Etiqueta: Pedro Almeida Vieira

  • Confissões de um bruxo benfiquista relapso

    Confissões de um bruxo benfiquista relapso


    Receio — e é um receio fundado — que esta crónica venha a custar-me a honra, a dignidade e até o número de sócio do Benfica. Não por ter insultado o presidente Rui Costa (ainda não o fiz), nem por duvidar da aptidão do Bruno Lage (isso já fiz, mas com elegância). O meu receio é mais grave, mais íntimo, mais pecaminoso: receio ser acusado de infidelidade mística ao Glorioso e, pior ainda, de ter facilitado, por omissão bruxuleante, o campeonato ao Sporting Clube de Portugal.

    Logo eu, que me preparo para ser condecorado com o Emblema de Prata por 25 anos de filiação ininterrupta — e, mais importante ainda, de paciência estoica. Fiz-me sócio em 2001, no dia em que Vale e Azevedo perdeu as eleições. Julguei, ingénuo, que não seria possível descer mais fundo do que aquilo. Ora, como bem sabe qualquer benfiquista com memória de pardal (como a maioria dos nossos comentadores televisivos), o Benfica consegue sempre surpreender-nos — nem que seja para pior.

    Mas o que agora confesso, com a solenidade de um herege prestes a ser excomungado, é que no passado sábado fui assistir à última jornada do campeonato ao Estádio de Alvalade, em vez de rumar à Pedreira de Braga, onde o Benfica haveria de tropeçar de cabeça na rocha minhota. Sim, estive entre os leões. E não, não fui, como devia, em missão de espionagem, sabotagem ou infiltrado benemérito. Fui por puro desleixo espiritual. E o mais grave: não usei os meus poderes.

    Sim, caros leitores. Para quem não sabe — e há sempre quem ignore o que importa — detenho conhecimentos discretos, mas eficazes, de bruxaria, via literária, adquiridos desde quando escrevi, há mais de duas décadas, Nove Mil Passos, romance em que, a páginas tantas, a estalajadeira Serafina tentou, com mais alma do que êxito, enfeitiçar o seu amado Custódio Vieira, mestre das águas do Aqueduto das Águas Livres. Se o feitiço não resultou no amor, resultou em experiência — e nisso, como nos desarmes do Aursnes e nos cruzamentos do Di María (quando lhe dá para isso), já é muito.

    Se a Serafina ficou pela tentativa, eu fui mais longe: nas minhas lides literárias, criei relações directas e cordiais com o próprio Diabo, que se prestou, em pessoa (se é que tem pessoa), a ser o narrador de dois dos meus romances: O Profeta do Castigo Divino e Corja Maldita. Ora, não sendo o Demo dado ao futebol — prefere desportos mais sanguinários como a política partidária ou a gestão hospitalar —, não deixa de prestar auxílio quando chamado. Porém, não o chamei. Usei um sucedâneo.

    Ora, o sucedâneo chama-se Mafarrico, e não é mais do que uma persona personalizada, literária e demoníaca, que criei e treino no ChatGPT. Na verdade, não se trata de um simples diabrete, mas sim de Mafarrico Leopold August von Eichenberg Montpensier, um ente de nobre linhagem com quem me divirto em tertúlias literárias e com quem troco ideias criativas.

    Se quisermos humanizar o inumanamente elegante, com ele troco ideias criativas, encontro sinónimos ou metáforas rebeldes, elimino ‘brancas’ e esquecimentos — e, não menos importante, discuto estratégias metafísicas para influenciar resultados desportivos, dentro dos limites da decência e fora da jurisdição da UEFA. Foi, pois, a ele que me dirigi na passada quinta-feira, implorando — sem falsa modéstia — bruxedos benignos, exorcismos pontuais, pequenos sortilégios de ocasião. Coisas leves. Nada que envolvesse sangue de virgem ou pactos de corrupção.

    E o bom do Mafarrico — sempre solícito — lá me expôs o seu rol de receitas: sugeriu-me, em primeiro lugar, virar uma vela verde ao contrário e mergulhá-la num copo de vinagre, como forma simbólica de cortar a sorte leonina com a acidez própria dos destinos contrariados; depois, recomendou-me a construção de um leão de papel com patas de galinha — escárnio zoológico eficaz —, para ser estrategicamente escondido debaixo da cadeira onde assistiria ao jogo, de modo a retirar bravura à fera e incutir-lhe a cobardia penugenta do galináceo.

    A seguir, propôs que escrevesse “Guimarães campeão” sete vezes num papel preto — o número não era acaso, claro está — e que o queimasse com mirra, espalhando depois as cinzas sobre um cachecol do Sporting, para ungir os minhotos com um fervor sagrado. Por fim, aconselhou que pendurasse um cacho de uvas verdes, virado ao contrário, dentro do elevador de acesso à bancada da imprensa: símbolo de queda iminente e de que os frutos da glória sportinguista ainda estavam por amadurecer.

    Receitas simples, eficazes, isentas de crime e de pecado mortal, embora talvez roçando a venialidade supersticiosa. Ora, mas fiz eu alguma destas coisas? Não fiz!

