Etiqueta: Opinião

  • Jornalistas (muitos): os ferreiros sem espeto nem pau

    Jornalistas (muitos): os ferreiros sem espeto nem pau


    Ponto prévio: “O jornalista deve lutar contra as restrições no acesso às fontes de informação e as tentativas de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar. É obrigação do jornalista divulgar as ofensas a estes direitos.” Esta é uma das normas do Código Deontológico dos Jornalistas. Posto isto, siga, e justifica-se, o editorial…

    Imaginemos que, por exemplo, um jornalista do Expresso fazia um requerimento ao Governo a solicitar documentos ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, isto num cenário em que se via obrigado a invocar a lei para obter informação, porque não lhe bastaria um simples telefonema ou e-mail.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Eu sei que é um exercício que exige demasiada imaginação: não tanto por mim – que colaborei vários anos no Expresso –, mas por ser difícil imaginar o Expresso (ou outro órgão de comunicação social mainstream) de hoje a “morder nas canelas” do Governo ao tal ponto de invocar leis para aceder a documentos…

    Mas imaginemos então esse pedido, e que, na volta do correio, o jornalista do Expresso receberia a seguinte resposta:

    Embora o Governo reconheça que tal informação nunca foi requerida e o número de documentos, não obstante ser morosa, não configure propriamente um impedimento, a verdade é que a finalidade do acesso aos documentos é, em si, manifestamente abusiva. E é assim porque o requerente tem vindo, ao longo do último ano, a mover sucessivos pedidos de acesso aos mais variados documentos na posse da Governo, acabando por fazer um uso abusivo dos mesmos quando a eles tem acesso, concretamente através da publicação no Expresso, aliada a outras tantas sobre o Governo e o seu Primeiro-Ministro.

    O que acham que aconteceria? Como reagiria a classe jornalística? Como reagiria o Sindicato dos Jornalistas? Como reagiria a Entidade Reguladora para a Comunicação Social? Como reagiria a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista?

    Pagaria para ver.

    man in white t-shirt sitting beside woman in white t-shirt

    Porém, resposta similar obtive, não do Governo, mas, pasme-se, da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, que integra apenas jornalistas. E isto porque pedi formalmente diversos documentos, entre os quais actas de reuniões, diligências tomadas em sede de processos de averiguação e disciplinares a jornalistas e também a decisões quanto a remunerações dos nove membros do Plenário de uma entidade de direito público.

    A resposta, esta semana transmitida, contém esta e outras “pérolas”:

    “Embora o Secretariado reconheça que tal informação nunca foi requerida e o número de documentos, não obstante ser morosa, não configure propriamente um impedimento, a verdade é que a finalidade do acesso aos documentos é, em si, manifestamente abusiva. E é assim porque o requerente tem vindo, ao longo do último ano, a mover sucessivos pedidos de acesso aos mais variados documentos na posse da CCPJ, acabando por fazer um uso abusivo dos mesmos quando a eles tem acesso, concretamente através da publicação no “Página Um”, aliada a outras tantas sobre a CCPJ e a sua Presidente.

    Convém referir que as minhas expectativas face a esta CCPJ estão já abaixo de zero, como se pode constatar pela cobertura noticiosa e opinativa que lhe temos dedicado no PÁGINA UM. A sua inacção em diversas matérias – como o fechar os olhos às relações promíscuas entre grupos de media e determinadas empresas é um exemplo –, já não tem cura. Mas convinha que não enterrassem a própria essência do jornalismo, abrindo uma caixa de Pandora perante a passividade da classe só porque se deparam, pela primeira vez, com um jornalista que não quer ser corporativista nem agradar à classe.

    gray microphone in room

    Imaginar que se pode dar uma resposta daquele quilate a um jornalista – invocando uma norma legal, isto é, o ser “manifestamente abusivo”, porque acham os pedidos “chatos” – é dar em simultâneo “instruções” ao Governo, à Administração Pública, às empresas e a todas as entidades para tratarem, do mesmo modo, outros jornalistas.

    Para a jornalista (credo!) Licínia Girão e para o jornalista (duplo credo, porque também ensina estudantes de Comunicação Social), que assinaram a carta a mim remetida, haver um jornalista a pedir, por exemplo, actas de reuniões e documentos de remuneração (numa altura em que a CCPJ pretendia aumentar as receitas através de uma subida dos emolumentos) é “manifestamente abusivo”. Presumo que já não seria se eu lhes cantasse loas.

    Mas não me surpreendendo que a CCPJ (tal como em tempos a Entidade Reguladora para a Comunicação Social) tenha este tipo de atitudes pouco adultas (fazendo “birras”, porque os incomodam), também sei como as “coisas” funcionam em corporações – e sei muito bem o quão corporativista é a classe jornalística.

