necessário falar se mostra, mesmo que não se olhe nem se cheire.

    Pois bem: temos por aqui um (espero ser problema passageiro) pequeno desarranjo intestinal que, enfim, após duas recentes passagens pelas urgências, com terríveis mas efémeras dores abdominais (para os homens sempre insuportáveis) sem diagnóstico conclusivo – análises e raios X deram OK –, deu como sugestão uma consulta da especialidade na competente especialidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Claro. “Marquei através do sistema”, garantiu-me a médica nas urgências do São José. “Mas é capaz de demorar”, avisou.

    Entre a segunda ida às urgência, em 3 de Outubro, e marcação da consulta da especialidade de Gastrenterologia passaram duas exactas semanas. Acresceu mais uma semanita e pouco para expedição e recepção da carta. Leio-a para vós, mas está aqui: “Comunica-se que tem consulta marcada na especialidade acima referida [Gastrenterologia] para as 15:00 horas do dia 24 DE AGOSTO DE 2023 em Capuchos Pav Consult.”, isto é, no Hospital dos Capuchos, em Lisboa.

    Portanto, marcaram-me uma consulta para daí a 311 dias. Um bebé demora menos tempo a criar-se e a sair da barriga da mãe. Ao dia que aqui vos escrevo, faltam ainda 294 dias! Até lá espero dar muitas descargas de autoclismo… de contrário, rebento!

    Mas, entretanto, lembro-me que deve haver, senão uma lei, pelo menos bom senso sobre as consultas do tão apregoado e elogiado SNS, que agora até tem um director executivo novinho em folha.

    Carta-convocatória datada de 17 de Outubro de 2022 para uma consulta em 24 de Agosto de 2023.

    E parto à pesquisa.

    De acordo com a Entidade Reguladora da Saúde, “por regra, a primeira consulta de especialidade hospitalar deve ser realizada em 30, 60 ou 120 dias seguidos e contados a partir do registo do pedido da consulta efetuado pelo médico assistente do prestador de cuidados primários, através do sistema informático que suporta o Sistema Integrado de Gestão do Acesso (SIGA SNS), consoante a consulta seja de realização ‘muito prioritária’, ‘prioritária’ ou ‘normal’, respetivamente.”

    Portanto, sobre o meu caso, e considerando que me devem ter classificado como situação “normal”, estou bem tratado… ou tramado.

    Vou ao site dos Tempos Médios de Espera do Serviço Nacional de Saúde (SNS) – que, em tempos houve políticos que até julgavam que os contribuintes devem saber o que anda a fazer – para aferir a situação concreta do Hospital dos Capuchos para o serviço de Gastroenterologia.

    Pasmo. Nunca sou dos que pensam que as coisas más só a mim sucedem. Nos registos, surge uma pessoa com estado considerado “muito prioritário” que vai ter de esperar 50 dias pela sua consulta, exactamente igual ao tempo de espera média dos 40 casos “prioritários”. E depois contam-se 700 pessoas em condição “normal” com tempo de espera médio de 122 dias. Portanto, estarei largamente acima da mediana do tempo de espera.

    Cheira-me, além disso, a aldrabice estatística: se 40 casos prioritários aguardam em média 50 dias, não sei como 700 casos (17 vezes e meia mais) passam a ter um tempo média de “apenas” 122 dias, ou seja, pouco mais do dobro (2,4 vezes mais).

    Convenhamos que, consultado o site do SNS, concluo que tenho azar de viver na zona histórica da capital. Se o “meu hospital” fosse o Santa Maria, o tempo de espera seria de 92 dias em condição “normal” (tem, neste momento, 452 doentes aguardando consulta). Em condição “prioritária”, contudo, o tempo de espera é mais elevado do que nos Capuchos: 57 dias, em média para os 81 doentes.

    Melhor estaria se fosse utente do serviço de Gastrenterologia do Hospital Amadora-Sintra: 11 casos “muito prioritários” com tempo médio de espera de 23 dias, 105 “prioritários” com 67 dias e 11 “normais” com 81 dias. Nada mau. Dentro dos parâmetros definidos por lei.

    Tempo médio de espera de consulta de Gastrenterologia no Hospital dos Capuchos no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central. Fonte: SNS.

    Idem para o Hospital Garcia de Orta: 10 casos “muito prioritários” com 24 dias de espera média; 30 casos “prioritários” com 51 dias e ainda 179 casos “normais” a aguardarem, em média, 93 dias.

    Fui ver fora de Lisboa: por exemplo, o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Os 11 casos “prioritários” têm um tempo de espera de 52 dias, enquanto as 881 pessoas com condição “normal” aguardam, em média, 200 dias. Ui!

    Isto é uma roda da sorte!

    No Porto, não se está muito melhor. No Hospital de São João, por exemplo, a Gastrenterologia tem 32 dias de espera para os 11 casos “muito prioritários”, 45 dias para os 94 casos “prioritários” e 141 dias para os 782 casos “normais”.

