Etiqueta: Paulo Moreiras

  • À bolina culinária pelo melhor bago

    À bolina culinária pelo melhor bago

    Título

    O arroz português: um mundo gastronómico

    Autor

    FORTUNATO DA CÂMARA

    Editora

    Clube do Coleccionador dos Correios (Setembro, 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Começo com uma declaração de interesses: sou apaixonado pelo Arroz Carolino português. Faz parte da minha infância, das minhas memórias gustativas e das minhas aventuras culinárias na recriação de receitas tradicionais.

    Posto isto, foi com elevado entusiasmo que recebi a notícia de mais um livro escrito por Fortunato da Câmara (n. 1977), ainda por cima, versando o Arroz em toda a sua plenitude, desde as origens até às novas variedades autóctones de Arroz português, culminando com um excelente sortido de receitas para o leitor confeccionar, onde se especifica o tipo de variedade de Arroz a utilizar, medida que importa implementar cada vez mais para melhor informar o consumidor e o ajudar no seu processo de decisão de compra.

    O Arroz (da família das gramíneas e do género Oryza), que o historiador Fernand Braudel (1902-1985), considerou como uma das três “plantas da civilização” (a par do trigo e do milho), alimenta “3 500 milhões de pessoas no planeta, sendo cultivado em todos os continentes”. Em termos europeus, somos os maiores consumidores, com cada português a ingerir 17 kg/18 kg de Arroz anualmente, contra uma média europeia de 5,5 kg/ano por pessoa. Tal voracidade valeu-nos o epíteto de os “asiáticos da Europa”.

    Entre os especialistas em botânica, conforme refere o autor, “é aceite que a família [género] Oryza spp. se reparte entre 23 e 27 espécies diferentes”, embora, em diferentes bases de dados internacionais, estejam até ao momento “identificadas mais de 450 espécies de plantas Oryza, com variações a partir de espécies e subespécies distribuídas por todo o mundo”.

    Segundo Fortunato da Câmara, “a domesticação da planta Oryza a partir do seu estado selvagem foi um primeiro passo, quando há mais de 10 000 anos o homem de épocas remotas começou lentamente a colher e a tratar de um modo agrícola plantas e cereais espontâneos até conseguir fazer com eles as suas próprias culturas.” Os estudos arqueológicos apontam “duas grandes regiões de domesticação do Arroz onde foram achados pedúnculos ancestrais de espiguetas ainda intactas, em zonas de arrozais dos rios Yangtzé, na China, e do Ganges, na Índia”.

    Por esta altura, já o amável leitor terá notado que escrevo “Arroz” com o vocábulo grafado assim, em letra maiúscula. Tal como expresso pelo autor, também eu considero que este cereal “merece tratamento distinto como nome próprio, pois esta palavra única abraça o mundo e tem um papel maior na história da humanidade como alimento preponderante”.

    Há muito tempo que Fortunato da Câmara, jornalista e crítico gastronómico, tem vindo a defender não só a qualidade dos produtos de origem portuguesa mas também a sua boa confecção, promovendo uma educação do gosto. Nesse desiderato, enquadra-se perfeitamente o Arroz português, tão celebrado no receituário nacional mas que ainda não se alcandorou ao patamar de excelência que merece, a par de outras variedades de Arroz internacionais, que brilham em celebradas especialidades culinárias: “Comemos muito, mas descuidamos ainda mais em garantir que fazemos receitas perfeitas, como os melhores risotos, paelhas e afins que fazem o nome dos outros.”

    Em Portugal, existem dois tipos de Arroz cultivados, os “agulhas” e os “carolinos”, “nas margens e estuários dos rios Mondego, Sorraia, Tejo e Sado.” Destes, o Arroz Carolino do Baixo Mondego (2015) e o Arroz Carolino das Lezírias do Ribatejo (2008) possuem denominação de Indicação Geográfica Protegida (IGP). Apenas o Arroz Carolino do Sado ainda não tem esta denominação.

    Almarelo, Alvario, Amarelês, Arbelo, Campino, Ferónio, Lezíria, Saloio e Tardio são os nomes das variedades existentes de Arroz português. Não obstante, o grão carolino Ceres e o grão agulha Maçarico tornaram-se, em 2017, nas duas primeiras variedades autóctones de Arroz do séc. XXI. Em 2019, foi acrescentado a este rol o grão carolino Diana e em 2021, o carolino Caravela, que se espera venha a ser comercializado ainda neste ano de 2024: “Este Caravela promete uma descoberta no mundo dos carolinos, ao permitir que o bago se mantenha inteiro e cremoso, absorvendo sabores, trazendo um resultado final diferente do que por vezes sucede com a mistura de diferentes variedades na mesma embalagem.”

    Não só somos os maiores consumidores europeus como estão identificadas mais de 100 receitas de Arroz, abrangendo todas as regiões de Portugal, “entre livros portugueses de referência publicados desde o século XVII e recolhas populares.” Esta diversidade de receitas oferece-nos “uma espécie de fresco sobre a capacidade inventiva de o receituário português pintar com sabores de Arroz o nosso mapa gastronómico com uma distinção assinalável, que se destaca a nível internacional.” Fortunato da Câmara apresenta mesmo uma lista com 118 receitas onde o Arroz é protagonista, que vão desde o “Arroz de Cabidela”, na Carne, até ao “Pudim de Arroz”, na Doçaria.

    Apesar de toda esta riqueza culinária, ainda hoje somos confrontados com “a versão Arroz branco ‘soltinho’ de bago agulha, que surge como acompanhamento básico quase omnipresente nas ementas de inúmeros restaurantes de cozinha popular económica, fazendo parte da temível e discutível parceria ‘Arroz & batata frita’ que se alastrou de norte a sul do país.”

