Etiqueta: Pedro Almeida Vieira

  • Do pântano à cloaca

    Do pântano à cloaca


    Na semana passada, escrevi que Medina representava o pináculo de um Governo de aldrabões. A mentira, o obscurantismo e a manipulação são, já há muito, marcas de um estilo de vida e de desgoverno desta gente que, confundindo interesses corporativos – no sentido de interesses pessoais – com o interesse público, usam o Governo para abusar do Estado. E abusam de nós.

    Sempre sabemos que, na vida, e também na política, que um mal sempre pior pode ficar. Ainda mais quando António Costa, querendo chegar ao fundo do poço com Fernando Medina, ainda arranjou um Galamba para depois escavar ainda mais.

    Quando um primeiro-ministro não tem o discernimento para sequer antever o desastre de nomear João Galamba para ministro das Infraestruturas, é porque já passou o prazo de validade. Galamba não podia ser melhor escolhido para um fim de ciclo trágico-cómico: é o típico ministro com faca na liga, a quem se espera sempre dali sair arruaça, que parece ter mesmo sucedido no Ministério das Infraestruturas pela posse de um comprometedor computador.

    Por mais que possamos imaginar que o assessor Frederico Pinheiro – que anda em andanças de gabinetes governamentais desde 2017 – seja um incompetente, um violento, um criminoso e o diabo a quatro, os episódios mais recentes envolvendo o gabinete de Galamba, tal como todos os que já apanharam o de Medina, mostram um bando desgovernado em plena queda livre – ironicamente à conta da TAP.

    Este segundo Governo de Costa faz-nos lembrar, cada vez mais, o Governo de Santana Lopes, com os seus rocambolescos episódios quase diários no Verão de 2004, e que viriam a ditar a dissolução da Assembleia da República.

    Quem será o Henrique Chaves de António Costa é a única incógnita. Quem quer que seja, certo que involuntariamente prestará um serviço público ao país, mesmo havendo, por aí, um fantasma chamado Chega, que amedronta muitos – eu inclusive, já agora.

    Mas antes tudo do que isto. Neste momento, o país já nem sequer está no estado do pântano de Guterres – isto já parece mais uma cloaca. É altura de puxar o autoclismo. Fim de ciclo.

  • A maldade está no meio de nós

    A maldade está no meio de nós

    Título

    O diabo

    Autor

    GONÇALO M. TAVARES

    Editora (Edição)

    Bertrand Editora (Setembro de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Aos 52 anos, Gonçalo M. Tavares é porventura o mais prolífico escritor da sua geração – e não só –, com uma vasta obra que conta, desde o início deste século, com cerca de meia centena de títulos. Multifacetado, multipremiado e multitraduzido, a sua produção literária criterisamente “catalogada” por si próprio, causa pasmo pela meticulosidade, harmonia e coerência..

    Nos últimos anos, surpreendente, talvez, seja “apenas” uma certa desaceleração na sua cadência produtiva: no último quinquénio “apenas” publicou seis obras, o que parece pouco quando, por exemplo, entre 2003 e 2017 foram editadas 17 obras da sua autoria.

    A estatística é, porém, um pormenor. A qualidade mantém-se bastante elevada, mesmo quando se aguarda um estilo similar, já conhecido. Gonçalo M. Tavares continua a (saber) criar, com as suas narrativas – chamemos-lhe assim, por simplificação –, estranhos e desafiantes universos, por vezes irritantemente simples, outras vezes desconsertantemente complexos. Tem sido justamente comparado com Kafka, e em certa medida alguma da sua obra assim assemelha- se ao escritor checo, sobretudo quando, como sucede com este O diabo, se debruça sobre a humanidade e sobretudo a maldade, e a incapacidade e impotência de a subverter (à maldade).

    Integrado na série Mitologias – que conta também como A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado (2017) e Cinco meninos, cinco ratos, ambos também editados pela Bertrand –, O diabo acaba por ser, dependendo da perspectiva (ou da interpretação), um conjunto de narrativas que, tendo presente um belzebu físico, omnipresente e regendo os humanos, se espraia a maldade humana, não apenas a inata mas em especial a apreendida, a aplicada e a obedecida.

    Sabe-se que o diabo está nos pormenores, mas por este livro de Gonçalo M. Tavares está afinal por todo o lado, mas na prática sem sequer se impor aos humanos, pelo medo ou pelo temor. Quase se pode dizer que o diabo é obedecido, e ponto.

    Alexandre Palas-de-Cavalo, uma das personagens centrais deste livro, mostra de forma muito particular, de uma forma demasiado crua, como a maldade se pode aplicar sem qualquer noção moral, apenas porque “tem de ser”. E “tudo tem (mesmo) de ser”, quanto mais chocante e perverso se afiguram as cenas e efeitos do mal.

    Gonçalo M. Tavares explora assim não apenas o mal, mas a banalização do mal, a aplicação de regras sem nexo, mas surgindo com tal naturalidade que aparentam ser a coisa mais normal e, por isso, necessariamente aceitável.

    Embora algumas partes do livro sejam, aqui e ali, cansativas por um certo exagero na criação de personagens fantásticas – entre Kafka e Italo Calvino (nas três novelas de Os nossos antepassados) –, aconselha-se que este livro de Gonaçlo M. Tavares seja de leitura lenta e talvez repetida, para desvendar as metáforas que encerram.

    E tal como sucede com muitos outros escritores, as interpretações de cada leitor podem não ser exactamente aquelas pensadas pelo autor – e se assim for, é aí mesmo que está a magia da Literatura.

    Para finalizar, havendo imensas passagens marcantes, e muito visuais, neste livro de Gonçalo M. Tavares, que merecem ser anotadas (e discutidas), escolherei uma que, para mim, melhor representa o mundo como ele infelizmente é (maléfico), ou seja, como o poder de certos homens se exerce sobre os demais.   

    Há um buraco no Grande Armazém – está no chão, num dos cantos –, um poço que acaba não se sabe onde, mas ninguém se atreve a fugir por ali porque cheira terrivelmente mal, e nunca o cheiro foi assim tão eficaz – impede a fuga, eis o cheiro a fazer o que não conseguiria um exército bem armado – e, sim, é para esse buraco que vão as fezes que o Povo-Armazenado produz. Tudo organizado: a comida vem de cima e o animal doméstico, o Povo-Armazenado, levanta a cabeça, como se fossem pequenos animais a receber comida da mãe, e depois baixa-se, próximo do Grande-Buraco, e para ali envia os dejectos. Assim se mantém o Grande-Armazém com o estômago cheio e não demasiado sujo.

    (…)

    Mas é armazenado para quê, esse povo? Eis a questão. Porque não o eliminam de uma vez? E é essa a pergunta que fazem ao capitão Mau-Mau. Gastamos comida e gasolina nos Helicópteros-Bons – não se percebe o sentido de armazenar um povo inteiro –, esta é a questão que inquieta. O capitão Mau-Mau responde que o Povo-Armazenado pode vir a ser útil no século seguinte. Quem sabe se daqui a cem anos, no início do próximo século, não precisaremos de novo deste povo que agora armazenamos. Sim, são estes os planos do capitão Mau-Mau – nada se pode desperdiçar, odeia tal gesto, o de deitar fora algo, e por isso é um dever armazenar este povo guardá-lo para o futuro. Quem sabe se este Povo-Armazenado não se transformará numa coisa útil, verdadeira, justa e bela. (pp. 63-64)

  • Crónica de um não-amor e de vidas perdidas

    Crónica de um não-amor e de vidas perdidas

    Título

    A fera na selva

    Autor

    Henry James (tradução: Ana Maria Pereirinha)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Janeiro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Publicada há 120 anos, Uma fera na selva mantém-se, nem que seja metaforicamente, jovial, no sentido de ser uma novela actual na sua complexidade psicológica e nas suas inúmeras subtilezas, que tão bem retratam a natureza humana: a vida, em si mesma, o tempo, as ânsias e as obsessões, as oportunidades (perdidas também) e a própria decadência e morte.

    Retratando a vida, ou a vida desaproveitada, de John Marcher – um homem que (sobre)vive na expectativa de um evento extraordinário que o tornará diferente dos demais (não se sabe se para melhor, se para pior) –, nesta novela Henry James cruza-o com May Bartram, uma mulher que, confidente inicial de um “segredo”, o acompanha pacientemente nas suas inseguranças e ânsias, numa estranha dinâmica que não permite nem avanços nem recuos para qualquer relação, que parece estar ali a gritar entre os dois. Ambos aguardam assim, mais ele que ela, mas ambos aguardam.

