Etiqueta: Opinião

  • A pandemia no desenvolvimento psicossocial das crianças

    A pandemia no desenvolvimento psicossocial das crianças


    As crianças foram as “grandes vítimas” das medidas restritivas, adoptadas pelo Governo, no combate à pandemia, ao longo destes quase três anos. Medidas essas, implementadas sem base científica que as sustente, tiveram, têm e terão consequências inimagináveis no desenvolvimento psicossocial e emocional das crianças.

    As máscaras, os confinamentos obrigatórios e a constante promoção do distanciamento físico, tiveram impacto nas relações sociais, interpessoais, afectando a população em geral e desencadeando novas aprendizagens “perigosas” na relação com o outro. Uma grande percentagem de crianças, na primeira infância viram-se privadas de um ambiente normal, securizante e saudável, propicio a um desenvolvimento psicossocial, emocional, afectivo, normal. Viram-se cercadas de medos…

    girl in black long sleeve shirt reading book

    As máscaras e o distanciamento físico são causa disso. As máscaras impedem-nos de ver o rosto, consequentemente, de ver a expressão das emoções, ler nos lábios a articulação e produção da linguagem. A psicologia da Gestalt defende que para compreender as partes é preciso compreender o todo. O que acontece quando uma criança que, no início da sua vida, está a conhecer o mundo à sua volta, desenvolvendo competências cognitivas e emocionais, fica privada de ver o rosto das pessoas à sua volta e distante de afectos?

    Que consequências, em termos gerais, advirão destas privações? Não sabemos ainda. Para já, é possível observar atrasos em diversos aspectos do desenvolvimento infantil: atrasos na linguagem e na interacção social e relacional. Assim como alterações comportamentais, relatadas por pais, professores e pediatras: isolamento, problemas de sono, agitação, intolerância aos outros, aumento de agressividade e irritabilidade, entre outras coisas.

    Os confinamentos privaram as crianças de estar com os seus pares, de brincar nos parques, de correr, de ir à escola, de ver e abraçar os avós. Rotinas essenciais para um crescimento saudável. Para além disso, os confinamentos validaram e potenciaram o medo/ ansiedade de um vírus, algo invisível que os podia matar, ou aos seus, ou ainda, serem culpados por transmitirem a alguém e causar o pior desfecho.

    Esta introjecção da culpa, o medo paranóico da transmissão dos “assintomáticos”, o isolamento afectivo provocado pelo distanciamento, são indícios de um aumento de perturbações psiquiátricas e de um compromisso sério da saúde mental infantil (no geral da população, também, mas o enfoque aqui prende-se com uma análise do desenvolvimento infantil, no referido contexto).

    O distanciamento físico traduziu-se num distanciamento afectivo. O afecto, o amor, as emoções são vitais para o ser humano. A relação humana tem alicerces construídos na interacção social, familiar, na troca de afectos (toque, beijo, abraços). As crianças precisam de afecto para um desenvolvimento saudável. Tudo isso ficou comprometido, com tal medida restritiva, ridiculamente validada, com setas e marcações definidas e rigorosamente medidas, em espaços públicos. Acatada, também por muitos, na dinâmica familiar.

    Actividades virtuais, como jantares por videochamada, relações íntimas entre outras coisas, foram as soluções alternativas encontradas por organismos defensores da saúde mental. Promoveram-se novas aprendizagens ajustadas ao “novo normal”, à “nova realidade”. Que consequências terão no ser humano e essencialmente nas crianças, vivenciando uma realidade estranha como parte integrante do seu desenvolvimento cognitivo, social e emocional?

    woman sitting on black chair in front of glass-panel window with white curtains

    Somente com a realização de estudos científicos fidedignos, alguns longitudinais, obteremos respostas a estas questões. Contudo, é possível observar, desde já, alterações comportamentais negativas, aumento de perturbações do foro psicopatológico (ansiedade, depressão, entre outras).

    É urgente intervir. As crianças precisam de apoio psicológico, tendo em conta, a dura experiência pela qual passaram. Precisam de muito amor, compreensão e segurança, que promovam uma caminhada, pela vida, harmoniosa e feliz. Precisam de se sentir seguras num mundo que se encontra em transformações inesperadas, onde reina a incerteza, porém impera sempre a esperança de um futuro melhor.

    Cláudia Leão Lopes é neuropsicóloga


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Quo vadis Florestgal?

    Quo vadis Florestgal?


    “Não é com vinagre que se apanham moscas”

    (Adágio popular que ilustra que para cada objetivo deve ser usada a ferramenta adequada)

    A Florestgal – um empresa pública de gestão e desenvolvimento florestal – comprou 225 hectares no Parque Natural da Serra de São Mamede com o principal objetivo de avançar com a renaturalização dos terrenos, anunciou no passado sábado, dia 29, o presidente demitido da instituição. Mas… É, afinal de contas, para isto que queremos uma empresa pública florestal?

    Comecemos pelo principio: nas últimas décadas, tanto em Portugal como por toda a Europa, o papel da Administração Pública em matéria de florestas passou por alterações profundas, das quais se podem destacar funções menos de gestão direta e mais de regulação, concessão da gestão das áreas na posse do Estado e transferência de competências, por exemplo para Autarquias, assim como a passagem de áreas de elevado valor natural para a esfera do Ambiente.

    green leafed trees

    Entre estas alterações, e uma vez que o caso francês se tem constituído como um modelo de organização e funcionamento para muitos países europeus – Portugal incluído –, conta-se ainda a criação de uma Empresa Pública Florestal. Todavia, se o Office National des Forêts data de 1964, e rapidamente foi seguido por vários outros países – casos da Finlândia, do Reino Unido ou da Áustria –, por cá tivemos 50 anos de avanços e recuos.

    Com efeito, esta solução estava prevista desde 1970, no IV Plano de Fomento, mas este foi suspenso em 1974. Voltou à baila, na década seguinte – aquando da nacionalização e criação da Mata Nacional de Penha Garcia –, mas, novamente, os objetivos governamentais de então travaram-na. Paradoxalmente, o mesmo chefe de Governo (Cavaco Silva) criou uma Empresa Pública para desenvolvimento agrícola e cinegético, em 1993 – extinta volvidos três anos.

    O Governo seguinte (António Guterres) foi mais longe e, em 1998, teve mesmo criada uma Comissão Instaladora da Empresa Pública Florestal, que seria, contudo, extinta no ano seguinte, por se considerar que a solução mais adequada passava pela cooperação entre o Estado e outras entidades, sob formas alternativas de gestão, pelo que foram pontualmente aparecendo Cooperativas, Sociedades e Fundações a incorporar este espírito.

    trees on fire

    Assim, só em 2018, por entre a “maior reforma desde D Dinis”, e na ressaca das tragédias de 2017, nasceu finalmente a Florestgal.

    Mas o sector já não tem organismos que cheguem, e não abundam diferentes modelos no terreno? Sim, é verdade que há Matas Nacionais e Perímetros Florestais, geridos pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF); que outras áreas há classificadas como Parques e Reservas Naturais, algumas, como no Parque Natural Sintra-Cascais geridas já por empresas públicas (no caso a Parques de Sintra – Montes da Lua); como também a Portucel, enquanto foi pública, o fez em plantações (próprias) de eucaliptos; e temos também a Tapada Nacional de Mafra, gerida por uma Cooperativa de Interesse Público, a Mata do Buçaco, gerida por uma Fundação, ou o Parque Florestal do Monsanto, talvez o mais conhecido exemplo de gestão por uma autarquia.

    Assim sendo, para que serve afinal uma empresa pública florestal?

    Sendo uma empresa – cuja actividade é, em sentido lato, a articulação dos factores para a produção ou circulação de bens ou de serviços –, serve para outro tipo de abordagem, para uma via distinta com vista à dinamização do sector florestal: a via do negócio.

    body of water near trees during daytime

    Somos muitas vezes brindados com grandes números do sector, números de milhões: o seu peso no Produto Interno Bruto (PIB) ou nas exportações, e que, como um todo, não é mentira serem números relevantes.

    Mas raramente ouvimos a crua realidade: a floresta é, para os seus proprietários, ou por hectare – que também são milhões –, um negócio de tostões, e até o seu peso no PIB caiu a pique (para metade entre 2000 e 2010), assim como o emprego (de mais de 250 mil empregos nos anos 90, para menos de 100 mil).

    O mítico Pinhal de Leiria rendia (antes de 2017) anualmente uns míseros 160 euros por hectare. Ora, quando sabemos que uma empresa nos pede por hectare muitas vezes mais de 1.500 euros para roçar o mato, facilmente nos apercebemos da dimensão do problema económico.

    Sendo a esmagadora maioria da nossa floresta privada – porque foram os privados que nela investiram –, o resultado é o abandono generalizado, seguido pelo inevitável fogo.

    chainsaw near tree log

    Desta forma, reabilitar o negócio faz todo o sentido. E muito haveria a fazer nessa matéria, conciliando vontades e agentes numa espécie de plataforma em prol do desenvolvimento do sector, gerindo de forma exemplar e influenciando assim o sector, por via demonstrativa, rumo a melhores modelos, e tendo ainda capacidade para influenciar o mercado quando este não consegue dar respostas. Tudo sob uma óptica económica racional, dado o carácter empresarial…

    Não obstante, não vimos, por exemplo, a Florestgal na Serra da Estrela após o grande incêndio deste Verão, ou em catástrofes semelhantes, que deixam como rasto quilómetros de madeira queimada – influenciando os aprovisionamentos e/ou os preços. Como não a vemos em parcerias com gabinetes municipais onde convergem agentes e interesses. Ou a comprar para investir e tirar rentabilidade. Não, só a vemos numa compra, num Parque Natural, para… renaturalizar!

    Nada contra, antes pelo contrário, com a renaturalização de áreas, sobretudo quando incluídas em Parques e Reservas Naturais.

    low angle photography of trees during daytime

    Mas, para isso, já não temos o ICNF? Para isso não há outras organizações, incluindo algumas Associações de Conservação da Natureza? É assim que vamos influenciar o sector pela via do negócio?

    Claro que não, isto é tão absurdo quanto uma empresa municipal de construção, com vista a debelar problemas de habitação, derrubar prédios em zonas onde faltem casas, para fazer jardins… Para isso, existiriam outras empresas e/ou serviços públicos. Para matar moscas há insecticidas ou mata-moscas. Para isto, a ajuda aos proprietários, aos empresários, aos trabalhadores, à economia do setor, continuará a ser a mesma dos últimos 50 anos…

    João Adrião, é gestor ambiental e florestal


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Setembro, um mês à direita da direita

    Setembro, um mês à direita da direita


    Em Setembro, a Europa democrática viu-se confrontada com duas eleições com resultados aparentemente inesperados.

    Na Suécia, a coligação de centro e extrema-direita conseguiu 176 lugares no Parlamento, 73 destes preenchidos pelo SD (partido de extrema-direita) que convenceu 20% do eleitorado, tornando-se assim na segunda força política do país. É uma eleição histórica uma vez que nunca um Governo sueco foi composto por partidos desta natureza.

    person in blue denim jeans and white sneakers standing on gray concrete floor

    Em Itália as ideologias extremistas foram ainda mais longe, e o partido Irmãos de Itália (FDI) elegeu uma primeira-ministra, em coligação com Salvini e Berlusconi. Dos 50 milhões de votantes, esta “geringonça” obteve 43% dos votos, com cerca de 26% para Meloni e o restante dividido entre os dois outros partidos. Ainda assim a ascensão de Meloni é também o declínio de Salvini, o que indica que nem tudo são rosas no seio do eleitorado extremista.

    Se os casos acima mencionados são os mais gritantes, por serem os que já chegaram ao poder, importa ainda lembrar a subida do partido de Le Pen, na França, que chegou à marca dos 41%, e até no caso português. Apesar de números ainda escassos, o Chega é já a terceira força política portuguesa com 7% do eleitorado.

    Importa entender o motivo do avanço destas ideias dentro de um espaço comunitário, inclusivo, humanista e colaboracionista como a Europa pretende ser.
    Em primeiro lugar, destaque-se que os programas eleitorais e os manifestos destes partidos são, grosso modo, bastante idênticos. Se, por um lado, apelam a elementos de coesão social como os valores de Deus, pátria, e família, fazem-no através dos pânicos morais exacerbados que surgem em forma de ameaça a um pretenso bem-estar. Estes medos, que na era das redes sociais ganham uma carga viral, contêm uma mensagem simples e com setas apontadas.

    Giorgia Meloni

    Para eles, a culpa é dos estrangeiros, dos homossexuais, dos políticos corruptos – e estes partidos vendem-se como diferentes. Apregoam frases e entoações cuja digestão é bem recebida e, como no caso de Donald Trump, conseguem manipular a opinião de algum público ao ponto de conseguirem fazer-se passar por homens e mulheres do povo contra as elites. 

    Mais perto, dentro da realidade portuguesa, essa dicotomia das elites versus o povo é um grito utilizado por André Ventura que ironicamente (ou não) é apoiado e financiado por, imagine-se… as elites.

    Qual é então o falhanço dos valores europeus que têm vindo a dar lugar a plataformas radicais e populistas?

    No caso da Suécia e Itália – e, por mais simples que possa parecer –, a subida do eleitorado extremista estará ligado à crise migratória de 2015. Estes dois países abriram as suas fronteiras a refugiados sem gestão da narrativa moderada e inclusiva.

    Marine Le Pen

    Não é de estranhar o aproveitamento dos extremistas perante um vazio de mensagem humanista. E é fácil, razoável até, mais ainda no caso da Itália – cuja Economia é bastante mais fraca do que a sueca –, perguntar onde estava o apoio financeiro e logístico da Europa às constantes ondas de refugiados a entrar nos seus portos. A consequência disso leva inevitavelmente à pergunta mais simples e também perigosa, que é: e nós?

    A proliferação do sentimento anti-europeu torna-se num comboio a alta velocidade e, perante a falha dos moderados e a demora de implementações práticas perdidas nas burocracias do Parlamento Europeu, cria-se o sentimento que nada é feito. Um básico, “Falam, falam, mas não fazem nada”.