    Em confronto com a actual conjuntura culinária arrozeira, e como acto de resistência, propõe Fortunato da Câmara, em boa hora, um ilustre conjunto de receitas de “Arrozes regionais, tradicionais e populares” de norte a sul e ilhas, confeccionadas pelo Chefe Luís Gaspar (n. 1991). Nas receitas, são sugeridas as variedades de Arroz que devem se usadas na confecção destes pratos tão emblemáticos, pormenor que raramente, ou nunca, sucede encontrar-se em livros de culinária, sejam eles nacionais ou internacionais. À exceção do “Arroz de lampreia”, todas as receitas foram preparadas pelo Chefe Luís Gaspar, “em que foram utilizadas sete variedades de Arroz carolino, duas variedades de Arroz agulha e duas variedades de Arroz médio, no total de onze bagos de Arroz diferentes.” Neste capítulo, assinale-se “a inclusão, em estreia absoluta, de duas variedades autóctones de grãos carolino 100% desenvolvidas em Portugal nos últimos vinte anos: o Caravela e o Ceres.” Um triunfo da ciência em prol da gastronomia: conhecer e saber fazer para melhor comer.

    Para finalizar, destaque para a emissão de selos intitulada “Arroz Português”, que acompanha o livro, evidenciando algumas das especialidades culinárias mais emblemáticas do receituário nacional com selos dedicados ao Arroz de Cabrito, Arroz de Bacalhau, Arroz de Grelos e Arroz de Lampreia.

    Soberbo este périplo arrozeiro proposto por Fortunato da Câmara, manifestando-se como um elogio mas também uma verdadeira defesa do nosso património culinário, que tanto nos agasalha o espírito e aguça o paladar.

  • As singularidades culinárias de um país entre terra e mar

    As singularidades culinárias de um país entre terra e mar

    Título

    Património alimentar de Portugal

    Autor

    MARIA MANUEL VALAGÃO

    Editora

    Fundação Francisco Manuel dos Santos (Maio, 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    “Os homens não se medem aos palmos”, resmoneavam as velhas ao borralho em tempos de antanho. E, tal como os ditos cujos, também os livros não se medem nem pelo seu número de páginas nem pelo tamanho da sua lombada para daí se aquilatar o tesourinho que guardam dentro. Com a habilidade de um relojeiro, Maria Manuel Valagão, investigadora em Sociologia da Alimentação, que há muitos anos estuda estas temáticas, consegue neste pequeno livrinho ir montando um delicado puzzle, constituído por diferentes peças, acerca daquilo que é feito o nosso património alimentar.

    A informação espraia-se com sabedoria ao longo das páginas, muito bem doseada, na quantidade certa, tocando vários pontos, abrindo perspectivas, sem explicações excessivas ou detalhes exaustivos, aflorando dados pertinentes q.b. Neste breve volume, o curioso leitor encontra um verdadeiro vade-mécum sobre aquilo que comemos em Portugal e, acima de tudo, o porquê. Que motivações nos conduziram a esta culinária e como ela se mesclou com o nosso modo de ser e de viver. Antes de avançar uma ressalva deve ser feita, tal como salientou a investigadora: “Nestas páginas, concentro-me somente em Portugal continental, já que, sendo dele tão distintos em posição geográfica e culturas alimentar e gastronómica, os arquipélagos da Madeira e dos Açores mereciam abordagens autónomas.”

    Além da Introdução, a autora articulou esta odisseia por seis capítulos: “No Atlântico, Uma Identidade Mediterrânica”, “Património Alimentar e Mar”, “Das Plantas e dos Animais”, “Tradições Culinárias: Oralidades e Patrimónios”, “Conviver e Celebrar” e “Considerações Finais”, a que se juntam uma bibliografia e algumas notas.

    De acordo com a investigadora, “a grande variedade dos ecossistemas existentes no território, aliada à diversidade cultural de que temos usufruído ao longo dos tempos, contribuiu para a profusão de produtos tradicionais portugueses, precioso património preservado nos livros e manuscritos de cozinha e na tradição oral, como testemunho vivo na cozinha quotidiana.”

    Muito deste legado decorre, não só da influência do Atlântico, como denominador comum, mas também “o determinismo geográfico ditou, por seu turno, a singularidade mediterrânica de Portugal”, do qual fizeram parte muitas civilizações que por aqui passaram e “deixaram a sua cultura e connosco trocaram produtos e técnicas.” De tudo isto, “em quase 900 anos de história”, construiu-se um património alimentar nas diferentes regiões portuguesas, vivo e colectivo, transmitido de geração em geração, e que enformou “uma síntese de todas essas influências”.

    Durante muito tempo, a cozinha portuguesa caracterizou-se por ser essencialmente de subsistência e frugalidade, onde as pessoas retiravam o máximo proveito dos recursos existentes, promovendo a reciclagem e a reutilização dos produtos, mas expandindo a criatividade culinária e que soube deixar-nos belos exemplares como as açordas, as migas, as sopas, entre tantas outras iguarias.

    “Parte significativa das nossas tradições e saberes gastronómicos nasce de uma cozinha familiar de subsistência com acentuado carácter inventivo, procurando bons sabores com poucos elementos”, acrescenta a autora, revelando que “do pouco, é possível fazer-se muito; do comum, é possível criar-se o original e um sabor surpreendente.” Tal como este livro.

    Rapioqueiro me confesso, tanto da mesa como da biblioteca. Há muito tempo que não encontrava um livro tão simples mas tão rico na forma como comunica o seu conteúdo. Tal como um amuse-bouche, mas de uma simplicidade arrebatadora e pleno de sabores profundos e delicados, num convite à descoberta do nosso tão querido e sápido património alimentar. Leiamos, aprendamos e degustemos, que a vida são dois dias.

  • O fiel amigo lascado em 1001 curiosidades

    O fiel amigo lascado em 1001 curiosidades

    Título

    Bacalhau: uma história global

    Autor

    ELISABETH TOWNSEND (tradução de Pedro Bernardo)

    Editora

    Bookbuilders (Dezembro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    “A minha música parece ter nela um gosto de bacalhau”, terá dito em certa ocasião o mais célebre compositor norueguês, Edvard Grieg (1843-1907), e quem somos nós para duvidar da sua interpretação. O certo é que o bacalhau é o rei incontestado de todos os peixes, tanto na Noruega como em Portugal, conferindo o seu gosto a muitos aspectos da nossa História e da nossa Culinária.

    Através de um breve livro (184 pág.), Elisabeth Townsend revela-nos um vasto conjunto de curiosidades acerca do afamado gadídeo, commumente conhecido como bacalhau-do-atlântico, ou mais pomposamente Gadus morhua, presença habitual sob múltiplas formas à mesa dos portugueses desde tempos imemoriais.