     “A forma real que esta relação o deveria ter tomado, tal como se apresentava, era o casamento de ambos. O diabo era que, justamente porque se apresentava assim, tornava o casamento impossível. A convicção, a apreensão, a obsessão dele, em suma, não era um privilégio que pudesse pedir a uma mulher para partilhar; e essa consciência era justamente o que o atormentava. Alguma coisa estava à sua espera, entre as circunvoluções dos meses e dos anos, como uma Fera agachada na Selva, a preparar o salto. Se a Fera estava destinada a matá-lo ou a ser morta por ele, era irrelevante” (pg. 34).

    Enfim, os dois personagens passam pelas respectivas vidas, de forma lenta e com a “fera”, omnipresente mas invisível, até que, efectivamente, algo sucede, mas, quando sucede, na verdade, a sua apreensão é já tardia e irremediável para John Marcher.

    Notável pela maneira e estilo da narrativa e seus diálogos ambíguos e subtis– que tornam a novela bastante complexa e aberta a várias leituras, daí que ser obra conhecida pela dificuldade de tradução –, Henry James explora magistralmente a natureza da vida, do amor e da perda (ou do não-ganho), onde uma selva metafórica – a vida e a sua imprevisibilidade – estão sujeitas (ou não) à ameaça de uma também metafórica fera, temida por ser desconhecida e imprevisível (embora certa, pelo menos para Marcher; não tanto, talvez, para May).

    Novela de múltiplas interpretações, A fera na selva pode ser entendida também como uma metáfora sobre a nossa constante luta interna sobre o sentido da vida, sobre as nossas opções e sobretudo sobre as hesitações que, se se mantiverem ao longo da vida – como sucedeu com John Marcher – nos surpreende apenas, à laia de saldo final, com uma terrível perda sem qualquer ganho. Na verdade, nem sempre quem espera sempre alcança. Pode apenas perder-se, sem glória.

  • A Ordem dos Psicólogos e os pequenos ditadores de capelinhas

    A Ordem dos Psicólogos e os pequenos ditadores de capelinhas


    Francisco Miranda Rodrigues é o bastonário da Ordem dos Psicólogos. Para mim, tanto me faz como me fez. Na breve biografia que se lhe conhece, diz-se que nasceu em 7 de Abril de 1974 – portanto, viveu 17 dias em ditadura (já moderada), que é psicólogo formado pela Universidade de Lisboa e especialista em Psicologia do Trabalho, Social e das Organizações e da Saúde Ocupacional, que dirigiu equipas de recursos humanos, qualidade, ambiente e de segurança, higiene e saúde no trabalho. E é bastonário da Ordem dos Psicólogos há mais de seis anos, embora ocupasse funções na associação antecessora desde o início do século.

    Procuro na internet, e vejo ser homem de opiniões, “autor de vários artigos de opinião na imprensa portuguesa”, segundo a sua página da Wikipédia. Publicou no mês passado aquele que julgo ser o seu primeiro ensaio para o mercado editorial, Como gerir pessoas, com prefácio do ex-ministro Poiares Maduro.

    Francisco Miranda Rodrigues, bastonário da Ordem dos Psicólogos.

    Não conheço a obra, mas deve ter muitas opiniões. Aliás, muitas opiniões deverão estar reflectidas também nos seis prefácios em diversos ensaios na área da Psicologia que escreveu nos últimos quatro anos, de acordo com consulta na Biblioteca Nacional.

    Pesquiso discursos seus pelas redes sociais, por exemplo no YouTube da Ordem dos Psicólogos, ele bota profusa faladura. Opina. Não é nenhum Freud, mas enfim, não é isso que está aqui em causa.

    Aquilo que está em causa é eu achar – e devo mesmo achar, por um imperativo de cidadania democrática – que o Doutor Francisco Miranda Rodrigues tem todo o direito a dizer o que bem lhe apetece, como lhe apetece, quando lhe apetece e da forma que lhe apetecer. Pode ser aplaudido pelo que disse, pode ser criticado negativamente pelo que disse (ou não disse), pode passar a ser, pelo que disse, respeitado, gozado ou endeusado.

    Faz parte da convivência democrática que tal suceda.

    E é exactamente pela convivência democrática que, estando eu a borrifar-me para as opiniões do Doutor Francisco Miranda Rodrigues, sobretudo em discursos que nem aquecem nem arrefecem, antes pelo contrário, defendo que ele tem o direitos proferir tanto sentenças como parvoeiras.

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    E, exactamente pelo mesmo motivo, não posso então tolerar que ele, como circunstancial bastonário da Ordem dos Psicólogos – que, recorde-se, tal como a famigerada Ordem dos Médicos, é apenas uma associação profissional de direito público, o que lhe traz direitos mas também obrigações perante os cidadãos comuns –, condicione a opinião de outras pessoas, somente por deterem a mesma profissão dele. E que use e abuse de um estatuto concedido pelo Estado – o de regulador de uma profissão – para condicionar e até punir opiniões de seus colegas de profissão, que, antes disso, são meus e nossos concidadãos.

    Ontem, o PÁGINA UM publicou uma entrevista com a psicóloga Laura Sanches e, até atendendo à sua genética (filha de Maria José Morgado e Saldanha Sanches), chega a ser perturbador saber que, em 2023 – quase cinco décadas após o 25 de Abril –, a Ordem do Doutor Francisco Miranda Rodrigues intentou-lhe dois processos disciplinares por mero delito de opinião ou por intervenção pública como cidadão. Pior: um desses processos é sobre alegadas opiniões que ela nem sequer tomou, estando até “proibida” de falar sobre o assunto.

    O esquecimento da História, acrescido da “alimentação” dos egos de pequenos ditadores com os seus “gabinetes”– que se pavoneiam de opinar mas em simultâneo condicionam a livre opinião dos seus pares – é um dos maiores flagelos da nossa democracia, que rapidamente caminha para uma degradação irreversível.

    Laura Sanches, psicóloga.

    Ver hoje que até a filha de Maria José Morgado e de Saldanha Sanches pode ser perseguida por delito de opinião – e não por más práticas clínicas ou por outra qualquer infracção punida pelo Código Penal – é intolerável. Imaginemos o que sucede aos cidadãos sem essa aprendizagem de luta democrática. Ou aos cidadãos anónimos ou aos profissionais que não têm sequer uma”rede protectora”. Esses calam-se.Cria-se o podre unanimismo controlado por inquisidores de opinião.

    Vivemos hoje uma aberração democrática com estes pequenos ditadores de capelinhas. A existência e acção debragada de figuras como as de Francisco Miranda Rodrigues – e, infelizmente, há tantos e tantos como ele nessas pequenas igrejas de condicionamento social – são um cancro autêntico para a nossa democracia. E deve ser o quanto antes extirpado. A Bem da Nação, como diria o outro, que era um ditador.

  • Morreram 75 jovens a mais. E há investigadores do Instituto Nacional de Saúde que são ou preguiçosos ou incompetentes

    Morreram 75 jovens a mais. E há investigadores do Instituto Nacional de Saúde que são ou preguiçosos ou incompetentes


    Susana Silva, Ana Rita Torres, Baltazar Nunes e Ana Paula Rodrigues são investigadores do Departamento de Epidemiologia do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), e receberam a incumbência de realizar um relatório que tem, “como objetivos, descrever a evolução da mortalidade por todas as causas durante o ano de 2022 [semana 01/2022 à semana 52/2022 (03 janeiro de 2022 a 01 janeiro de 2023)], bem como identificar e analisar os períodos de excesso de mortalidade identificados.”

    Sem prejuízo de ser uma análise muito criticável em muitos aspectos – como já expus esta quinta-feira –, certo é que, pela primeira vez, se viu um relatório de uma instituição oficial a referir um tema tabu: o excesso de mortalidade “no grupo etário entre os 15 e os 24 anos”, cuja afectação directa pela covid-19 foi nula (ou até com balanço favorável, porque a mortalidade dos doenças respiratórias nestas idades até regrediu).

    people holding shoulders sitting on wall

    Esta informação não me surpreendeu. Alertei sobre este problema pelo menos três vezes no PÁGINA UM: em 3 de Setembro e em 15 de Novembro do ano passado,  já este ano, em 2 de Janeiro:

    Mas que fizeram estes quatro investigadores do INSA? Foram analisar as causas para esse tão grave desvio? Nada disso. Especularam somente e passaram adiante. Na página 16 escreveram apenas: “Os excessos de mortalidade nos grupos mais jovens são raros estando, maioritariamente, associados a causas externas de mortalidade. A ausência de informação disponível quanto às causas de morte não nos permite confirmar esta hipótese que colocamos como mais provável, dado o conhecimento anterior e o padrão do excesso observado (aumento acentuado em relação ao habitual e de curta duração).”

    O negrito é meu. E esta pergunta também: mas que raio de investigadores são estes que, perante um excesso de mortalidade num grupo etário que congrega naturalmente tanta preocupação, descartam qualquer análise posterior, assumindo de forma leviana ser “provável” que siga um padrão de “causas externas”? E como podem investigadores – que investigam nesta área da epidemiologia – dizer que existe uma “ausência de informação disponível”?

