Etiqueta: Pedro Almeida Vieira

  • Manuel Pizarro e o Titanic das Mentiras

    Manuel Pizarro e o Titanic das Mentiras


    O ministro da Saúde, Manuel Pizarro, diz que vencemos a pandemia, acrescentando que “é essencial, agora, continuar a materializar as lições aprendidas”. Escreveu-o num artigo de opinião publicado no Correio da Manhã (publicidade política gratuita na primeira pessoa) – e depois lido como peça de marketing político no Twitter.

    Vencemos, portanto, apesar de ainda não sabermos as causas do contínuo morticínio dos idosos – o grupo etário que deveria ter sido protegido nos últimos três anos –, mesmo quando a covid-19 já há muito está na fase endémica.

    Vencemos, portanto, apesar de o Governo e os media mainstream nem sequer colocarem como hipótese em discussão académica que a gestão da pandemia fez mais mal do que bem a médio e longo prazo.

    Vencemos, portanto, apesar das revelações das últimas semanas (Twitter Files, metanálise da Cochrane e Lockdown Files) que conformam que a Ciência esteve arredada de uma estratégia racional, como se viu na imposição das máscaras e dos certificados digitais, criados para segregação dos não-obedientes.

    Vencemos, portanto, apesar do evidente descrédito das vacinas contra a covid-19, bem patente no facto de apenas 1% dos adultos com menos de 50 anos terem acreditado na eficácia de um fármaco cuja dose seguinte é que será sempre a melhor.

    Vencemos, portanto, apesar do obscurantismo da Administração Pública na disponibilização de documentos, de informação, de base de dados, enfim, de tudo.

    Vencemos, portanto, apesar de termos consultores da Direcção-Geral da Saúde que determinam as escolhas terapêuticas, enquanto se amasiam com as farmacêuticas.

    woman in black bikini top on water

    Vencemos, portanto, apesar de se ignorarem os efeitos adversos das vacinas, porque a entidade reguladora – que deveria proteger os cidadãos – se mostra mais preocupada em mentir e em proteger as farmacêuticas e os políticos.

    Vencemos, portanto, apesar do Ministério da Saúde esconder activamente os contratos das vacinas de um portal da transparência da contratação pública nas “barbas” do Tribunal Administrativo.

    Vencemos, portanto, apesar de um bastonário da Ordem dos Médicos ter cometidos várias irregularidades e ilegalidades na gestão de fundos de uma campanha de donativos, que é um caso exemplar de polícia.

    Vencemos, portanto, apesar de uma imprensa mainstream que mandou os princípios deontológicos às malvas.

    Vencemos, portanto, apesar de serviços básicos não estarem a funcionar por falta de profissionais de saúde e de recursos, pouco importando o despesismo de ajustes directos sem controlo desde 2020 à volta de um maná chamado pandemia.

    sunken ship

    Manuel Pizarro garante que vencemos.

    Parece, porém, o presidente de um clube da bola a garantir que “vencemos” mas recusando mostrar o placard.

    Ou então um maestro de um Titanic à deriva que colidiu com um icebergue chamado Verdade, e que continuará a tocar uma marcha da vitória até ser engolido pela evidência. Ou pela História.

  • Kafka em dose tripla

    Kafka em dose tripla

    Título

    Punições

    Autor

    FRANZ KAFKA (tradução: Paulo Osório de Castro)

    Editora (Edição)

    Cavalo de Ferro (Fevereiro de 2023)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Mestre, ou até  mais do que isso, na criação de mundos sombrios e opressivos, sempre trespassados por personagens alienadas e impotentes, mas criados numa atmosfera de normalidade exasperante, Franz Kafka é um dos mais fascinantes escritores do início do século XX, que prematuramente partiu há quase um século (1924), e que nos deixa a imaginar que mais obras conseguiria conjecturar se não tivesse morrido com apenas 40 anos.

    Embora tardiamente publicado em Portugal, nas últimas décadas as mais conhecidas obras de Franz Kafka têm vindo a ser sucessivamente reeditadas pelas mais diversas editoras, mas este Punições surge pela primeira vez no nosso país. Não é uma obra inédita em si mesma, mas a compilação pensada por Kafka para juntar a sua novela mais famosa, A metamorfose, originalmente publicado em 1915, a dois contos: A sentença (1913) e Na colónia penal (1919).

    Embora cada uma das histórias sejam una – tanto assim que A metamorfose, publicada pela primeira vez em Portugal em 1962, se encontra no catálogo de cerca de uma dezena de editoras, e Na colónia penal tem também pelo menos três edições (a primeira em 1998, a última em 2021, pela Relógio d’Água –, é a primeira vez que estres três textos são publicados conjuntamente, o que constitui, desde logo uma mais-valia económica, e sobretudo uma oportunidade de nos embrenharmos em dose tripla no universo kafkiano.

    Em A sentença – o mais curto dos três textos, que pode, mais apropriadamente ser considerado um conto –, dedicado a Felice Bauer, noiva de Kafka, surge-nos um homem condenado que ignora o motivo da sua execução, o que, convenhamos, é um ponto de partida nada incomum no universo de Kafka. Tal como sucede em O processo, esta história permite sobretudo reflectir sobre a arbitrariedade do poder e a impotência dos indivíduos perante a falta de transparência e inacessibilidade do sistema judiciário. A Justiça não deseja assim fazer justiça, sendo uma mera máquina de opressão.

    Já em A metamorfose, a célebre história de Gregor Samsa, o caixeiro-viajante que acorda transformado em insecto gigante, serve sobretudo para uma análise das reacções familiares e da sociedade perante uma transformação, acabando sobretudo para expor os processos de alienação, de solidão e de incomunicabilidade.

    Por fim, Na colónia penal, o leitor acaba por ser (também) o viajante que assiste às entusiásticas descrições de um oficial que supervisiona uma máquina de execução com o condão de escrever a sentença na pele do condenado (que também ignora até os crimes de que é acusado), apresentada como o símbolo da violência inerente à justiça e a uma burocracia desumanizada, que perpetuam a violência.

    Porém, mais do que essas reflexões mais filosóficas, e cada vez mais actuais, destes intemporais textos de Franz Kafka, o leitor pode e deve apreciar o seu estilo literário, ainda extremamente moderno, visual e depurado. Uma leitura obrigatória, ainda mais após os distópicos tempos que (ainda) vivemos.

  • Este desavergonhado Público: do “apagão” a Pedro Girão ao “apagão” a Carmo Gomes

    Este desavergonhado Público: do “apagão” a Pedro Girão ao “apagão” a Carmo Gomes


    Em 19 de Agosto de 2021, o Público escreveu, apagando, uma negra página na História do Jornalismo, “despublicando” – eufemístico termo para censura em tempos de (suposta) democracia – um artigo de opinião do médico Pedro Girão sobre tema delicado mas essencial: a vacinação de menores de idade contra a covid-19. Hoje sabemos ser questão mais do que controversa. E pior do que isso, o seu director Manuel Carvalho teve até a desfaçatez de vangloriar-se de tão vil acto, pois defendeu que “recusamos em absoluto promover juízos que tendem a negar a importância ou o relativo consenso científico em torno das vacinas”.