    O livro encontra-se dividido em seis capítulos: “O que é o bacalhau?”; “O bacalhau alimentou a Era dos descobrimentos, 500-1500”; “As guerras do bacalhau e a expansão da pesca, 1500-1976”; “O comércio leva o bacalhau aos quatro cantos do mundo, 1400-1970”; “A sustentabilidade no século XXI” e por fim um capítulo que ensina a “Conservar, comprar e preparar o bacalhau”. Destaque para um conjunto de páginas a cores extra-texto com reproduções de cartazes, quadros ou fotografias alusivas ao dito cujo, assim como à secção dedicada a receitas de bacalhau, que vão desde 1393 até aos dias de hoje, oriundas de vários países. De entre elas, salientamos a receita de Soufflée de morue, da autoria de Auguste Escoffier, a do Bacalao a la Vizcaína, ou ainda as nossas tradicionais de Bacalhau à Brás ou a do Bacalhau à Gomes de Sá.

    De acordo com a autora, o bacalhau-do-atlântico “tem entre 4 e 5 milhões de anos”, e não só foi testemunha como protagonista de alguns dos mais extraordinários momentos da história mundial, servindo de alimento para as explorações levadas a cabo pelos Viquingues nos mares do Norte e a sua chegada à América do Norte, ou para nutrir as tripulações portuguesas no caminho marítimo para a Índia.

    Aliás, Portugal, por causa dos Descobrimentos, foi um dos países responsáveis pela difusão do consumo de bacalhau salgado por todo o mundo, incluindo a variedade de confecções que lhe está associada. De entre as muitas receitas destacamos o esparregado de bacalhau, em Angola, confeccionado com bacalhau salgado, folha de mandioca, pimenta-da-guiné, pimento verde e óleo de palma, ou o chutney de bacalhau, em Goa.

    Apesar da sua abundância, não existem muitas espécies de bacalhau no reino piscícola. Além do bacalhau-do-atlântico (Gadus morhua), apenas se conhecem outras duas espécies pertencentes ao género Gadus: o escamudo-do-alasca (Gadus chalcogrammus) e o bacalhau-do-pacífico (Gadus macrocephalus). Dúvidas ainda subsistem acerca da natureza do bacalhau-da-gronelândia (Gadus ogac), a fim de se apurar que “é da mesma espécie ou se é vagamente aparentado com o bacalhau-do-pacífico”. Mas de todos eles, aquele que tem tido “o melhor desempenho comercial do mundo” e que se tornou “um alimento global” é sem dúvida o bacalhau do Atlântico Norte. Infelizmente, hoje em dia, devido ao aumento do seu consumo e à pesca excessiva, estamos “confrontados com a ameaça de extinção deste alimento essencial.”

    O grande bacalhau-do-atlântico é um peixe cheio de apetite e um omnívoro por excelência: “No estômago de bacalhaus atlânticos já se encontraram objectos inimagináveis, não comestíveis: uma aliança de noivado, parte de uma dentadura, fiapos de lã e roupas, botas velhas, cigarreiras, latas de óleo e bonecas de borracha, entre outras coisas”. Isso mesmo nos ilustra o pintor Pieter Bruegel na sua obra “Os peixes grandes comem os pequenos” (1556), reproduzida nesta edição.

    No meio de todas estas curiosidades, Elisabeth Townsend informa-nos de que “o maior bacalhau de que há registo”, foi pescado à linha, em Maio de 1895, ao largo da costa do Massachusetts (E.U.A.), pesava 96 quilos e media mais de 1,8 metros. Sobre o tempo de vida de um bacalhau, ficamos a saber que vai “de algumas horas a mais de 20 anos”, sendo que “as estimativas variam entre 20 a 25 anos, mas hoje em dia raramente passam dos 15 anos”. E como conseguimos calcular a sua longevidade? Pois bem, pelos vistos a Natureza encarregou-se de nos deixar uma pista: “Os cientistas descobriram que o bacalhau tem um osso no ouvido, ou otólito, no cérebro que pode ser usado para determinar a idade, tal como se faz com os troncos de árvore, quando contamos os anéis.”

    Para terminar, a autora revela mais uma curiosidade. Sabia que a Nigéria é um grande consumidor de bacalhau seco? Seguramente que a maioria dos leitores desconhecia este facto. Tal ficou a dever-se à Guerra Civil da Nigéria (1967-1970), também chamada de Guerra do Biafra, onde milhares de pessoas morreram devido à fome. No âmbito da ajuda internacional que o país recebeu no pós-guerra, contava-se a participação da Noruega, precisamente, com uma doação de bacalhau seco, uma vez que tal não carecia de refrigeração e continha todos os nutrientes essenciais para alimentar os nigerianos. “Hoje em dia, o bacalhau seco faz parte da dieta nigeriana e é uma parte importante da cultura culinária da Nigéria”, expressa em múltiplas confecções, onde tudo deste magnífico peixe se aproveita e não há desperdício.

    Eis um livro pequeno, breve, que se lê de um fôlego, mas abarrotado de curiosidades que nos aumentam a afeição que já manifestamos por este fiel amigo. Que ele nunca nos falte à mesa.

  • O gracioso inventário da cornadagem

    O gracioso inventário da cornadagem

    Título

    Rol de cornudos

    Autor

    CAMILO JOSÉ CELA (tradução de Afonso Praça)

    Editora

    Quetzal (Março de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Há livros que, pela sua importância, curiosidade ou sátira, não devem nunca deixar de ter pouso garantido nos livrescos escaparates. Este é um deles. Publicado em Espanha no ano de 1976, dois anos depois, pela mão do tradutor José Martins Garcia, conheceu tradução em Portugal, numa edição de Fernando Ribeiro de Mello/Edições Afrodite, agitando as águas de um país que ainda se espraiava na apreciação dos novos aromas da liberdade, deixando para trás os olores bafientos da outra senhora, terrunho vincadamente católico e de arreigados costumes quanto à natureza e limpeza das frontes masculinas. Vinte e três anos corridos, e antes do novo milénio, eis que nova edição arriba às livrarias portuguesas, com diferente tradução, desta feita sob a responsabilidade de Afonso Praça (1939-2001) e edição da Editorial Notícias. Edição essa que agora a Quetzal, recupera, em boa hora, com ligeiras correcções ou pequenas alterações.