    São eles preguiçosos?

    Análise feita em 2 de Janeiro passado pelo PÁGINA UM para o grupo etário dos 15 aos 24 anos: mortalidade efectiva entre 2014 e 2019; e mortalidade expectável e excesso de mortalidade em 2020, 2021 e 2022. O valor do excesso de mortalidade nos anos do último triénio calcula-se pelo diferencial da mortalidade efectiva com a mortalidade expectável. Fonte: SICO.

    Ou são eles apenas incompetentes?

    Qualquer um destes dois predicados são incompatíveis com a função de (bom) investigador.

    Vamos lá ver. Recordo-me que recentemente – em Maio do ano passado, para ser mais concreto – houve grande burburinho mediático e político porque se soube que “morreram 17 mulheres devido a complicações da gravidez, parto e puerpério, em 2020”, o valor mais alto dos últimos 38 anos. São 17 óbitos em cerca de 100 mil gravidezes por ano. Mas logo se anunciou a criação de uma “equipa com especialistas de diferentes áreas para investigar o problema.”

    Ora, sabe-se que o excesso de mortalidade no grupo etário dos 15 aos 24 anos durante o ano passado foi de 65 mortes superior à média do quinquénio anterior à pandemia. Morreram 375 jovens; a média para o período de referência foi de 310. Se se considerar o quinquénio 2017-2021 a média é de 314.

    Estamos perante um desvio de 75 mortes em relação ao valor que seria expectável para esse ano (face à redução do número de jovens). É um acréscimo relativo muito significativo, que não pode ser descartado numa frase sobre uma alegada “ausência de informação disponível”: 20% acima da média dos cinco anos anteriores.

    black and white cat on brown wooden shelf

    Face a um desvio de 20% não é o padrão da “causa externa” que nos deve surgir como a mais “provável” – a menos que tenha caído uma camioneta cheia de estudantes por uma ribanceira e ninguém se tenha apercebido disso.

    Se houve um desvio tão pronunciado e repentino num curto espaço de tempo, o mais provável é que o padrão tenha sido quebrado; não o contrário.

    Além disso, como é possível que investigadores do INSA, ainda mais do Departamento de Epidemiologia, ignorem os seus direitos (mas também os deveres) de acesso à informação que lhes concedeu a lei que instituiu o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO)?

    Se não sabem, eu relembro-lhes. De acordo com a Lei nº 15/2012, que criou o SICO – onde se integram dados não disponibilizados ao público, como os certificados de óbito de cada falecido – no seu artigo 12º, “os dados constantes do certificado de óbito podem ser disponibilizados pelo diretor-geral da Saúde às entidades do Ministério da Saúde responsáveis pela vigilância epidemiológica, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 7.º da Lei n.º 67/98, de 26 de outubro.”

    four people sitting on wooden stair

    E para que não haja dúvidas, a Lei Orgânica do Ministério da Saúde estipula, no seu artigo 18º, que “o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, I. P., abreviadamente designado por INSA, I. P., é o laboratório do Estado que tem por missão contribuir para ganhos em saúde pública através da investigação e desenvolvimento tecnológico, actividade laboratorial de referência, observação da saúde e vigilância epidemiológica, bem como coordenar a avaliação externa da qualidade laboratorial, difundir a cultura científica, fomentar a capacitação e formação e ainda assegurar a prestação de serviços diferenciados, nos referidos domínios.”

    Portanto, e dizem estes quatro investigadores que estamos perante uma “ausência de informação disponível”?

    Repito, por isso a pergunta: são estes quatro investigadores do INSA apenas preguiçosos ou incompetentes? Ou estão antes a tentar relativizar e esconder uma verdade inconveniente?

  • Salvar o coiro do almirante Gouveia e Melo: eis a nova atribuição da Entidade Reguladora para a Comunicação Social… e vale tudo!

    Salvar o coiro do almirante Gouveia e Melo: eis a nova atribuição da Entidade Reguladora para a Comunicação Social… e vale tudo!


    Sem necessidade de qualquer alteração legislativa por iniciativa da Assembleia da República ou do Governo, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) tem agora uma nova atribuição: salvar o coiro do (vice-)almirante Gouveia e Melo, antigo coordenador da task force da vacinação contra a covid alcandorado “herói nacional”, actual Chefe do Estado-Maior da Armada e putativo candidato a Presidente da República.

    Todas as outras atribuições legais da ERC – entre as quais a de assegurar o livre exercício do direito à informação e à liberdade de imprensa; a de zelar pela independência das entidades que prosseguem actividades de comunicação social perante os poderes político e económico; e a de garantir a efectiva expressão e o confronto das diversas correntes de opinião, em respeito pelo princípio do pluralismo e pela linha editorial de cada órgão de comunicação social – ficam secundarizadas perante esta nova atribuição quando se “belisca” o senhor almirante.

    Sede da ERC

    Ou então talvez esteja a ser injusto. Na verdade, se calhar, a ERC só serve para fazer fretes e atacar o jornalismo independente.

    Enfim, certo é que a ERC foi extraordinariamente diligente em “despachar” uma deliberação – a segunda – contra o PÁGINA UM por mor de investigações jornalísticas na área da Saúde. No primeiro caso, como se sabe, abordou a investigação em redor da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, que foi “censurada”, apesar de se ter revelado que tudo o que escrevemos era factual e verdadeiro, tanto assim que o presidente desta associação foi multado pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde e “enxotado” pelo Infarmed como consultor.

    E agora temos o caso Gouveia e Melo – onde a ERC quis meter o bedelho –, que no início de 2021 andou com o ex-bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, a mercadejar vacinas covid-19, para serem administradas em médicos do sector privado (que não estavam em contacto com doentes) a troco de cerca de 27 mil euros para o Hospital das Forças Armadas, de sorte a se ultrapassar a norma da Direcção-Geral da Saúde (DGS) que estabelecia as prioridades de vacinação. Gouveia e Melo não tinha, como líder da task force, competências para autorizar excepções à norma nem negociar coisa nenhuma. Curiosamente, também aqui, a ERC crítica o rigor do PÁGINA UM enquanto decorrem diligências da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde. Esta pressa da ERC em julgar o trabalho do PÁGINA UM pareceria amor se fosse para dizer bem… Como é para dizer mal…

    Já agora, sobre o caso da vacinação dos médicos não-prioritarios, e para compor o ramalhete, o pagamento ao Hospital das Forças Armadas veio da conta conjunta de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins (actual presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte) e Eurico Castro Alves (actual presidente da secção do Norte da Ordem dos Médicos), que eram os gestores ad hoc (em nome individual) do fundo Todos por Quem Cuida, cujas verbas totais (cerca de 1,4 milhões de euros) vieram quase na sua totalidade das farmacêuticas.

    Gouveia e Melo, actual Chefe do Estado-Maior da Armada, foi coordenador da task force. Uma semana após a tomada de posse, começou logo a fazer aquilo que prometera não permitir: vacinações à margem das prioridades definidas pela DGS

    Porém, em vez de a factura do Hospital das Forças Armadas ter sido passado em nome da campanha Todos por Quem Cuida, acabou por ser emitida em nome da Ordem dos Médicos – ou seja, uma factura falsa, porque não houve fluxo financeiro entre a Ordem dos Médicos e o Hospital das Forças Armadas. Depois, ainda tivemos quatro farmacêuticas a receber facturas, também falsas, para justificar donativos nunca efectivamente recebidos pela Ordem dos Médicos – e, já agora, sem declaração no Portal da Transparência do Infarmed – de quatro farmacêuticas (Ipsen Portugal, Bial, Laboratório Atral e Gilead, onde então trabalhava Ana Paula Martins). Também mais uma vez não houve fluxo financeiro associado – das farmacêuticas para a Ordem dos Médicos –, pelo que existem aqui mais quatro facturas falsas.

    Na verdade, os únicos fluxos financeiros que existiram foram entre as farmacêuticas e a conta da campanha Todos por Quem Cuida (gerida a título pessoal por Guimarães, Martins e Alves) e depois entre a conta da campanha Todos por Quem Cuida e o Hospital das Forças Armadas. Em suma, onde houve fluxos financeiros não houve facturas; onde houve facturas não houve fluxos financeiros que as justificassem.

    Mas, perante tudo isto – e ademais, profusamente documentado e explicado no artigo de investigação jornalística do PÁGINA UM, e após o acesso aos documentos ter sido possível somente depois de uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa –, que faz a ERC com uma queixa de um “anónimo de rabo de fora”?

    Ana Paula Martins e Miguel Guimarães, ex-bastonários das Ordens dos Farmacêuticos e dos Médicos, geriram, em parceria com o actual presidente da secção do Norte da Ordem dos Médicos, um fundo de 1,4 milhões de euros, quase todo proveniente de farmacêuticas, com diversas ilegalidades e promiscuidades à mistura.