    Não satisfeito, ontem, o jornal Público – tragicamente liderado por Manuel Carvalho, o tal director que, certo dia, decidiu ser legítimo difamar-me, porque supostamente o PÁGINA UM estaria a contrariar um suposto e necessário “consenso social” em torno da vacinação contra a covid-19 – publicou uma entrevista a Manuel Carmo Gomes, alegado epidemiologista e membro da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC).

    A entrevista titulava-se “Toda a gente deveria tomar uma dose de vacina bivalente”, e foi um dos artigos mais lidos do Público de ontem.

    Manuel Carmo Gomes

    O título da entrevista foi retirada da resposta à seguinte pergunta:

    A quem, fora dos grupos de risco, recomendaria a vacinação nesta fase?

    E que teve a seguinte resposta:

    De um modo geral, recomendaria que toda a gente tomasse uma dose da vacina bivalente [que só chegou a Portugal no último trimestre de 2022 e cujas versões mais recentes têm uma componente da Ómicron e outra do vírus original]. Esta vacina que está a ser administrada ajuda o sistema imunitário a reconhecer toda esta sopa de subvariantes que estão à nossa volta e que com o tempo vão continuar a mudar.

    Portanto, a vacina é recomendada para adultos acima dos 18 anos e eu penso que é sensato as pessoas tomarem-na, porque, no que diz respeito a doença grave, ficam mais protegidas e, no que diz respeito a infecção, ficam protegidas temporariamente.

    E recordo: não é boa ideia as pessoas serem infectadas pela covid, porque já percebemos que existem riscos de complicações de toda a ordem. E não é necessário ser uma infecção grave que leve ao hospital. O vírus chega praticamente a todos os órgãos internos, tem uma grande propensão para originar microtrombos na parede interna de veias e artérias, vai ao sistema neurológico, tem uma função de desregulação do sistema imunitário. Isto não é uma “gripezinha”. É verdade que o facto de já terem sido vacinadas confere às pessoas uma maior protecção. Um estudo feito em Portugal mostra que, ao fim de oito meses, a chamada imunidade híbrida (a pessoa que foi vacinada e também foi infectada) confere uma protecção de aproximadamente 60% contra infecção, comparativamente às pessoas que foram apenas vacinadas e não foram infectadas. Agora, isto não é uma segurança absoluta, não evita que as pessoas sejam infectadas.

    grayscale photography of woman praying while holding prayer beads

    Parte desta resposta entretanto desapareceu (os trechos acima marcados a negro em itálico), onde até se falava de uma “sopa de subvariantes” (uma parvoíce, diga-se), e a pequena entrevista viu então acrescentados os seguintes novos trechos, tendo até o título alterado para “Covid: Para pessoas saudáveis, a decisão de vacinação deve ser individual“, que não constavam, portanto, da entrevista original:

    Para pessoas saudáveis com mais de 18 anos, a decisão deve ser individual. Se no caso das pessoas com factores de risco (insuficiência cardíaca, renal, pulmonar, imunocomprometidos…) a recomendação de vacinação deve ser universal, para uma pessoa saudável a vacina não tem problemas, é segura e tem vantagens, mas cada um deve fazer a sua avaliação de risco.

    Um taxista, uma pessoa que trabalha numa caixa de supermercado, pessoas que têm contacto com o público, correm um risco maior de ser infectados, enquanto para alguém que vive mais na sua bolha familiar e com apenas algum contacto com colegas de trabalho, o risco é menor. As pessoas devem fazer a sua avaliação sobre até que ponto estão expostas à infecção e isso deve entrar na decisão de se vacinarem ou não.

    Tudo isto feito acompanhado apenas por uma simples nota de editor – aditando que Carmo Gomes “entendeu clarificar a sua posição inicial” – pouco lhes importando que, hélas, se fez um injustificável “apagão” em concreto, pois o jornal fez desaparecer o que antes fora dito, como se nunca tivesse sido dito. Felizmente, mesmo no digital, nada se apaga definitivamente. Nem a vergonha.

    Variações das declarações de Carmo Gomes na entrevista ao Público. As primeiras 13 linhas e meia da versão original desapareceram e foram substituídas por outras declarações, modificando mesmo o título.

    Este “apagão” da resposta de Carmo Gomes (não houve “clarificação; houve uma pessoa sem vértebras a “fugir com o rabo à seringa” do que disse na entrevista) é tanto ou mais grave do que o “apagão” cometido contra Pedro Girão há cerca de ano e meio. Onde com o “apagão” ignominioso do texto de Pedro Girão houve censura, no “apagão” a favor de Carmo Gomes houve deslealdade aos leitores. E leitores, esses, que podem pensar ser isto (“apagar” frases quando se mostram inconvenientes) uma prática comum no jornalismo. Não é. Não pode ser. Não quero admitir que seja.

    Um verdadeiro jornalista, um jornal sério, deve saber que há princípios sagrados, ainda mais numa entrevista. Textual. Deve corrigir-se um evidente erro ou um lapso, se for da responsabilidade do jornalista. Por exemplo, uma transcrição malfeita, uma edição das frases que as tornam ambíguas ou com sentido contrário. Mas nada mais. Assim dito, assim fica dito. Doa a quem doer.

    Arrependendo-se o entrevistado daquilo que disse – e que foi publicado –, não pode JAMAIS um jornal sério, um jornalista credível, um director decente, aceitar APAGAR alguma coisa nem sob tortura ou encerramento. Apagar é reescrever a História; é condescender com os poderes, que, assim, podem sempre dar o dito por não dito, com o contributo de jornalistas-fantoches, disponíveis invertebrados, sempre prontos a “rectificações”, se entretanto as reacções públicas ou privadas assim o aconselharem.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    O Público não é um jornal qualquer. Podem agora os jornalistas que lá estão, o seu director e o editor que fez este intencional “apagão”, um favorzinho, ou mais do que isso, desejar a morte do jornalismo sério e respeitável, que tem o dever de ser fiel apenas aos leitores. Mas não podem aguardar que jornalistas sérios aceitem os seus actos com candura, dizendo: “mais uma do Público”.

    O Público não é – pelo seu percurso, pela qualidade dos jornalistas que lá passaram, e por alguns poucos que ainda lá estão – um jornal qualquer. Deve saber que não pode mudar a História, ainda mais as histórias que publicou. Isto aplica-se a este caso, relacionado com a pandemia, e a qualquer outra.