    O certo é que, tanto em Portugal como em Espanha, existe uma forte tradição de cornudagem, daí que o nobelizado Camilo José Cela (1916-2002) tenha deitado o olho aos diversos espécimes a fim de recensear o fenómeno. Além disso, recordemos que na Espanha de 76 o divórcio ainda não era consentido, pelo que o número de cornudos deveria ser imenso.

    Diz-se que o cornudo é o último a saber. Agora já não há razões para isso. Basta consultar este rol e enfiar a carapuça para não se denunciar diante dos outros. São 363 verbetes, de A a Z, incluindo o K e o W, para que nenhum espécime se sinta excluído ou marginalizado. Há cornudos que chegam para todos: “Não se trata de um livro, mas apenas de um conjunto de verbetes eruditos colecionados com o único propósito de facilitar uma ferramenta ao sábio que a queira utilizar”, esclarece o autor. O inventário abre com o “Cornudo à aerossol” e encerra com o “Cornudo Ziehen-Oppenheim”.

    Que se saiba, e disso Camilo José Cela nos dá conta no texto de abertura Prooemium galeatum, já antes, ao longo dos séculos, outros autores haviam aflorado o tema da cornudagem, buscando as origens deste terrível achaque social, assim como a sua melhor compreensão, lançando cada um o seu alvitre, sempre de acordo com o ar do seu tempo, que esta coisa de cornos nunca foi sopa que se tragasse sem sobressaltos ou amofinações.

    Todavia, apesar dos muitos chistes, pilhérias ou facécias que se alinhavaram, o primeiro a dedicar-lhe verdadeira atenção e análise científica foi o filósofo francês, Charles Fourier (1772-1837), ao que se sabe, o primeiro a sistematizar, à moda de Linneu, a ordem natural dos cornudos no mundo, com o seu trabalho intitulado Les Cocus ou Hiérarchie du Cocuage (1808), coligindo desta maneira uma vasta informação existente acerca dos diversos espécimes que andavam dispersos na natureza. Nem de propósito, neste Rol de Cornudos, Cela presta-lhe humilde homenagem In Memoriam, em página destacada.

    De referir, aliás, para que não se perca o fio à meada, que esta eminente obra de Charles Fourier teve duas edições em Portugal: a primeira, Quadro analítico da corneação, tradução de Aníbal Fernandes, edição &Tc. (1980); e a segunda, Dos cornudos: suas espécies e tipos, tradução de Helder Guégués, edição Cavalo de Ferro (2004).

    De entre os vários livros que Dom Camilo escreveu, este é sem dúvida o mais marginal, ousado e jocoso, demonstrando toda a verve, irónica e satírica, que o caracterizavam, não só como pessoa mas também como escritor.

    Para que o leitor não fique ougado perante o desfilar destes acepipes, aqui seguem alguns exemplares, em jeito de amuse-bouche, uma vez que o banquete literário se anuncia assaz lauto e farta-brutos. Deliciem-se!

    Cornudo caracol. O cornudo adepto da helioterapia, isto é, aquele que, pondo os corpinhos ao sol, fica todo satisfeito. É espécie dada à contemplação e que, além dos cornos, não tem mais nada na cabeça.

    Cornudo cinegético. Aquele que enfeita os cornos compensa de perdiz. É espécie que, à sua escala, pertence à alta sociedade, mas faltam-lhe normas morais.

    Cornudo clister. Aquele que supõe que os cornos admitem o enema de água de rosas. É espécie que confunde a sua situação com os signos do zodíaco mal delineados.

    Cornudo pasmado. Cornudo que, ao abrir os olhos, fica mais espantado do que o necessário. É espécie flatulenta em séries ímpares.

    Cornudo xenófobo. Cornófobo que revela ódio ou hostilidade ao cornófilo estrangeiro. Costuma ser espécie forreta (francesa ou de qualquer modo vinculada à sua cultura) que poupa apenas por poupar. Os seus confrades são, muitas vezes, os mortos mais ricos do cemitério.

  • A picar também se castigam os costumes

    A picar também se castigam os costumes

    Título

    O piolho viajante

    Autor

    ANTÓNIO MANUEL POLICARPO DA SILVA

    Editora (Edição)

    Palimpsesto (Novembro de 2023)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    Quem diria que as picadas de um piolho do século XIX ainda hoje provocassem comichão na literatura portuguesa. E é isso mesmo o que tem vindo a fazer O piolho viajante nas suas sucessivas edições, desde que saiu do prelo em Lisboa na forma de folheto no ano de 1802.

    A autoria desta “obra maior da literatura portuguesa menor”, como a classificou João Palma-Ferreira (1931-1989), investigador e professor de Literatura Portuguesa, andou durante séculos envolta em mistério, uma vez que os folhetos haviam sido publicados de forma anónima. Contudo, após inúmeros debates, estabeleceu-se que o seu autor foi António Manuel Policarpo da Silva (ca 1790-ca 1819), “livreiro-editor, estabelecido em Lisboa durante muitos anos com loja na Praça do Comércio, debaixo da arcada do antigo Senado, ou Câmara Municipal”, excelente pouso e atalaia “para captar todo o pitoresco da cidade e para conhecer as tricas da cabala literária”, nas palavras de João Palma-Ferreira, que dedicou cerca de cinco anos, “entre 1962 e 1972”, a coligir em alfarrabistas todas as aventuras e carapuças deste piolho errante, que posteriormente foram sacadas à luz, após mais de 120 anos de esquecimento, na editora Estúdios Cor em Novembro de 1973, meses antes do 25 de Abril de 74.

    Esta nova edição de O piolho viajante, da responsabilidade da Palimpsesto, regressa às livrarias pela mão de João Filipe Palma-Ferreira, filho do investigador e professor de Literatura Portuguesa, precisamente no momento em que se assinalam cinquenta anos daquela primorosa edição realizada por seu pai.