    Trata a ERC de abrir um processo que questiona o rigor informativo do PÁGINA UM (sem explicitar em concreto onde existiam as falhas) e acelera uma “deliberação” em tempo recorde (há processos que demoram no regulador mais de dois anos; este, contra o PÁGINA UM, demorou pouco mais de um mês).

    O almirante agradece. O ex-bastonário, idem. E as farmacêuticas, idem. E todos os outros envolvidos numa gigantesca falcatrua com 1,4 milhões de euros travestida de acções de beneficiência, idem.

    E não esqueçamos também que a ERC perdeu em primeira instância uma intimação do Tribunal Administrativo de Lisboa interposta pelo PÁGINA UM sobre transparência dos media. E não esqueçamos que a ERC está a adiar desde já há quase um ano uma solicitação do PÁGINA UM sobre estranhos contratos comerciais entre grupos de media e diversas empresas e entidades públicas. E que a ERC andou a ameaçar o PÁGINA UM quase de actos de vandalismo, até que pareceres da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos a acalmasse e fizesse cumprir os normativos legais…

    Mas passemos à frente os oito pontos da deliberação em causa em defesa de Gouveia e Melo (e contra o PÁGINA UM) – que ocupam as duas últimas páginas das 20 que foram paridas e divulgadas no seu site, sem sequer terem sido enviadas previamente ao PÁGINA UM nem ter sido concedida qualquer audiência prévia de interessados (isso é só para a “imprensa amiga”).

    Segunda página da Norma 002/2021, de 31 de Janeiro de 2021, onde se definem os grupos prioritários. Documentos confirmam que Gouveia e Melo desrespeitou a norma e negociou a vacinação de médicos não-prioritários, que só deveriam ser vacinados na Fase 2 e 3 em função das comorbilidades e idade.

    E analisemos sim alguns aspectos  da deliberação, para saber, enfim, do rigor de análise dos membros do Conselho Regulador da ERC – e também do seu departamento de análise de media liderado por Tânia de Morais Soares, até porque foram feita profusas considerações sobre aspectos operacionais e contabilísticos em redor do tema abordado pelo PÁGINA UM.

    E nem precisam de ser todos; basta alguns para não se ser demasiado exaustivos.

    Peguemos então num aspecto essencial: a ERC tem a lata de omitir na sua deliberação – e em particular quando genérica e hipocritamente elogia o jornalismo de investigação – que o trabalho do PÁGINA UM decorreu num cenário de obscurantismo.

    Os documentos a que o PÁGINA UM teve acesso vieram apenas após uma sentença em Tribunal Administrativo contra a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos, uma vez que o bastonário da Ordem dos Médicos recusou até cumprir dois pareceres da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos.

    A ERC, na sua deliberação, farta-se de fazer referências àquilo que era do “conhecimento público” – e aquilo que a investigação do PÁGINA UM revelou vai muito além do conhecimento público. Que os médicos em causa foram vacinados, era do conhecimento público, e aí não havia novidade. Mas não era sobre isso que versava o trabalho de investigação do PÁGINA UM. A ERC confundiu, e quer confundir-nos, que conhecimento público – e suposta transparência – não significa que um acto seja legal. Se eu anunciar aos sete ventos que vou “fugir ao fisco”, esta minha postura de transparência, do conhecimento público, não altera a ilegalidade do meu acto se alguém o investigar.

    Em suma, uma coisa é saber-se que houve médicos vacinados por influência da Ordem dos Médicos; outra bem diferente é questionar a legalidade do processo. Infelizmente, durante a pandemia fecharam-se os olhos a muitos atropelos legais e éticos sob a justificação que era para o “nosso bem”.

    Na procura de encontrar supostas falhas de rigor, a ERC chega mesmo a acusar o PÁGINA UM de omitir partes da “história”, que na verdade, estão escaparrapachadas no artigo, incluindo referências, com ligação, para notícias da época dos factos.

    Na sua fúria persecutória, a ERC até chega a acusar o PÁGINA UM de omitir uma entrevista do bastonário da Ordem ao Diário de Notícias que garantiria a lisura do processo. E até cita, extensamente, essa entrevista de Miguel Guimarães ao Diário de Notícias: “O último momento que considera marcante destes seis anos tem a ver com o facto de ter sido a Ordem a assumir o processo de vacinação de todos os médicos que não estavam integrados no SNS, porque os do serviço público foram os primeiros a serem vacinados, eram profissionais de risco, mas “os outros estavam a ser esquecidos e a Ordem fez uma coisa que vai ficar para a história: planeou e organizou o processo de vacinação a nível nacional de todos os médicos que estavam a ficar para trás. Obviamente, que tudo foi autorizado pela Task Force, liderada pelo vice-almirante Gouveia e Melo, que nos deu vacinas, que nos ajudou a criar quatro centros de vacinação, três em unidades militares e um no hospital do Algarve, para vacinarmos sete mil médicos no país. Foi um processo em que tínhamos também todos os holofotes virados para nós, mas que correu bem e nos trouxe grande satisfação“.

    ERC acusa o PÁGINA UM de omitir informação de conhecimento público, citando longamente uma entrevista de Miguel Guimarães ao Diário de Notícias que… foi publicada um mês e meio depois do artigo do PÁGINA UM.

    Aliás, esta é a mais patética e asquerosa lavagem de imagem – patrocinada pela ERC – que se pode conceber, por uma simples razão: o artigo do PÁGINA UM que denuncia a ilegalidade dos procedimentos foi publicado em 15 de Dezembro de 2022, enquanto a entrevista de Miguel Guimarães foi concedida ao Diário de Notícias em 30 de Janeiro de 2023. Na verdade, estas afirmações até justificam uma parte das denúncias do PÁGINA UM: o líder da task force “autorizou” quando não tinha competências para tal, e se “autorizou” foi porque ultrapassou o que estava na norma da DGS.

    Mas gargalhemos: então não é que a notícia do PÁGINA UM omitiu, segundo a ERC, uma entrevista de Miguel Guimarães que apenas viria a ser dada um mês e meio depois? Lamentável, não é? Que falta de rigor! Inadmissível! O PÁGINA UM vai pedir uma bola de cristal à ERC para evitar mais omissões deste quilate.

    Mas vamos ser claros.

    O caso denunciado pelo PÁGINA UM baseia-se em factos e documentos: houve pessoas vacinadas por indicação da Ordem dos Médicos, em conluio com Gouveia e Melo, que não constavam na lista de prioridades no contexto da norma da DGS em vigor. A norma não foi mudada; foi sim combinado por duas pessoas (Miguel Guimarães e Gouveia e Melo), a troco de dinheiro para o Hospital das Forças Armadas, um desvio de vacinas (então destinadas a grupos de risco, sobretudo idosos) para um grupo específico de pessoas escolhidas não em função da sua actividade profissional (em contacto com doentes) mas sim por estarem inscritas numa associação profissional (Ordem dos Médicos). Miguel Guimarães e o então vice-almirante Gouveia e Melo não cumpriram a norma da DGS – basta saber ler para confirmar isso –, e sabiam disso.

    Se eles achavam errada a norma deveriam influenciar a sua alteração pela DGS ou pelo Governo. E não mancomunarem-se, envolvendo pagamento de serviços ao Hospital das Forças Armadas. E note-se que Gouveia e Melo nunca deteve poderes legais para uma autorização daquela natureza – podia achar que tinha, mas não tinha por força do Despacho 11737/2020 de criação da task force –, pelo que extravasou as suas competências.

    Mais evidente não pode ser.

    Aliás, por 11 vezes – repita-se: 11 vezes – a ERC acusa, na sua deliberação, o PÁGINA UM de lançar “suspeições” sobre este expediente entre Miguel Guimarães e Gouveia e Melo!

    Quais suspeições?! São evidências, caramba: a norma era clara; não foi alterada por quem de direito (DGS); e houve uma combinação para excepções à margem da tutela da task force. Tudo está explicado, com documentos, com a ligação à norma da DGS em vigor e com a ligação ao Despacho 11737/2020 de criação da task force. E ainda dizem que são “suspeições”? Eu chamo-lhe factos e evidências.

    Mas a ERC ainda foi mais longe no labéu, e meteu-se a defender a operação contabilística dos procedimentos de vacinação entre os envolvidos, não percebendo – ou não querendo perceber – que em causa está a existência de quatro “entidades”: farmacêuticas (que concederam os donativos), os gestores da campanha Todos por Quem Cuida (que receberam os donativos e pagaram ao Hospital das Forças Armadas), o Hospital das Forças Armadas (que prestou um serviço) e a Ordem dos Médicos (que apenas coordenou a vacinação).