    E porquê? Por cobardia? Por esquecimento? Não, pior: por vaidade faústica. Tive receio de que, ao usar tais meios, acabasse como o bom do Fausto — enriquecido de poderes, mas depois arrastado para o Inferno com cláusulas que não lera em letra pequenina. O Diabo, como sabemos, tem um excelente advogado. E eu não queria acabar, por uma vitória no campeonato, condenado a escrever crónicas de opinião política para a CNN Portugal ou, pior ainda, para o Público.

    E assim me abstive. Não invoquei o Diabo, não acendi velas, não queimei papéis, não inverti uvas. Fui incompetente. Fui pusilânime. E por minha culpa — minha tão grande culpa — o Sporting foi campeão e o Benfica tropeçou na Pedreira como quem escorrega numa casca de banana do Lidl.

    Não venham agora dizer que foi o Pote ou o Gyökeres por terem marcado contra o Guimarães na segunda parte. Não me falem da incompetência do Pavlidis ou do Bruno Lage, ou das tibiezas do António Silva. Não culpem os empates e as derrotas ridículas. A culpa foi minha!

    Tive ao meu dispor um arsenal de mezinhas, simpatias e sortilégios de primeira linha e nada fiz. E por isso me penitencio. E por isso escrevo esta crónica, à laia de confissão pública, para que saibam todos — sobretudo os benfiquistas de coração — que o Diabo me perdoe, mas fui fraco.

    Se me quiserem agora expulsar de sócio, que o façam. Farei como Dante: descerei ao Inferno e regressarei mais forte. Porque já prometi ao Mafarrico, ao verdadeiro, que no próximo domingo no Jamor não falharei. Se for preciso, vendo a alma por aquele caneco. Ou melhor: alugo-a, com cláusula de recompra, desde que o Benfica vença.

    Porque uma Taça é uma Taça. E eu, penitente ou não, já sou do tempo em que o Benfica ganhava sempre — mesmo quando jogava mal.

  • A tragédia como forma de silêncio

    A tragédia como forma de silêncio

    Título

    Naquele dia

    Autora

    LAURA ALCOBA (Tradução: Luísa Benvinda Álvares)

    Editora

    Dom Quixote (Março de 2025)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Há livros que parecem escritos não para serem lidos, mas para nos confrontarem com o que preferíamos não saber. Naquele Dia, da escritora Laura Alcoba, é um desses livros. Evita o alarido, recusa a grandiloquência, abdica de qualquer manobra de sedução narrativa — e, no entanto, impõe-se com a força de um sismo moral. Baseado num caso verídico ocorrido em Paris em 1984, Naquele Dia propõe uma reconstrução fragmentária, mas obsessivamente delicada, de um acto de violência doméstica que escapa a toda a lógica e que, por isso mesmo, exige escuta.

    Não é um romance no sentido clássico, e também não se entrega à crueza documental. Laura Alcoba faz — e fá-lo com uma contenção que roça o ascetismo — uma reconstituição de um espaço de ruína emocional através de três figuras: a mãe, Griselda, que mergulha num estado de desespero absoluto; o pai, Claudio, impotente e ausente; e a filha, Flavia, que sobrevive. Mas o verbo “sobreviver” aqui não é simples estatística vital: Flavia sobrevive à morte física, mas não ao colapso do mundo. A sua voz — ou melhor, os seus gestos, os seus silêncios, os seus desenhos infantis — atravessam o livro como restos de uma linguagem interrompida.

    Há neste gesto literário algo de Truman Capote, mas sem teatralidade. A escritora argentina, exilada desde a infância, inscreve-se na tradição da literatura do real, mas recusa o voyeurismo. Não há aqui nenhum esforço de dramatização. Nem julgamento, nem explicação. Alcoba compreende — como poucos — que há actos que não podem ser reduzidos a uma lógica causal, nem sequer à linguagem da psicologia. Aquilo que houve naquele dia — e nos dias que o antecederam — foi um paroxismo. Um termo árido, sim, mas talvez o único que se aproxima da natureza do que se passou: o colapso súbito, íntimo, surdo, da humanidade numa mulher. A maquilhagem de Griselda, obsessiva, torna-se não apenas máscara mas metáfora. E o frio de Paris, omnipresente, nunca é apenas meteorológico.

    A escrita, depurada até ao osso, é também um acto ético. Laura Alcoba não toma o lugar de ninguém: recolhe, escuta, recompõe. Nunca tenta explicar o que não é explicável. Nunca escreve em nome das vítimas — escreve perto delas. E, talvez por isso, Naquele Dia se torne mais do que um livro: uma forma de presença, uma tentativa de devolver ao espaço público uma história que parecia ter sido soterrada por neve e silêncio.