    É assim que se criam e recriam estes movimentos. Eles não são novos, mas adaptam-se aos tempos. Veja-se o caso das lideranças. Meloni, Le Pen e a alemã Alice Weidel são mulheres. Talvez a líder francesa seja menos surpreendente, porque vem de uma família política e tem já essa tradição.

    No entanto, a futura primeira-ministra italiana e líder extremista alemã são já um apelo ao voto feminino que, normalmente, não vota em partidos vistos como patriarcais e conservadores.

    André Ventura

    Curiosamente, estas políticas de carreira são consequência das lutas progressistas de esquerda pela igualdade de acesso a posições de liderança, que agora são aproveitadas pela extrema-direita para se capitalizar e captar eleitorado.

    O espaço das ideias extremistas está conquistado e não irá diminuir enquanto for subestimado ou insultado. Ele só pode ser derrotado em sede de ideias. A estas ideias tem de lhes ser emprestado um novo léxico, uma forma de desmascarar o extremismo pelo que ele é. A manipulação da carga emocional de pequenos e grandes grupos e o vazio de soluções.

    E será (extremamente) necessário que esse combate seja feito com a apresentação de soluções humanistas, sustentáveis, mas de rápida aplicação.

    Como diz Marcelo Rebelo de Sousa, o povo tem sempre razão.

  • Terrorismo: ser ou não ser, depende?

    Terrorismo: ser ou não ser, depende?


    Tomámos conhecimento este mês, pelos órgãos noticiosos, do comunicado conjunto dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros de nove países europeus (onde Portugal não figura) de que o Governo de Israel ocupou, encerrou e expulsou fisicamente das sedes respectivas seis organizações não-governamentais (ONG) na Cisjordânia, acusando-as de terrorismo, de serem associadas da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP).

    Esta acção vem na sequência da designação pelo mesmo Governo, já a 22 de Outubro de 2021, dessas mesmas organizações enquanto entidades terroristas, concretamente do desvio de fundos a favor dos guerrilheiros.

    blue and gray binoculars on top of the building

    Ora, sucede que, apesar de serem compreensíveis, de um ponto de vista lógico-argumentativo, os interesses que orientam estas acções do Estado de Israel (bastando para tal ler ou ouvir um qualquer teórico israelita hodierno sobre estas matérias, como seja Boaz Ganor) – com as quais, de resto, discordamos –, já diz a vox populi que se tudo for algo, então nada o é.

    Existe, por isso, um problema definitório, conceptual, quanto ao Terrorismo, “palavrão” tantas vezes usado, a maioria delas errónea ou imprecisamente.

    Havendo mais de uma centena de definições deste conceito, em termos doutrinários as Nações Unidas adoptaram a formulação académica do holandês Alex P. Schmid (1984) no seu Political Terrorism: A Research Guide to Concepts, Theories, Date Bases and Literature (apud Bessa, 2016), considerando o Terrorismo como um método “de reiterada acção violenta inspirada na angústia, utilizado por pessoas, grupos ou Estados de forma clandestina, por razões idiossincrásicas, criminosas ou políticas, por meio das quais – a diferencia do assassinato – o objectivo imediato da violência não é o objectivo final.

    Esta abordagem é prosseguida por diversos autores, menos e mais actuais, sendo que perfilamos uma visão distinta (de elevado impacto em termos práticos), onde se distingue “terror” de “terrorismo”, com o vector decisivo deste último ser a alteração política: “(…) the fundamental aim of the terrorist’s violence is ultimately to change ‘the system’ (…)” (Hoffman, 1998), o que redunda na circunstância de se considerar o terrorismo como “(…) the deliberate creation and exploitation of fear through violence or the threat of violence in the pursuit of political change” (Hoffman, 1998). Na prática, o que as instituições nacionais e internacionais que nos regem optaram por fazer, confrontadas que foram com este problema de falta de acordo universal para a definição desta realidade, foi contorná-lo, descrevendo e definindo as acções, os agentes, as consequências do terrorismo, e mesmo por referência às intenções de actos já criminalizados, utilizando até uma técnica jurídica remissiva não só confusa como pouco eficiente, pensamos.

    blue and white flag on pole

    Numa perspectiva não-Ocidental, a Convenção Árabe do Terrorismo que foi levada a efeito no Cairo em Abril de 1998, preconiza este fenómeno como “[q]ualquer acto ou ameaça de violência, quaisquer que sejam os seus motivos ou propósitos, que surjam por iniciativa própria ou colectiva, procurando semear o pânico entre os povos causando-lhes danos, ou colocando as suas vidas, liberdades ou segu­rança em risco, ou procurando causar prejuízos no ambiente, instalações públicas ou privadas, ou ocupando ou apoderar, ou procurando expor ao perigo recursos nacionais.” (Bessa, 2016).

    Compreensivamente abrangente e laica esta formulação, determinada a expurgar preconceitos de ordem religiosa.

    Qual a solução, então? Conhecimento e compreensão, com rigor. “Classificar um ato, um grupo, uma pessoa, mesmo um Estado ou uma entidade supranacional, como terrorista, depende do contexto, de quem classifica, de quem interpreta e da época histórica (os terroristas de uns podem ser os combatentes da liberdade para outros).” (Lemos Pires, 2017), ou seja, falamos da perspectiva.

    O terrorismo depende da perspectiva. Depende do olhar de quem se debruça sobre esta temática, depende da compreensão de que este jogo de realidades nunca é apenas preto ou branco, mas sim de diversos matizes de cinzento – a “[z]ona cinzenta (…) onde encontraremos o terrorismo”, nas palavras de Townshend (2006) – que carecem de entendimento. É sobretudo uma questão de perspectiva, sobre quem olha para uma determinada realidade e sente medo (consequência) ou, por outro lado, desejo de iniciativa para alterar essa realidade, estando (normalmente) subjacente a isto um sentimento de injustiça.

    Injustiça percebida esta, muitas vezes, na base de processos de radicalização, mesmo com ausência de um input radicalizador externo, o que aumenta a exposição societária a retóricas de extremismos violentos. Para mais, hodiernamente, potenciados pelas TIC.

    people gathered near pole

    Para este desiderato, sustentamos que o terror (e não o terrorismo) é que pode ser considerado simplesmente um método, como ensina o politólogo Sunil Khilnani (citado por Townshend, 2006), sendo que, tendo presente que o terrorismo não se reconduz apenas àquele denominado jihadista, concebemo-lo com as seguintes características:

    1. Existência ou ameaça de violência;
    2. Acção voluntária, individual ou grupal, organizada ou não;
    3. Contra pessoas ou alvos indiscriminados ou com representação simbólica;
    4. Para atingir um objectivo secundário de condicionar uma acção ou abstenção duma entidade com poder, normalmente estatal, ou de perturbar os termos do «nexo sinalagmático» de uma sociedade;
    5. Orientada por uma arquitectura ética que o(s) autor(es) considera(m) legítima;
    6. Cujas consequências ou impacto potencial serão graves ou danosas;
    7.  Este estado de coisas seja passível de difundir uma mensagem ou sentimento generalizado, seja apelativo/cativante ou negativo (como o medo), condizente com a ética legitimadora subjacente.

    Identificamos também, mesmo no dia-a-dia, imprecisões conceptuais (sendo o conceito de jihad um caso paradigmático) que prejudicam uma boa construção dogmática das tipologias de terrorismo (conscientes de que existe mais do que uma categorização admissível), sendo fundamental, a nosso ver, compreender que aquilo que está em causa é o extremismo violento, tendo por base uma ideologia (normalmente) política.

    soldiers in green and brown camouflage uniform standing on gray concrete floor during daytime

    Se algumas destas imprecisões fossem ultrapassadas, alçando-nos em maior conhecimento, seria possível não se promoverem sentimentos de rejeição sem causa, afastando-se uma certa terminologia não só errónea como contraproducente, bastando atentar no caso do termo “terrorismo islâmico”. Apreenderíamos, destarte, que organizações como o ISIS (e outras semelhantes) não são organizações políticas que praticam violência, mas grupos armados que racionalizam politicamente as suas acções violentas.

    Estas conclusões convocam, como pretendemos demonstrar mais demoradamente noutros escritos, uma resposta contra-terrorista com base na investigação criminal preventiva (e proactiva) do terrorismo, não só por imperativos de acção, mas de princípios fundacionais do nosso ordenamento jurídico, como os direitos fundamentais, a legalidade democrática ou a separação de poderes.

    Daqui resultam aspectos de análise que poucas atenções têm obtido até agora, em termos de doutrina portuguesa, como sejam o ‘crime-terror nexus’ ou o estudo das ‘root causes’ do terrorismo. Rectius, compreender as razões de aparecimento de grupos, neste domínio, como os da aliança HTS (onde se inclui a Jabhat Fateh al-Sham, anteriormente Jabhat al-Nusra), na Síria, ou a da AQMI, al-Mourabitoun, Frente de Libertação de Macina e Ansar Dine (denominada JNIM), no Sahel, são de singular importância.

    No mesmo sentido, as especificidades ciber, nas suas vertentes do ciberterrorismo e da dimensão ciber do terrorismo, por serem realidades criminógenas distintas, exigem um tratamento diferenciado, mesmo tecnicamente. Em oposição, uma resposta meramente securitária (ou militarista) não alcançará os efeitos pretendidos a longo prazo: “[m]ore sophisticated technology and increased military force will not end terrorism in the longterm.” (Moghaddam, 2005).

    in flight dove

    Após aturado discorrer, concluímos pela indissociabilidade e interdependência do trinómio Segurança-IC-Intelligence no âmbito CT, o qual, na verdade, é uma disciplina que lida com um fenómeno criminal, simultaneamente prosseguindo fins securitários, com recurso a produção de informações, onde a garantia do conteúdo substantivo da segurança interna é inerente à defesa da legalidade democrática e dos direitos dos cidadãos. Decorre daqui, ainda, a desnecessidade dos serviços de informações internos, pelo menos no que ao campo CT diz respeito, o que advogámos.

    De um ponto de vista hermenêutico, o terrorismo, considerado holisticamente, para além de ser um fenómeno hodierno político-social, é, sem margem para dúvida, um fenómeno criminal. Não só é criminal ao nível do combate e das respostas que as nossas sociedades lhe encontram (neocriminalização de comportamentos normais num determinado contexto, cf. nº 11 do artigo 4º da Lei nº 52/2003), uma vez que contende com bens jurídicos que elegemos com a maior dignidade jurídica (nomeadamente a constitucional e a do direito natural), mas é também criminal ontologicamente.

    Na sua origem identificámos dois níveis. Um, porquanto as acções de que lança mão, ab initio, são em si já tipificadas ou genericamente consideradas como crime, com especial manifestação no ciberespaço (designadamente na utilização da darknet, etc.). Outro, visto as motivações subjacentes à actividade terrorista, mesmo na sua vertente ciber, serem muitas vezes, em primeira linha, mas ocultas, razões mais orientadas para a obtenção de vantagens ilícitas individuais, com um mero “aparente” radicalismo ideológico.

    Inspector da Polícia Judiciária, licenciado em Direito e mestre em Direito e Segurança

    Autor do livro Contra-Terrorismo – Tópicos Essenciais e a Unidade CT “Ideal”


    BIBLIOGRFIA

    BESSA, João Manuel de Andrade Pinto – “As Nações Unidas e o Terrorismo”. Revista Militar n.º 2458 – Ano III, Novembro de 2016.

    HOFFMAN, Bruce – Inside Terrorism. 1.ª Ed. London, 1998, ISBN: 0575065095.

    LEMOS PIRES, Nuno – “As plataformas cibernéticas para a exponenciação do terrorismo transnacional”. Revista CYBERLAW (CIJIC). ISSN: 2183-729. N.º III (2017), p. 80-92.

    MOGHADDAM, Fathali M. – The Staircase to Terrorism: A Psychological Exploration. American Psychologist. Ano LX, n.º 2 (Feb./Mar. 2005), p. 161-169.

    TOWNSHEND, Charles (2002) – O Terrorismo. 1.ª Ed. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2006. ISBN: 989-552-189-8.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Medidas políticas da gestão da pandemia assentaram em diploma que caducou em Abril de 2021

    Medidas políticas da gestão da pandemia assentaram em diploma que caducou em Abril de 2021


    Tem-me sido questionado se o diploma que instituiu o primeiro Estado de Calamidade em 13 de Março de 2020 (Decreto-Lei nº 10-A/2020) está ou não está em vigor. E, consequentemente, quais os efeitos de todas as resoluções do Conselho de Ministros, bem como de todos os decretos-lei publicados e promulgados pelo Presidente da República desde o fim do Estado de Emergência em Abril de 2021.

    E inclui-se aqui, também, a validade do Decreto-Lei 30-E/2022, do passado dia 21 de Abril, que aboliu o uso das máscaras em alguns espaços.

    Desde já afirmo que, para além de material e organicamente inconstitucionais, todos os diplomas que foram sendo publicados assentam no Decreto-Lei nº 10-A/2020, que, na minha opinião, já há muito deixou de vigorar, e desde o fim do Estado de Emergência, ou seja, em Abril de 2021.

    person in white shirt holding pen

    Tentando usar uma linguagem o mais simples possível – sendo certo que, nesta matéria, afigura-se um pouco mais difícil, uma vez que se trata de conceitos algo técnicos –, tudo o que afirmo assenta em suporte legal, como sempre tenho feito.

    As Resoluções do Conselho de Ministros que, desde 1 de Maio de 2021, têm servido para impor normas ao abrigo do Estado de Calamidade, vão buscar a sua legitimidade ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020.

    Sucede, todavia, que:

    • Esse Decreto-Lei n.º 10-A/2020 teve de ser ratificado pela Assembleia da República, através das Lei nº 1-A/2020, publicada em 19 de Março de 2020, que impôs o primeiro Estado de Emergência. Não deixo de estranhar e de sublinhar que uma Lei apenas dispõe para o futuro, e nunca retroactivamente, como foi o caso desta, que fez retroagir a produção dos seus efeitos, para seis dias atrás!

    Apenas a Lei Penal tem efeitos retroativos, quando descriminaliza ou despenaliza condutas, o que bem se compreende.

    O Governo não tem competência para poder dispor inovatoriamente em matérias que incidem sobre direitos, liberdades e garantias, em situação de calamidade, como tinha feito através desse Decreto-lei. Assim, à data em que o mesmo foi exarado, padecia de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 165º e do nº 1 do artigo 19º da Constituição da República Portuguesa.