    Numa situação normal (e legal), tudo seria simples, com dois fluxos financeiros e correspondentes documentos associados, com os seguintes passos: as farmacêuticas concediam o donativo aos gestores da campanha Todos por Quem Cuida (primeiro fluxo financeiro) contra entrega da correspondente emissão de factura (necessária para justificar a saída de dinheiro), e em consequência os gestores da campanha pagavam o serviço de vacinação ao Hospital das Forças Armadas (segundo fluxo financeiro) contra entrega de factura de prestação de serviços.

    Factura para pagamento da vacinação de médicos não-prioritários. Apesar do pagamento ter sido feito por uma compra titulada por três pessoas, a factura foi emitida para a Ordem dos Médicos, que por sua vez emitiu quatro facturas falsas para justificar donativos que, na verdade, nunca recebeu.

    Certinho e limpinho, certo?

    Mas o que é que aconteceu?

    Mantiveram-se os dois fluxos financeiros e dois documentos que os justificaram, mas não de forma correcta, por não coincidirem entre entidades.

    Na verdade, aquilo que se fez foi o seguinte:

    1. As farmacêuticas deram um donativo aos gestores da campanha Todos por Quem Cuida – que, aliás, a título individual se furtaram a pagar imposto de selo de 10% para os donativos superiores a 500 euros (e a campanha recebeu 1,4 milhões de euros), não havendo também registo no Portal da Transparência do Infarmed, portanto, só aqui são duas ilegalidades –, mas sem emissão de qualquer factura, pelo que não foi por aqui, como devia ser, que as farmacêuticas justificaram a saída de dinheiro.
    2. A campanha Todos por Quem Cuida pagou a vacinação dos médicos não-prioritários ao Hospital das Forças Armadas (não sendo este pagamento do conhecimento público antes da notícia do PÁGINA UM), mas este fluxo financeiro não teve a correspondente emissão de factura em nome dos gestores da dita campanha.
    3. Em alternativa à legalidade, o Hospital das Forças Armadas teve sim indicações para emitir a factura em nome de uma entidade que, efectivamente, não lhe tinha pagado nada: a Ordem dos Médicos.
    4. Por fim, a Ordem dos Médicos passou (largos meses depois) quatro facturas a quatro farmacêuticas, como se estas tivessem transferido para si alguma verba. Falso, porque os donativos tinham sido enviados para a conta bancária que tinha Miguel Guimarães como principal titular (e que não entrava na contabilidade da Ordem dos Médicos).
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    No meio disto, a ERC põe-se a especular sobre possíveis causas ou hipotéticos documentos perdidos ou serviços distintos – enfim, uma embrulhada –, esquecendo vários detalhes fundamentais. Primeiro, o PÁGINA UM, para a preparação deste artigo, baseou-se em TODA a documentação operacional e contabilística que a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos foram obrigadas a disponibilizar pelo Tribunal Administrativo de Lisboa. Assume-se assim que não existem documentos perdidos, até porque nos três dias de análise, e posteriormente, se pediram todos os esclarecimentos (e muitos foram transmitidos pelos técnicos que acompanharam atentamente todas as horas de consulta). Segundo, a análise contabilística foi feita por um jornalista com licenciaturas em Economia e Gestão, e que, em duas das visitas à Ordem dos Médicos, foi ainda coadjuvado por uma outra pessoa com formação académica e elevados conhecimentos de Gestão e de Contabilidade.

    Sejamos claros: do ponto de vista contabilístico, há cinco facturas falsas. Cinco! Há a factura emitida pelo Hospital das Forças Armadas à Ordem dos Médicos, porque não foi esta entidade que lhe pagou nem existe referência de que houvera um terceiro a proceder ao pagamento (alternative payer). E há quatro facturas emitidas pela Ordem dos Médicos a quatro farmacêuticas, com datas “fictícias” (algumas sem correspondência com os fluxos de caixa do período), para justificar donativos que, na verdade, nunca entraram nos cofres da Ordem dos Médicos, uma vez que as saídas de dinheiro (donativos) dessas farmacêuticas se destinaram à conta de Miguel Guimarães (e companhia), integrando indiscriminadamente o “bolo” de cerca de 1,4 milhões de euros da campanha Todos por Quem Cuida. A Ordem dos Médicos emitiu assim quatro facturas falsas para aquelas farmacêuticas como podia ter passado a outras quaisquer.

    Portanto, temos cinco facturas falsas, e a ERC ainda acha que está tudo bem, e o trabalho de PÁGINA UM todo mau?

    O pagamento ao Hospital das Forças Armadas foi feito por uma conta que geria a campanha, mas que não pertencia nem à Ordem dos Médicos nem à Ordem dos Farmacêuticos, e portanto sob contabilidade paralela e ilegal. Os titulares das contas (Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves) nunca cumpriram as exigências fiscais nem de transparência, e nunca emitiram qualquer factura de recepção dos donativos, promovendo uma “corrente de facturas falsas”.

    Há dinheiros a circular entre farmacêuticas e médicos sem sequer serem registados no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, e a ERC acha tudo bem, e o trabalho do PÁGINA UM todo mau?

    Há fuga aos impostos cometidos pelos gestores da campanha Todos por Quem Cuida, e a ERC acha tudo bem, e o trabalho do PÁGINA UM todo mau?

    Há normas não cumpridas e acordos ad hoc para contornar prioridades na vacinação (com desvio de vacinas destinadas a grupos mais vulneráveis), por actos de Gouveia e Melo, e a ERC acha tudo bem, e o trabalho do PÁGINA UM todo mau?

    Enfim, toda a análise feita pela ERC – numa tentativa de denegrir o trabalho do PÁGINA UM e salvar a face das duas Ordens, dos gestores da campanha Tudo por Quem Cuida e de Gouveia e Melo – é ridícula e absurda. Mas muito, muito grave.

    E a argumentação técnica chega a ser risível. Atente-se, por exemplo, ao ponto 78 da deliberação da ERC: “Por outro lado, todas as faturas em questão se encontram descritas como ‘donativo sem contrapartida’, o que é inconsistente com o argumento do Página Um de se tratar de despesas para efeito fiscal.”

    Sonora gargalhada! Ó senhores da ERC: qualquer factura, incluindo as de donativos, tem sempre um efeito fiscal associado, no pressuposto que justificam gastos e/ou servem para se assumirem despesas, sem as quais estaremos, em última análise, perante saídas de dinheiro indocumentadas, que se assim for também terão consequências fiscais. E isto independentemente de existirem benefícios fiscais em donativos a determinadas entidades – que, aliás, também se verificou na gestão da campanha Todos por Quem Cuida, através da emissão de largas centenas de outras facturas falsas, como o PÁGINA UM denunciou num outro artigo.

    Os pontos seguintes da deliberação da ERC, abordando outras questões contabilísticas e fiscais, para acusarem o PÁGINA UM de “especulações abusivas, sem a devida e necessária sustentação factual nos documentos apresentados”, deveriam merecer, como reacção da minha parte, chamar azémolas a esta gente.

    Mas como no ano passado eu já acusara os membros do Conselho Regulador da ERC de analisarem processos “por um prisma tão redutor, tipo antolhos de equídeos” – e levei um processo-crime por isso, entretanto abandonado, não sei ainda se por terem acabado por concordar comigo – não me apetece ser repetitivo. Ou redundante.


    Nota final: Não é função de um jornal fazer denúncias directas para o Ministério Público investigar eventuais crimes em redor das suas notícias, embora em muitos casos se espere que haja iniciativa própria da Justiça quando tal se justifica. Mas, neste caso em concreto – e face a esta vergonhosa deliberação da ERC –, o PÁGINA UM, em prol da defesa do rigor do seu trabalho, vai comunicar ao Ministério Público as notícias que produziu em Dezembro passado sobre estas matérias, e manifestar a disponibilizade para facultar cópia de diversos documentos operacionais e contabilísticos extraídos da consulta aos dossiers da campanha Todos por Quem Cuida. Em todo o caso, os originais estarão na Ordem dos Médicos, para consulta ou buscas da PJ. E às tantas estará lá também uma auditoria que, durante o processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa, as duas Ordens juravam estar em conclusão…

  • Jornalistas (muitos): os ferreiros sem espeto nem pau

    Jornalistas (muitos): os ferreiros sem espeto nem pau


    Ponto prévio: “O jornalista deve lutar contra as restrições no acesso às fontes de informação e as tentativas de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar. É obrigação do jornalista divulgar as ofensas a estes direitos.” Esta é uma das normas do Código Deontológico dos Jornalistas. Posto isto, siga, e justifica-se, o editorial…

    Imaginemos que, por exemplo, um jornalista do Expresso fazia um requerimento ao Governo a solicitar documentos ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, isto num cenário em que se via obrigado a invocar a lei para obter informação, porque não lhe bastaria um simples telefonema ou e-mail.