    Não deixa de ser significativo que a escritora, embora vivenda na França há décadas, ainda guarde um olhar argentino sobre o Mundo. Há no seu estilo uma densidade hispano-americana, uma estranheza dos exilados que vivem entre línguas. E se o livro nos fala de um drama familiar, fala-nos também do exílio — esse estado permanente de perda de referência e de reconstrução forçada da identidade. Perguntar se Laura Alcoba ainda se sente argentina é talvez redundante: aquilo que ela escreve só poderia ser escrito por alguém que traz um país inteiro dentro da memória.

    Naquele Dia não é um livro agradável, mas é um romance necessário. Não nos reconcilia com o mundo, mas também não nos entrega ao desespero. Obriga-nos apenas — e já é tanto — a parar, escutar e reconhecer que há actos humanos que não devem ser julgados à pressa, nem esquecidos em silêncio. Devem, isso sim, ser habitados. E, com a delicadeza quase litúrgica que lhe conhecemos, é isso que Laura Alcoba faz — e nos convida a fazer com ela.

  • O poder da ilustração

    O poder da ilustração

    Título

    Arena

    Autor

    JOÃO FAZENDA

    Editora

    Tinta da China (Novembro de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Reunindo duas décadas de cartoons publicados pelo autor, inicialmente na revista Visão e, mais recentemente, no jornal Expresso, o livro ‘Arena’, de João Fazenda é uma obra que transcende a simples compilação de ilustrações; trata-se de um testemunho visual de um período marcado por acontecimentos políticos, sociais e culturais, capturados com a perspicácia de quem observou o mundo social e políticos com olhos atentos e um traço inconfundível.

    Sabe-se que, na imprensa, o título é por excelência o primeiro convite à leitura, que se insinua ao leitor, que o desafia e despertar curiosidade para a leitura. Mas, se o título é a primeira porta, as imagens – sejam fotografias ou ilustrações – são o impacto visual que pode determinar a permanência do olhar. As fotografias têm o poder de documentar, de capturar a realidade de forma imediata e emotiva. Contudo, mesmo quando uma imagem fotográfica pode valer mais do que mil palavras, há algo que frequentemente lhe escapa: a capacidade de transcender o momento captado e de oferecer uma crítica, uma reflexão ou uma síntese daquilo que se observa.

    E é aqui que entram as ilustrações, e, em especial, o trabalho de artistas como João Fazenda. As ilustrações não apenas acompanham ou embelezam; elas dialogam, desconstroem e reconstroem a realidade, conferindo-lhe novos significados. A ilustração editorial tem o poder único de condensar, num único quadro, aquilo que milhares de palavras talvez não consigam dizer com tanta clareza: a ironia, a denúncia, o absurdo ou até a esperança de uma situação. E João Fazenda é, sem dúvida, um mestre dessa arte.

    Por isso mesmo, se o objectivo inicial da ‘contratação’ de João Fazenda terá sido sobretudo ilustrar os textos de Ricardo Araújo Pereira, o humorista em muita razão, mesmo conhecendo-se a sua providencial pseudo-humildade auto-depreciativa, quando no prefácio escreve: “Como é evidente quando se abre o jornal, não é o desenho do João Fazenda que ilustra os meus textos, é o meu texto que acompanha os desenhos do João Fazenda. A primeira coisa que os leitores veem é o desenho. A seguir, tentam descobrir (os que se dão a esse trabalho) de que modo é que o texto se relaciona com ele”.

    Esta inversão de papéis sublinha, de facto, a força do traço de Fazenda, capaz de capturar a atenção e instigar uma leitura diferente, mediada pela imagem. E isso é mesmo verdade: folheando o livro, mesmo para quem leu pouco textos de Ricardo Araújo no original, se lembra de muitas das ilustrações- Até porque o traço de João Fazenda é único e marcante, com o seu estilo minimalista, satírico e profundamente simbólico, com formas simples e cores sólidas, mostra-se capaz de comunicar mensagens que combinam reflexão e leveza, evidenciando temas sociais e políticos muito abrangentes.

    Uma única nota: do ponto de vista editorial, teria sido útil, e não demasiado dificultoso, identificar, no final do livro, as datas das ilustrações, bem como dos textos originais. Em alguns casos, ajudaria a relembrar os “acontecimentos”, para quem os viveu; e para os mais jovens, seria um auxiliar para ‘identificar’ os protagonistas que eventualmente tenham saído da ‘cena política’ (que são pouco, porque são ‘perenes’, cá no burgo).

  • Relatos do dono do Felício

    Relatos do dono do Felício

    Título

    Aventuras de um alferes em Angola

    Autor

    PEDRO BELTRÃO

    Editora

    Oficina do Livro (Julho de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Os testemunhos sobre guerras configuram um estilo literário singular, situado na confluência entre a História e a literatura, e ainda por vezes o jornalismo. Este género caracteriza-se por apresentar narrativas pessoais, frequentemente na primeira pessoa, que procuram documentar eventos marcantes de conflitos armados, oferecendo perspectivas humanas e íntimas sobre acontecimentos de dimensão colectiva. Estes textos transcendem muitas vezes o mero relato de factos, explorando as emoções, os dilemas éticos e os traumas vividos pelas pessoas comuns, soldados, vítimas civis ou até líderes políticos.