    Reparem, tentando simplificar o discurso: o Decreto-Lei nº 10-A/2020 decreta o primeiro Estado de Calamidade. A Lei nº 1-A/2020 decreta o primeiro Estado de Emergência, ratificando o Decreto-Lei promulgado seis dias antes.

    woman in red and white santa hat
    • Terminado o Estado de Emergência, no final de Abril de 2021, tal decreto deixou de vigorar na ordem jurídica portuguesa, não só porque caducou com o termo das leis de emergência que o ratificaram, como porque não pode subsistir autonomamente, por incompetência orgânica do Governo para a sua produção original.
    • Assim, todas as Resoluções do Conselho de Ministros que têm vindo a ser publicadas, por lhes faltar qualquer arrimo normativo, padecem de inconstitucionalidade orgânica, mas como também são violadoras de direitos fundamentais, faz-me considerá-las também como materialmente inconstitucionais
    • Acresce que, nessas Resoluções, tem vindo o Governo a criar normas inovatórias, o que não se mostra por lei abrangido no âmbito de Resoluções do Conselho de Ministros, mas tão-somente no de decretos-lei.
    • Os decretos-leis inserem-se na área legislativa do Governo, permitindo-lhe assim impor novas regras; isto é, fazer surgir no ordenamento jurídico, novas normas e conteúdos normativos (embora também possam, estes decretos-lei, ter conteúdo regulamentador).
    • Por outro lado, as Resoluções do Conselho de Ministros inserem-se na área administrativa do Governo e destinam-se a regulamentar o que de inovatório foi determinado por lei; isto é, regulam os conteúdos definidos através de decreto-lei, que se reportam a decisões político-normativas primárias.
    • No caso, as Resoluções de Conselho de Ministros, porque diplomas de carácter administrativo, não poderiam nem conter normas inovatórias na ordem jurídica diversas das estabelecidas por decreto-lei que visassem regulamentar nem, no caso, existia sequer, vigente na ordem jurídica, decreto-lei que legitimasse e carecesse de tal regulamentação.
    cars parked on side of the road in between buildings during daytime
    • Estamos pois perante diplomas inconstitucionais (todas as ditas Resoluções), quer por violação do princípio da precedência da lei, decorrente designadamente dos nº 1, 6 e 7 do artigo 112º, da alínea c) do artigo 199º, e também por violação da alínea a) do nº 1 do artigo 198º, todos da Constituição da República Portuguesa (no que concerne ao uso de Resoluções não para prover à boa execução de leis, mas para criação, inovatória, de deveres e de restrições); quer por inconstitucionalidade orgânica (no que se refere à restrição de direitos, liberdades e garantias, por via governamental, em matéria para a qual a Constituição não lhe confere competência para tal), por violação do disposto nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 198º e alíneas c) e d) do artigo 161º, alínea b) do nº 1 do artigo 165º e ainda nº 1 do artigo 200º, todos da Constituição da República Portuguesa.

    CONCLUSÃO: Todos os Decretos-Lei publicados e promulgados desde o fim do Estado de Emergência em Abril de 2021 e que têm como base no Decreto-Lei nº 10-A/2020, para além de serem todos organicamente inconstitucionais, “usam” como suporte um diploma que deixou de existir no ordenamento jurídico português.

    Em consequência, o (novo) Decreto-Lei nº 30-E/2022 de 21 de Abril – que terminou com o uso de máscaras em alguns locais, procedendo à trigésima norma ou quadragésima alteração do artigo 13º B, (aquele artigo que estabelece quais os locais em que as máscaras são obrigatórias, para mais fácil compreensão do leitor) – tem como base um diploma que, desde finais de Abril de 2021, com o fim do Estado de Emergência, deixou de vigorar na nossa ordem jurídica.

    João Pedro César Machado é advogado


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Morri-me: a “morte assistida” ou o paradoxo da Consciência

    Morri-me: a “morte assistida” ou o paradoxo da Consciência


    Sempre que discuto a “morte assistida”, morro mais um pouco. E por ser “um pouco”, morro de morte sofrida e não de morte morrida.

    Assim, posso voltar para contar como foi estar morto, doutro modo preferiria estar morto de vez. Mas não me deixam “querer”, porque me dizem que só morto desejaria morrer, porque os vivos querem sempre morrer às prestações.

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    Mas há prestações demasiado pesadas, e esperar morrer para poder escolher é, já, ser moribundo. Aliás, se pudesse, realmente, escolher estaria morto por voltar a viver. Mas acontece que é a proximidade da morte que me faz escolher preferi-la à vida morrida.

    Dizem-me que não sou “objectivo”, mas como posso sê-lo sem que me torne Objecto de mim mesmo? Ora, para consegui-lo é necessário viver, não vá a morte avisar-nos que existe um modo de descontar o tempo perdido.

    Disseram religiões e filosofias que antecipar a morte é fazer batota. Elas convenceram-nos que morrer é o objectivo da vida e, depois, arranjaram um modo de nos complicar o caminho: uns com a reencarnação, outros fazendo do matar(-se) um pecado.

    Ninguém quer ver o que a Consciência frustra a si mesma: a Razão, que permite fazer viver mais e melhor, apenas faz adiar o momento inevitável; ela existe, contudo, para dar uma “razão” à vida, razão que a morte não perdoa.

    Se nos pusermos a questionar a moral, estaremos a admitir que a vida é irracional, que não vale a pena sofrer a mais ínfima questão íntima. Então, para que não tenhamos inveja, vendemos a Razão e criamos regras e “deônticas” para os mais in-conscientes.

    Mas sem que o indivíduo viva por “si mesmo” ele não poderá regrar-se com liberdade. É obrigatório que se mate devagarinho, que cresça sozinho, para que possa, um dia, desejar não morrer.

    A moral quer frustrar a liberdade de cada um querer viver por si mesmo. E é por isso que convém falar destas coisas às escondidas, porque cada um evolui como quer a expensas do Colectivo. Só assim, próximo da morte, terá o Ser o último fôlego, que é viver pela primeiríssima vez, que é ver que já não tem de escolher coisíssima alguma.

    Assim, torna-se parte da moral que o queria fazer viver à força. Mas isto não é, já, estar morto? Pois claro que sim, mas ele pôde matar-se à vontade, o que, de mais a mais, mata a moral, mas também a ressuscita.

    Ora, ser livre, bem como perder o medo da morte, não mata a ética, é um seu pressuposto. O mais que poderia acontecer é que as pessoas se matassem cedo de mais. Frustrar-lhes o caminho pode, não obstante, servir-lhes de mote. Mas se lhes dás palco, arriscas-te a assegurar, ainda melhor, a velha moral restritiva.

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    Não há, assim, necessidade de moralizar, mas, apenas de deixar de dar palco à questão, que, ainda por cima, pode fazer sofrer até morrer. Quem precisa, muito, da velha moral, tem, em absoluto, medo da liberdade de morrer, e isto mata, também; mata, aliás, quem ainda tem muito para sofrer, para que possa, deveras, perder o medo de ser livre.

    Saber se o sofrimento compensa ou não, esta é a grande questão, se soubéssemos responder-lhe em absoluto estaríamos mortos. Pretendem os moralistas responder-lhe, e eles falam pela morte, mas para matarem os outros à sua medida.

    São tão “livres”, mas não se livram de querer matar, que é uma forma de se matarem para serem, finalmente, livres. Até lá, sofrerão a irracionalidade, e o medo de poderem desejar matar-se antes de morrerem vivos o ludíbrio da morte morrida.

    Fisioterapeuta e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Narrativa extremista: terrorismo, pandemia e guerra

    Narrativa extremista: terrorismo, pandemia e guerra


    Recentemente, um Inspector-Chefe disse-nos, numa discussão sobre lidar com autores/criminosos, mesmo que de crimes hediondos de homicídio ou crimes sexuais, que “não podemos ser iguais a eles, temos que ser melhores.”

    Pensamos que isto é verdade, em especial a nível institucional, quando se aborda questões de índole societária, como se pretende neste texto. Esta ideia é fundamental: o Estado/Sociedade não pode agir como um cidadão particular, sujeito às emoções, preconceitos e vicissitudes inerentes à condição humana.

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    Deve, rectius, tem de ser melhor, almejar o bem-comum, com credibilidade, para que o exercício da potestas seja uma manifestação da auctorictas, teleologicamente aceite, porque compreendida.

    Ora, esta compreensão, é aquilo a que nos propomos, nestas linhas. Deste modo, a forma como se comunica, quando se pretende transmitir uma ideia (v. g. uma justificação para uma acção estatal, como seja restrições de direitos e liberdades fundamentais, ou uma acção ofensiva contra actor de nível estatal), em particular se o objectivo é convencer uma determinada audiência (como uma população/opinião pública), é mais eficazmente veiculada através de uma história, de uma narrativa, o que tem explicação nos processos neuropsicológicos de processamento de informação (vide o brilhante livro do investigador Angus Fletcher, ‘Wonderworks’).

    Isto porque os “Porquês” importam, não só os “Como, Quando, Onde e Quem”, como nos ensinam os estudos dos fenomenologistas Boss ou Binswanger (como este último sintetizou, com rasgo, na ideia de “estrutura ontológica apriorística do significado”), sobre a apreensão da realidade e significados dos seus elementos constituintes.  

    Destarte, principiamos pelos modelos conceptuais explicativos dos processos de radicalização no extremismo violento, vertente específica na análise do fenómeno terrorista, que mais relevo tem para a presente discussão. Dos vários existentes, salientaremos dois que nos parecem não só mais claros como mais abrangentes e capazes de compreender as várias dimensões na lide: o “Staircase model”, de F. Moghaddam (The Staircase to Terrorism – A Psychological Exploration, 2005), e o “Process of Ideological Development”, de R. Borum (“Understanding the Terrorist Mindset”, 2003).

     O primeiro, define seis níveis que, como uma escada, um indivíduo “sobe” no decorrer do seu processo de radicalização, conforme melhor se ilustra na imagem infra.

    Destacam-se pela relevância, contudo, dois níveis, a saber o de base (“ground floor”), “Psychological Interpretation of Material Conditions”, onde a maioria das pessoas se encontra, e as considerações de injustiça percebida são determinantes, logo o nível mais importante onde as acções individuais e societárias de prevenção da radicalização se devem focar; e o último (“5th floor”), “The Terrorist Act and Sidestepping Inhibitory Mechanisms”.

    Este último remete-nos para a hierarquia de valores e os princípios de humanidade de cada indivíduo, e a justificação ou construção psicológica que permite a prática de acções limite contra outrém, com destaque para a demonização/desumanização do outro (o “inimigo”, assim feito não-humano).

    Isto é decorrente da visão dicotómica do mundo e/ou realidade (e/ou mesmo duma visão e terminologia militaristas), ou para a intervenção do supernatural, seja pelo sancionamento divino ou pelo aniquilar do mal, o que por sua vez se encontra associado à elevação da vingança e/ou da violência a virtudes.

    De uma forma mais simples, mas não simplista, a concepção de Borum acentua a centralidade dos conceitos de Justiça e justeza, demonstrando de uma forma até intuitiva o quão importantes as percepções de Injustiça para o processo de radicalização, e como uma, ou melhor, como a narrativa extremista “ajuda” a racionalizar um esquema mental apto a explicar logicamente uma história de vitimização, demonização e justificação, não obstante os sempre existentes factos ou eventos que originam, ou permitem o início, do processo de radicalização (Wiktorowicz falava no conceito de “abertura cognitiva” – no seu ‘Radical Islam Rising: muslim extremism in the west’, de 2005), ainda que normalmente acompanhados de falácias ou viés: “Not Right » Not Fair » Your Fault » You’re Evil”.”

    Destacaríamos, aqui, os momentos de “atribuição de culpa” e “generalização/estereotipização”, que facilmente deixam antever algumas falácias-tipo (como teorizado, contemporaneamente, por Daniel Köhler, no seu “Understanding deradicalization. Methods, tools and programs for countering violent extremism”, de 2016), como por exemplo: falácia de confirmação (procurar comprovação para argumento próprio, ignorando contradições), realismo ingénuo (o mundo é tal e qual o vejo), falácia do ângulo morto (só a visão dos outros é que é enviesada), ou efeito do falso consenso (os outros partilham a minha perspectiva), este último muito ligado ao ‘efeito de eco’ no âmbito ciber e das redes sociais. 

    O acima exposto foi-nos possível verificar, por diversas vezes, em sede de investigações de terrorismo e terrorismo internacional, em particular as atinentes às vertentes de (des)radicalização e Foreign Terrorist Fighters (FTF). Com algum pesar, identificamos, às vezes sem esperar, elementos da retórica ou narrativa do extremismo violento na comunicação pública, seja institucional, de comentário e dos meios de comunicação social (aqui referimo-nos aos Main Stream Media – MSM).

    Este iter comunicacional é muitas vezes acompanhado de uma doutrina de pensamento único, o certo, o “nosso”, o lado “bom”, traduzido no conceito do ‘politicamente correcto’, o qual mais não é do que uma limitação encapotada (a coberto de aparentes sentimentos nobres ou virtudes) do direito fundamental da Liberdade de Expressão.

    Algo que, por sua vez, socio-politicamente, se manifesta em movimentos e/ou eventos, ainda que com uma lógica ou incidente de base eventualmente válidos, que, distorcendo ou reorganizando a realidade dos factos (com recurso àquelas falácias), desvirtuam os próprios princípios que alegam sustentar a sua actuação. Exemplos disso são a ’Black Lives Matter’, o ‘Woke movement’ ou a (consequente) ‘Cancel Culture’.

    Adicionaríamos, aqui, o actualíssimo ‘lugar de fala’, um pouco associado aos movimentos de minorias ou LGBTQ, em que quem não partilha da experiência concreta não teria “direito” a ter, e a expressar, uma opinião sobre um determinado assunto, numa negação intelectual… do intelecto dos outros, erga omnes.

    Obviamente, tudo isto se interliga numa questão superior, que é a da utilização de política identitária (“Identity Politics”), temática que, pela sua extensão, não iremos aqui abordar.

    Evidentemente que o problema principal se centrará na comunicação institucional, enquanto emanação da vontade e actuação da sociedade, a qual se desejará, espera-se, melhor e não sujeita aos defeitos e emoções inerentes à condição humana individual.