    Composto por 72 carapuças, O piolho viajante é uma das obras literárias portuguesas mais interessantes e divertidas, que conheceu “uma extraordinária divulgação em Portugal” e no Brasil, entre 1802 e 1854, com os seus folhetos “impressos em papel vulgar, escritos ao estilo picaresco, mas com uma qualidade assombrosa”, que não só mantinham uma periodicidade incerta como circulavam de mão em mão. Apesar da sua popularidade, a obra “não obteve o favor de nenhuma crítica nem os elogios dos patriarcas letrados do tempo”, acabando por “lentamente se eclipsar e sofrer o destino de outras notáveis obras populares que preencheram os ócios da burguesia, satirizaram os costumes e registaram um sem-número de particularismos da vida do País nos finais do século XVIII e primeiras e agitadas décadas do seguinte.”

    Através das andanças e desandanças deste pícaro piolho, por cujas cabeças passa e repassa, vislumbramos “a miséria, a falta de higiene (…), a estupidez, a maldade, o vício, a brutalidade (…), a cupidez, a baixeza, o ciúme, a desonestidade, a esperteza, a tolice e a imbecilidade” daqueles que então cirandavam pelas ruas de Lisboa, num “retábulo terrível de verdades”, que, na opinião de João Palma-Ferreira, “a história oficiosa escondeu, ou que a literatura culta nunca se atreveu a divulgar com o mesmo desplante com que o fez Policarpo da Silva”, expondo nestas picarescas aventuras “os processos de sobrevivência, os hábitos alimentares, as toscas diversões, a poesia miserável, o vestuário sórdido, a medicina corrupta, a farmacopeia mixordeira” existente na capital de um país que “levava sessenta anos de atraso em relação à Europa”.

    Em boa hora João Palma-Ferreira exumou esta obra “para a colocar no escano que lhe pertence, que realmente lhe pertence na história da literatura de crítica social e de sátira de costumes em língua portuguesa e para aceitar defender-lhe a excelência de alguns capítulos como dos melhores que, neste aspecto, e no domínio popular, até agora se escreveram em Portugal”, obra essa que, de acordo com João Palma-Ferreira, reconduz o leitor “para o convívio de um dos mais ricos e desprezados sectores da literatura portuguesa, desde Gil Vicente a D. Francisco Manuel de Melo, desde os panfletários do século XVII aos esquecidos ironistas do século XIX, desde a Arte de Furtar às sátiras de Tolentino”, destacando-se as qualidades do autor, tais como “a agudeza (…), a vivacidade dos grandes frescos que nos deixou, a loquacidade das aventuras mas, sobretudo, o seu espírito crítico, entre desiludido, cruel, hipócrita e inteligentíssimo”.

    Nos tempos sérios em que vivemos, é de saudar a reedição desta obra satírica, pujante de mordacidade, e que ela possa trazer-nos, com o seu refinado humor, algum conforto de espírito e estímulo intelectual para enfrentar as lutas que se avizinham. A picar também se castigam os costumes.

  • A divina gastronomia das beiras

    A divina gastronomia das beiras

    Título

    Receitas que contam histórias

    Autor

    AA. VV. (org. Associação das Aldeias Históricas de Portugal)

    Editora (Edição)

    LeYa (Novembro de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Ler este livro é um castigo, um tormento, ou antes, uma verdadeira Via Sacra, como quem visita todas as capelinhas do Calvário, carregando aos ombros a cruz da gula, em que cada capítulo se revela como um abismo de tentações. Mergulhar na leitura deste livro, e na cornucópia de receitas que nos dá a conhecer, é como entrar de mão dada num antro de perdição culinária. Aqui e ali, são várias as receitas que nos titilam o paladar, quase como um convite para que tomemos o caminho da cozinha e avancemos à descoberta destes sabores beirões.

    O conteúdo deste livro é ditado pela geografia das Aldeias Históricas de Portugal, encontrando-se o dito dividido em duas partes: a primeira intitulada “Receitas que Contas Histórias”, com textos da autoria de Olga Cavaleiro e Marta Gonçalves; e a segunda dedicada ao tema “O Vinho das Aldeias Históricas: História, Tradição e Formas de Consumo”, com texto assinado por Constança Vieira de Andrade, Virgílio Loureiro e Maria Pilar Reis.

    As Aldeias Históricas abrangem um vasto “território repartido pela clássica divisão Beira Alta, Beira Baixa, Beira Central”, que engloba 12 municípios e onde os rios que os atravessam servem como elementos referenciais, “como os vasos comunicantes, agregadores da uniformidade e diferenciadores da diversidade, de um território que encerra dentro de si várias Beiras para além das distinções habituais”: o rio Côa, que liga Trancoso, Castelo Mendo, Sortelha, Castelo Rodrigo, Almeida, Marialva; o rio Mondego e a sua importância para Linhares da Beira e Piódão; o rio Zêzere, unindo Castelo Novo e Belmonte; e por fim, o rio Ponsul, influenciando Idanha-a-Velha e Monsanto. Não só os rios caracterizam e dão corpo às práticas alimentares destes territórios como também o seu “coração telúrico” formado pela Serra da Estrela, da Gardunha, da Marofa, da Malcata e do Açor.

    Para cada aldeia, apresenta-se informação acerca “Da Paisagem”, da “Arqueologia Alimentar”, dos “Patrimónios de um Calendário Alimentar”, “A Matança”, “O Natal”, “O Entrudo, a Quaresma e a Páscoa”, com indicação de “As Receitas do Quotidiano e dos Trabalhos Agrícolas”, onde o “cruzamento da informação documental e dos testemunhos recolhidos junto da população” permitiu “descrever e definir a identidade gastronómica de cada aldeia histórica”, bem como fixar as “singularidades alimentares de um território de modo a criar instrumentos úteis que permitam diferenciar a sua oferta turística”.

    De acordo com as autoras, “mais do que buscar a origem das receitas, o princípio do sabor, importou trazer à luz a emoção de cada receita, procurar o conteúdo que a contextualiza. Sozinha, escrita numa folha branca, uma receita é quase vazia. Acompanhada por um sorriso, ou por um rosto de emoção, a receita conta histórias, acompanha-nos para o resto da vida.”