    Historicamente, os testemunhos de guerras têm servido como fontes primárias de valor inestimável para historiadores e leitores interessados nos conflitos que moldaram o mundo. No século XX, por exemplo, obras como o ‘Diário de Anne Frank’, que documenta o terror vivido durante a perseguição aos judeus na Segunda Guerra Mundial, tornaram-se ícones universais deste género. Outro exemplo é ‘Se isto é um homem’, de Primo Levi, que descreve com uma linguagem crua e profundamente reflexiva a sua experiência como prisioneiro em Auschwitz. Estes testemunhos não apenas relatam os factos, mas também humanizam as estatísticas de guerra, trazendo para o primeiro plano as vidas que se perderam ou foram irrevogavelmente alteradas.

    A literatura testemunhal de guerra em Portugal também tem os seus expoentes. Durante a Primeira Guerra Mundial ficou o testemunho de Jaime Cortesão, com o seu ‘Memórias da Grande Guerra’, como médico voluntário do Corpo Expedicionário, ou ainda ‘Nas trincheiras da Flandres’ e ‘Calvários da Flandres’, de Augusto Casimiro. Na Guerra Colonial (1961-1974), o último conflito militar com participação portuguesa, abundam os relatos, mas nem sempre com grande divulgação. Talvez o mais marcante seja ‘D’este viver aqui neste papel descripto’, compilação de cartas que o médico e escritor António Lobo Antunes escreveu à família durante a sua estadia em Angola. Estas cartas oferecem uma visão mais pessoal e directa do impacto emocional da guerra, complementando os seus romances.

    Podendo inserir-se neste género, o livro ‘Aventuras de um alferes em Angola’, que retrata a experiência de Pedro Beltrão, gestor e escritor – autor, por exemplo, dos romances do género histórico ‘Tempo de esperança’ e ‘O mordomo do rei’ -, em Angola entre 1963 e 1967, acaba por ser mesmo mais um livro de ‘aventuras’ do que um livro sobre a guerra, porque, ao longo das suas 190 páginas, há pouco de conflito (uns tiros e umas desmontagens de minas), e quando relatado, se faz sem grande emoção ou detalhe.

    Já no caso das ‘aventuras’, estas vão-se sucedendo ao longo do livro, ao ponto de o macaquinho Felício, que Pedro Beltrão comprou a um soba e chegou a trazer para Portugal no fim da comissão, se tornar mesmo um quase-protagonista, ou o ponto mais interessante.

    De leitura fácil, e num relato escorreito e bem escrito, o livro de Pedro Beltrão pode também servir como documento sobre um conflito que, pelo menos em Angola, aparenta não ter sido, pelo menos na zona onde Pedro Beltrão esteve, tão traumatizante. Mas, convenhamos, que lhe falta profundidade e substância. Grande história, sim, mesmo se ficcionada, daria a vida do macaquinho Felício que, depois de uma rocambolesca fuga na Estrada da Luz, acabou doado a um sanatório da Parede, onde foi mascote dos doentes durante muito tempo, mas sem que alguém lhe tenha dado testemunho. Essa sim seria uma grande história, a atender à ‘personalidade do bicho’ apenas aflorada por Pedro Beltrão nas suas ‘aventuras’ como alferes. 

  • Uma caminhada pela alma catalã

    Uma caminhada pela alma catalã

    Título

    Viagem a pé

    Autor

    JOSEP PLA (tradução: Helena Pita)

    Editora

    Tinta da China (Agosto de 2024)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    A recente edição portuguesa de ‘Viagem a Pé’, pela Tinta da China, é uma oportunidade de ouro para revisitar um dos nomes maiores da literatura catalã, Josep Pla (1897-1981), escritor prolífico e cronista perspicaz, conhecido pela sua capacidade em capturar o quotidiano com uma prosa simples, mas profundamente poética. Por isso mesmo, e pela quantidade assinalável de obras neste género, é considerado um dos mestres europeus da literatura de viagem.

    Esta obra em concreto, que inicialmente se diluía no vasto universo de textos deste autor, foi publicada apenas em 1949, e mais do que um relato de itinerância, é um exercício de contemplação.

    ‘Viagem a Pé’ reporta ao passado do autor, abordando uma caminhada do jovem Pla, ainda estudante de Direito, pelas paisagens da Baixa Empordà, sua terra natal. A Catalunha rural dos anos 1910, com as suas quintas, aldeias e gentes simples, é o pano de fundo da sua narrativa, num período de tensões políticas em Espanha, mas também de relativa estagnação económica em regiões rurais. Contudo, na viagem de Pla, não há espaço para discursos épicos sobre nações ou progresso; há apenas a terra, o céu, o vento e conversa

    No contexto da literatura de viagem, ‘Viagem a Pé’ não segue os moldes do aventureirismo em busca de espectáculo ou surpresas. Não há destinos exóticos nem episódios grandiosos. É, antes, um registo íntimo e descontraído, onde o acto de caminhar é uma forma de introspecção e de ligação à terra. Aliás, Pla tenta recuperar uma tradição literária que remonta ao filósofo Jean-Jacques Rousseau ou ao escritor Robert Louis Stevenson, para quem a caminhada não seria apenas um meio de locomoção, mas um exercício filosófico.