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    Como tivemos oportunidade de escrever anteriormente, “[é] absolutamente relevante que a comunicação institucional se efectue projectando valores da seriedade, tolerância, legitimidade e proporcionalidade das acções tomadas, mas sempre no quadro de equilíbrio e justiça, para que a legitimidade de actuação com base numa auctoritas, mormente jurídica, permita o exercício da potestas. (…)”.

    Como se compreende a acção internacional de alguns países, com direito de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas, à revelia das normas de Direito Internacional, como os Estados Unidos no Iraque em 2003 ou a Rússia na Crimeia em 2014?

    Se tais situações fossem expurgadas do quotidiano, eliminando causas de descontentamento e injustiça, adquirir-se-ia mais legitimidade no exercício político, o que levaria ao alcance de mais bem comum, percepcionado como uma maior realização do pacto social, o que redundaria em coesão social e política, aumentando o vínculo societário, fosse através da identificação com a nação, ou apenas do vínculo jurídico da cidadania, ultrapassando eventuais questões multiculturais, e reduzindo, consequentemente, a exposição a retóricas de extremismo violento.” (Contra-Terrorismo: Tópicos Essenciais e a Unidade CT “ideal” – 2021).

    Ora, estas características discursivas ou comunicacionais foram, ou são, passíveis de serem identificadas paradigmaticamente em dois contextos recentes e relevantes: a Pandemia da doença Covid-19 e a Guerra na Ucrânia por invasão russa.

    Quanto à Pandemia, desde logo identificamos aquela visão dicotómica da realidade, numa conjugação das falácias do realismo ingénuo e do ângulo morto, e da do falso consenso com a doutrina do pensamento único, em que toda e qualquer opinião que não se manifeste em absoluta concordância com a “tese vigente” é não só descartada, e acriticamente etiquetada como “negacionismo”, toda a opinião “metida no mesmo saco”, como, pior, não tem sequer espaço para ser apresentada, discutida, analisada, e, potencialmente, compreendida, assim alimentando-se o ciclo de pensamento unívoco, o qual não oferece possibilidades de descoberta ou evolução no conhecimento.

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    Exemplos disto são, desde logo, o artigo de opinião do médico anestesiologista Pedro Girão no Público, que, em Agosto de 2021, foi retirado da plataforma online daquele jornal, depois de 24 horas.

    No termo do próprio periódico, a “despublicação” do texto deste médico deveu-se a uma falha editorial na análise, que precedeu a publicação, ao seu conteúdo, à opinião nele vertida (contra) sobre a vacinação dos adolescentes, contrário à interpretação dominante e defendida (como se veio a verificar) institucionalmente, nomeadamente pela Direcção-Geral da Saúde (DGS), num acto efectivo de censura, condicionando o acesso livre a opiniões distintas.

    Existem poucos direitos fundamentais tão importantes quanto a Liberdade de Expressão, o qual alcança um impacto societário assinalável, por isso meritório de protecção. Outro exemplo em que esta visão redutora do mundo a apenas dois actores, o “nós” e o “eles” (dicotomia militarista por excelência), é não só exibida como assumida, são as declarações do Vice-Almirante (agora Almirante) Gouveia e Melo, este já um discurso institucional pelo cargo desempenhado, nas quais afirma, na ‘Web Summit’, que usou “… uma retórica de guerra em que o vírus era o inimigo, em que ou a pessoa estava connosco ou com o vírus. Penso que este plano de comunicação foi importante para as pessoas perceberem que não podiam ficar em casa sem vacinação.

    Portanto, não sendo censura propriamente dita, mas uma quase exigência de acatamento sem crítica, sem questionar, como se de uma ordem (militar) se tratasse, em que a conclusão de actuação diversa era estarmos “ao lado do inimigo”, com todas as consequências associadas (a palavra “traidor” vem à mente).

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    Um último exemplo, aqui, será a da opinião do médico intensivista Gustavo Carona, o qual, em artigo publicado no jornal Público a 14/12/2021, escreveu que “(…) a única forma de não tornar a pandemia uma arma de arremesso político é compreender que o negacionismo/relativismo/obscurantismo é um cancro que mata, e que em matéria de ciência não há vergonha nenhuma em ser um “aceitacionista acéfalo” e acreditar na seriedade e competência das autoridades de que vamos precisar, (…) porque é isso que a comunidade científica nos está a dizer, para melhor nos protegermos da Ómicron.”.

    Só para deixar claro, um médico sustenta que em matéria de ciência se deveria ser “aceitacionista acéfalo” e acreditar na seriedade e competência das autoridades… Não nos lembramos, no método científico, quer nas variantes dedutiva, indutiva, ou outras, da fase ou etapa metodológica de “acreditar”.  

    Também a Guerra na Ucrânia, invadida pela Rússia (poderíamos abordar outros conflitos armados/invasões hodiernos, como sejam o Tibete, ocupado pela China desde 1950, a expansão anual dos colonatos israelitas na Palestina, ou a Síria, ainda hoje invadida e ilegalmente ocupada, pelo menos, por turcos e israelitas – isto se quisermos abordar o assunto da(s) Soberania(s) de um ponto de vista intelectualmente honesto, conforme Jean Bodin teorizou o conceito), é terreno fértil para a manifestação dos fenómenos ora em análise.

    Não sendo necessário afirmar a absoluta objecção a qualquer tipo de guerra e oposição a qualquer actividade com custo de vidas humanas, e sem nos delongarmos em demasia, salientaremos alguns aspectos que julgamos fundamentais.

    Em primeiro lugar, o assumir enquanto dogma, que a acção do Presidente Putin corresponde ao “delírio de um louco” (como verificamos mais do que um comentador afirmar), novamente, desumanizando-o, tornando-o no “inimigo” de todos os “sãos”, reduzindo-o a algo incompreensível, ao invés de se tentar compreender todos os factores, estratégias e contextos que terão levado a esta tomada de acção.

    Mendes Corrêa constatou algo similar quanto ao estudo de delinquentes, em que na altura, as pessoas normais, sãs, eram as menos estudadas, mas a maioria das que cometiam crimes, uma vez que existia um preconceito ao se pressupor que o comportamento desviante na prática de crime deveria ter na base um problema mental. Compreensão esta que não implica, obviamente, defender como legal ou admissível a invasão de um país, seja a Ucrânia, o Iraque ou qualquer outro.

    De resto, subscrevemos a análise do Professor J. Mearsheimer, da Universidade de Chicago, o qual em Junho de 2015 deu uma palestra com o título “The Causes and Consequences of the Ukraine Crisis”, o qual atribui a corrente situação geopolítica à acção dos poderes políticos do Ocidente, numa lógica de “balance of power politics”, o que não invalida que reconheçamos o autoritarismo patente na Rússia de hoje.

    No mesmo sentido, o Major-General Raúl Cunha, comandante de forças NATO na antiga Jugoslávia, em declarações ao jornal online ‘setenta e quatro’ (publicado a 17/03), referiu que “Eu próprio me enganei, convenci-me que havia bom senso e que iam aceitar as linhas vermelhas de Putin. Oito anos de guerra no Donbass, 14 mil mortos, assinados os Acordos de Minsk com o testemunho do presidente da França, Holland, Merkel e Putin. Então? Cumpram os acordos que assinaram. (…) Putin avisou em 2007 sobre o que pensava, depois pediu, repetiu e pôs forças na fronteira, como quem diz: ‘Ou vocês fazem aquilo que ando há séculos a pedir ou ataco’.”, acrescentando ainda, a propósito da presença neonazi na Ucrânia, que “ao nível sobretudo das forças armadas e das forças de segurança estão infiltrados a todos os níveis, estão infiltrados ao nível do comando das forças armadas da Ucrânia, atenção. Um dos conselheiros do chefe de Estado-Maior General ucraniano foi o primeiro comandante do Batalhão Azov.” Isto apesar de ter consciência que, hoje em dia, “Esta malta gosta pouco de ouvir opiniões contrárias. Aqui é um bocado assim. O pensamento único está a imperar neste momento. É uma coisa assustadora.

    Este impingir de ideias, e manipulação de termos, sobre um determinado assunto, sem permitir outras diferentes (falácias do ângulo morto e da confirmação), apenas encontra paralelo no famoso ‘Luntz Document’ de 2009, um dicionário de linguagem com o objectivo de servir o “The Israel Project”, passando a mensagem através de “words that work”, como se pode ler no citado documento. Paradigmaticamente, nas próprias palavras do seu autor, Frank Luntz: “And remember, it’s not what you say that counts. It’s what people hear.”

    Por outro lado, de um ponto de vista mais imagético, a jornalista do órgão MSM CNN americano, Christiane Amanpour, no passado dia 28 de Fevereiro publicou uma foto sua, no seu perfil de Facebook, a propósito da cobertura jornalística dos esforços diplomáticos do presidente francês quanto ao conflito armado na Ucrânia, onde envergava um casaco camuflado. Nada de extraordinário, não fosse encontrar-se a fazer reportagem… em Paris, muito longe dos tiros e bombas do conflito.

    Perguntamos, senão alarmismo e condicionamento da opinião pública, que lógica ou intenção poderá estar na base da decisão de se apresentar desta forma perante as câmaras, sem necessidade real?

    Deverão os jornalistas, quando reportam sobre Saúde, envergar uma bata médica?

    Ou sobre Justiça, uma toga, quiçá uma beca?

    A militarização da sociedade (como são exemplos o caso de Gouveia e Melo na vacinação no âmbito da Pandemia, ou, mais recentemente, o do Brigadeiro General Paulo Viegas Nunes na presidência do SIRESP, empresa pública), em especial das suas “forças vivas”, inclusive uma denominada “4º Poder” como o é o jornalismo, não pode ser considerado como algo positivo, não onde o bom-senso impere.

    Por último, quanto a esta análise, causa-nos elevada estranheza as críticas efectuadas a quem procura analisar o que se passa na Guerra da Ucrânia com objectividade ou considerações diferentes das “aceites” na cartilha única que os MSM permitem.

    Falamos em concreto das objecções do “whataboutismo” e do princípio da autodeterminação dos povos, ainda decorrente da aplicação do Direito Internacional, por um lado, e, por outro, das objecções às críticas à Ucrânia (da sua actuação, pelo menos, desde 2014, concretamente do papel que a extrema-direita neonazi desempenhou e continua a desempenhar no país, os incidentes em Maio desse ano em Odessa, a perseguição e detenção de jornalistas sem julgamento, como o caso de Kirill Vyshinsky, o já afamado conflito no Donbass, ou a interferência de potências estrangeiras como os EUA).

    No primeiro aspecto, dá-se o caso de uma contradição evidente: se não se pode alegar outras situações idênticas ou similares, como o da Síria, Iraque (2003) ou Iémen, enquanto paralelos de análise e compreensão, uma vez que se trata “deste caso concreto, da invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin”, segundo vemos/ lemos/ ouvimos sustentar, então não se pode, ao mesmo tempo, alegar o Direito internacional para alocar à Ucrânia o direito de integrar a União Europeia ou a NATO, em decorrência do princípio da autodeterminação dos povos e da sua Soberania.

    Ou se analisa o problema do ponto de vista do Direito internacional ou do ponto de vista da realpolitik (“balance of power politics”), ou no plano do ‘Dever-Ser’ ou do ‘Ser’.

    Se formos intelectualmente sérios, não se pode escolher consoante o argumento que nos dá mais jeito. Além do mais, quando os Estados Unidos, “líderes” do Ocidente, aplicam a Doutrina Monroe, como ficou patente com o caso de Cuba, na crise dos mísseis de 1962, que se tratou não só de uma manifestação explícita da visão da realpolitik, como a sua tese de base é a mesma que esteia, essencialmente, a actuação da Rússia neste cenário actual (como de resto aconteceu em 2008, com a invasão da Geórgia, após a declaração final da Cimeira de Bucareste desse ano, da NATO, em que se assumia, no ponto 23, a intenção de incorporar a Geórgia e a Ucrânia nesta aliança militar), desde logo só “permitida” pela viciação existente nas Nações Unidas, quanto aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança e o seu direito de “veto” – nr.º 3 do art. 27.º da Carta das Nações Unidas.

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    Quanto ao segundo aspecto, mais uma vez, não se pode silenciar ou “cancelar” quem tem uma opinião ou interpretação diferentes.

    Desde logo, apelidar três Generais, militares que comentam no espaço público, como “putinistas”, como o Expresso fez, dando eco a esta narrativa, é, no mínimo, tentativa de “assassínio de carácter”.

    Como o são as recentes noticias da Visão e Diário de Notícias sobre Alexandre Guerreiro, aliás com afirmações, depois verificadas, falsas. De resto, a interferência dos Estados Unidos (e, por inerência, da NATO) na Ucrânia está mais que demonstrada, não só agora pela “ajuda” militar, não só no passado com a conversa telefónica que caiu no domínio público entre Trump e Zelensky sobre os interesses de Joe Biden (o agora Presidente americano, note-se) e o seu filho, mas particularmente pelo recente reconhecimento da existência de laboratórios de investigação biológica naquele país por Victoria Nuland, sub-secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros dos Estados Unidos.

    Não sendo, aliás, despicienda a ligação desta política ao aparelho de estado americano, porquanto é casada com Robert Kagan, conhecido neoconservador fundador do PNAC – Project for the New American Century – think tank cujo um dos esteios era a promoção da liderança americana e exportação dos valores da democracia liberal, isto é, a doutrina expansionista que tem guiado a política externa americana, e por inerência, a expansão da NATO, em particular em direcção à Europa de Leste). 

    A solução, já o escrevemos no passado, passa necessariamente pela Educação, por termos membros da sociedade mais capazes de compreender e criticar a realidade motu próprio, ainda que tenhamos consciência que é hipótese que demora 20 ou 30 anos a surtir efeito, pelo que ontem já era tarde para começar.