    No capítulo dedicado ao vinho, somos surpreendidos por um recorrido histórico sobre a implantação da vinha nestes territórios, desde os primórdios até aos dias de hoje, sendo que a “Denominação de Origem Beira Interior ainda não tem três décadas de existência”, com destaque para um rol muito interessante dedicado às principais castas da Beira Interior, revelando todo o seu potencial vitivinícola. Felizmente, ainda há muito para descobrir e inovar.

    Em boa hora se resgata do olvido e se preserva em letra redonda todo este património culinário que enobrece uma região, as suas gentes e a sua transmissão às gerações vindouras. Um trabalho exaustivo, meticuloso, mas ao mesmo tempo humano, de partilha e de cumplicidade, na relação estreita com as pessoas, verdadeiras arcas da memória culinária destes territórios.

    Um livro para ler lentamente, como quem segue confortável a bordo de uma canoa, rio abaixo, ao sabor da corrente, deliciando-se com as histórias que aqueles territórios contam. Um livro com muitos tesouros dentro e, acima de tudo, um legado para o futuro, para que a memória não se olvide e a identidade se reforce. Não esquecer é sempre um acto de resistência.

  • Ler a Bíblia de faca e garfo

    Ler a Bíblia de faca e garfo

    Título

    A Mesa de Deus – Os Alimentos da Bíblia

    Autora

    MARIA LECTICIA MONTEIRO CAVALCANTI

    Editora (Edição)

    Quetzal (Novembro de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Como todos talvez saibam, a Bíblia continua a ser não só um dos livros mais lidos e traduzidos no mundo, como também um dos mais estudados, interpretados e analisados, servindo o seu conteúdo a um surpreendente manancial de abordagens diferentes. Nos últimos tempos, uma dessas abordagens diz respeito aos alimentos mencionados na Bíblia, bem como aos utensílios, as práticas à mesa, aos animais, plantas, entre muitas outras referências de igual curiosidade e importância.

    Depois de, em 2011, o Chef Luís Lavrador ter dado à estampa Ao sabor da Bíblia (edição Casino Figueira, que registou outra publicação em 2017 na editora Alêtheia), eis que surge uma nova dissertação em língua portuguesa acerca da temática da alimentação na Bíblia, desta feita pela mão de Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti (n. 1950), jornalista e investigadora de gastronomia, que nasce após uma conversa entre a autora com o então padre Tolentino Mendonça, que assina o texto de abertura do livro.

    “Entrar na Bíblia pela porta da cozinha é um argumento mais sério do que se possa supor. E também mais espiritual”, assinala Tolentino Mendonça, uma vez que o livro oferece “estratos complementares de conhecimento: constitui uma espécie de micro-história da Bíblia”. De acordo com o agora Cardeal, a autora precisou de mais de uma década para concretizar este projecto, que, nas suas palavras, “não é apenas um ensaio exaustivo sobre a mesa bíblica: é um convite a entrar, um abrir da mesa, uma coreografia de odores, uma prática do saborear”.

    Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti leu e releu a Bíblia tendo o cuidado de anotar todas as referências ao tema: “E em cada passagem revela hábitos do povo de Deus, incluindo os alimentares: os sabores estão por toda a parte, do fruto proibido à Última Ceia, do maná no deserto do Sinai aos pães de cevada da Galileia, dos peixes secos do lago de Tiberíades (…) ao vinho que jorrava das talhas de uma casa em Caná”.

    Ficamos assim a saber que “a cozinha da Bíblia era feita com uma grande quantidade de ervas, especiarias, cereais e leguminosas, trazidos em caravanas da Índia e da Península Arábica, que eram usados na preparação dos pratos e no fabrico de pão e cerveja”, que “os hebreus utilizavam azeite de oliveira; da uva, faziam vinho e vinagre; com o leite de cabra, ovelha e vaca, preparavam queijos frescos ou secos” e “adoçavam os produtos com mel de abelha”. De todos os alimentos, “o mais importante foi sempre o pão”.

    Este livro revela um trabalho minucioso, de filigrana, na recolha de citações referentes à alimentação, todas elas com indicação do respectivo versículo, “desde os livros mais antigos (Pentateuco), até aos posteriores (Novo Testamento), do primeiro (Génesis) até ao último (Apocalipse)”, com notas acerca do contexto histórico, social ou religioso, igualmente cheio de menções a outras obras literárias como a Ilíada, a Odisseia, O Épico de Gilgamesh.

    O livro, naturalmente, está recheado de referências, numa abordagem muito interessante, completa e abrangente, onde se vislumbram as influências históricas da actual Dieta Mediterrânica. Mas também se mencionam os animais domesticados para a alimentação ou para outras finalidades, como o gado bovino, que, além da carne, também fornecia leite, queijo e couro, sendo a sua carne especialmente utilizada em ocasiões especiais. O gado caprino, desde o cabrito ao cordeiro, da cabra à ovelha, era o tipo de carne mais presente nas mesas da época.

    Acerca de aves, a Bíblia é profusa na referência de muitas espécies, embora para a alimentação algumas fossem consideradas impuras. Já aquelas permitidas “eram quase sempre assadas; mas também podiam ser salgadas e secas ao sol, ou cozidas e conservadas em gordura dentro de grandes recipientes”.

    Não sendo possível aqui referir todas as suas singularidades, apenas deixo umas breves notas assaz curiosas e inusitadas que a leitura deste livro proporcionou. Por exemplo, os alimentos estranhos que se encontram mencionados na Bíblia, como os insectos que então se comiam, como gafanhotos ou grilos, sendo João Baptista um dos mais gulosos, pois “preferia comê-los com mel” silvestre. Os excrementos de pessoas ou de animais, em determinadas situações, “também serviram de alimento”. Mas havia também quem se alimentasse de cinza, “do próprio vómito” ou o mais extremo, praticasse o canibalismo.

    Um livro que seguramente não deixará ninguém indiferente, seja qual for a orientação religiosa do leitor, pois uma coisa é certa: todos precisamos de comer e o mais importante é saber aquilo que comemos e como comemos.