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    Eu sei que é um exercício que exige demasiada imaginação: não tanto por mim – que colaborei vários anos no Expresso –, mas por ser difícil imaginar o Expresso (ou outro órgão de comunicação social mainstream) de hoje a “morder nas canelas” do Governo ao tal ponto de invocar leis para aceder a documentos…

    Mas imaginemos então esse pedido, e que, na volta do correio, o jornalista do Expresso receberia a seguinte resposta:

    Embora o Governo reconheça que tal informação nunca foi requerida e o número de documentos, não obstante ser morosa, não configure propriamente um impedimento, a verdade é que a finalidade do acesso aos documentos é, em si, manifestamente abusiva. E é assim porque o requerente tem vindo, ao longo do último ano, a mover sucessivos pedidos de acesso aos mais variados documentos na posse da Governo, acabando por fazer um uso abusivo dos mesmos quando a eles tem acesso, concretamente através da publicação no Expresso, aliada a outras tantas sobre o Governo e o seu Primeiro-Ministro.

    O que acham que aconteceria? Como reagiria a classe jornalística? Como reagiria o Sindicato dos Jornalistas? Como reagiria a Entidade Reguladora para a Comunicação Social? Como reagiria a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista?

    Pagaria para ver.

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    Porém, resposta similar obtive, não do Governo, mas, pasme-se, da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, que integra apenas jornalistas. E isto porque pedi formalmente diversos documentos, entre os quais actas de reuniões, diligências tomadas em sede de processos de averiguação e disciplinares a jornalistas e também a decisões quanto a remunerações dos nove membros do Plenário de uma entidade de direito público.

    A resposta, esta semana transmitida, contém esta e outras “pérolas”:

    “Embora o Secretariado reconheça que tal informação nunca foi requerida e o número de documentos, não obstante ser morosa, não configure propriamente um impedimento, a verdade é que a finalidade do acesso aos documentos é, em si, manifestamente abusiva. E é assim porque o requerente tem vindo, ao longo do último ano, a mover sucessivos pedidos de acesso aos mais variados documentos na posse da CCPJ, acabando por fazer um uso abusivo dos mesmos quando a eles tem acesso, concretamente através da publicação no “Página Um”, aliada a outras tantas sobre a CCPJ e a sua Presidente.

    Convém referir que as minhas expectativas face a esta CCPJ estão já abaixo de zero, como se pode constatar pela cobertura noticiosa e opinativa que lhe temos dedicado no PÁGINA UM. A sua inacção em diversas matérias – como o fechar os olhos às relações promíscuas entre grupos de media e determinadas empresas é um exemplo –, já não tem cura. Mas convinha que não enterrassem a própria essência do jornalismo, abrindo uma caixa de Pandora perante a passividade da classe só porque se deparam, pela primeira vez, com um jornalista que não quer ser corporativista nem agradar à classe.

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    Imaginar que se pode dar uma resposta daquele quilate a um jornalista – invocando uma norma legal, isto é, o ser “manifestamente abusivo”, porque acham os pedidos “chatos” – é dar em simultâneo “instruções” ao Governo, à Administração Pública, às empresas e a todas as entidades para tratarem, do mesmo modo, outros jornalistas.

    Para a jornalista (credo!) Licínia Girão e para o jornalista (duplo credo, porque também ensina estudantes de Comunicação Social), que assinaram a carta a mim remetida, haver um jornalista a pedir, por exemplo, actas de reuniões e documentos de remuneração (numa altura em que a CCPJ pretendia aumentar as receitas através de uma subida dos emolumentos) é “manifestamente abusivo”. Presumo que já não seria se eu lhes cantasse loas.

    Mas não me surpreendendo que a CCPJ (tal como em tempos a Entidade Reguladora para a Comunicação Social) tenha este tipo de atitudes pouco adultas (fazendo “birras”, porque os incomodam), também sei como as “coisas” funcionam em corporações – e sei muito bem o quão corporativista é a classe jornalística.

    Por isso, não me espanta, embora lamente, que, por exemplo, as minhas tentativas de telefonemas e de mensagens para o presidente do Sindicato dos Jornalistas, Luís Simões, para lhe chamar a atenção para a gravidade da reposta da CCPJ, tenham ficado sem qualquer resposta. Ainda mais porque a resposta da CCPJ lhe seguiu por mensagem de correio electrónico. Compreendo o seu silêncio, dentro do contexto da classe.

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    Afinal, por que carga de água o presidente do Sindicato dos Jornalistas teria de reagir ao PÁGINA UM, que é um “minúsculo” jornal e que ainda por cima só faz pedidos “manifestamente abusivos”? E logo pedidos manifestamente abusivos à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, onde pululam figuras tão gradas de uma imprensa onde todos se conhecem e se cruzam.

    Na verdade, ignore-se um “minúsculo” jornal que, para recordar os assuntos que levámos até às últimas instâncias, também faz pedidos manifestamente abusivos ao Governo.

    Pedidos manifestamente abusivos ao Conselho Superior da Magistratura.

    Pedidos manifestamente abusivos ao Ministério da Saúde.

    Pedidos manifestamente abusivos ao Infarmed.

    Pedidos manifestamente abusivos à Ordem dos Médicos.

    Pedidos manifestamente abusivos à Ordem dos Farmacêuticos.

    Pedidos manifestamente abusivos à Direcção-Geral da Saúde.

    Pedidos manifestamente abusivos ao Instituto Superior Técnico.

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    Pedidos manifestamente abusivos ao Banco de Portugal

    Pedidos manifestamente abusivos à Inspecção-Geral das Actividades em Saúde.

    Pedidos manifestamente abusivos à Administração Central do Sistema de Saúde.

    E tantos mais fará…

    Por isso, e pedindo desculpas (enfim, sarcásticas) por não fazermos no PÁGINA UM um jornalismo fofinho, sem abusos, e muito menos manifestos – passem muito bem com o vosso conceito de “manifestamente abusivo”. O PÁGINA UM, lamento desiludir-vos, não vai fazer o jornalismo que a maioria de Vossas Excelências deseja: jornalismo domesticado, amorfo e que se banqueteia com o poder. No dia em que tal me suceder, deixarei de ser jornalista.


    Nota final: A Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos já se pronunciou esta semana sobre uma primeira recusa da CCPJ aos documentos solicitados pelo PÁGINA UM, dando-nos inteira razão. Abordaremos este assunto, com detalhe noticioso, na próxima semana.

  • A melancolia da vida enquanto se envelhece

    A melancolia da vida enquanto se envelhece

    Título

    Memorial de Aires

    Autor

    MACHADO DE ASSIS

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Setembro de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Última obra escrita pelo grande Machado de Assis, Memorial de Aires é de uma delicadeza contemplativa, lírica mas irónica, que, ainda hoje, deslumbra quem lê este romance.

    Não tem a loucura e sarcasmo de Memórias póstumas de Brás Cubas nem o drama angustiante de Dom Casmurro, mas não lhe fica atrás, sobretudo por via de uma narrativa contemplativa mas crítica de um Brasil no último quartel do século XIX, a que acresce a forma como aborda a melancolia da vida enquanto parte do envelhecimento.

    Romance epistolar, diarístico, este memorial do conselheiro Aires, diplomata aposentado que aparecera no romance anterior, Esaú e Jacó (1904), onde era personagem e autor ficcional. consiste num vasto conjunto de cartas a um seu amigo imaginário, relatando aspectos da vida quotidiana na cidade do Rio de Janeiro, entremeadas com reflexões sobre a sociedade brasileira, ainda marcada pela escravidão e por uma forte influência europeia.

    Mas mais do que essas contemplações de um “refomado”, o romance deambula por uma série de personagens secundários, entre os quais o casal Aguiar (e a sua “orfandade às avessas”) e sobretudo a jovem viúva Fidélia – misteriosa, enigmática e supostamente inalcançável –, por quem o conselheiro Aires acaba por se apaixonar.

    A relação entre os dois transforma-se em ambiguidade e tensão, tornando-se asssim o romance numa reflexão sobre o amor e sobre as relações entre homens e mulheres naquela época.

    Sendo uma óbvia ficção, em Memorial de Aires vemos talvez a mais autobiográfica das obras de Machado de Assis, sentindo-se a envelhecer, e desse modo se encontra ali depurado toda a sua ironia e sarcasmo para, dessa forma, estabelecer uma crítica contundente à hipocrisia e ao oportunismo e aos demais vícios da natureza humana.

    Leitura imprescindível no século XXI, embora seja obrigatório ler, antes ou depois, as outras obras de Machado de Assis, incluindo os seus contos, em especial após a fase romântica.

    Destaque também para o posfácio de Abel Barros Baptista e Clara Rowland, que coordenam a colecção da Tinta da China dedicada à literatura brasileira, intitulada “Os melhores deles todos”,  e que entretanto já integra as obras Vai, Carlos!, de Carlos Drummond de Andrade, e Primeiras histórias, de João Guimarães Rosa.