    Nesta breve narrativa, Josep Pla oferece-nos assim uma janela para a paisagem catalã e, sobretudo, para os seus habitantes. O leitor caminha ao lado do narrador, sente o cheiro das pastagens, ouve o silêncio das estradas poeirentas e percebe a dureza (e beleza) de uma vida simples. As descrições são feitas num estilo curto mas preciso, através de uma prosa despretensiosa que, por vezes, se assemelha a um diário. A obra destaca-se sobretudo pela capacidade de transformar o vulgar em arte, e por oferecer uma experiência literária onde o ritmo da leitura se confunde com o compasso da caminhada.

  • O (bom) regresso do escriba-mor

    O (bom) regresso do escriba-mor

    Título

    À descoberta das Ilhas Selvagens

    Autor

    JOSÉ PEDRO CASTANHEIRA

    Editora

    Tinta da China (Junho de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    A crónica (e a literatura) de viagem constitui um género literário que explora a narrativa de experiências reais, frequentemente sob uma perspectiva pessoal e intimista, em diálogo permanente com o (futuro) leitor. Entre as diversas formas de literatura de viagem, o diário de bordo, ou ‘logbook’, destaca-se por ser um registo minucioso de uma lenta jornada marítima, mas onde se tenta sobretudo captar, na aparente monotonia da viagem, os detalhes mais ‘épicos’.

    Daí que, excepto se envolver uma pescaria (onde a ficção sobre o número e o tamanho dos peixes capturados é permitida), quem se abalança para a escrita de um diário de bordo tem de ser um observador minucioso, atento às nuances do mar, do céu, dos sons e das emoções, o que desafia o autor a buscar detalhes estimulantes tanto na oceanografia física como na meteorologia, nas variações acidentais dos humores e amores da tripulação, e tudo isto temperado, com bastante sal, em reflexões interiores, criando-se assim uma narrativa que quebre uma aparente inacção, sobretudo se em causa não estiver uma guerra, claro.

    Não sendo já possível, em pleno século XXI, ‘desbravar’ agora os mistérios dos mares – como fizeram Cristóvão Colombo, James Cook ou mesmo Richard Henry Dana –, não deixa, contudo, de haver espaço para os ‘logbooks’ mais descontraídos, que já não relatam o desconhecido e o perigoso, mas sim as peripécias divertidas de quem olha para uma viagem marítima com deleite. E é também por deleite, mais que por conhecimento, os leitores devem saber ao que vão…

    Sendo, assim, um relato (também) documental em ‘conversa’ com o leitor, o diário de bordo, pela sua estrutura, permite que se acompanhe, ‘em tempo real’, as sensações e as reflexões do viajante, daí que convenha muito que o cronista seja ‘dextro’ para que o relato não seja um ‘sinistro’.

    Ora, um diário de bordo escrito por José Pedro Castanheira, um dos mais cotados jornalistas da sua geração, agora já ‘reform(ul)ado – mas ainda com carteira profissional devidamente actualizada (CP 204) –, será, desde logo, uma garantia de qualidade literária, tanto mais que não estamos perante um ‘novato’ neste registo: em Agosto de 2022 já ele publicara ‘Volta aos Açores em quinze dias’, sobre o qual se escreveu aqui, com os mesmo companheiros de (der)rota. Este livro recebeu, aliás, o Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga, atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores no ano passado.

    Recebeu-o, é certo, e atrevo-me a dizer que imerecidamente, por uma simples razão: este ‘À descoberta das Ilhas Selvagens’ é francamente superior – e, assim sendo, ficará prejudicada a probabilidade de concederem a José Pedro Castanheira um novo prémio quase em ano consecutivo.

    Seja como for, deve dizer-se que neste seu segundo diário de bordo, o escriba-mor (como é apresentado) José Pedro Castanheiro está muito melhor, mais solto, mais irónico, mais contemplativo e reflexivo, mais informativo, mais compreensivo com os azares e sortes nos fluídos terrenos dos mares, que descreve com minúcia e perícia.

    Melhor, muito melhor do que o ‘Volta aos Açores em quinze dias’, onde as maravilhas da travessia pelo arquipélago perdido no meio do Atlântico acabaram substituídas pelo omnipresente temor à pandemia, de sorte que se tornou mais um ‘diário de bordo covídico’, passado, acho, mais em terra do que no mar, porquanto uma parte subastancial desse desse livro acabou escrito em confinamento no quarto de um hotel.

    Passada essa tormenta e alcançada Trapobana, temos, portanto, um excelente regresso de José Pedro Castanheiro ao seu melhor, ao melhor do jornalismo ao serviço da arte da literatura de viagem. 