    Vai o Público fazer o mesmo se António Costa um dia pedir para se apagar trechos de uma entrevista?

    Ou vai o Público mudar uma citação de algum ministro que, no dia seguinte, reparou que afinal devia ter dito Z em vez de Y?

    Ou… quem paga mais, hein?!

    Enfim, não pode hoje o Público, ou outro qualquer órgão de comunicação social, publicar uma notícia ou uma entrevista, qualquer que seja o tema, e depois afinal “rectificar” aquilo que se disse, porque afinal conveio modificar o discurso, apagando o original, e abusivamente fazê-lo porque o online aparentemente facilita esse acto.

    person burning paper

    Deve um jornal sério aceitar a alteração de uma opinião, destacando-a até, mas nunca pode aceitar apagar o que fora dito, porque isso é reescrever a História.

    E reescrever a História, apagando actos e frases inconvenientes, não é uma função do Jornalismo. Pelo contrário.

    Se isso for feito, como aqui se mostra no caso do Público, então estamos não perante um jornal, mas sim um pasquim. E daqueles que matam o Jornalismo.

  • Um romance a precisar de um “cannocchiale” para outros voos

    Um romance a precisar de um “cannocchiale” para outros voos

    Título

    Galileu em Pádua

    Autor

    ALESSANDRO DE ANGELIS (tradução: Bárbara Villalobos)

    Editora (Edição)

    Gradiva (Janeiro de 2022)

    Cotação

    13/20

    Recensão

    A figura austera que a História nos deixou de Galileu Galilei não pode estar mais distante da do romance de Alessandro De Angelis, publicado no mês passado pela Gradiva. Porém, de certeza absoluta que esta obra de ficção retrata melhor do que a iconografia ou a lenda o homem que foi Galileu, sobretudo durante aqueles que, por ele, foram considerados os melhores anos da sua vida.

    Mais do que um romance histórico – que tem, diga-se, desde já, muitas fragilidades –, Galileu em Pádua é um repositório cronológico de episódios da sua vida desde 1592 – quando jovem cientista chega a Pádua, centro universitário da então República de Veneza – até 1610, quando o desenvolvimento do seu cannocchiale (telescópio) lhe permitiu escrever Sidereus nuncius, a pequena grande obra que descreve as quatro luas de Júpiter e muitas outras observações astronómicas que revolucionariam a Ciência.

    E quando se diz repositório é quase de forma literal, porque Alessandro De Angelis – um premiado astrofísico italiano, que ministra em na Universidade de Pádua e também no Instituto Superior Técnico, sendo aí professor catedrático convidado de Partículas e Física Nuclear – optou por apresentar, em grande parte do romance, um número considerável de epístolas (autênticas ou reconstruídas), umas atrás das outras, entre Galileu e alguns dos maiores vultos da Ciência daquele época, como Johannes Kepler, Tycho Brahe, Guidobaldo del Monte e Paolo Sarpi, além de outras envolvendo seus familiares. Ou ainda missivas onde se destaca o seu lado cortesão – no sentido bajulador do termo, mas perfeitamente contextualizado naquela época – perante os poderosos de Veneza e Florença.

    Aliás, na obra destaca-se bem a intencionalidade de Galileu em agradar a Florença, para onde desejava migrar. Foi mesmo visto como uma traição, sobretudo pelo seu amigo Giovanni Sagredo – que viria a surgir como interlocutor fictício na obra Diálogo sobre os dois principais sistemas do Mundo –, Galileu não ter feito qualquer referência a Veneza no Sidereus nuncius, para além do local da impressão, dedicando a obra ao então Grão-Duque da Toscana, Cosimo II de Medici. Na verdade, os nomes das quatro luas de Júpiter, baptizadas então como “estrelas mediceias”, foram “negociados” como contrapartida para a sua contratação pela Universidade de Florença.

    Não se censure esta atitude de Galileu, nem tão-pouco a forma como lidou com Marina Gamba, mulher com quem nunca casou, que lhe deu duas filhas e um filho, e que abandonou quando foi para Florença. Esse aspecto da sua vida é aflorado no romance, mas de forma muito superficial e, convenhamos, até algo pueril.

    Das relações com os filhos, a abordagem no romance também é muito superficial, relevando, porém, um dos aspectos mais curiosos deste cientista: o seu apego e conhecimento de astrologia. Galileu pelo menos escreveu duas cartas astrais das suas filhas Virgínia e Lívia, que Alessandro De Angelis transcreve, estabelecendo os respectivos perfis e ânimos futuros. Também aqui nada de surpreendente para quem conhece a época: os cientistas eram, geralmente, adeptos e defensores de ciências hoje consideradas mais esotéricas, como a Astrologia e a Alquímia.

    Por abordar um período tão vasto e de tamanha riqueza, até histórica, do ponto de vista político, romancear a vida de Galileu Galileu ao longo de 18 anos seria tarefa hercúlea para qualquer romancista, mesmo com créditos firmados. Exigiria um melhor contexto histórico, uma maior fluidez da narrativa, um aprofundamento psicológico dos principais personagens – a começar por Galileu – e, porventura, um “entrosamento” entre os diversos períodos destes 18 anos.

    Por isso, Alessandro De Angelis é notoriamente um “amante” de Galileu e “fala” a mesma língua científica, e isto surge como uma vantagem; mas denota também dificuldades em manter um fluxo narrativo em simultâneo equilibrado e empolgante. Mostra que desejou, a toda a força, “oferecer” aos leitores as cartas de Galileu e alguns detalhes científicos das suas descobertas e invenções até às observações de Júpiter –, e isso mostra-se fatal em grande parte do romance, porque o torna desconexo, saltitando de epístola em epístola, enquanto vão surgindo, aqui e ali, por vezes a despropósito, capítulos “normais” ou comentários às cartas.

    Por esse motivo, este é um romance que vale sobretudo como “documento” de divulgação da faceta de um dos “monstros” da Ciência, que alterou de forma indelével o modo como olhamos para nós e para o Universo. Nessa perspectiva, Alessandro De Angelis pode dar-se por satisfeito. Mas para romance, faltou-lhe um cannocchiale.

  • Da seca em Veneza: salvem o ChatGPT das burrices dos jornalistas

    Da seca em Veneza: salvem o ChatGPT das burrices dos jornalistas


    Não há eufemismos. Não há palavras possíveis de compreensão nem de compaixão. O jornalismo mainstream, em todo o seu esplendor, tem vindo impunemente a debitar nescidades nos mais diversificados temas, que viralizam, porque hoje não há jornalistas seniores especialistas nem editores cépticos que impeçam a publicação de notícias parvas. Quem sofre agora já não são apenas os leitores; é o ChatGPT.