    Infelizmente, o sentido das recentes alterações legislativas das ‘Aprendizagens Essenciais’ (efectuadas, com pouca discussão no fórum público), com eliminação dos currículos escolares existentes até agora, vão no sentido oposto ao desejável. Como defendeu, em 1956, o filósofo judeu alemão Günther Anders, na sua obra ‘A obsolescência do homem’: “(…) O ideal seria formatar os indivíduos desde o nascimento limitando suas habilidades biológicas inatas… Em seguida, o acondicionamento continuará reduzindo drasticamente o nível e a qualidade da educação, reduzindo-a para uma forma de inserção profissional. (…) Especialmente sem filosofia. Mais uma vez, há que usar persuasão e não violência direta: transmitir-se-á maciçamente, através da televisão, entretenimento imbecil, bajulando sempre o emocional, o instintivo. Vamos ocupar as mentes com o que é fútil e lúdico. (…) Qualquer doutrina que ponha em causa o sistema deve ser designada como subversiva e terrorista e, em seguida, aqueles que a apoiam devem ser tratados como tal.” Assustadoramente na mouche, diríamos.

    A polarização da visão do mundo, da nossa actuação e expressão nele, não é apta a melhorar o status quo. É mesmo contraproducente porque convoca, precisamente, o nosso oposto, quando a realidade não é simples, assim “preta e branca”, mas complexa, multifactorial, cheia de matizes de cinzentos, desde logo a partir das nossas próprias limitações de intelecção.

    Não podemos desumanizar ou demonizar quem questiona, quem discorda de nós. É preciso compreender o outro, os outros, o mundo. É assim que o conhecimento evolui.

    Bem-hajam, entre outros e os já citados acima, os Manuel Loff e as Raquel Varela deste mundo.

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    Aliás, nas palavras desta última excelsa Professora (em post na sua página de Facebook, de dia 30/03): “Os critérios, amplamente conhecidos dos académicos críticos, são a metodologia que sustenta os argumentos, a coerência, a intenção da verdade, a verificação externa de argumentos, a fiabilidade das fontes, etc. O combate pelo conhecimento e pelo acesso à verdade faz-se com educação e politização, com debate aberto, com desenvolvimento de uma ciência livre de pressões do Estado e do Mercado (…). Não se faz com censura. Não se luta contra as ideias – que consideramos erradas – à chapada.

    A Liberdade de Expressão é, na (correcta, pensamos) acepção de alguns autores, vital ao pensamento humano e ao conhecimento societário. A acção do intelecto, vulgo pensar, é, em grande medida, internalização do discurso, cujas palavras/ ideias assim expressas criam, condicionam, e alteram caminhos neuronais, literalmente.

    É, por isso, um acto de coragem, aceitar poder estar errado umas vezes, para estar certo numa, que fará a diferença. Aos investigadores, em especial, cumpre questionar quando mais ninguém o faz.

    Inspector da Polícia Judiciária, licenciado em Direito e mestre em Direito e Segurança

    Autor do livro Contra-Terrorismo – Tópicos Essenciais e a Unidade CT “Ideal”


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As “bolhas” nas escolas

    As “bolhas” nas escolas


    O meu nome é Ana Raquel Serra Evaristo e sou mãe de uma criança de oito anos que frequenta a EB1/JI do Bairro Novo no Seixal.

    Fui desde cedo crítica das medidas aplicadas nas escolas, sobretudo pela desproporcionalidade e pela diferença na actuação entre as próprias escolas, que adoptaram cada uma as medidas que entenderam…

    No auge da pandemia (ainda a minha filha andava na pré), vi-a a chorar em frente ao computador, a dizer que não queria ver os amigos assim, que queria estar com eles na escola. No regresso à escola em 2020, tive que pedir que não lhe aplicassem tanto álcool-gel nas mãos por lhe estar a fazer alergia.

    No primeiro dia de aulas em 2021 (já no primeiro ano), uma das meninas da sala dela, ficou a chorar no recreio sem entrar na escola. Precisava claro, de um último abraço ou de mais um bocadinho de conforto, mas os pais não podiam entrar, e as auxiliares entre aplicar álcool-gel a quem entrava e assegurar o distanciamento social, limitavam-se a dizer-lhe para entrar na escola, aos gritos e gesticulando.

    Foi a minha filha que, por indicação minha, lhe deu um abraço, lhe deu a mão e confortou a amiga, e assim entraram as duas na escola. Devia ter sido um dia de alegria, mas saí dali com o coração pesado.

    red and yellow metal frame under blue sky during daytime

    A minha filha anda agora no 2º ano, e não conhece o recreio de outra forma, a não ser em “bolhas”. Mesmo apesar do Referencial Escolas, para controlo da transmissão de covid-19 em contexto escolar, ter sido revogado, e de as mais recentes orientações da Direcção-Geral da Saúde (DGS) nada referirem quanto à necessidade de distanciamento social nas escolas.

    Contactei a escola, em busca de esclarecimentos, e fui encaminhada para o Agrupamento. As respostas que obtive foram totalmente desfasadas da realidade e desprovidas de qualquer enquadramento legal.

    Contactei vários pais. Poucos concordam com as “bolhas”, mas nenhum se atreveu a questionar, ou a procurar esclarecer a situação, e quase todos demonstraram um desconhecimento total das orientações em vigor.

    Senti-me impotente para enfrentar sozinha este processo e contactei vários advogados e entidades. Apenas o Dr. Paulo Edson da Cunha acedeu a avançar comigo, assim como a organização Habeas Corpus, que deu o seu contributo com um parecer que suportava a nossa causa.

    E em boa hora o fiz. Durante mais de uma semana tentámos gerir um gigantesco muro de silêncio ou de respostas cheias de nada. Sem a ajuda do Dr. Paulo Edson da Cunha dificilmente eu teria conseguido avançar.

    Iniciámos, pois, uma escalada de contactos que implicou voltar a inquirir a direcção do Agrupamento, para construir um caso sólido. Eu a insistir numa actuação rápida, o Dr. Paulo Edson da Cunha a gerir a minha ansiedade, e a explicar que eram passos pequenos, e que embora parecessem retrocessos, teriam que ser dados.

    O Agrupamento recusou a realização da reunião que solicitámos e encaminhou para a Direção Regional de Educação de Lisboa e Vale do Tejo (DSRLVT). A DSRLVT devolveu para o Agrupamento. Recorremos à DGEstE (Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares), que encaminhou para a DGS e para o respectivo delegado de saúde da área. A resposta ainda a esperamos, e assim andámos, num processo kafkiano, sem que nenhuma entidade fosse capaz de esclarecer de forma clara, objectiva e directa, acerca do enquadramento legal e o que é que suportava a continuação das “bolhas” no recreio.

    group of people wearing white and orange backpacks walking on gray concrete pavement during daytime

    Estas diligências aconteceram maioritariamente durante a pausa lectiva da Páscoa, e face à ausência de respostas, informámos que estaríamos dispostos a recorrer judicialmente para obter, por essa via, o que não estávamos a conseguir junto das entidades competentes.

    Surpreendentemente, ou talvez não, no primeiro dia de aulas “surgiram” orientações da  Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE) indicando que “as crianças que se encontrem no espaço exterior, na altura do intervalo escolar podem circular/interagir livremente (…)”

    Gostaria muito de dizer que a história acaba aqui, mas infelizmente ainda não.

    Quando fui buscar a minha filha à escola ao final do dia, disse-me bastante entusiasmada que já não havia “bolhas”. No desenvolvimento da conversa, percebi que afinal ainda existiram duas “bolhas” e que as auxiliares ainda não agiam de forma uniforme, umas já não dando importância à circulação das crianças, outras insistindo na permanência nas mesmas.

    O meu coração gelou, a pensar que afinal ainda não podíamos cantar vitória e lá se passou mais uma noite mal dormida, a pensar no que faríamos a seguir, caso as “bolhas” não fossem totalmente removidas.

    No dia seguinte lá estávamos junto da escola, à hora do intervalo para perceber o que aconteceria às “bolhas”. Felizmente, desapareceram! Vimos um recreio cheio de meninos a circular livremente e a finalmente interagir sem nenhum constrangimento.

    Resta-lhes agora ser crianças, brincar muito e recuperar destes dois anos de falta de interacção. O meu coração de mãe está agora mais leve e infinitamente mais feliz, e com a certeza de que tudo fiz para garantir à minha filha nada menos do que lhe é devido enquanto criança.

    “Bolhas” no recreio, só se forem das de sabão, para as crianças brincarem com elas!!


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O mito da transmissão dos assintomáticos: debates impedidos, danos descomedidos

    O mito da transmissão dos assintomáticos: debates impedidos, danos descomedidos


    NOTA DA DIRECÇÃO (30/03/2022)

    O PÁGINA UM publicou este artigo de opinião no pressuposto de ser uma actualização de um artigo publicado em 9 de Maio de 2021 no Observador, intitulado “Da fraude científica à ruína dos povos: o mito da transmissão por assintomáticos”, da autoria de Miguel Menezes e Tiago Mendes.

    Constatámos, entretanto, que tanto o artigo do Observador como o artigo ora publicado no PÁGINA UM segue uma linha de raciocínio muito semelhante ao artigo publicado em 6 de Março de 2021 no jornal The Blind Spot, da autoria do seu director Nuno Machado.

    O artigo de Miguel Menezes no PÁGINA UM, embora desenvolva muitos aspectos mais recentes sobre a temática em causa, cita e desenvolve pelo menos oito das 15 referências bibliográficas usadas antes por Nuno Machado.

    Note-se que Miguel Menezes não faz qualquer referência ao artigo anterior de Nuno Machado. Mesmo se estamos perante um artigo de opinião, e tratando-se este de um artigo de opinião com elementos relevantes do ponto de vista científico, estamos perante uma situação que se poderá considerar um plágio.

    Aos leitores fica este aviso. E ao The Blind Spot, e particularmente ao seu director Nuno Machado, o nosso pedido de desculpas mesmo se por algo alheio e involuntário.

    O artigo original de Nuno Machado no The Blind Spot pode ser lido AQUI.



    No início de Fevereiro, a directora-geral da Saúde, Graça Freitas, admitiu o fim do isolamento para casos positivos assintomáticos. Tratou-se de uma admissão da não transmissibilidade dos assintomáticos, ou pelo menos, da não relevância destes para o desenrolar da pandemia? Como se explica este aproximar à evidência científica depois de tantos danos causados pelas medidas adotadas?

    A ideia da transmissibilidade de assintomáticos foi um ponto chave para justificar as medidas impostas, embora nunca tenha sido provada cientificamente. Na verdade, o presente artigo apresenta abundantes evidências que apontam precisamente para o oposto.

    Verificou-se desde cedo um grande condicionamento na divulgação de informação, apresentando-se uma ideia nova e não fundamentada como se de um facto irrefutável se tratasse, impedindo assim o debate, ao rotular e conotar todos os dissidentes negativamente.

    brown bear plush toy on white textile

    A ausência de informação heterogénea em relação a vários temas da atualidade, reprime o pensamento crítico e conduz ao desconhecimento sobre a realidade, o que acontece sobretudo na questão pandémica, facto que contribuiu para a incomensurável e cada vez mais notória degradação da nossa sociedade.

    Os danos causados pelas medidas de contenção tiveram por base informação divulgada de forma imprecisa, distorcida e amiúde falsa, sem direito ao contraditório e por quem ocupa posições de poder. Promoveu-se um pensamento unilateral, e consequentemente, a crença de que as consequências se devem à pandemia e não às medidas, ilibando os decisores de responsabilidades.

    Este artigo resulta de uma revisão completa da literatura científica acerca do tema, além dos acontecimentos que conduziram à adoção generalizada da crença no mito da transmissão por assintomáticos e alguns exemplos das suas consequências gravosas.

    1 Origem do mito

    Historicamente, o papel dos assintomáticos na transmissão de infeções respiratórias foi sempre relativizado. A ideia, quase consensual, sempre foi a de que a transmissão assintomática seria muito mais rara e menos importante do que a que ocorre nas pessoas com sintomas.

    Anthony Fauci, diretor do National Institute of Allergy and Infectious Diseases norte-americano e um dos principais membros da equipa da Casa Branca destacada para a COVID-19, afirmou a 28 de janeiro de 2020:

    “O que as pessoas precisam perceber é que, em toda a história de vírus respiratórios de qualquer tipo, mesmo que haja alguma transmissão assintomática, esta nunca foi a propulsora de surtos. Os surtos são sempre essencialmente dependentes do contágio em pessoas sintomáticas. Mesmo que haja um raro evento de transmissão por uma pessoa assintomática, uma epidemia não é causada por nem evolui com base em portadores assintomáticos.”

    Dois dias após a declaração de Fauci (a 30 de Janeiro de 2020), surgiu uma carta dirigida aos editores e publicada no New England Journal of Medicine (NEJM) com um caso de uma transmissão por um indivíduo assintomático.

    O polémico Fauci, que tem sido muito criticado por alegados conflitos de interesse com a Indústria Farmacêutica, reformulou subitamente toda a sua posição anterior, afirmando:

    “Não há dúvidas, depois de ler a carta [do NEJM], de que a transmissão assintomática é uma possibilidade (…). Isto esclarece a questão.”

    person holding white and gray digital device

    Esta posição de Fauci, aparentemente definitiva, daquele que é denominado frequentemente como “o maior especialista em doenças infeciosas dos Estados Unidos”, atraiu enorme atenção mediática. No entanto, o citado estudo apresenta irregularidades irreparáveis.

    O estudo foi baseado no suposto contágio a partir de uma mulher de negócios chinesa numa visita à Alemanha. Na carta, os autores do estudo referiam:

    “Durante a sua estadia, ela estava bem, sem sinais ou sintomas de infeção, mas adoeceu no voo de volta para a China.”

    Essa informação revelou-se falsa.

    A cidadã chinesa apresentava realmente sintomas durante a sua estadia na Alemanha, quando entrou em contacto com o alemão que adoeceu, como relatado pela revista Science, poucos dias após a publicação da carta. O Instituto Robert Koch (RKI), a agência de saúde pública do governo alemão, em conjunto com a Autoridade de Saúde e Segurança Alimentar do estado da Baviera contactaram a mulher chinesa somente após a publicação do NEJM.

    Na Alemanha não foi realizado qualquer teste para confirmar a eventual infeção com o vírus. A cidadã foi testada para o SARS-CoV-2 apenas na China, logo após o seu retorno da Alemanha, tendo sido obtido um resultado positivo.

    Os investigadores não chegaram sequer a interagir com a mulher antes da publicação do artigo.