  • Maniqueísmos, ou o Médio Oriente sob viés

    Maniqueísmos, ou o Médio Oriente sob viés

    Título

    O dia que mudou Israel

    Autora

    HELENA FERRO DE GOUVEIA

    Editora

    Oficina do Livro (Setembro de 2024)

    Cotação

    6/20

    Recensão

    Este livro deve começar a ser lido a partir das duas últimas páginas de texto, excluindo as derradeiras, onde consta uma bibliografia de ‘trazer por casa’, sob a forma de fontes (listagem de órgãos de comunicação social) e de ‘Estudos’, com uma dezena de referências bibliográficas de obras, todas, sem excepção, publicadas entre 2020 e 2023.

    Bom, em abono da verdade, perante essa imagem de pedantismo – elencar fontes que, pela exiguidade, mostram afinal uma parca investigação por parte do(a) autor(a) –, talvez bastassem essas duas páginas de bibliografia para nos decidirmos a ler (ou não) este ‘O dia que mudou Israel’, de Helena Ferro de Gouveia.

    Mas peguemos no texto das tais últimas duas páginas desta obra, que tem a grande vantagem de ser curta. Helena Ferro de Gouveia termina escrevendo: “Israel não é culpado de tentar obstinadamente sobreviver”. E isto depois de, em parágrafos anteriores, já ter manifestado que “a indignidade humana alcançou os israelitas ali, na sua fronteira, sem fuga possível” e que o conflito do Médio Oriente “também é a dor dos palestinianos”, mas para logo a seguir, de uma forma simplista, e ao melhor estilo do ‘Omo lava mais branco’, acrescentar, em português algo macarrónico: “As crianças inocentes de Gaza, também elas vítimas do Hamas.”

    Livros como este, o de Helena Ferro de Gouveia, ‘nascem’ não para informar ou esclarecer, ou ainda para reflectir, mas sim para emocionar, expondo o sofrimento de uma das partes no conflito do Médio Oriente, e assim justificar acções ou reacções. É a tradicional obra de propaganda de um dos lados com uma visão maniqueísta, algo problemático para quem se orgulha dos anos de jornalista e de uma suposta mundividência por já se ter trabalhado “em mais de cinquenta países em quatro continentes”. Esta visão, em que se retrata um lado como vítima absoluta e o outro como opressor incontornável, é pouco compatível com a complexidade histórica e política do conflito israelita-palestiniano, um dos mais longos e intrincados do Mundo contemporâneo, mas sobre o qual a autora passa intencionalmente ao lado.

    Mostra-se inegável que o ataque do Hamas em 7 de Outubro do ano passado foi de uma brutalidade atroz, e os relatos de Helena Ferro de Gouveia captam essa crueldade através de uma linguagem carregada de adjetivos fortes, descrevendo a dor dos sobreviventes e a desolação dos familiares das vítimas. Esses detalhes crus e directos até poderiam ser relevantes como testemunho, mas não aparenta ser essa a intenção. Helena Ferro de Gouveia usa as páginas do livro para, expondo a dor, justificar uma retaliação insana. O princípio judaico de “olho por olho”, que muitos já consideram desumano, tem estado rapidamente a ser ultrapassado por uma espiral de vingança, onde a resposta israelita se traduziu numa carnificina contínua, atingindo alvos civis, e ampliando ainda mais o ciclo de violência.

    Não se pode ignorar o sofrimento do povo israelita, especialmente daqueles que foram alvo de ataques terroristas, assim como é impossível olhar para a realidade dos palestinianos sem reconhecer as suas décadas de marginalização, perda de território e direitos básicos. Quando se descreve apenas uma parte da equação, seja ela qual for, perde-se a capacidade de promover uma verdadeira reflexão sobre a coabitação desejável entre povos, culturas e religiões em tempos que não se querem obscuros. E é exactamente aqui que o discurso de Helena Ferro de Gouveia se torna limitado. A sua liberdade para expor a dor israelita, com uma clareza indiscutível, mostra-se necessária, mas, sem a contrapartida de uma análise profunda das razões que alimentam o ódio do outro lado, o resultado acaba por ser um texto enviesado.

    No seu prisma sectário, ‘O dia que mudou Israle’ apenas cumpre, lamentavelmente, uma única função: alimenta as narrativas de uma das facções, ‘massajando’ os seus argumentos e fornecendo combustível para se ver como vítima absoluta ou herói inquestionável. E isso nunca foi bom para a paz. Nem este livro é bom sequer para ser lido, excepto para quem apreciar a visão de Helena Ferro de Gouveia. Para esses sim, recomenda-se a leitura, assumindo-se que, para esses, à classificação atribuída nesta recensão até se deverá acrescentar um 1 na posição das dezenas.  

  • Uma história banal

    Uma história banal

    Título

    Perla, a cadelinha poderosa

    Autora

    ISABEL ALLENDE & SANDY RODRÍGUEZ (ilustração)

    Editora

    Porto Editora (Maio de 2024)

    Cotação

    10/20

    Recensão

    Isabel Allende, um dos nomes mais consagrados da literatura latino-americana, e ainda hoje recordada como autora de uma das obras mais marcantes do realismo mágico, o soberbo ‘A casa dos espíritos’ (1982), teve, na verdade, a sua estreia literária com um livro infantil, em 1974, intitulado ‘La abuela Panchita’, que teve continuidade nesse mesmo ano com ‘Lauchas y lauchones, ratas y ratones’. Julgo nunca terem sido publicados em Portugal.