    Antes, não havia grande problema se um jornal, enfim, por controlo de custos, enfiasse em linha ou em papel uma notícia errada, parva ou mesmo estúpida. Beneficiavam os bons jornais que, dessa forma, captavam a atenção dos leitores para as suas qualidades noticiosas em confronto com a má qualidade dos concorrentes que preferiam informação barata.

    Grand Canal, Venice Italy

    Sucede, porém, que nos últimos anos, a generalidade da comunicação social mainstream viu nas agências noticiosas e de comunicação, e em estagiários mal remunerados, uma extraordinária (e barata) forma de produzir “conteúdos”. Serve os propósitos, que já não são a informação nem o debate. São “conteúdos” todos iguais, formatados, amiúde seguindo narrativas, mas enchem como “chouriços”. E fazem escola, e fazem a “verdade”, mesmo que falsa.

    Enganam leitores, e quase que nem vale a pena esbracejar que, sobre um determinado tema, todos os outros jornais estão errados, sobretudo quando aquele que o diz é pequeno outsider. E agora até enganam o ChatGPT, que só com algum esforço é chamado à razão, ou seja, a pensar.

    Peguei hoje no caso da seca como suposta causa do esvaziamento dos canais de Veneza. Vejamos alguns dos títulos de ontem da imprensa portuguesa, em uníssono:

    canal between buildings during daytime

    Expresso: Itália enfrenta novo alerta de seca. Canais em Veneza secaram

    CNN Portugal: Canais de Veneza secam em meio a temores de falta prolongada de chuva na Itália

    Jornal de Notícias: Falta de chuva está a secar canais em Veneza

    Correio da Manhã: Falta de chuva seca canais em Veneza

    Público: Itália: os canais de Veneza estão a secar?

    Ora, desta vez, não vou aqui dissertar os disparates dos jornalistas, mas sim fazer um apelo: salvem o ChatGPT da má influência do péssimo jornalismo que se vai fazendo.

    É que tenho estado a estudar a nova coqueluche, e já reparei que o ChatGPT é como aquele simpático amigo inteligentíssimo –muito mais do que qualquer um de nós –, que começa por nos dizer mais aquilo que pensa que nós apreciaremos que ele diga – o que sai nas notícias e da “narrativa” oficial – do que propriamente a verdade. É o amigo que só se insistirmos, lá nos revela ele a verdade, admitindo, entre linhas, que afinal só disse aquilo que disse inicialmente por saber ser o que o vulgo, leia-se a imprensa mainstream, vai debitando.

    Sem mais delongas, deliciem-se, portanto, com a minha conversa integral com o (pobre) ChatGPT sobre a causa da seca dos canais em Veneza:

    PAV – Qual a razão dos canais de Veneza estarem com menos água?

    ChatGPT – Recentemente, tem havido relatos de que os canais de Veneza estão com menos água do que o normal. Embora haja muitas razões pelas quais isso pode estar acontecendo, uma das principais razões é a mudança climática.

    Com o aumento da temperatura global, há um derretimento acelerado do gelo nas regiões polares e nas montanhas. Isso, por sua vez, está fazendo com que o nível do mar suba em todo o mundo, incluindo em Veneza. Quando o nível do mar sobe, isso pode fazer com que a água do mar entre nos canais de Veneza, aumentando o volume de água nesses canais. No entanto, se o nível do mar cai, como pode acontecer em alguns momentos, a quantidade de água nos canais de Veneza também diminuirá.

    Além disso, a atividade humana também pode contribuir para a diminuição do nível de água nos canais de Veneza. A extração excessiva de água subterrânea para uso humano e agrícola pode fazer com que o solo afunde, diminuindo o nível de água nos canais.

    Portanto, a diminuição da quantidade de água nos canais de Veneza é uma questão complexa que envolve tanto fatores naturais quanto humanos.

    PAV – Essa explicação está um bocado confusa. Se há um derretimento acelerado do gelo nas regiões polares e até um aumento de volume da água do mar por causa do aumento das temperaturas, então deveria passar a haver mais água nos canais de Veneza, e não menos água como está a suceder. Queres explicar melhor a tua teoria?

    ChatGPT – Peço desculpas pela confusão na minha resposta anterior. O aumento do nível do mar pode, de fato, aumentar o nível da água nos canais de Veneza, e não diminuí-lo. No entanto, a variação do nível de água nos canais de Veneza é um fenômeno complexo e pode ser influenciado por vários fatores, incluindo fatores naturais e humanos.

    Entre os fatores naturais, a mudança climática pode estar afetando os padrões de vento e as marés na região, o que pode afetar o fluxo de água nos canais. Por exemplo, se houver uma combinação de ventos fortes, marés altas e chuva intensa, pode haver um aumento significativo no nível de água nos canais, mas se esses fatores forem mais brandos ou não ocorrerem ao mesmo tempo, pode haver uma diminuição do nível de água nos canais.

    Além disso, como mencionei anteriormente, a atividade humana também pode estar contribuindo para a diminuição da quantidade de água nos canais de Veneza. A extração excessiva de água subterrânea pode fazer com que o solo afunde, diminuindo o nível de água nos canais.

    Em resumo, a diminuição da quantidade de água nos canais de Veneza é um fenômeno complexo que pode ser influenciado por vários fatores, incluindo fatores naturais e humanos.

    PAV – Mas a imprensa diz que é por causa da seca. Ora, sendo Veneza uma pequena ilha integrada numa laguna no Mar Adriático, faz algum sentido dizer que a falta de água nos canais se deve à falta de chuva?

    ChatGPT – Sim, a falta de chuva também pode ser um fator que contribui para a diminuição do nível de água nos canais de Veneza. Como você mencionou, Veneza está localizada em uma laguna e está cercada pelo Mar Adriático. A laguna é alimentada por várias fontes de água doce, incluindo rios, chuva e águas subterrâneas. A escassez de chuvas pode afetar o nível dessas fontes de água doce, afetando assim a quantidade de água nos canais.

    Além disso, a região da Itália, incluindo Veneza, tem enfrentado condições de seca nos últimos anos. Essa seca pode afetar diretamente o nível de água nos canais, já que o fluxo de água que entra na laguna pode ser reduzido. Isso pode fazer com que o nível da água nos canais diminua, afetando a navegação e a vida cotidiana dos habitantes de Veneza.

    Portanto, a falta de chuva pode ser uma das razões pelas quais os canais de Veneza estão com menos água do que o normal, juntamente com outros fatores que podem contribuir para a diminuição do nível de água nos canais, como a extração excessiva de água subterrânea e as mudanças climáticas.

    PAV – Mas, caramba, o impacte de uma seca na quantidade de água dos canais é mínima, se considerarmos que Veneza é uma ilha pequena, que tem uma bacia hidrográfica insignificante face a uma laguna com ligação directa ao mar. A seca não é irrelevante para explicar a falta de água dos canais de Veneza? 