    Por isso, não me espanta, embora lamente, que, por exemplo, as minhas tentativas de telefonemas e de mensagens para o presidente do Sindicato dos Jornalistas, Luís Simões, para lhe chamar a atenção para a gravidade da reposta da CCPJ, tenham ficado sem qualquer resposta. Ainda mais porque a resposta da CCPJ lhe seguiu por mensagem de correio electrónico. Compreendo o seu silêncio, dentro do contexto da classe.

    person holding ballpoint pen writing on notebook

    Afinal, por que carga de água o presidente do Sindicato dos Jornalistas teria de reagir ao PÁGINA UM, que é um “minúsculo” jornal e que ainda por cima só faz pedidos “manifestamente abusivos”? E logo pedidos manifestamente abusivos à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, onde pululam figuras tão gradas de uma imprensa onde todos se conhecem e se cruzam.

    Na verdade, ignore-se um “minúsculo” jornal que, para recordar os assuntos que levámos até às últimas instâncias, também faz pedidos manifestamente abusivos ao Governo.

    Pedidos manifestamente abusivos ao Conselho Superior da Magistratura.

    Pedidos manifestamente abusivos ao Ministério da Saúde.

    Pedidos manifestamente abusivos ao Infarmed.

    Pedidos manifestamente abusivos à Ordem dos Médicos.

    Pedidos manifestamente abusivos à Ordem dos Farmacêuticos.

    Pedidos manifestamente abusivos à Direcção-Geral da Saúde.

    Pedidos manifestamente abusivos ao Instituto Superior Técnico.

    printing machine

    Pedidos manifestamente abusivos ao Banco de Portugal

    Pedidos manifestamente abusivos à Inspecção-Geral das Actividades em Saúde.

    Pedidos manifestamente abusivos à Administração Central do Sistema de Saúde.

    E tantos mais fará…

    Por isso, e pedindo desculpas (enfim, sarcásticas) por não fazermos no PÁGINA UM um jornalismo fofinho, sem abusos, e muito menos manifestos – passem muito bem com o vosso conceito de “manifestamente abusivo”. O PÁGINA UM, lamento desiludir-vos, não vai fazer o jornalismo que a maioria de Vossas Excelências deseja: jornalismo domesticado, amorfo e que se banqueteia com o poder. No dia em que tal me suceder, deixarei de ser jornalista.


    Nota final: A Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos já se pronunciou esta semana sobre uma primeira recusa da CCPJ aos documentos solicitados pelo PÁGINA UM, dando-nos inteira razão. Abordaremos este assunto, com detalhe noticioso, na próxima semana.

  • As proibições resolvem o problema da habitação em Portugal?

    As proibições resolvem o problema da habitação em Portugal?


    No passado dia 23 de Janeiro, o Bloco de Esquerda apresentou um projeto de lei para tentar ajudar a combater a crise na habitação, proibindo a venda de imóveis a empresas ou cidadãos não residentes no território nacional. Não deixa de ser verdade que a subida de preços dos imóveis se deveu, sobretudo, à elevada procura de estrangeiros no mercado nacional, apesar de nos últimos quatro anos apenas 6% das casas terem sido vendidas a cidadãos estrangeiros, segundo o Instituto Nacional de Estatística.

    Proibir estrangeiros de adquirir imóveis não constitui solução para a falta de acessibilidade da habitação. A medida apresentada é, assim, tão ineficaz como pôr fim aos Golden Visa, o que se comprovou pelo desempenho do mercado imobiliário no último ano. Após as restrições impostas a alguns concelhos e capitais de distrito, de acordo com dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) verificou-se um crescimento de 41,9%, para 654,2 milhões de euros de investimento.

    white and brown concrete building

    Por outro lado, os dados dos Censos 2021 permitiram-nos verificar que, apesar do aumento da construção na última década, o número de casas disponíveis não aumentou, antes pelo contrário. Existem menos 12 mil casas vagas do que em 2011. Tal não se deve ao alojamento local, mas sim ao aumento em 40% da população estrangeira residente em Portugal na última década, que correspondem a mais de 240 mil estrangeiros desde 2017, totalizando agora 555.299 e 5,4% da população total residente. É certo que os compradores nacionais constituem a maior fatia do mercado, mas sem o investimento estrangeiro a valorização não teria sido tão acentuada.

    Portugal conquistou o coração de novos residentes, permanentes ou não, cujos rendimentos têm pressionado os preços a subir, e o investimento que tem sido feito na reabilitação de edifícios nos maiores centros urbanos tem também produzido frutos na atracção de cada vez mais cidadãos e turistas estrangeiros. O clima, a segurança, a gastronomia, a proximidade com as praias e o facto de ser uma porta para a Europa, continuará a atrair capital estrangeiro, o que beneficiará a Economia e manterá estáveis os preços dos imóveis com as localizações e características preferenciais destes compradores ou arrendatários.