    Ao longo dos anos, Isabel Allende, de nacionalidade chilena, apesar de acumular com a cidadania norte-americana, esteve sempre um pé no público mais jovem, escrevendo diversas novelas juvenis, entre as quais a trilogia ‘As memórias da Águia e do Jaguar’, publicadas em Portugal na primeira década do presente século na extinta Difel.

    Em 2024, aos 82 anos, e meio século depois dessa sua estreia, Isabel Allende regressa ao livro infantil com ‘Perla, a cadelinha poderosa’, que pode deslumbrar o público-alvo, mas levanta questões sobre os desafios que os escritores reconhecidos pelo público adulto enfrentam se se aventuraram na literatura para crianças.

    E há uma certa frustração quando se folheia, e se ‘lê’ esta ‘Perla, a cadelinha poderosa’, que conta a história de uma cachorrinha pequena e corajosa que, mesmo com seu tamanho diminuto, se mostra heróica em diferentes situações, assim ‘ensinando’ a Nico como se deve comportar durante o ‘bullying’ escolar. Embora a premissa da superação por meio da coragem seja uma ideia interessante, especialmente quando destinada ao público infantil, o enredo não se destaca pela originalidade. A superação de desafios aparentemente impossíveis face ao ‘tamanho’ é uma metáfora clássica e amplamente utilizada na literatura para crianças, mas talvez se pudesse aguardar que, com Isabel Allende, essa abordagem trouxesse qualquer elemento inovador ou surpresa narrativa. Nada: é uma banal história, embora simpática.

    A ausência de qualquer realismo mágico – a assinatura de Allende em obras como ‘Eva Luna’ ou ‘A Casa dos Espíritos’ –, que, por certo, seria bem acolhido pela ‘criançada’, é talvez o que mais marca este livro, com ilustrações da norte-americana Sandy Rodríguez que ‘não aquecem nem arrefecem’. A história é linear e mais do que previsível.

    Resta assim saber se os pais – ou até avós – que cresceram a ler os romances de Isabel Allende –, vão comprar este livro só por causa do nome da autora, e, com isso, a autora ganha um cobres. Pode até suceder, mas, confessa-se, que este pequeno livro, num género que não deve ser considerado menor, nada acrescenta de positivo, pelo contrário, para a bibliografia da escritora chilena.

  • Explicar um drama sem fim

    Explicar um drama sem fim

    Título

    Holocaustos

    Autor

    GILLES KEPEL (tradução: Luís Filipe Pontes)

    Editora

    Dom Quixote (Julho de 2024)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    A análise de um tema complexo do quotidiano – excluindo assim visão distante do historiador – varia significativamente conforme o meio utilizado, cada um oferecendo diferentes níveis de profundidade e tempos de abordagem. As notícias diárias de um jornal, por exemplo, oferecem-nos informações ‘frescas’ e imediatas sobre eventos atuais, mas com uma profundidade superficial, focando os factos essenciais devido à necessidade de atualidade. Por outro lado, uma reportagem longa numa revista mensal proporciona um espaço maior para investigação, permitindo uma visão mais detalhada e contextualizada, embora ainda limitada pela extensão e pelo público-alvo.

    Os documentários, por sua vez, podem exigir semanas ou meses de produção, concedem uma análise ‘conduzida’ por imagens, entrevistas e uma narrativa envolventes.

    Em contraste, um livro, dependendo do autor e do tema, oferece, geralmente, uma exploração abrangente e crítica, permitindo captar a complexidade de um determinado assunto com uma profundidade que os outros ‘géneros’ não alcançam. Mas um livro, tal como também um documentário, corre um elevado risco de desactualização em assuntos de grande ‘dinamismo’ ainda não concluído.

    É esse o caso de ‘Holocaustos’, uma interessantíssima obra de Gilles Kepel, um reconhecido cientista político e arabista francês, especializado no Médio Oriente contemporâneo e antigo director do Programa Oriente Médio e Mediterrâneo da Université Paris Sciences et Lettres. Publicado em finais de Março deste ano em França, e logo traduzido em Julho para português, pela Dom Quixote, este livro debruça-se sobretudo sobre os acontecimentos posteriores ao ataque do Hamas a Israel em 7 de Outubro do ano passado, contextualizando-se, de forma excelente (com mapas bastante elucidativos, nas suas diversas ramificações, incluindo fora da região de Israel e Palestina, nomeadamente nos países muçulmanos adjacentes, e não apenas no Líbano ou Irão, e também na Turquia, no eixo China-Moscovo e, claro, nos Estados Unidos.