  • Um repasto de encher a alma

    Um repasto de encher a alma

    Título

    Histórias e curiosidades à mesa

    Autor

    VÍRGILIO NOGUEIRO GOMES

    Editora (Edição)

    Marcador (Outubro de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Tendo em conta a época natalícia que se aproxima, muito dada a bródios e a oferendas, eis o livro ideal para as mentes curiosas se empanturrarem sem problemas de consciência, tal a cornucópia de histórias e curiosidades que Virgílio Nogueiro Gomes (n. 1949) nos serve, que são um regalo e bem nos satisfazem o conhecimento acerca destas coisas do comer e do beber.
    Como verdadeiro e acérrimo defensor da gastronomia portuguesa, da sua autenticidade e da sua boa confecção, Virgílio Nogueiro Gomes tem vindo ao longo dos últimos anos a manifestar as suas opiniões, defesas ou increpações através de inúmeros formatos, sendo a crónica um deles e que pratica com obstinada regularidade na sua página online (www.virgiliogomes.com).

    Na Nota Introdutória, o investigador em História da Alimentação confessa que este livro surge agora por insistência dos leitores habituais do seu site, que lhe haviam manifestado o desejo de ver impressas a maioria das suas crónicas. 

    Embora a presente edição não seja a transcrição completa dos textos que Virgílio Nogueiro Gomes publicou nesse espaço, são antes “uma seleção” do autor, “juntamente com textos publicados em outras obras”, sendo alguns inéditos, e outros alterados ou actualizados.

    Assim, o autor dividiu o livro em três grande capítulos: o primeiro, dedicado às Histórias e Curiosidades, com textos “que abordam momentos históricos interligados com os alimentos”, que vão desde “Macarons à Portuguesa” até “São Lourenço, padroeiro dos cozinheiros”, das “Sopas de cavalo cansado” à “Coleção de cardápios de Olavo Bilac” ou a “Tradição à mesa, ou a educação do gosto”, assunto tão corrente nas exposições do autor.

    No segundo capítulo, intitulado, Produtos, Histórias e Estórias, Virgílio Nogueiro Gomes discorre acerca de produtos e ingredientes e a maneira de como eles chegaram até nós. Este é um capítulo muito interessante, uma vez que o autor não só nos dá um enquadramento desses produtos ou ingredientes que entram na culinária portuguesa, como nos traça um roteiro de várias receitas confeccionadas por todo o país onde esses produtos ou ingredientes são protagonistas, como por exemplo o Alho, “produto fundamental na cozinha portuguesa”, os doces confeccionados com azeite (Económicos, Dormidos, Bolas Sovadas). Destaque para o texto que aborda a Banha de Porco e a Doçaria Portuguesa ou a simples e humilde cebola.

    Para o terceiro capítulo, Receitas, Histórias e Curiosidades, o autor deixou um apanhado de histórias acerca de algumas receitas, com as indicações para que os leitores as possam confeccionar, que vão desde um Bolo Rico de Amêndoa e Chila até um humilde Caldo Verde. Das muitas receitas que Virgílio Nogueiro Gomes nos dá a conhecer, destaque para o Empadão de Bacalhau, uma receita criada pelo autor em 1993, “para uma edição da revista Marie Claire” e que se tornou bastante afamada ou para os Pastéis de Santo António, marca registada e originários de Pernes, “na sequência de um processo organizado pela Junta de Freguesia de Pernes”, com uma bela história.

    Contudo, no meio de todas estas crónicas, cheias de histórias e curiosidades, importa também referir os inúmeros episódios que Virgílio Nogueiro Gomes revela, num tom muito confessional e intimista, acerca das suas experiências pelos restaurantes, tanto nacionais como internacionais, e as peripécias que lhe sucederam, seja pela negativa ou pela positiva, mas de todos eles podemos inferir o amor pela gastronomia portuguesa e a defesa intransigente que o autor faz. E este livro é também isso mesmo, um manifesto pela dignidade e história da Culinária Portuguesa.

  • Retrato da mesa e da cama na Roma renascentista

    Retrato da mesa e da cama na Roma renascentista

    Título

    A Louçana Andaluza

    Autor

    FRANCISCO DELICADO (tradução: Nuno Júdice)

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Agosto de 2023)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    É a partir da publicação da novela La vida de Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades, de autor anónimo, provavelmente no ano de 1554, que se estabelece o nascimento do género literário apelidado de Picaresco, um género que fez furor em Espanha durante o Siglo de Oro e que estendeu a sua influência por vários países europeus, entre os quais Portugal, até aos dias de hoje. Porém, alguns autores consideram A Louçana Andaluza, livro “escrito em Roma por volta de 1524 e publicado de forma anónima em Veneza, provavelmente em 1530”, como sendo o percursor da novela picaresca, devido às inúmeras características que enformam o género. Não obstante tais considerações, a verdade é que esta novela curta conquistou lugar cimeiro na literatura ocidental.

    Apesar de publicada sem identificação do autor, sabe-se que o seu autor foi um clérigo de nome Francisco Delicado (1480-1535), natural de Córdova, provavelmente de origem judaica, e que, após o decreto de expulsão determinado pelos Reis Católicos, em 1492, abandonou a pátria para se exilar em Itália como cristão-novo. 

    Sabe-se também que foi um padre licencioso e assaz frequentador de bordéis onde, a dada altura, terá contraído o mal gálico ou sífilis, tendo padecido de semelhante maleita durante vinte e três anos. Quando se curou, Delicado escreveu um tratado acerca do morbo gálico e da sua cura através de um remédio originário das Índias Ocidentais. E foi devido a esse contratempo que enveredou pela escrita desta novela, como “modo de esquecer as dores provocadas”, mas também para ganhar algum dinheiro com ele, uma vez que o autor se achava num aperto financeiro.

    O livro, após a sua publicação, provocou escândalo “e a liberdade com que trata situações tão escabrosas para a moral da época, usando uma linguagem que ainda hoje não faz parte das boas convenções sociais, não permitiram que o livro fosse conhecido até ao século XIX, quando, na Biblioteca Imperial de Viena, foi descoberto por Fernando Wolf, em 1842, o único exemplar da obra que chegou até nós”, explica Nuno Júdice, tradutor da obra, no Prefácio

    Com este livro, o autor pretendeu fazer o retrato de uma certa Aldonça, mulher nascida em Córdova, na Andaluzia, que, após ficar órfã decidiu buscar melhor fortuna e ir viver para Roma que, naquele tempo, se dizia ser o “triunfo de grandes senhores, paraíso de putas, purgatório de jovens, inferno de todos, cansaço de animais, enganos de pobres, barraca de velhacos”, e onde se havia estabelecido uma forte comunidade espanhola, principalmente constituída por judeus fugidos de Espanha.