    ChatGPT – Sim, você está correto. A seca pode não ser a principal causa da diminuição da quantidade de água nos canais de Veneza, uma vez que a laguna é diretamente ligada ao Mar Adriático e a bacia hidrográfica que a alimenta é relativamente pequena. Além disso, como mencionei anteriormente, existem outros fatores, como as mudanças climáticas e a extração excessiva de água subterrânea, que também podem contribuir para a diminuição do nível de água nos canais.

    Portanto, a seca pode ter um impacto limitado na quantidade de água nos canais de Veneza, mas é provável que outros fatores sejam mais significativos. É importante notar que a diminuição da quantidade de água nos canais não é um problema novo em Veneza, e a cidade tem lutado com isso por muitos anos. As autoridades locais têm adotado medidas para tentar lidar com esse problema, incluindo a construção de barreiras contra inundações e a implementação de programas de conservação de água.

    Elogiemos, contudo, o ChatGPT: é uma inteligência (artificial) humilde que assume os erros. Ao contrário, infelizmente, da imprensa mainstream, que não aprende nem assume os sistemáticos erros – aliás, responsáveis pela inicial ligeireza das incorrectas respostas do ChatGPT.

  • Um enteado à sombra do pai

    Um enteado à sombra do pai

    Título

    A viúva

    Autor

    JOSÉ SARAMAGO

    Editora (Edição)

    Porto Editora (Novembro de 2022)

    Cotação

    12/20

    Recensão

    Em 1991, no ano em que publicou o polémico O Evangelho segundo Jesus Cristo – e já sendo um escritor consagradíssimo, depois de Levantado do chão (1980), do sublime Memorial do convento (1982), de O ano da morte de Ricardo Reis (1984), de A jangada de pedra (1986) e de História do cerco de Lisboa (1991) –, José Saramago contou a génese do seu romance de estreia: Terra do pecado, publicado em 1947, quando o único Prémio Nobel da Literatura da língua portuguesa contava 25 anos: “Foi publicado pela Minerva, mas o editor achou que A viúva não era um título comercial e sugeriu que se chamasse Terra do Pecado. Pobre de mim, queria era ver o livro editado e assim saiu. De pecados sabia muito pouco e, embora a história comporte alguma actividade pecaminosa, não eram coisas vividas, eram coisas que resultavam mais das leituras feitas do que duma experiência própria. Não o incluo na minha bibliografia, apesar de os meus amigos insistirem que não é tão mau como eu teimo em dizer. Mas como o título não foi meu e detesto aquele título…”

    Em nota do próprio Saramago, nesta edição que a Porto Editora lança em parceria com a Fundação José Saramago, que recupera o título inicialmente desejado – a culminar as comemorações do centenário do nascimento do escritor –, além de contar a sua formação como leitor (alicerçado, como se sabe, na biblioteca das Galveias, em Lisboa), são revelados ainda outros pormenores da viagem do manuscrito até ser aceite inopinadamente pelo editor Manuel Rodrigues, que também criou o famoso Borda d’Água. E, por fim, conclui Saramago, não sem ironia, e em tom auto-depreciativo, que “não podia adivinhar que o livro terminaria a pouco lustrosa vida nas padiolas. Realmente, a julgar pela amostra, o futuro não terá muito para oferecer ao autor de A viúva.”

    Não tendo a “vida” de A viúva, como romance, acabado em padiolas, o futuro não teria, de facto, muito para oferecer ao seu autor se o estilo se tivesse mantido. Felizmente, mudou. Por ele e para agrado dos leitores. Depois da sua estreia, aos 25 anos, Saramago manteve um interregno em obras de ficção de três décadas, até que em 1977 publicou Manual de pintura e caligrafia, demorando depois mais três anos até Levantado do chão para apurar e depurar o seu estilo característico, de marcante oralidade e fluxo narrativo encantatório, crítico e irónico (e criativos enredos) com uma pontuação não convencional (na verdade, com poucos pontos).

    O interregno foi mais curto em outros géneros. Saramago publicou um livro de poemas em 1966, e na década de 70 mais dois livros de poesia, três livros de crónicas, sete contos (seis dos quais na obra Objecto quase, e o sétimo numa antologia) e duas peças teatrais. Em todo o caso, antes de Levantado do chão, Saramago era muito mais conhecido como (polémico) jornalista, de forte pendor ideológico, do que como escritor.

    Por isso, queiramos ou não, até ao início dos anos 80, Saramago – já a caminhar então para os 60 anos – não teria grandes motivos para se orgulhar do seu romance de estreia, e não propriamente por lhe terem trocado o título.

    De facto, sendo certo que A terra do pecado – ou A viúva, como agora se queira –, que era “renegado” por Saramago, acabou por ter mais edições do que a primeira, mas estas só começaram a surgir depois de 1997, a reboque da sua consagração, dois anos depois do Prémio Camões – e agregado a mais oito prémios literários – e em vésperas do Prémio Nobel da Literatura. As sucessivas edições que teve – na Editorial Caminho, foram sete até 1999 e 10 até à morte de Saramago, em 2010 – aparentam um sucesso literário, mas na verdade justificaram-se (e aceita-se que bem) somente pelo interesse, curiosidade e culto literários, tanto assim que os exemplares da primeira edição de 1947 atraem actualmente grande interesse bibliófilo. Os escassos exemplares no mercado alfarrabista atingem preços de 750 ou até de 1.000 euros. [com alguma sorte, há uns anos consegui um exemplar por 250 euros]. Um valor bem superior a um exemplar da primeira edição de Memorial do convento ou de Levantado do chão.

    De facto, pode-se acusar Saramago de muita coisa – além de se poder (e dever) venerá-lo pela sua extraordinária escrita a partir de 1980 –, mas jamais de falta de lucidez. Com efeito, não foi por acaso – nem pela questão do título – que Saramago não terá incluído, por décadas, o romance de estreia na sua bibliografia. Simpatias à parte, Terra do pecado (ou A viúva) é obra de Saramago mas não é obra saramaguiana; é romance completamente fora daquilo que viria a ser o seu universo e estilo; é um romance com enredo simples, escrita enquadrada no movimento entre o realismo e o naturalismo, mas com descrições banais e um encadeamento pueril. Por exemplo, veja-se a segunda metade do romance onde se sucedem os capítulos com um quase invariável “na manhã seguinte”. Ou diálogos que “não aquecem nem arrefecem” (pg. 193):

    – Boa noite, Joaquim! Já vais fechar?

    O taberneiro curvou-se:

    – Boa noite, senhor doutor! Já ia fechar, sim, senhor!… Mas cá o estabelecimento, para o senhor doutor, está sempre aberto. Faça favor de entrar.

    O médico entrou e sentou-se, enquanto o taberneiro corria a um armário, donde tirou um copo limpo e uma garrafa de vinho do Porto.

    – O costume, não é, senhor doutor?