    Um dos autores, Michael Hoelscher, do Centro Médico da Universidade Ludwig Maximilian de Munique, afirmou que o documento se baseou em informações de outros quatro pacientes:

    “Disseram-nos que a paciente da China não aparentava qualquer sintoma.”

    O virologista Christian Drosten, do Charité University Hospital em Berlim, que fez o trabalho de laboratório para o estudo (do qual é um dos autores), disse à Science:

    “Sinto-me mal com o que aconteceu, mas acho que ninguém foi culpado.” (…) “Aparentemente, a mulher não pôde ser contactada num período inicial e considerou-se que se tratava de algo que deveria ser comunicado rapidamente.”

    woman lying on white textile

    (Nota: Christian Drosten tem estado envolto em polémica, por vários motivos, em relação a toda a questão da COVID-19. Um desses motivos é por ter criado o criado o protocolo do teste RT-PCR para a COVID-19, muito contestado pela comunidade científica.

    Causa estranheza a publicação de uma carta tão fracamente fundamentada numa revista científica conceituada, e sobretudo as repercussões que teve ao gerar peso mediático suficiente para que a transmissibilidade dos assintomáticos viesse a ocupar um papel chave no corpo conceptual relativo à COVID-19.

    O retratamento dos autores da carta não chegou para que Fauci voltasse a alterar a sua posição relativamente à questão dos assintomáticos.

    A crença de que os assintomáticos constituíam grave perigo difundiu-se e avolumou-se, pelo que as declarações de Maria Van Kerkhove, chefe da unidade de doenças emergentes da Organização Mundial de Saúde (OMS), a 8 de Junho de 2020, caíram como uma bomba ao referir que as transmissões por assintomáticos eram “muito raras”:

    “Possuímos muitos relatórios de países que estão a fazer rastreamentos muito detalhados dos contactos com casos assintomáticos, não encontrando transmissões secundárias. Trata-se de algo raro e que ainda não foi publicado na literatura”.

    As declarações foram divulgadas por toda a comunicação social a nível mundial e provocaram fortes reações. De um lado, reações de perplexidade, dadas as medidas adotadas com base nesse pressuposto; de outro lado, reações críticas. Fauci foi um dos críticos.

    person writing on white paper

    Nalguns casos, as considerações de alguns especialistas, foram bastante divididas no teor. Por exemplo, o professor Keith Neal afirmou que o “papel da transmissão assintomática no número total de novas infeções permanece pouco claro, mas as pessoas sintomáticas são responsáveis pela maioria das novas infeções da COVID-19”. Já o professor Babak Javid referiu que “pode muito bem ser verdade [que os assintomáticos não transmitem]” e que os dados “sugerem que os verdadeiros assintomáticos raramente transmitem.”

    Van Kerkhove apressou-se a fazer nova intervenção, logo no dia seguinte, dando a ideia de algum recuo ou retratação em relação ao que havia proferido. Referiu que a sua afirmação sobre a transmissão entre assintomáticos ser bastante rara baseava-se nalguns estudos e rastreamentos feitos por vários países, mas que tal seria insuficiente para poder afirmá-lo peremptoriamente, porque os modelos informáticos estimaram cerca de 40% de transmissões entre assintomáticos.

    Esta intervenção informou-nos de algo fundamental: os estudos no terreno dizem que as transmissões de assintomáticos são “bastante raras”, mas os modelos informáticos, que não são reais e dependem daquilo que neles é inserido, dizem que são significativas (40%).

    2 – O que disseram as Agências de Saúde?

    Organização Mundial da Saúde (OMS)

    “Com base no que sabemos atualmente, a transmissão de COVID-19 ocorre principalmente em pessoas quando elas apresentam sintomas (…)”

    European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC)

    “As principais incertezas permanecem em relação à (…) dinâmica geral de transmissão da pandemia, devido à evidência limitada sobre a transmissão de casos assintomáticos.”

    3 – Assintomáticos e pré-sintomáticos

    A destrinça que se passou a fazer entre assintomáticos e pré-sintomáticos é curiosa. Quererá assumir-se que os assintomáticos não transmitem? Quererá admitir-se que se tratam de falsos positivos? Porquê a distinção?

    A narrativa dominante sempre se serviu da palavra “assintomáticos” para se referir à ideia de que estes seriam agentes de transmissão, mas à medida que a fragilidade da hipótese se foi tornando evidente, encetou-se a divisão. No entanto, nada se altera, como veremos de seguida.

    woman in black scoop neck shirt wearing white face mask

    Num artigo da Nature, assumia-se que a comunidade científica estava dividida relativamente à questão da transmissibilidade dos assintomáticos.

    Kuppalli, investigadora de doenças infeciosas na Universidade de Medicina da Carolina do Sul em Charleston, citada no artigo, refere que “assintomático é alguém que nunca desenvolveu sintomas ao longo do curso da sua doença, e pré-sintomático é alguém que apresenta sintomas ligeiros antes de desenvolver sintomas”, embora não exista uma “definição padronizada aceite”.

    4 – Testes PCR

    Só se pode utilizar estatística frequencista no cálculo da estatística de teste, quando a doença é muito prevalente na população, o que não é o caso com a COVID-19.

    O Limite de Prevalência para a COVID-19 foi avaliado em 9,3%, abaixo do qual, a Taxa de Falsos Positivos (TFP = 1 – VPP) aumenta de forma exponencial, o que se denomina como Paradoxo dos Falsos Positivos ou Falácia de Taxa Básica.

    No caso da COVID-19, a prevalência nunca foi além dos 1%, estabelecendo-se maioritariamente abaixo dos 0,1% (conforme o fator sazonal). Precisar de uma coorte de 100 mil indivíduos para se encontrar 100 ou 200 positivos é epidemiologicamente considerado uma doença rara.

    Por isso, precisa utilizar-se a estatística Bayesiana, para o cálculo da estatística de teste de rastreio, que considera o valor da Prevalência como fundamental para que se possam calcular o Valor Preditivo Positivo (VPP) e Valor Preditivo Negativo (VPN).

    Esse ponto é referido no ‘FactSheet‘ da Sciensano, onde se salienta, na página 22, que as “sensibilidades e especificidades relatadas devem ser consideradas com precaução. Outrossim, os valores preditivos positivos e negativos do teste dependerão da prevalência do vírus”.

    Ainda que possuísse uma especificidade muito elevada, com prevalências na ordem dos 1% e até muito mais baixas, a TFP estaria sempre muito acima dos 90%, tornando o PCR impraticável como teste de despiste.

    A primeira revisão da literatura que compara o PCR com o Gold Standard (cultura viral e não o PCR, conforme referido ignotamente por alguns), observou que os resultados positivos do PCR só se confirmam laboratorialmente 20 a 40% das vezes, um valor chocantemente baixo.

    No conhecido manual de Epidemiologia Gordis Epidemiology (SixthEdition) (leitura recomendada para alguns epidemiologistas televisivos), da página 107 à 109, surge um exemplo prático bastante instrutivo da influência da prevalência na TFP.

    Um estudo alemão chegou, recentemente, à conclusão que “mais de metade dos PCR positivos não são, muito provavelmente, infeciosos. Desta forma, o teste RT-PCR não deveria ser tomado como uma medida precisa de incidência de infeção pelo SARS-CoV-2.” Isto, por si só, e não sendo necessário recorrer a uma análise ao nível da Biologia Molecular, demonstra o potencial enviesamento que os testes PCR podem introduzir nos estudos de transmissão de assintomáticos.

    gold glitter with jar

    5 – Estudos apresentados para justificar propagar o mito

    São escassos os estudos que sugerem que os assintomáticos têm algum impacto na transmissão, e foram alvo de críticas negativas fundamentadas (algumas reconhecidas pelos próprios autores):

    Na conclusão do estudo refere-se que “apesar da grande heterogeneidade dos estudos, a proporção de infeções assintomáticas entre pessoas com Covid-19 parece alta e o potencial de transmissão elevado.”

    É preciso distinguir “proporção de infeções assintomáticas” de “transmissão assintomática”. O primeiro é o número de pessoas que testam positivo e permanecem assintomáticos. Nada tem a ver com “transmissão”.

    Segundo os autores, os trabalhos que estudaram diretamente a transmissão de assintomáticos foram cinco estudos de série de casos, que no início da pandemia podem ter algum interesse explorativo, mas que oferecem um valor muito limitado em termos de evidência, devido aos vieses associados a este tipo de estudos (sobretudo vieses de seleção) e uma validade interna geralmente muito reduzida. Por isso, os autores recomendam no futuro, a realização de estudos de coorte mais rigorosos. As séries de casos não são estudos epidemiológicos.

    Portanto, esta revisão sistemática carece de qualidade geral, não só pela grande heterogeneidade, como pelo desenho dos estudos revistos.

    O rastreio dos casos foi feito com o teste PCR, mas para o efeito da transmissibilidade, o estudo é baseado numa simulação matemática.

    nude woman and man statue

    Utilizaram uma distribuição contínua de probabilidades (gama) para inferir a distribuição da transmissão ao longo do tempo, tendo como base o início dos sintomas.

    Trata-se de uma simulação cujos resultados dependem da hipótese assumida à priori de que a transmissão começa antes do início dos sintomas. Poderá ter algum interesse como hipótese de trabalho, mas não constitui evidência científica.

    Ainda assim, refere-se apenas 9% das transmissões num período anterior ao início dos sintomas, inferior a 3 dias. Além de ser fruto de uma simulação, esta pequena percentagem, é influenciada pelas várias limitações que o estudo apresenta o que aliás, é reconhecido pelos próprios autores: a) perfil de infecciosidade inferido a partir de pares “infetores-infetados” que pode ter sido enviesado; b) intervalos de série podem ter sido enviesados, desviando o perfil inferido de infecciosidade para o negativo (transmissão antes do aparecimento de sintomas); c) número muito elevado de ciclos de amplificação (ct < 40); d) Transmissões baseadas em inferências.

    Além disso, é um estudo retrospetivo, baseado em relatos pessoais, dependentes da memória, e como tal, menos fiáveis.

    Trata-se de um estudo proveniente da China, pouco replicável noutros pontos e sabendo-se do estrito controlo em relação ao que é publicado naquele país.

    É um Estudo publicado pelo CDC que se identifica como uma “rápida revisão da literatura” e que a nível epidemiológico, se baseia num conjunto de estudos, muito semelhantes no nível científico, com vieses e limitações que comprometem inteiramente o seu objetivo (aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui):

    a) Pequena amostra, sem qualquer robustez estatística (baseiam-se sobretudo em estudos com famílias);

    b) Viés de memória (dados epidemiológicos recolhidos através de entrevistas muito à posteriori, o que incorre em falhas no rigor com que os factos são recordados);

    c) Dependência de um teste PCR positivo.

    Um dos estudos conclui estranhamente, que um indivíduo pré-sintomático infetou familiares, a despeito de se terem iniciado sintomas visíveis enquanto em contacto com eles. Outro,  apresenta o caso de uma família (pai, mãe e filho) que se deslocaram a Wuhan, após o que todos testaram positivo (apenas o pai desenvolveu sintomas). Os autores depreenderam que um dos familiares, pré-sintomático, infetou os restantes, sem ter sido colocada a hipótese de que todos poderão ter sido expostos a uma fonte de contágio comum.

    Estes estudos, sem rigor, equiparam-se ao estudo supracitado, acerca de um alegado contágio a partir de uma mulher de negócios chinesa numa visita à Alemanha. Absurdamente, o mesmo continua a ser citado neste estudo do CDC, como prova da transmissão por indivíduos assintomáticos (ou pré-sintomáticos).

    Infelizmente, muitas das conclusões da investigação científica que se produz atualmente são falsas e os seus autores não revelam reflexividade sobre o seu trabalho, como refere John Ioannidis num ensaio publicado na PLOS Medicine.

    woman standing in front of the digital machine

    Os padrões da prática científica têm decrescido, sendo pautados por uma mediocridade crescente: menor replicação, menor potência estatística e menos rigor no controlo dos vieses. A tendência de minimizar-se custos associada à pressão para publicar e, por vezes, conflitos de interesse, têm tido como consequência um desvirtuamento da qualidade do trabalho científico.

    Esta revisão publicada pela CDC, apresenta ainda “evidências virológicas”, nas quais se reconhece que os relatórios apresentados, não identificaram a transmissão do vírus por pessoas assintomáticas e pré-sintomáticas. Portanto, continua sem se apurar evidências científicas.

    Por último, são apresentadas “evidências” através de modelos de estimativas. Os modelos informáticos de estimativas estatísticas, dependem inteiramente dos dados hipotéticos que neles se insere, podendo falhar rotundamente, como sobejamente se reconhecem exemplos.

    Noutro estudo publicado pela CDC conclui-se que apenas 6,4% das transmissões ocorreram a partir de assintomáticos, mas este pequeno número pode ser explicado por vieses: trata-se de um estudo retrospectivo, onde todos os eventos de transmissão são hipotéticos, não havendo também confirmação laboratorial dos casos primários. Falamos de um estudo observacional, bastante enviesado, com pouca validade interna, na linha dos referidos anteriormente.

    Este estudo utiliza um modelo informático “agent-based” criado pelos autores e inspirado no Covasim, que simula a transmissão de COVID-19 – o chamado SEIR (Susceptible, Exposed, Infectious, Recovered). Como referido anteriormente, os modelos informáticos são suscetíveis de grandes erros, porque dependem inteiramente de hipóteses especulativas. Mencionado no próprio site do Covasim: “Os modelos são tão bons quanto os valores dos parâmetros que neles são inseridos.”

    Outra grande limitação é o facto de se tratar de um estudo retrospetivo, que depende muito da memória de cada participante, para definir quais foram os seus contactos sociais (viés de memória).

    No rastreio em massa foram realizados 566.320 testes RT-PCR dos quais resultaram 1.099 positivos (prevalência de 0,19%). Com uma especificidade de 97% anunciada pelo INSA, perfaz uma TFP de 94.3%, o que por si só, inviabiliza todo o estudo (ainda que a especificidade fosse quase 100%, com este valor de prevalência, a TFP seria altíssima). Portanto, outra limitação inultrapassável. Se o leitor estiver interessado em aprofundar as contas (Teorema de Bayes) pode consultar os seguintes artigos: aqui e aqui.

    white textile on brown wooden table

    Além disso, a amostra foi recolhida através de ação voluntária o que gera um viés de seleção enorme.      