  • Instituto Superior Técnico: Atenção!, acho que tens aí um covil de burlões da Ciência…

    Instituto Superior Técnico: Atenção!, acho que tens aí um covil de burlões da Ciência…


    Esqueçam a pandemia. Centrem-se nas revelações que ontem aqui apresentámos. Isto tem já apenas a ver com Ciência. Com prática científica. Com ética. Pelo menos, a pandemia per si deixou de ser a questão central da luta do PÁGINA UM sobre um infame relatório do Instituto Superior Técnico (IST) de finais de Julho do ano passado que atribuiu, quantificando, mortes directas às festas populares e festivais musicais no mês anterior.

    Foi por ser tão evidente o desfasamento entre aquilo que os investigadores do IST tinham concluído e os dados reais da incidência e da mortalidade que me levaram a solicitar o relatório daquela instituição universitária – que hoje sabemos ser o Relatório Rápido nº 52 –, bem como a metodologia e os dados numéricos usados, tanto para esse relatório como para todos os anteriores, desde Julho de 2021.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico. A ignorância com honra é preferível à inteligência sem ética.

    Num cenário habitual em meio científico – onde os investigadores têm confiança absoluta no rigor e boa-fé do seu trabalho –, haveria completa abertura para se disponibilizarem relatórios, metodologias e dados numéricos. Para ser possível a um terceiro replicar os resultados. Isto não é desconfiança; pelo contrário: é confiança. Isto é a base da Ciência.

    Mas não foi isso que sucedeu. E o que sucedeu foi uma Universidade estar no banco dos réus por recusar disponibilizar relatórios científicos.

    Mas como a juíza do processo de intimação se terá esquecido de englobar os relatórios anteriores ao Relatório Rápido nº 52 – presume-se 51 relatórios –, foi necessário recorrer para o Tribunal Central Administrativo Sul.

    Ora, o que se esperaria do comportamento do Instituto Superior Técnico?

    Talvez que o seu presidente, o catedrático Rogério Colaço, pusesse a mão na consciência, tirasse o pó à humildade científica e puxasse lustro à ética – e depois entregasse os outros 51 relatórios e os ficheiros de dados.

    Existem dois relatórios – Relatório Rápido nº 52 e Relatório Rápido nº 51 – e depois há, segundo o IST, “supostos relatórios”.

    Mas não. Ontem, o PÁGINA UM noticiou mais um episódio desta “novela IST”, que coloca a Ciência portuguesa nas ruas da amargura – exagero!, apenas a Ciência feita nos corredores, gabinetes e laboratórios do Instituto Superior Técnico.

    Em sede de contra-alegação, o IST defendeu que não deve existir qualquer alteração da sentença, porque terá ficado “apenas provada a existência do relatório intitulado Relatório Rápido n.º 52, não se provando a existência de outros elementos”, e que “cabia ao recorrido [PÁGINA UM] fazer prova da existência dos restantes relatórios, assim como, dos alegados ficheiros informáticos com dados numéricos, usados para a elaboração dos supostos relatórios.”

    Mas pergunto: o que é isto?!

    Deveria haver dúvidas sobre a existência dos relatórios que foram publicamente revelados pela imprensa mainstream sempre sob a chancela do IST? Que foram sendo sempre divulgados pela Agência Lusa, que fez fé que os viu?

    Serviram estes relatórios do IST apenas para, de tempos em tempos, alimentar a hipocondria nacional, mesmo depois de uma taxa de vacinação elevadíssima, do surgimento da pouco letal Ómicron e de (oficialmente) mais de metade da população portuguesa adquirir imunidade natural?

    Trecho das contra-alegações do Instituto Superior Técnico, para tentar convencer os juizes desembargadores da inexistência dos relatórios anteriores ao Relatório Rápido nº 52.

    Serviram para os lobistas das farmacêuticas, como Filipe Froes, usarem a imprensa para “vender o seu peixe” – leia-se fármacos das empresas que os avençam?

    Leia-se, aliás, a título de exemplo, uma notícia de 11 de Maio de 2022 no portal Sapo, a Multinews, onde se destaca que “Filipe Froes defende antecipação da 4ª dose da vacina”, sendo estas declarações enquadradas nos famigerados relatório do IST:

    O coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos, Filipe Froes, que também participou na elaboração do relatório do IST, defende ‘que há uma necessidade de voltar a estar disponível no site da DGS a informação diária relativamente ao movimento, internamento e caracterização demográfica dos indicadores’.

    Para além disso, adianta à Multinews, o ressurgimento da pandemia e a possível sexta vaga, ‘reforça a antecipação da quarta toma da vacina para a população idealmente com mais de 60 anos, independentemente de haver fatores de risco ou não’.

    É ainda necessário ‘haver acesso aos novos fármacos antivíricos e aos anticorpos monoclonais, de maneira a que as pessoas mais vulneráveis, possam encontrar a proteção que precisam sem estarem dependentes da máscara, do confinamento e da imunidade menor da vacina’, conclui.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes, na sede da Ordem dos Médicos, em 14 de Julho de 2021, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia, que previu a realização de relatórios periódicos. Filipe Froes aproveitou os relatórios para ir “incentivando” a vacinação e a compra de anti-virais comercializados por farmacêuticas com quem colabora (e tem rendimentos comerciais).

    Mas se existirem dúvidas sobre a existência dos ditos relatórios anteriores ao Relatório Rápido nº 52, então convinha que o Polígrafo fosse a correr dar bordoada nos órgãos de comunicação social que deram notícias sobre os relatórios (inexistentes?) do IST. Eis aqui uma breve selecção, apenas de 2022, com os respectivos títulos, entrada e ligações:

    26 de Janeiro de 2022

    Estudo. Portugueses imunizados após atual vaga

    Relatório do IST prevê um número de casos em isolamento acima de 1.050.000 no dia de eleições legislativas, a 30 de janeiro e aponta que a covid-19 passará a ser como a gripe.

    Relatório IST: Em meados de fevereiro é altura de “preparar o pós-covid em Portugal”

    Todos os portugueses estarão imunizados após a atual vaga da pandemia, o que deverá acontecer depois de fevereiro, e a covid-19 vai evoluir para uma “doença residente” como a gripe ou a herpes, prevê o Instituto Superior Técnico.

    15 de Fevereiro de 2022

    Covid-19. Redução acentuada do risco recomenda alívio “quase total” das medidas, refere relatório do IST

    Portugal regista uma “redução acentuada do perigo pandémico”, indica o relatório do grupo de acompanhamento da pandemia do Instituto Superior Técnico (IST), que recomenda que as “medidas em vigor sejam reduzidas de forma quase total”.

    10 de Março de 2022

    Covid-19: pandemia está a “agravar-se de forma significativa”. Portugal pode registar sexta vaga de infecções

    O relatório do IST indica que a “subida acentuada” do R(t) pode resultar numa nova vaga. O risco pandémico ainda não é muito elevado, mas os dados apontam para uma tendência de aumento dos internamentos em enfermaria e em UCI nos próximos 15 dias.

    11 de Março de 2022

    Instituto Superior Técnico admite sexta vaga de covid-19 para breve

    A ministra da Saúde, Marta Temido recusa, para já, falar numa sexta vaga da pandemia de covid-19 em Portugal, apesar do cenário ser admitido por um relatório do Instituto Superior Técnico.

    Covid-19. Portugal com transmissibilidade de 1,17 e sexta vaga “a começar a desenhar-se”, diz relatório

    Relatório do Instituto Superior Técnico indica que a incidência média a sete dias aumentou de 8.763 para 14.267 casos desde 19 de abril, o que se deve “à retirada abrupta do uso de máscara em quase todos os contextos e à nova linhagem BA.5 da variante Ómicron que começa a instalar-se” no país.

    24 de Maio de 2022

    Covid-19: mortalidade vai aumentar. Máscara é recomendada caso exista risco de contágio, diz IST

    Um relatório do Instituto Superior Técnico (IST) divulgado nesta terça-feira alerta para a subida da mortalidade por covid-19 no próximo mês. Máscaras voltam a ser recomendadas em concertos ou grandes eventos ao ar livre — e sempre que exista risco de contágio.

    Em conclusão, na Ciência não basta a inteligência. Sem ética, a inteligência (e, neste aspecto, quanto maior, pior) pode ser usada para burlas e fraudes, mesmo se, aos olhos de incautos, crédulos e ignorantes, possam parecer verdades insofismáveis.

    Cabe, por isso, a nós, não sermos incautos nem crédulos nem ignorantes, e não aceitarmos os comportamentos de Rogério Colaço e dos investigadores dos ditos relatórios – Henrique Oliveira, Pedro Amaral, José Rui Figueira e Ana Serro.