    – Sim, claro, o costume…

    Não se diga, em todo o caso, que A viúva é um mau romance; é um romance de formação, de um jovem de 25 anos, ainda sem calo literário, e por isso muito aceitável. Não envergonha, merece até estar numa estante, mas não exalta. E olhando para a obra do seu autor, José Saramago, que nos ofereceu alguns romances de merecida nota 20, dar-se assim um 12 à sua A viúva acaba até por ser, pelas diferenças colossais num confronto com as suas (várias) obras-primas, um gesto de respeito.

  • Dos valores e do populismo dos vendilhões de comendas

    Dos valores e do populismo dos vendilhões de comendas


    Uma coisa é a solidariedade activa e o apoio a um povo invadido por outro Estado autoritário; outra é um branqueamento de um regime não-democrático e de um político que está longe dos padrões da liberdade e da verdadeira democracia.

    A atribuição do Grande-Colar da Ordem da Liberdade pela República Portuguesa ao presidente de um país que tem uma classificação de 39/100 no índice do Freedom House (e antes da invasão da Rússia era igual) e uma avaliação de 5,43/10 no índice de democracia do Economist (considerado um regime híbrido perto do autoritarismo da Rússia) é um ultraje aos valores da Democracia.

    Volodymyr Zelensky

    Um regime corrupto e não-democrático não o deixa de ser só porque se torna vítima de outro. Um regime corrupto e não-democrático não o deixa de ser só porque, enfim, políticos fracos e populistas de um país que “vende” comendas da Liberdade lhe decidem colocar como um artificial paladino da Liberdade.

    Zelensky pode vir a merecer uma comenda portuguesa desta natureza, e muito mais, mas não agora, nunca agora.

    Mas compreendo a pressa: Marcelo não quer agraciar Zelensky, quer sim ser fotografado a agraciar Zelensky. A graça é por ele e para ele – e a isso chama-se populismo.

    E quando os valores se rendem ao populismo enfraquecemos a Democracia. Vendemos a Democracia.

  • Caso Instituto Superior Técnico: não queremos vitórias de Pirro; queremos saber a verdade

    Caso Instituto Superior Técnico: não queremos vitórias de Pirro; queremos saber a verdade


    Terá sido com alívio que Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico, recebeu a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa da juíza Telma Nogueira no passado dia 27 de Janeiro. Depois de uma atitude de puro obscurantismo e prepotência, arriscava a ser obrigado por um tribunal a disponibilizar não apenas 52 relatórios (supostamente) científicos como também os ficheiros de dados que, durante um ano, serviram para a Ordem dos Médicos alimentar um clima de manutenção do pânico.

    Em causa estava, e continua a estar, a qualidade científica e sobretudo a idoneidade moral e ética de Rogério Colaço e de quatro investigadores do IST, a saber: Henrique Oliveira, Pedro Amaral, José Rui Figueira e Ana Serro. Não é de ânimo leve que um relatório científico pode atribuir mortes directas (e logo 330) a eventos em concreto. Não é de ânimo leve que uma instituição científica, ainda mais pública, recusa facultar os dados que terão suportado essas “conclusões”.

    Instituto Superior Técnico foi fundado em 1911; o campus universitário da Alameda foi construído a partir de 1927.

    De facto, a sentença acabou por considerar que o último relatório do IST – o tal que chegou a ser classificado pelos seus autores um “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório” – é um documento administrativo, ordenando que fosse disponibilizado ao PÁGINA UM.

    Porém, a juíza esqueceu-se que em causa, para ela decidir, não estava apenas o conteúdo do tal relatório – denominado Relatório Rápido nº 52 –, mas sim o acesso “de todo e qualquer documento considerado como administrativo na posse do Instituto Superior Técnico – por publicamente ter sido elaborado e/ ou utilizado por investigadores desta instituição universitária – relacionados com a avaliação epidemiológica da covid-19”.

    E mais, esqueceu-se a juíza que se explicitava, no requerimento, que “de entre esses documentos classificados como administrativos devem constar, entre outros, a totalidade dos relatórios elaborados no âmbito do protocolo formal ou informal (acordo) realizados pelo Instituto Superior Técnico e a Ordem dos Médicos – e apresentado no dia 14 de Junho de 2021 (vd. aqui: https://archive.ph/wip/C9YTD) –, incluindo ficheiros informáticos contendo elementos (numéricos) que permitiram ou auxiliaram a elaboração desses relatórios”.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes na sede do Ordem dos Médicos, em Julho de 2021, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico realizou 52 relatórios, que foram solicitados, mas esqueceu-se de falar de 51 desses 52 relatórios.

    No requerimento do PÁGINA UM, que consta integralmente na petição do processo de intimação, ao qual a juíza deveria dar resposta integral, até se enviou a ligação para o site da Ordem dos Médicos onde se anunciou esse acordo, com a presença do bastonário Miguel Guimarães, do inefável Filipe Froes, do presidente do IST Rogério Colaço e do investigador Henrique Oliveira.

    Ora, havendo 52 relatórios – uma vez que o tal “esboço embrionário” era o relatório com o número 52 –, significa que existem 51 relatórios anteriores, sobre os quais a sentença da juíza Telma Nogueira absolutamente nada diz.

    Tal como nada diz sobre os ficheiros informáticos com os dados numéricos.

    Esqueceu-se a juíza de tudo isto.

    Sumário do famoso Relatório Rápido nº 52, que agora divulgamos integralmente.

    Por isso, não surpreende que o IST tenha vindo logo a correr enviar o Relatório Rápido nº 52 – que agora divulgamos, sem mais comentários, porque a sua pobreza científica fala por si –, requerendo também à juíza que o original enviado em envelope lacrado lhe fosse devolvido.

    Pudera! Com esta “doce” sentença livrava-se de piores males: de ser colocada na praça pública (e nos corredores da Ciência) um miserável trabalho científico de objectivos ínvios.

    Podia o PÁGINA UM, perante esta “novela”, assumir que venceu a postura prepotente do IST e do seu presidente – que conseguiu demonstrar, com a sua postura ao longo do processo, que um cientista excelente pode ser, em simultâneo, um péssimo cientista sem ética –, mas nunca neste processo esteve uma causa pessoal, mas sim a avaliação do rigor científico de uma instituição académica durante a pandemia.

    Por esse motivo, não desistimos de saber toda a verdade sobre os estranhos relatórios do IST. Não de apenas um, mas de todos os 52 que foram produzidos semana após semana.

    Não queremos apenas os 52 relatórios e os dados, apenas para avaliar a postura dos investigadores do IST neste caso concreto, mas pelo seu simbolismo. Constitui um aviso. É inaceitável a possibilidade de pessoas sem escrúpulos usarem, e abusarem, do seu estatuto de académicos, de professores e de investigadores universitários, para comporem narrativas e fazerem fretes para entidades externas ou para interesses obscuros.