    Apesar de tudo, os resultados (completamente adulterados pelos lapsos referidos), indicam uma Taxa de Ataque Secundário (frequência de novos casos de uma doença entre contactos com os casos primários conhecidos) menor para os assintomáticos.

    Em síntese, trata-se de um estudo que apresenta problemas metodológicos, que o impedem de medir o que pretendia (validade interna), e como tal, não serve para o efeito.

    Um mal-entendido comum por parte de quem utiliza este estudo como evidência da transmissão de assintomáticos é afirmar 100% de especificidade e sensibilidade do teste realizado. Os autores realizaram uma estratégia de amostras combinadas (Pooled Samples) contra amostras individuais. Os 100% de especificidade e sensibilidade são por comparação ao PCR de amostras individuais. O que isso significa é que não se contabilizaram erros na mistura e reanálise da amostragem combinada. Isso não significa que o teste em si tenha 100% de sensibilidade e especificidade, porque o próprio PCR não o tem. A única forma de aferir mais exatamente seria compará-lo com o Gold Standard (a cultura viral, que ainda assim, não chega a uma perfeição, que não existe).

    Este estudo não apresenta também ele, qualquer evidência de que haja transmissão por assintomáticos (ou pré-sintomáticos). Através da distribuição de ciclos de amplificação, o estudo conjeturou que a distribuição de cargas virais é semelhante entre sintomáticos e assintomáticos. A partir daí, hipotetizou-se que os assintomáticos poderiam transmitir tanto como os sintomáticos. Mas o número de ciclos de amplificação é um surrogate marker (marcador substituto) da carga viral, que por sua vez é surrogate marker da possibilidade de transmissão, ou seja, suposições em cima de suposições.

    Qual será o significado de sintomáticos e assintomáticos apresentarem a mesma carga viral? Que o vírus não é causa suficiente para provocar doença. Tudo dependerá do sujeito e do seu sistema imunitário, algo diverso do propagandeado pela narrativa dominante, que desvaloriza o reforço do sistema imunitário por oposição às medidas farmacológicas e não-farmacológicas, na sua maioria, desajustadas.

    Acumula-se robusta evidência científica (aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui), de que as crianças não são agentes de transmissão, o que suporta a ideia de que, o sistema imunitário desempenha um papel chave para a ausência de sintomas e consequentemente, de transmissão.

    6 – Estudos que demonstram que a transmissão por assintomáticos é irrelevante

    O estudo refere que a proporção de casos assintomáticos foi 17%, afirmação sublinhada por alguns. No entanto, é uma afirmação irrelevante que pode induzir em erro (proporção de assintomáticos não é o mesmo que transmissão por assintomáticos).

    O imprescindível do estudo é o seguinte: “as taxas de transmissão assintomática variaram de zero a 2.2%”. A pequena variância acima de zero poderá ser explicada pelos vieses típicos neste tipo de estudos e já enumerados acima, mas o intervalo de confiança começa no zero, pelo que não é estatisticamente significativa para se provar existência de transmissão assintomática.

    Este estudo não observou qualquer transmissão assintomática, no entanto, são válidas algumas limitações ao estudo, elencadas na referida carta ao editor.

    Este estudo observou uma menor probabilidade de transmissão de casos assintomáticos: 0,3% (correspondente a uma pessoa em 305 contactos sociais), um valor com um intervalo de confiança de 0 a 1% (que não encontra prova da existência de transmissão assintomática estatisticamente significativa), e cuja variância acima de 0% é facilmente justificável através dos vieses já referidos.

    Uma das conclusões do estudo, é que a transmissão por casos assintomáticos em casa é pequena, com uma proporção de 0,7%, com um intervalo de confiança a começar novamente nos 0%. É interessante notar que, segundo a literatura científica, a maioria dos contágios se dá entre residentes da mesma casa (aqui, aqui e aqui). Concluir que a transmissão por assintomáticos é nula ou quase nula, num contexto onde é praticamente inviável o distanciamento social e o efeito pretendido do confinamento, é muito significativo para a (in)justificação das deletérias medidas aplicadas.

    Esta revisão da literatura foi desenhada sobretudo para descobrir a proporção de assintomáticos na população de positivos. Ao nível da transmissão por assintomáticos, só foram apurados cinco estudos. Um deles (Lei Luo et al. (2020)) já foi comentado. Os quatro restantes (Cheng et al. (2020), Parket al. (2020), Zanget al. (2020) e Chawet al (2020)) serão comentados mais abaixo. Todos apresentam valores de ataque secundário nulos ou residuais.

    Um estudo publicado na Nature, apresenta uma amostra enorme (N = 10 milhões) e a confirmação laboratorial dos infectados. Nesse estudo, a evidência apontou para uma transmissão assintomática residual ou mesmo nula, as mesmas conclusões que chegaram outras revisões sistemáticas, como a referida anteriormente (Madewell et al. (2020)).

    Alguns críticos justificam estes resultados, ao afirmar que “houve eliminação efetiva do vírus devido a medidas não farmacológicas muito rigorosas”, sem oferecer qualquer prova para o que afirmam.

    Mencionam ainda que “neste caso de baixa prevalência, deveriam aparecer milhões de falsos positivos, que inevitavelmente existem quando se faz um teste PCR”. No entanto, esta crítica é demonstrativa de falta de conhecimentos estatísticos.

    As observações não têm de seguir a estatística, a estatística é um sumário das observações.

    black and silver audio jack

    A especificidade de um teste calcula-se comparando-se com um Gold Standard, não decorrentemente de um rastreio. A prevalência baixíssima faz com que os positivos, qualquer que seja o seu valor absoluto, sejam todos (ou quase todos) falsos.

    O que influencia o valor absoluto é a aleatoriedade dos erros laboratoriais e de recolha, que como tal, podem ter expressão muito elevada em certas condições e muito reduzida noutras (e.g. pressão na produção massificada de testes). A China, com a sua capacidade de produção, não aparenta sofrer deste problema.

    O estudo, ao seguir as recomendações da National Health Commission of the People’s Republic of China, introduziu maior rigor na testagem: resultados positivos só são aceites abaixo de 37 ciclos de amplificação, todas as amostras separadas (e as mistas, quando positivas, são re-testadas em separado) e houve confirmação de cultura viral para os assintomáticos.

    Talvez o maior rigor na testagem (e não as medidas) explique a pouca expressão da pandemia na China.

    O facto de 100% dos casos serem falsos positivos é mais um reforço de que os assintomáticos não importam para a transmissão.

    A maioria dos estudos que investigaram a putativa transmissibilidade de assintomáticos, descobriram ataques secundários nulos ou residuais (estes podem ser explicados pelos vieses já enunciados). Alguns exemplos:

    No que diz respeito aos pré-sintomáticos, também há vários estudos com ataques secundários nulos ou residuais. Alguns exemplos:

    A ligeira superioridade nos números de ataques secundários dos pré-sintomáticos relativamente aos assintomáticos, poderá ser explicada pela dificuldade em comunicar o início exato dos sintomas, em entrevistas epidemiológicas concedidas posteriormente.

    7 – Alguns exemplos dos crescentes prejuízos (dificilmente quantificáveis) decorrentes das medidas aplicadas:

    Um estudo da Universidade Nova de Lisboa refere a enorme redução de cuidados de saúde prestados, e um aumento da mortalidade que seria evitável.

    O site da Transparência do Sistema Nacional de Saúde (SNS), informa-nos que em 2020 ficaram cerca de 11 milhões e meio de consultas por realizar em centros de saúde, 26 milhões de atos de diagnóstico, 126 mil cirurgias e 400 mil rastreios oncológicos. O mesmo site dá conta de uma grande diminuição da Taxa de Ocupação Hospitalar relativamente a 2019.

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    Um estudo descobriu um aumento de 7,8% da incidência de stress cardiomiopático em 2020, comparado com as incidências pré-pandémicas que variaram entre 1,5% e 1,8%. Ou seja, pessoas a morrer, literalmente de medo, resultante do alarmismo gerado.

    No Reino Unido registou-se um aumento de suicídios e tentativas de suicídio infantis, sobretudo em crianças com necessidades educativas especiais (tal como o Autismo), que se crê ser devido às alterações nas rotinas, produzidas como medidas preventivas.

    Devido às medidas adotadas, cerca de 5 mil pessoas que sofreram ataques cardíacos, em Inglaterra, não puderam dispor de auxílio médico, que seria indispensável para que pudessem ter hipótese de sobreviver.

    Em Abril de 2020, foram registados em Inglaterra e País de Gales, 10 mil casos de demência a mais do que o habitualmente, em igual período dos anos anteriores. Ainda há a lamentar 83% mais mortes por demência do que é habitual. Julga-se que estes números se devam ao isolamento social e restantes medidas aplicadas. Os números foram recolhidos pelo Gabinete Nacional de Estatísticas do Reino Unido.

    Já em Julho de 2020, os especialistas sugeriam que o confinamento tinha matado cerca de 21 mil pessoas em Inglaterra. A análise foi feita pelas Universidades de Sheffield e de Loughborough e pelos economistas do Economic Insight. Acrescentam ainda que as medidas de distanciamento social poderão dar continuidade a essa mortalidade.

    Vários especialistas têm demonstrado a sua preocupação com o enfraquecimento do sistema imunitário das crianças devido ao distanciamento social, conforme advogado pela hipótese higiénica, naquele que é apenas um pequeno exemplo dos problemas ao nível da saúde das populações resultantes das medidas aplicadas.

    Nem os animais escaparam à histeria alarmista. Na Dinamarca abateram-se 17 milhões de Martas, na Holanda e em Espanha, 1 milhão.

    Em Portugal, em Outubro de 2020, era noticiado o falecimento de 7 mil pessoas em excesso não causadas pela COVID-19. Atualmente, o número é seguramente, muito superior.

    Poderia continuar-se indefinidamente conquanto os exemplos são intermináveis, mas seria um exercício que fugiria ao escopo do atual artigo.

    A causa efetiva da devastação é a insensatez na aplicação das medidas.

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    O recrudescimento da inflação observada nos dias atuais, foi também, em parte, potenciada pelas medidas. Colocou-se a impressora dos bancos centrais a trabalhar a todo o vapor, ao mesmo tempo que se congelou a economia.

    Como tal, tem sido notória a tentativa de “lavar a cara”, associando todos os prejuízos humanos e não-humanos à pandemia, inclusive, recorrendo a um sobredimensionamento de diagnósticos e certificados de óbito por COVID-19, que nem assim, permite explicar o excesso de mortes registado.

    O Dr. António Ferreira, Médico, Professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e Presidente do Conselho de Administração do Hospital de São João, num artigo onde analisa a frieza dos números, atribui a pressão sobre o Sistema Nacional de Saúde à impreparação, falta de planeamento e desorganização. Mas estes são dados que se tenta evitar, com a justificação de que, debate-los é colocar vidas em risco. Mas como se verificou pelas linhas acima, omiti-los tem tido piores repercussões.

    8 – Conclusão

    Sintomas como a tosse, espirros e corrimento nasal (isolado ou associado a espirros) parecem ser determinantes para a disseminação dos vírus respiratórios. O sistema imunitário reduz a carga viral abaixo de um limiar onde não existem sintomas; e, se não há carga viral suficiente, não pode haver contágio para terceiros.

    A única forma de obter evidências científicas conclusivas acerca da transmissão de assintomáticos (ou pré-sintomáticos), seria realizar um Random Control Trial (estudo randomizado controlado) bem concebido, impossível devido a constrangimentos éticos, pelo que se recorre a estudos observacionais e de modelagem muito limitados, sendo que ainda assim, os primeiros demonstram na sua maioria, que os assintomáticos pouca ou nenhuma expressão têm na transmissão.

    A posição da Epidemiologia sensivelmente, ao longo dos últimos cem anos foi a de que os assintomáticos não são transmissores de doença respiratória. As evidências científicas concluíram o mesmo relativamente ao SARS-CoV. Para contrariar o que está estabelecido, seria necessário que fossem apresentadas sólidas evidências científicas. Mas, por mais pressão que tenha sido exercida nesse sentido, não há evidências científicas para contrariar um século de evidências epidemiológicas.

    A forma como se alterou um paradigma científico com décadas de existência, contrariando a evidência científica, tem tanto de surpreendente como de preocupante e constitui um sério alerta para a fragilidade do atual edifício científico, que tem vindo a ficar gradualmente mais dependente de interesses económicos.

    Visualization of the Coronavirus

    Em Epidemiologia é essencial escrutinar qualquer tendência emergente em Saúde Pública: será real ou estará a ser causada por algum viés? Obviamente, não foi o que sucedeu com a COVID-19, onde a pressão para a conformidade com a narrativa dominante impediu qualquer tipo de contraditório.

    O ambiente gerado em torno desta situação é hostil ao desenvolvimento da Ciência (sobretudo Epidemiologia) que se deseja neutra e imparcial, condição sine qua non para minimizar os potenciais vieses. Pelo contrário, as condições criadas foram propícias à sua proliferação.

    O debate foi silenciado com apelos à responsabilidade, como se debater fosse gerar comportamentos irresponsáveis, denotando somente a fragilidade de uma posição que se desejou manter inquestionada.

    A narrativa dominante nunca questionou as consequências das medidas não-farmacológicas, e estas têm sido amplamente ocultadas ou justificadas com outras causas. No entanto, têm e continuam a ser devastadoras.

    Este artigo é um apelo ao debate, como condição essencial para uma maior consciencialização nas escolhas e responsabilidades individuais. Os debates permitem que cresçamos coletivamente, facilitando a difusão de uma informação mais autêntica e enriquecedora.

    Psicólogo com formação em Epidemiologia


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A democracia e o Chega: um conflito (aparentemente) indelével

    A democracia e o Chega: um conflito (aparentemente) indelével


    A democracia é, entre outras coisas, a possibilidade. A de mudar os governos e as suas ideologias, dialogar pela mudança, fazer oposição ao dominante do momento e aceitar este enquanto vigora.