    Francisco Delicado, ao desenhar este retrato “tão natural que não há pessoa que tenha conhecido a senhora Louçana, em Roma ou fora de Roma, que não veja claramente como foi tirado de seus actos e meneios e palavras”, também nos revela a Roma renascentista nas primeira décadas do século XVI, tempos de esplendor e luxúria e a a sociedade e as instituições eclesiásticas daquele tempo, com um olhar atento e perscrutador acerca da vida nos bordéis da época, num tom irónico mas também sarcástico, mordaz.

    Uma narrativa burlesca, erótica, mas também satírica, de recorte picaresco, em jeito de paródia aos livros com cavaleiros heróis e aventurosos, composto por 66 capítulos, aqui designados pelo autor como “mamotreto”, em jeito de diálogo, uma das formas literárias mais em voga na época, carregada de eufemismos e metáforas eróticas, tanto sobre os genitais do homem como da mulher, assim como do acto sexual em si.

    Outra das grandes curiosidades do livro são as referências à culinária da época, tanto à da Andaluzia como à de Roma, a pratos típicos mas também aos muitos ingredientes que nesses locais se encontravam, evidenciando um conhecimento apurado sobre os ingredientes, os rituais e os pratos que chegavam à mesa das várias classes sociais, incluindo aquilo que se comia nas tabernas ou nos bordéis. 

    Por aqui se acham referências a pão ázimo, biscoito de manteiga com açúcar, pão de especiarias, carne estufada, peito de carneiro, guisado de beringelas, buchos de cabrito, cabidelas, cabrito salpicado com limão de Ceuta, refogados de peixe seco com rúcula ou leitão assado, “flocos, bolinhos, rosquinhas de gengibre, rodelas de cânhamo e alho, jogados, sopas, folhados, farinha de milho mexida em azeite, ervas e nabos sem toucinho e com cominho, couve marciana com alcaparra”.

    Além destas referências, Delicado alude também ao livro De voluptatibus de Platina e ao De re coquinaria de Apício, destacando que a comida confeccionada com fogo de carvão e panela de barro eram tidas como das melhores. Mas as referências não se esgotam somente na culinária, existindo também bastantes alusões aos cosméticos usados pelas mulheres e a todo o sortido de expedientes que elas usavam para se enfeitar e adornar, aos tecidos e à moda em voga por aquelas paragens, bem como a certas mezinhas para o tratamento de determinadas maleitas. 

    Um livro de leitura fácil e breve mas que deverá ser degustado com lentidão para assim ser mais gratificante a sua leitura.

  • Quo vadis, Humanidade?

    Quo vadis, Humanidade?

    Título

    A maldição da noz-moscada

    Autor

    AMITAV GHOSH (tradução: Miguel Romeira)

    Editora (Edição)

    Elsinore (Junho de 2023)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Confesso que estava um pouco reticente em levar este livro na bagagem para preencher a ociosidade dos meus dias de veraneio. As férias pediam leituras mais ligeiras, para não dar muito trabalho ao miolo ou narrativas que fossem bem-dispostas, de preferência na companhia de um branco fresquinho. Como se diz, espalhei-me ao comprido – mas ainda bem.

    A partir de um episódio ocorrido em 1621 numa das ilhas Banda, no território das Molucas, na actual Indonésia, o romancista e ensaísta indiano Amitav Ghosh (n. 1956) tece uma teia de relações entre os factos aí ocorridos, o massacre de toda a população local (provavelmente um dos grandes genocídios esquecidos pela História), e as presentes alterações climáticas que afectam todo o planeta. Uma alucinante viagem por tudo aquilo que o Homem (leia-se o Homem Branco e Ocidental) foi fazendo e provocando em vários lugares do globo, interferindo com a Natureza nas mais variadas maneiras, com consequências devastadoras. 

    Naquele tempo vivia-se uma corrida às especiarias, caracterizada pelo autor como “a corrida espacial da época”, em particular a tão demandada noz-moscada (Myristica fragans). Para a colher era preciso atravessar meio mundo. Com isso, “ao viajarem pelo mundo conhecido, a noz-moscada, o macis e outras especiarias fizeram nascer rotas de comércio que atravessavam o oceano Índico e entraram por África e pela Eurásia.” 

    A noz-moscada, além do uso culinário, também era procurada devido às suas propriedades medicinais, sendo cobiçada como símbolo de luxo e de estatuto: “No final da Idade Média, a noz-moscada tornou-se tão valiosa na Europa que uma mão-cheia pagava uma casa ou um navio.”

    Ao analisar este caso, a eliminação do povo Banda, levada a cabo pelos holandeses a fim de assegurar o monopólio do comércio da noz-moscada, Amitav Ghosh estabelece paralelismos com outros episódios ocorridos em diferentes partes do Mundo e em outros tempos, como o caso das tribos indígenas nos Estados Unidos da América ou no Amazonas, e de como, ao destruíram as suas maneiras de viver, acabam por destruir todo um equilíbrio existente, com repercussões, por vezes, difíceis de alcançar. 

    O autor desdobra-se em múltiplas e inteligentes abordagens, seguindo um fio condutor, a acção do Homem Branco e Ocidental, tido como o pináculo do mundo civilizacional, contra um outro Mundo, inferior, o dos outros, vistos como “bestas”. Abordagens essas que vão desde a biologia ao racismo, da escravidão aos actuais movimentos como o Black Lives Matter.

    Este é um livro que exige um certo nível de concentração, não por apresentar um discurso complexo, muito pelo contrário: explana uma narrativa bastante fluída, com diferentes histórias que se vão interligando numa malha mais ampla, quase gigantesca. A concentração é necessária para, com cada uma dessas histórias ou curiosidades (que são mesmo imensas), como se fossem folhas, não só conseguirmos ver a árvore como toda a floresta de conhecimento que o autor nos oferece.

    Uma leitura que além de ser um murro no estômago, provoca também um nó na garganta e um aperto no coração: o que andámos nós a fazer para deixar o Mundo neste estado?