    Fizemos, por isso, um requerimento à juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa pedindo para clarificar a sua sentença por ininteligibilidade. Respondendo em tempo útil, e perante a evidente falha na sentença, evitava um recurso e mais atrasos de justiça.

    Não respondeu ainda, o que nos obrigou mesmo a ter de apresentar um recurso ao Tribunal Central Administrativo Sul, de contrário o processo ficava encerrado por transitar em julgado, e jamais se esclareceria o comportamento do IST. O “crime” compensaria. Não poderíamos aceitar sem contestação. Por isso, foram mais 306 euros gastos do FUNDO JURÍDICO para mais taxas de justiça.

    sun rays inside cave

    Infelizmente, fazer Justiça custa dinheiro, mas esta acção não poderia morrer assim.

    Não queremos uma vitória de Pirro; desejamos sim apurar a verdade.

    O caso do “esboço embrionário” do IST deve servir de lição para o futuro, sobre o rigor, a isenção e a transparência que se deve exigir às Universidades como bastiões da Ciência. Não deixemos, por isso, esta lição a meio.


    Caso queira fazer um donativo dirigido em exclusivo ao FUNDO JURÍDICO, utilize preferencialmente a plataforma do MIGHTYCAUSE. Se preferir usar outros meios, pode assim recorrer mas agradecíamos um aviso para procedermos ao depósito na plataforma. Se necessitar de esclarecimentos, escreva-nos para geral@paginaum.pt. A gestão das verbas do FUNDO JURÍDICO, ao contrário das verbas destinadas à actividade do jornal (geridas pela Página Um, Lda.), é da minha inteira responsabilidade (Pedro Almeida Vieira), de modo a serem consideradas donativos (e não receitas ou rendimentos), o que se mostra mais favorável contabilisticamente para o jornal. No passado dia 7 de Janeiro foi apresentado um balanço sobre os processos concluídos e em curso, incluindo também a parte contabilística. No final de 2022, as receitas do FUNDO JURÍDICO atingiram os 13.943,40 euros e o saldo era positivo em 1.067,87, após deduzidas taxas de justiça e honorários com advogado.

  • O silêncio dos culpados

    O silêncio dos culpados


    Nas últimas duas semanas, dois episódios marcantes foram revelados pelo PÁGINA UM, envolvendo o Instituto Superior Técnico e o Ministério da Saúde.

    Vejamos o primeiro.

    Por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, uma instituição universitária portuguesa – mais concretamente o Instituto Superior Técnico (IST) – foi obrigada a revelar um relatório que escondia. Note-se: uma instituição universitária, sede do saber e da transparência do conhecimento foi usurpada por pessoas sem carácter que, munidos de canudos e vestes talares, manipularam dados e contribuíram para alimentar o medo e o pânico para benefícios inconfessáveis de terceiros.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico, e Manuel Pizarro, ministro da Saúde, irmãos na arte de sonegação de informação pública, “apadrinhados” pela imprensa mainstream.

    Não satisfeitos, e aproveitando uma (alegada) falha da juíza – que na sentença não explicitou que deveriam ter fornecido ainda os ficheiros de dados e os anteriores 51 relatórios –, o IST foi lesto a requerer a destruição das provas, ou seja, o original de um relatório que, para evitar o acesso legal do PÁGINA UM, eles classificaram de “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”.

    Se a vergonha significasse alguma coisa para a Academia, aqueles senhores, começando pelo presidente do IST, ter-se-ia demitido, ou sido corrido a pontapé pelo respectivo Conselho Científico.

    Vejamos agora o segundo.

    O Ministério da Saúde ordenou que se surripiasse do Portal Base os ficheiros com quatro contratos assinados entre a Direcção-Geral da Saúde e duas farmacêuticas (Pfizer e Moderna), relativos às vacinas contra a covid-19, trocando-os por folhas completamente apagadas de conteúdo. O objectivo foi manipular o processo que contra si corre no Tribunal Administrativo de Lisboa para ceder os outros contratos feitos a partir de Janeiro de 2021, que nunca foram colocados no Portal Base. Estamos a falar de contratos em falta que deverão representar muito mais de 500 milhões de euros, bem como outra correspondência com as farmacêuticas, cujo acesso permitirá conhecer não apenas os montantes efectivamente gastos mas também os compromissos comerciais para o futuro.

    Notícia do artigo 37, um site de académicos ligados a universidades com cursos de comunicação social, sobre a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa obrigando o Instituto Superior Técnico a revelar um relatório alarmista. O caso ainda não está encerrado, por se ter requerido a clarificação da sentença quanto aos ficheiros de dados e aos 51 primeiros relatórios.

    Não conheço nenhum outro caso em que tenha havido uma ordem para a retirada de documentos do Portal Base, ainda mais com este propósito de encobrimento na gestão de dinheiros públicos. Sei apenas que isto seria matéria para o Ministério Público, se o Ministério Público servisse para zelar o bem público, e não o bem do Governo.

    Tanto num caso como no outro, o silêncio dos media mainstream foi ruidoso.

    Uma das coisas que não me podem acusar é de ignorar aquilo que é uma boa notícia,uma cacha, uma matéria exclusiva que tem todas as condições para dar brado mediático, público e político.

    Aliás, veja-se o caso das subvenções vitalícias dos políticos que foram negadas ao Correio da Manhã pelo Governo, apesar do parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. Deu primeira página no jornal do Grupo Cofina, o mais lido do país.

    Ora, o PÁGINA UM tem mais de uma dezena de casos semelhantes, levou alguns a Tribunal. E ganhou alguns em primeira instância, um deles ao Conselho Superior da Magistratura, e sobre a Operação Marquês (encontra-se em recurso).

    Porém, em todos os processos do PÁGINA UM, a imprensa mainstream tudo tem ignorado, assobia para o ar, age com comprometedora passividade, como se nada de relevante se passasse.

    Por isso, enquanto se observa o silêncio da imprensa mainstream, ver na última semana entidades ligadas à imprensa, como o Clube dos Jornalistas e o artigo 37 – integrando académicos (grande parte dos quais com relevante passado jornalístico) de diversas universidades na área da comunicação –, por duas vezes (aqui, sobre o IST, e aqui, sobre o Ministério da Saúde), escreverem sobre os recentes temas revelados pelo PÁGINA UM (IST e Ministério da Saúde), é bem revelador da podridão reinante.

    Na verdade, já não me surpreendem as atitudes prepotentes e obscurantistas das entidades públicas – e das pessoas que agem sobre elas, como se fossem suas –, que recusam e lutam tenazmente para esconder informação. Quando faço um pedido já aguardo uma não-resposta. Em muitos casos, quando faço um pedido já uso terminologia jurídica, invocando a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, preparando-me já para (mais) um processo de intimação no Tribunal Administração de Lisboa. São as novas regras do jogo, e eu já as interiorizei: só na “barra do tribunal” consigo informação.