    E, por esse motivo, a análise de Gilles Kepel, embora não falhe absolutamente nada naquilo que este conflito se está a tornar – uma guerra (quase) global, não apenas bélica mas de valores –, começa a torna-se desactualizada por, entretanto, terem saído de cena, inopinadamente ou não, alguns dos ‘protagonistas’, como são o caso de Joe Biden, que já não será o candidato democrata às eleições presidenciais norte-americanas, e de Hassab Nasrallah, o líder do Hezbollah, morto no passado dia 27 de Setembro em Beirute num ataque israelita.

    Independentemente destes ‘percalços’ dos acontecimentos, esta obra de Gilles Kepel ajuda bastante a compreender o que está, e estará, em jogo, incluindo o misticismo religioso, e sobretudo abre portas sobre o papel dos Estados Unidos na maior radicalização da posição israelita em torno de uma narrativa nacional fundamentalista e belicista. Mesmo com Kamala Harris agora em jogo, o cientista político francês não tem dúvidas em concluir que Benjamin Netanyahu estará a torcer por uma vitória de Donald Trump, o que revela que ‘isto’ vai, infelizmente, continuar nos próximos meses, não sendo de admirar porque não pára há mais de sete décadas.

  • Um lento quebrar de barreiras

    Um lento quebrar de barreiras

    Título

    Portugal: uma História no feminino

    Autora

    ANA RODRIGUES OLIVEIRA

    Editora

    Casa das Letras (Maio de 2024)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Até ao século XX, o papel das mulheres em Portugal foi amplamente condicionado por factores sociais, culturais e religiosos, que as relegaram para uma posição mais do que secundária. A Igreja Católica, com a sua profunda influência na vida social e moral do país, desempenhou um papel crucial na perpetuação da ideia de que a mulher deveria ocupar um lugar de submissão e discrição, sobretudo no contexto da família e do lar. O ideal feminino era o de uma figura devota, casta e, enfim, ignorante e pouco ou nada interventiva, cuja principal função era ser esposa e mãe, enquanto as esferas públicas e de poder eram exclusivamente dominadas pelos homens.

    A sociedade portuguesa, profundamente enraizada em valores patriarcais, reforçou durante séculos esses papéis tradicionais. A Educação, quando acessível às mulheres, era limitada a áreas consideradas apropriadas para o género feminino, como bordado, música ou religião, não incentivando uma formação intelectual mais robusta ou a participação activa na vida pública.

    Não surpreende assim que sobre um país que nasceu no século XII, o livro ‘Portugal: uma História no Feminino’, de Ana Rodrigues Oliveira, professora e investigadora da Universidade Nova de Lisboa, destaque, nas suas primeiras 533 páginas (num total de 626, incluindo bibliografia e um precioso índice onomástico) apenas figuras femininas ligadas à nobreza, como rainhas, regentes ou esposas de monarcas. Em muitos casos, mesmo de mulheres preponderantes na História de Portugal, não se duvide que a sua ascensão dependeu apenas e só ao berço e não tanto aos méritos que foram desenvolvendo.

    Somente a partir do início do século XX, as mulheres portuguesas começaram a conquistar maior visibilidade e a reclamar um papel mais activo na sociedade, mas o advento da República, em 1910 e, mais tarde, o Estado Novo trouxeram mudanças ambíguas para a condição feminina: por um lado, havia uma ênfase renovada nos papéis tradicionais de género, mas, por outro, também se abriam novas oportunidades, nomeadamente no campo da educação e do trabalho.

    Essa é a parte do livro, porventura, mais interessante, onde se releva o pioneirismo e ‘lutas’ de diversas mulhers que ‘ousaram’ desafiar as normas, desde Carolina Beatriz Ângelo, que reinvindicou o direito de voto das mulheres, até Maria de Lourdes Pintasilgo, a primeira (e única, até agora) primeira-ministra de Portugal. No meio, estão ainda mais sete mulheres com mais do que suficientes méritos para aqui constarem.  

    No entanto, lendo a obra de Ana Paula Rodrigues – numa escrita fluída, aqui ou ali demasiado fria e ‘professoral’, por vezes abusando de um estilo enciclopédico, sobretudo quando, no início dos capítulos, apresenta as biografadas -, mostra-se  constrangedor que um livro publicado em 2024 termine com Maria de Lourdes Pintasilgo, que chegou ao topo em 1979, embora sem ganhar eleições.

    Quais serão as razões para, em meio século de democracia, e com a universalização do ensino, que faz com que hoje as mulheres tenham mais formação do que os homens, Ana Rodrigues Oliveira não consiga incluir uma mulher nascida em data posterior a 1930, o ano de nascimento de Maria de Lourdes Pintasilgo? Pode ter sido apenas por ‘pudor de historiadora’, em não abordar tempos hodiernos, mas se pensarmos bem, talvez não seja apenas essa a causa. Faltam ‘candidatas’ para entrar num livro deste género. Na verdade, talvez as mulheres ainda não tenham conseguido, e infelizmente, romper o último bastião do poder masculino. Se é isso, agora a ‘culpa’ não pode ser assacada somente aos homens, até porque há mais eleitoras do que eleitores. E isso é como o ‘código postal’: meio caminho andado.