    Estou confiante que, em sede de tribunal, o PÁGINA UM obrigará o IST a revelar todos os relatórios – ou a assumir que nunca fez parte deles. Mas o trabalho essencial não cabe a nós: é tarefa dos professores e investigadores do IST, que talvez tenham mesmo de arrumar a “casa”, com umas boas vassouras de ética. Lembrem sempre que a ignorância com honra é preferível à inteligência sem ética.

  • Os assassinos e o mano do Costa que se orgulha de 2020

    Os assassinos e o mano do Costa que se orgulha de 2020


    Karol Sikora é um médico britânico com um currículo invejável a nível mundial na área da Oncologia. Poderia fazer aqui uma síntese, mas retiraria espaço para vos falar do seu artigo de opinião, nesta quinta-feira, no The Telegraph, a propósito do escândalo dos Lockdown Files, que intitulou “Os apoiantes dos bloqueios chamaram-me assassino – eles deveriam estar enojados consigo próprios” (Lockdown supporters called me a killer – they should be disgusted with themselves).

    Cito-o, integralmente, não apenas por conveniência, mas porque o seu texto não tem nada a mais nem a menos. Tem tudo, no sítio certo. As suas palavras devem – ou deveriam soar – como punhais em muitas consciências. Aqui vai:

    Opor-se à série implacável de políticas de confinamento foi uma experiência solitária e, às vezes, extremamente desagradável. Aqueles de nós que expressaram preocupação com o encerramento efectivo de um país foram rotulados como extremistas de direita, que ficavam felizes em ver milhões morrerem com a doença [covid-19]. Foi uma desgraça, legitimada por políticos de baixo nível, como Matt Hancock [ministro da Saúde da Inglaterra, no epicentro dos Lockdown Files], que estavam muito interessados ​​em promover a sua própria imagem pública. Milhares sucumbiram às medidas de confinamento destrutivas e muitas vezes inúteis que impuseram em todas as oportunidades.

    Karol Sikora num esclarecedor e aberto debate da Oxford Union Society em 29 de Novembro de 2021.

    Não haverá desculpas para a multidão latindo no apoio aos lockdowns – o estrago já foi feito, o debate mudou e o inquérito pode muito bem tornar-se num branqueamento. Os Lockdowm Files do The Telegraph prestaram um grande serviço ao interromper parcialmente essa marcha.

    Lembro-me dos dias sombrios do confinamento. As vozes do costume usando os horríveis números diários de mortes para bater e abusar sobre os críticos do confinamento, culpando-nos por cada pobre alma contida nesses gráficos e tendo imensa alegria em aumentar a linguagem vil para obter mais likes no Twitter. Muitas dessas vozes agora estão totalmente caladas sobre os milhares e milhares de mortes em excesso não causadas pela covid-19, associadas aos atrasos e suspensões decorrentes das restrições. Não me arrependo de me opor a uma variedade de políticas de confinamento e restrições e à linguagem que usei durante a pandemia – mas será que eles podem dizer o mesmo?

    Agora sabemos com certeza que algumas decisões [durante a pandemia] foram baseadas em relações públicas e de política, ao invés de Ciência e bom senso. Quando o ministro da Saúde [Matt Hancock] falava em “assustamos toda a gente até borrarem as calças” com uma nova variante, aqueles que expressaram cepticismo na época sobre a linguagem usada podem se sentir justiçados.

    Apesar de coberto por um dos mais reconhecidos jornais do Reino Unido (The Telegraph), a imprensa mainstream portuguesa mantém os seus leitores na ignorância sobre a forma como foi realizda a gestão política da pandemia no Reino Unido.

    As pessoas precisavam de factos, honestidade e um pouco de esperança para tomar as suas próprias decisões num nível aceitável de risco. Aquilo que eles conseguiram foi enganar e distorcer, minando a confiança na Saúde Pública para as próximas gerações. Hancock não tem nenhum legado para se orgulhar, mas ele era apenas um membro da brigada pró-lockdown, a grande maioria dos quais não terá sua correspondência privada espalhada por um jornal nacional. No entanto, mesmo com esses vazamentos – uma pequena percentagem da verdade real – o castelo de cartas dos confinamentos já começou a ruir. Não pode e não vai suportar mais pressão.

    Estou desesperado para que um branqueamento do inquérito da pandemia seja evitado, por um motivo simples: isto não pode acontecer novamente. Se pelo menos não fizermos as perguntas, quando outra pandemia surgir, ou a ameaça de uma, os confinamentos não podem ser a opção ideal. Os conselheiros que fizeram as recomendações anteriores não podem ser usados ​​novamente.

    A negação total de muitos, até mesmo de reconhecer o grande dano dos confinamentos, não me enche de confiança. Ver indivíduos supostamente bem qualificados realizarem uma notável ginástica mental para evitar chegar à conclusão óbvia é uma visão humilhante. A assistência médica de rotina para condições não relacionadas à covid-19 foi efectivamente negada para milhões, por meses a fio, e agora temos milhares e milhares de mortes em excesso não relacionadas com a covid-19. Honestamente, o que eles achavam que aconteceria?

    A minha caixa de correio durante os confinamentos esteve transbordando de desesperados pacientes com cancro, cujo tratamento havia sido adiado indefinidamente. Lembro-me do caso de uma mãe que teve a sua quimioterapia cancelada, levando à sua morte trágica, deixando para trás três filhos pequenos e um marido amoroso. E não é só cancros: problemas cardíacos não tratados, pressão arterial fora de controle, derrames não tratados, outras medidas preventivas esquecidas e, claro, obesidade crescente. A crise pós-confinamentos abrange todos os aspectos da saúde, físicos e mentais. Isso para aqueles que têm a sorte de receber qualquer suporte médico ou diagnóstico. Outros foram instruídos a ficar em casa e foi exactamente o que fizeram – morrendo ali sem os cuidados de que precisavam e mereciam.

    Para aqueles de vocês que se posicionaram corajosamente contra várias restrições e políticas – da minha parte, um sincero obrigado. Perdemos completamente o argumento no tribunal da opinião pública, mas esperamos que uma pequena diferença tenha sido feita. Suspeito que o clima nacional [na Inglaterra] pode ter mudado significativamente na última semana. Afinal, a luz do sol é o melhor desinfectante e a Primavera está a chegar.

    Enquanto traduzia este texto de Karol Sikora, vieram-me muitas ideias à cabeça, e também um recente tweet de Ricardo Costa – director-geral de informação da Impresa (Expresso e SIC) desde 2016 e irmão do primeiro-ministro António Costa –, a propósito de um podcast “Liberdade para Pensar”, onde orgulhosamente se falou do ano de 2020 “em que voluntariamente abdicámos da nossa liberdade”.

    Tweet de Ricardo Costa do passado dia 3 de Março, sobre o ano em que “voluntariamente abdicámos da nossa liberdade”. Ele está a tratar que continuemos a abdicar dela.

    Ricardo Costa e quase todos os jornalistas vivem num mundo paralelo, mas que impuseram ser o real. Para eles, a verdade não interessa, porque a verdade é moldável e maleável, segundo os ditames do poder. Vem nos livros de História – e a vil natureza humana não muda, infelizmente.

    Este Ricardo Costa, e muitos outros jornalistas, nada aprenderam, nem jamais assumirão os seus erros e lamentáveis posturas como jornalistas durante os últimos três anos. Nem sequer querem já saber o que são os Lockdown Files nem os Twitter Files nem nada que interfira com a narrativa que ajudaram a cimentar. São cegos, surdos e mudos para aquilo que não lhes interessa, porque têm sangue nas mãos – e talvez outras coisas nos bolsos.

    E, por isso, serão eles os melhores e mais acérrimos defensores de políticas obtusas e lesivas das populações. E estarão, como cães-de-fila, voluntaria e obedientemente, na frente de ataque quando se quiser fazer mais e pior. E estarão na linha da frente para que continuemos a abdicar da liberdade, até pensarmos que uma ditadura é uma democracia se proibirmos chamar uma ditadura de ditadura.

    man in black crew neck t-shirt standing beside woman in green and orange dress

    Ainda mais agora, que eles saborearam o doce efeito da falta de escrúpulos, temperada com boas doses de financiamento das farmacêuticas [desenvolverei o tema com factos concretos, muito em breve], e nada lhes parece acontecer que não seja o bem deles e daqueles que eles decidiram servir.

    Raiva e nojo, sinto eu neste preciso momento em que vos escrevo. Raiva pelas palavras do oncologista Karol Sikora. Nojo pelas atitudes dos jornalistas que, durante a pandemia, deram lastro a políticas assassinas e, sublinhe-se, nada voluntárias.

    Que as próximas gerações os estudem sobre o que fizeram. E que os julguem a sua memória como merecem, não apenas pelo que fizeram, mas sobretudo pelo que não fizeram.