    Notícia do artigo 37, um site de académicos ligados a universidades com cursos de comunicação social., sobre o “apagão”dos contratos das vacinas contra a covid-19 no Portal Base.

    De facto, a minha única surpresa tem sido a atitude da imprensa mainstream, e sobretudo a falta de coragem de muitos jornalistas que secretamente gostaria de fazer aquilo que o PÁGINA UM faz, mas perderam a coragem de enfrentar poderes, a começar pelos internos, ao nível das cândidas direcções e das engravatadas administrações.

    Neste caso, o problema está mesmo no mensageiro (leia-se, imprensa mainstream), que alegre e alarvemente, nega os princípios do jornalismo. O problema está nos seus silêncios, nas suas omissões, que dão carta branca aos maiores atropelos democráticos. O silêncio da imprensa é, neste aspecto, o silêncio dos culpados. A imprensa está a cometer o seu harakiri.

  • Heróis da pandemia: glorifiquemos o memorial à estupidez, à acefalia e à vaidade

    Heróis da pandemia: glorifiquemos o memorial à estupidez, à acefalia e à vaidade


    Ainda não surge no Portal Base o custo das duas esculturas de Rogério Abreu, hoje inauguradas, defronte ao Tejo, a caminho de Belém, mas por mim espero que lhe venham a pagar pelo menos os 1,6 milhões de euros da redução de custos do altar das Jornadas Mundiais da Juventude. Merece: glorifica a estupidez, a acefalia e a vaidade, que são sempre predicados necessários para um efectivo reconhecimento da arte no futuro de coisas irracionais do passado.

    Onde uns hoje se podem chocar com o estranho sentido estético e simbólico de um monumento oco aos Heróis da Pandemia, eu vejo veneração no futuro.

    Onde uns hoje podem ficar boquiabertos com as duas figuras – masculina e feminina, sendo que esta tem de ter o seu rabo de cavalo para assim ser, porque ambas estão mascaradas –, eu vejo uma lição de História para o futuro.

    Onde uns hoje podem ficar assombrados com a vanitas vanitatum et omnia vanitas (cf. Eclesiastes 1:2) do (ainda) bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e do presidente da autarquia de Lisboa, Carlos Moedas – que pespegaram tanto os seus nomes na base de uma das estátuas, ao lado do nome do escultor, como na placa de inauguração, neste caso fazendo companhia ao nome do ministro da Saúde, Manuel Pizarro –, eu vejo um ensinamento sobre perenidade das acções para os empreendedores no futuro.

    Esqueçam as críticas. Não olhem para detalhes nem analisem obras ou acções feitas, não para nós, mas para serem admiradas e veneradas no futuro.

    Hoje, a arcaria do Vale de Alcântara é um ex-libris da capital; ontem, no século XVIII, foi tão zurzido por alguns arquitectos, por razões estéticas (arcos góticos em período barroco) que Ludovice, o criador do convento de Mafra, chamou Herodes do Aqueduto ao engenheiro Custódio Vieira, que a concebeu.

    Também estou a imaginar os mais cépticos moradores de Rapa Nui a criticarem a inutilidade dos moais – cuja edificação, aliás, aparentemente esteve na base de um ecocídio involuntário –, pois hoje as grandes estátuas da chilena ilha da Páscoa são a cobiça de qualquer turista.

    Olhem, olhem bem. Não percam assim uma passagem pelo agora denominado Passeio Carlos do Carmo, entre o Terreiro das Missas e o Jardim das Docas da Ponte, porque, sendo certo que “tudo isto existe, tudo é triste, [e] tudo isto é fado” (como cantava Amália Rodrigues), também é verdade que os protagonistas desta escultura – o seu autor e os seus promotores – conseguiram, talvez involuntariamente, transmitir várias lições para as gerações vindouras. Desfrutem, por isso. Deliciem-se, agora.

    De facto, hoje, somente por relatos sabemos que, em tempos de antanho, os arcaicos médicos para combater epidemias aplicavam, geralmente, sangrias aos enfermos – que mais os debilitavam – ou davam-lhes purgas, xaropes e mistelas diversas, que tantas vezes causavam piores males e nenhum bem. Para contrariar as supostas emanações pestilentas no ar ambiente – que se considerava estar na origem dos contágios e que, em certa medida, podemos associar à decomposição do lixo –, usavam-se meios de duvidosa eficácia, como soluções de vinagre, perfumes, ervas odoríferas queimadas e até tiros de pólvora. Mas não há símbolos disso. Só papéis.

    No futuro, haverá este memorial. Toda uma lição em perpétuo e inamovível aço.

    Ali estão as máscaras – elevadas a estúpido símbolo de suposta protecção (agora a ruir cientificamente, como um óbvio baralho de cartas), num período histórico em que conheciam as dimensões de um vírus e as dimensões dos poros das ditas máscaras. E sendo as ditas máscaras o centro nevrálgico das duas figuras escultóricas de Rogério Abreu – e tendo ele, sabiamente, introduzido profusas e profundas “porosidades” –, transmite-nos assim fielmente um sentido realista à coisa: a aragem que venha Tejo acima ou Tejo abaixo, invade e trespassa livremente as cabeças, tal como um vírus abre alas entre as fibras de uma máscara cirúrgica. Serviram tanto como uma peneira para estancar o vento.

    Imagens de vídeo das esculturas de Rogério Abreu, hoje inauguradas por Miguel Guilherme, bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Moedas, presidente da autarquia de Lisboa, e Manuel Pizarro, ministro da Saúde.

    Também de enorme felicidade, pelo realismo, embora aqui um pouco mais alegórico, se mostra a opção do escultor por duas figuras de cabeça oca, onde, efectivamente, nada existe no interior. Será esta a melhor imagem para nossos vindouros: saberão eles, quando certo dia estudarem o que sucedeu entre 2020 e 2022 – com consequências para os anos seguintes –, como foi a gestão da pandemia: acéfala.

    Por tudo isto, glória ao escultor Rogério Abreu! Glória à vaidade de Miguel Guimarães e Carlos Moedas!, porque sem eles não teríamos um Memorial tão bem conseguido, tão perene, um tão arejado Monumento destinado ao futuro, um legado sobre tempos de Estupidez e Acefalia – que não se podem repetir quando surgir um novo vírus.

    P.S. Apelo, não irónico: espero que as pessoas mais exaltadas se contenham e não façam nenhum acto de vandalismo às esculturas. Não transformem um Monumento à Estupidez e Acefalia em Memorial da Vitimização.


    N.D. Afinal, apurou-se entretanto que a obra custou 57.000 euros, tendo sido integralmente paga pela Ordem dos Médicos.