    Busco entretanto ao calhas, sem critério definido. Vejamos o Hospital Distrital de Santarém: pasme-se também, pelo absurdo. Em terras escalabitanas, temos 34 pessoas em condição de “muito prioritário”, com “direito” a tempos de espera de 248 dias. Estranhamente, em grupo, estão estes mais mal servidos do que aqueles que são classificados com condição “prioritária” (235 dias de tempo médio de espera para os 37 doentes) e muito pior do que os que apresentam condição “normal” (73 pessoas esperam, em média, 149 dias pela consulta).

    Sigo para o interior. Imaginemos que sou de Bragança. Azar: não há serviço de Gastrenterologia. Desço para a Guarda: há um serviço no Hospital Sousa Martins, mas nenhum dos doentes ali referenciados (seis “muito prioritários”, 107 “prioritários”, 94 “normais” e três sem atribuição) tem definido um tempo médio de espera. Deve ser quando calhar.

    Já em Viseu, parece ser vantajoso ter ali doença desta especialidade: só há pacientes em condição “normal” (156) com tempo médio de espera de 53 dias. A coisa deve piorar, porém, quando distribuírem os 107 doentes que ainda não têm classificação de prioridade…

    Em Castelo Branco, não está mal, tendo em conta as circunstâncias do país: 21 pessoas, todas classificadas em condição “normal”, têm um tempo de espera médio previsto de 49 dias.

    Em Évora mostra outra situação sem nexo: 27 doentes “prioritários” têm tempos médios de espera (96 dias) superiores aos dos 153 doentes classificados como “normais” (85 dias)

    Poderia continuar a análise, mas não pretendo fazer um tratamento exaustivo sobre o estado da Gastrenterologia no SNS. Basta estes para exemplo. Para mostrar como não há lógica, não há política de saúde pública, enquanto o Estado – ou melhor dizendo, o Governo – olha com sobranceria para os problemas que fogem do mediatismo do momento. Para aquilo que não é prioridade mediática, deixa andar…

    Antes da pandemia, a Gastrenterologia tinha já mais de um terço das consultas a superar os tempos máximos de resposta garantidos (TMRG). A situação terá, certamente, piorado desde a pandemia, e muito; tanto assim que estamos em finais de 2022 e nem sequer dados sobre a situação de 2020 foram já disponibilizados pela Entidade Reguladora da Saúde.

    Sabe-se bem que o tempo de intervenção, em doenças desta especialidade, entre os primeiros sintomas e um diagnóstico, é muitas vezes vital; determina se se vive ou não.  

    Ora, também se sabe que, durante dois anos, o Estado – leia-se, o Governo – não teve mãos para despejar rios de dinheiro para uma doença (covid-19) que, entretanto, se tornou endémica, matando, segundo dados oficiais, um pouco mais de 25 mil pessoas, não se sabendo bem quantos com e quantos por causa do SARS-CoV-2. Só em vacinas foram 660 milhões de euros; de testes e outros materiais e medicamentos, nem se fala.

    Porém, para outro tipo de doenças, de que as do aparelho digestivo são um bom exemplo, o Estado – leia-se, o Governo – deixou degradar os serviços públicos para o nível da indigência. E isto sabendo-se, por exemplo, que os cancros digestivos são responsáveis por cerca de 10 mil mortes por ano, que a dispepsia afecta entre 20 e 40% da população, a doença do refluxo gastro-esofágico 35%, a infecção por Helicobacter pylori entre 60% e 70%, e a síndrome do intestino irritável aproxima-se de um milhão de casos.

    E, na verdade, nem se pode dizer que, globalmente, haja falta de médicos desta especialidade. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística, Portugal tinha 634 gastroenterologistas em 2021, dos quais 253 da Área Metropolitana de Lisboa e 191 no Norte e 130 no Centro. Num relatório de 2011, a Administração Central do Sistema de Saúde considerava que o rácio para os serviços de Gastrenterologia deveria ser de 3,0 médicos por 100.000 habitantes. Significa que, actualmente, temos assim mais do dobro das supostas necessidades.

    man in yellow shirt and brown pants using smartphone

    Mas, então, onde estão esses médicos se os tempos de espera no SNS são, no mínimo, desesperantes?

    Estarão no privado, onde, obviamente, eu terei de recorrer?

    Estaremos a sofrer os efeitos de (mais) uma teia de interesses, que agrada ao Governo, estando os políticos impavidamente a assistir à propositada degradação do SNS até níveis catastróficos, de sorte que, quem tem algumas posses e/ou preza a vida, acaba por optar por médicos em hospitais privados?

    Que se anda afinal a passar no país que canta hosanas, batendo no peito, ao SNS, mas que, pela calada, apaparica as empresas privadas que não param de seduzir médicos, desviando-os do sector público?

    Perguntas pertinentes, mas que não retiram o cerne à (minha) questão interna: ando eu com prisão de ventre e o Governo a cagar para nós…

    E a deixar que Portugal se transforme num país “onde o fedor, e a trampa habita”, como o soneto oitocentista dizia sobre o “sombrio palácio do alcatreiro”.