    A diferença de opiniões e, portanto, o pluralismo, é essencial para o escrutínio e para uma eficácia que se traduza na aplicação de uma determinada lei, preceito ou regra, e que estas, quando aplicadas, realmente produzam efeitos positivos nos representados e/ou eleitores.

    Na ordem dos últimos tempos, está a ascensão de um partido cuja ideologia e programa é constantemente apelidada de antidemocrática, exclusiva – aqui assumindo o significado de ser o oposto à percepção do que é ser inclusivo –, racista, populista, xenófoba e extremista.

    Uma vez que vivemos na era dos exageros, de uma intolerância atroz e perseguição a quem não caia no politicamente correto e, portanto, no discurso dominante, é de bom tom (para não dizer, útil) que se procure no conteúdo programático do Chega, sinais claros e inequívocos que possam consubstanciar todo este aparato e indignação.

    André Ventura, presidente do Chega

    O programa do Chega divide-se em 13 pontos que se distribuem em diversas áreas, desde a definição de um modelo familiar, ao papel do Estado e mudanças do atual sistema social, económico e até militar.
    Importa fazer um apanhado desses pontos na tentativa de verificar a correspondência entre as catalogações, acima mencionadas, e o conteúdo programático.

    Não se terá em conta as ideias eficazes, não porque não terão mérito, mas porque a boa ideia política não precisa de prémio – ela é o que todas as outras devem ser.

    O foco deste artigo é, assim, fazer uma observação às medidas deste partido através da lente dos soundbites julgadores, e se fazem sentido as críticas de que é alvo.

    Ponto Um

    Focando logo no primeiro ponto do programa do Chega, aparece desde logo uma enorme ênfase à família, para depois mencionar a criação de um Ministério dedicado ao tema, e aplica ainda o termo conservador no que toca à ideia de que a família natural é entre um homem e uma mulher.

    Quanto à ideia da inclusividade, pouco haverá a dizer, uma vez que parece evidente o que esta ideia deixa de fora, ou seja, todo o modelo familiar que o transgrida, desde a família monoparental à homossexual.

    Importa ainda falar do conceito de família e como está relacionada, nos meandros conservadores, com o modelo pós-guerra americano, cujas forças disseminadoras tanto têm de marketing político (como o kitchen debate, em que à família lhe era dita quais os papeis a desempenhar e, portanto, o lugar de cada um na sociedade), como de construção social.

    Não é, portanto, um modelo imutável nem verdadeiro. É um hábito, e apenas isso; e, em nome desse hábito, criou-se a heteronomia e a dominância desse modelo. Essa é a grande confusão das tradições e a resistência aos zeitgeists.

    Ainda há que realçar que uma relação íntima é, por definição, uma aproximação entre pessoas, e que só a essas pessoas diz respeito, pelo que afirmar que a intimidade entre heterossexuais tem um valor mais intrínseco, ou superior, não faz qualquer sentido objetivo. Em nada é eficaz, a não ser na “desdemocratização” da escolha.

    Ponto Dois

    Neste ponto, o Chega submete a desresponsabilização individual ao socialismo falando numa espécie de hiper-solidariedade que levou à corrupção, falhanço moral e toda uma série de impropérios que esconde o liberalismo que este partido parece defender (por exclusão de partes). E, embora não caia diretamente na análise deste artigo, também carece de explicação objetiva para esta ligação entre desresponsabilização e alguma qualquer ideologia política.

    Ponto Três

    Este ponto apela ao orgulho nacional com expressões como o território ancestral, o direito inalienável de se defender a dignidade, a história secular e a busca pela verdade.

    Aqui o que se deduz é um puro-nada. Se o orgulho em ser português é exaltado a despeito de outras comunidades ou minorias – e em busca de uma verdade que não é explicada –, entramos num completo vazio que, em nome de um simbolismo romântico, nada faz mais do que perseguir e classificar o outro, criando um clima de divisão, que aí sim, é antidemocrático, exclusivo e convida a xenofobia e o preconceito.

    Importa ainda dizer que o espírito aventureiro português, que nos trouxe os Descobrimentos e a Diáspora, foi possível devido a outras enormes características do português: a adaptabilidade e a flexibilidade de inserção em outras culturas, o que parece indicar uma abertura à inclusividade, multiculturalismo e jogo de cintura. São características que chocam com o rigor (mortis) do conservadorismo e tradição.

    Ponto Quatro

    Este ponto é o liberalismo em sede populista, como uma espécie de publicidade apelativa ao que é obvio, ao mesmo tempo que enumera iniciativas sem dizer como as vai fazer. É, em suma, pouco sumo.

    É de notar a colagem entre o Governo e a família, isto depois de designar o carácter afunilado e normativo do que isso deve ser. Já o argumento da prioridade quer às crianças quer aos idosos não tem qualquer imputação negativa, embora careça da forma como se a implementa, algo que parece ser transversal a este programa. É também transversal, neste caso, à ideologia, o cumprimento de prazos e contratos. Essa exaltação aparenta ser exclusiva ao programa do Chega, mas é, na realidade, elementar.

    A alínea mais demagógica, mas de especial apreciação liberal, é sobre a redução de impostos. Apenas menciona que os vai reduzir, sem explicar quais, quantos e onde irá buscar receita para pagar as contas reminiscentes do Estado.

    Ponto Cinco

    Este ponto discorre sobre um dos calcanhares de Aquiles dos sucessivos governos portugueses: a justiça que é, no mínimo, morosa e, muitas vezes, impopular.

    Ainda assim, apesar de fáceis concórdias, quer no que toca às molduras penais quer no poder dissuasor que penas altas possam ter, convém informar que o princípio de inocência deve ser soberano – e que um suspeito não é nem um acusado nem um arguido e muito menos um culpado. Junta-se ainda a ideia do princípio reabilitador que a prisão e a justiça possuem. Será um debate a ter as possíveis exceções que possam ocorrer.

    Ponto Seis

    Se Aquiles tivesse outro calcanhar frágil, a Saúde (ou falta dela) estaria nomeada para ocupar esse lugar. A par da Justiça, a percepção que existe sobre a Saúde em Portugal é que não funciona e o privado é melhor. Pelo menos até vir a conta no fim.

    Por essa percepção é também fácil concordar com a melhoria do sistema de saúde, critérios de transparência, observância rigorosa e tudo que soa bem a quem quer uma melhoria substancial do sistema. A questão aqui não é o mau funcionamento da saúde, é de que ela funciona mal, porque o governo é de esquerda. E aí, entra-se outra vez na propaganda, no apelo emotivo.

    Ponto Sete

    Neste ponto, o Chega enumera várias alíneas, depois de colar o insucesso de qualidade de ensino ao multiculturalismo e ideologia de género, classificando estes de fundamentalismo progressista. Diz ainda que o ensino controlado pela esquerda é inimigo do conhecimento, respeito e boa educação.

    brown and white chess board game

    Quanto à contradição entre o respeito e a ideologia do género ou multiculturalismo, ficará para uma reflexão maior. Importa aqui mencionar que o atentado à liberdade é a redução da escolha e a uniformização normativa do que devemos ou não ser.

    Em primeiro lugar, não existe relação nenhuma entre a falta de qualidade do ensino em Portugal e um qualquer fundamentalismo de esquerda. É, alias, de salientar que o abandono escolar tem vindo a descer, e que os quadros profissionais são de alta qualidade, e são solicitados um pouco por toda a parte.

    Quanto às alíneas, é inegável o trabalho árduo de um formador e a discrepância entre os esforços, que muitas vezes implicam deslocações longas para escolas distantes das suas áreas de residência – quanto a isso, pouco haverá a dizer e muito a melhorar.

    Na alínea seguinte, desde logo seria preciso divulgar os números da suposta violência nas escolas para que esta ideia dos fenómenos crescentes tivesse algum valor. A indisciplina combate-se com diálogo e estudo sobre as causas. A transição, essa sim, deve subentender o mérito e demonstração de conhecimentos adquiridos. Também não existe ligação entre o exame nacional e a sua deslegitimação por Governos de esquerda.

    Ponto Oito

    Ao contrário do que o Chega pretende veicular, Portugal não tem um problema com o fluxo migratório de estrangeiros a entrar. Terá mais depressa com os emigrantes a sair. Existe, de facto, exploração de mão-de-obra barata, que ainda recentemente esteve na ribalta da imprensa. Daí à generalização vai toda uma demagogia que este partido tanto usa. Não há custos identitários, nem nefastas ambições globalistas. Há apenas uma ênfase ao jeito de uma narrativa que pega em possíveis casos pontuais para construir um generalismo.

    Outro aspeto deste oitavo ponto é a ineficácia da imigração regulada assente nas qualificações. Veja-se o paradigma britânico que tem nesta altura um enorme défice de mão-de-obra, e para reter o seu próprio talento tem de aumentar brutalmente os ordenados praticados nos cargos mais qualificados.

    Ponto Nove

    O Chega afirma que irá praticar uma cultura de respeito pelas forças de autoridade. Diz também que existe uma contracultura de mentes esquerdistas que viciam e instigam a sentimentos que causam desordem, violência e guetização social.

    Portugal é um dos países mais seguros do Mundo. É um país onde a maioria dos crimes são passionais, com especial incidência na violência doméstica. Não existe, portanto, nenhuma estatística que apoie este ponto do conteúdo programático. É, mais uma vez, vazio e propagandístico.

    two person holding hand graffiti

    Ponto Dez

    O combate ao desequilíbrio entre o mundo rural e urbano deve ser travado, e quanto a isso nada haverá a dizer. Os incentivos à aquisição de produtos nacionais é também uma iniciativa louvável, tal como o desenvolvimento das energias alternativas onde Portugal já é pioneiro, e com Governos de esquerda. Fica aqui a ideia de que as iniciativas só são “boas” se forem da direita, o que é no mínimo, falso.

    Ainda um breve comentário às atividades tradicionais relevantes. Em primeiro lugar, não são relevantes por serem tradicionais. A tradição não pode ser a razão para se manter seja o que for. As atividades sofrem, e sofrerão sempre, os efeitos da passagem do tempo e das vontades.

    Existe atualmente um espectro na sociedade que afirma ser contra a tauromaquia. E isso é a democracia em funcionamento, a possibilidade de haver grupos que opinam de acordo com os seus princípios. Não existem a proibição destas atividades e, portanto, não há imposição proibicionista nenhuma. Existem vozes que se fazem ouvir e se algum dia houve uma maioria a favor de mudança, ela irá aparecer. Só pode aparecer se puder ter voz. Isto é valido para atividades tradicionais, progressivas e tudo o mais.

    Ponto Onze

    Este ponto é um incentivo ao voto jovem e ao pensionista, prometendo melhorias ao sistema contributivo, fim dos cortes às pensões e a liberdade de escolha entre o sistema público e o privado. Menciona, mais uma vez, o peso do Estado na Economia, e faz um apelo ao liberalismo através do “dinamismo económico.” Só não diz como o vai fazer nem quanto muda a vida dos visados. Alude também aos PPRs, que já existem. Há aqui um claro populismo de voz alta, sem nada que o sustente.

    Ponto Doze

    A galvanização e apelo à credibilidade das Forças Armadas é o mote deste ponto. Não se encontra verdadeiramente nenhuma crítica ao regime em vigor, nem menciona a atual perceção e prestígio que as Forças Armadas já possuem, nomeadamente no ramo dos Grupos de Operações Especiais (GOE), ramo que é reconhecido internacionalmente desde há muito.

    Conclui-se mais uma vez a veia populista deste conteúdo programático na tentativa de ir buscar eleitores que se identifiquem com este tipo de galvanização.

    Ponto Treze

    Neste último ponto, o Chega demonstra, de uma forma aberta, o seu conservadorismo amarrado (mais uma e outra vez) a uma narrativa de ataque à esquerda, através de um léxico vazio. A herança intelectual secular da cultura portuguesa, afinidade ao património português, não tem significado objetivo que justifique um retorno a uma educação tradicional.

    Alias seria de incluir, em nome da verdade dos acontecimentos históricos, o papel de Portugal na criação de uma rede de escravos e até as desastrosas políticas do colonialismo.

    Porém, o verdadeiro engodo deste ponto é o “uniculturalismo” que o Chega quer implementar, e que efetivamente terá, como consequência, a ignorância, a informação inquinada e a obsolescência conceptual, num mundo que, entretanto, avança na direção oposta.

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    Conclusão

    Facilmente se conclui o que este conteúdo programático demonstra e tenta ocultar.

    Por um lado, o programa do Chega pretende um retorno a valores sem substância, que se apoia num romantismo patriótico que quer ir muito além do orgulho de ser português. Pretende, através desse romantismo, ignorar os efeitos nefastos da rigidez de identidade, como foram os papeis atribuídos aos membros de uma qualquer unidade familiar no passado.

    Oculta também a possibilidade da autoafirmação de indivíduos ou grupos que não se identifiquem nessa rigidez, como sejam os segregados – como os homossexuais, no passado, e os não-binários, no presente –, cujas identificações pós-modernistas, e fragmentadas, não constituem nenhuma ameaça, apenas a possibilidade de serem quem desejam ser, sem interferência de um Estado conservador, que lhes informe sobre quem devem ser.

    O Chega utiliza ainda os chamados temas fraturantes, como sejam o “majorar” de minorias étnicas ou estrangeiras, com o objetivo de fim de criar um pânico moral que se baseia em nada mais do que o medo da diferença ou perda de costumes.

    Alude às forças militares como se estas não tivessem já o reconhecimento que lhes é devido. E guarda para último o resquício das narrativas do Estado Novo, como sejam a galvanização do Portugal de outrora, o respeito pela autoridade dos pais, formadores e autoridades, num país onde maioritariamente ele já existe.

    Não sendo um conteúdo abertamente fascista, o programa do Chega é populista, na medida em que as forças por detrás de vários dos pontos apelam à irracionalidade e aceitação de valores e princípios unilaterais.

    Na vertente económica é claramente liberal, e apoia a iniciativa privada, mas de uma forma utópica, já que não apresenta nenhuma forma de implementação de medidas. Apela assim o voto ao eleitor desinteressado e insatisfeito, aquele que não se revê no diálogo político e não procura informar-se no quê ou em quem está a votar.

    Em última nota, não deixa de se notar alguma ironia na assunção ética que o partido faz de si mesmo.

    Licenciado em Jornalismo (London Metropolitan University)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.