    A tipologia ou área não parece que façam diferença, no sentido em que, dentro deste segmento, existem jovens, executivos, empreendedores, pequenas famílias, grandes famílias, com projetos de vida mais ou menos determinados ou duradouros, mas que procuram sempre o mesmo: a melhor localização, varanda, jardim, vista para o rio, excelente luminosidade, conforto e arquitectura.

    yellow and white tram on road near building during daytime

    Com o aumento dos preços dos imóveis que cumprem os requisitos de procura de compradores estrangeiros existe um efeito de contágio no preço dos imóveis, alargando-se mesmo às periferias. As famílias de classe média que, antes adquiriam os imóveis atualmente mais desejados nos bairros históricos – como Alfama, Príncipe Real e Baixa-Chiado –, deixaram de poder competir com grandes capitais, mas nem por isso deixaram de comprar, por necessidade imediata, ou por medo de que os preços subissem mais.

    Todavia, creio que a falta de habitação não se resolve afastando o investimento estrangeiro; resolve-se atraindo este investimento. Quais são então os prós do investimento estrangeiro? Eu evidenciaria as seguintes vantagens:

    Reabilitação urbana

    Há dez anos, o parque habitacional de Lisboa e Porto era decrépito. Pouco ou nenhum investimento era direcionado para um mercado de compra e venda ou de arrendamento estagnado, castigado por uma crise, com salários baixos e sem crescimento. Nenhum plano de negócios convenceria um investidor qualificado a adquirir e reabilitar edifícios com toda a burocracia, elevados custos e tempo de projeto necessário, para cobrar rendas que mal cobriam despesas de manutenção corrente, quanto mais de profunda reabilitação.

    Ainda que os imóveis se destinassem à venda, a construção nova sempre compensou e atraiu promotores para os subúrbios, ou para áreas de turismo ou de residência de reformados estrangeiros, como o Algarve. Reabilitar edifícios históricos em Lisboa e no Porto, na sua maioria habitados por idosos com rendas antigas, não era sustentável, nem para o setor privado, nem para o setor público.

    high-rise building

    Desde 2014, por via dos programas de incentivo ao investimento direto estrangeiro, o mercado imobiliário renasceu. Temos assistido a uma profunda transformação dos maiores centros urbanos do nosso país, diria eu que para muito melhor. Edifícios e ruas inteiras com reabilitações profundas, aumento da oferta de casas, aumento e renovação da restauração e do comércio, atração de turismo e rentabilização de imóveis por pequenos proprietários.

    Dinamização das empresas, do comércio local e nacional

    Portugal está atualmente entre os 20 países do Mundo com maior capacidade de oferta de coworking, com mais de uma centena de espaços em Lisboa e Porto. Longe de ser algo passageiro, este conceito representa uma mudança estratégica para empresas de todo o Mundo, o que atraiu nómadas digitais que tanto têm procurado o nosso país, para aqui habitarem enquanto trabalham remotamente.

    Este público é muito valioso para a nossa economia, pois vem contribuir para o crescimento do nosso comércio, restauração e serviços. O problema que o Governo tem de resolver é permitir à população portuguesa aumentar a sua produtividade e os seus rendimentos, o que pode agradecer sobretudo aos investidores e às pequenas e médias empresas que criam valor e empregos.

    Afastar investidores e habitantes estrangeiros seria afastar clientes das nossas empresas e de todos aqueles que estão a colocar as suas poupanças na construção e reabilitação de casas, de lojas e de serviços. Não é tornando toda a gente mais pobre que a qualidade de vida da população melhora, pelo contrário. Estes incentivos atraem o capital necessário ao crescimento do nosso país, que irá refletir-se, não apenas em recursos e infraestruturas que o Governo não tem, mas também em receita de impostos através do aumento do rendimento das empresas e dos salários que estas poderão oferecer, em consequência do valor criado.

    aerial view of village houses

    Desenvolvimento cultural e retenção de talentos

    Os recursos tecnológicos e a nossa facilidade com idiomas tornam Portugal apetecível para que, cada vez mais, seja possível criar oportunidades, que vão dinamizando a Economia e trazem novos hábitos culturais para a sociedade. Durante anos, assistimos ao êxodo dos nossos melhores talentos, que viram noutros países a oportunidade de se realizarem profissionalmente e serem justamente remunerados, sacrificando a proximidade aos seus familiares e perdendo as qualidades naturais e geográficas que Portugal oferece. A atracção de estrangeiros possibilita ainda às nossas crianças e adolescentes uma interacção muito saudável com outras culturas e idiomas.

    É evidente que todas as mudanças trazem reajustes e desconforto e que estes reajustes tenham passado por uma “super valorização” e rápido renascimento de pontos da cidade que estavam degradados, onde vivia uma parte da população com rendimentos baixos. Quais são então os principais problemas resultantes do rápido crescimento, e quais as possíveis soluções?

    Lisboa e Porto não deixaram de ter casas para as pessoas, como dizem as manchetes dos jornais; deixaram sim de ter casas decrépitas e passaram a ter casas com condições dignas para todas as pessoas. O que foi possível através dos investidores, dos promotores e dos compradores, portugueses e estrangeiros, que canalizaram o seu capital de investimento para o imobiliário residencial, o que tem de ser estimulado através das seguintes estratégias:

    Desenvolvimento das zonas urbanas limítrofes e do interior do país

    Se a procura valorizou os imóveis situados no centro das grandes cidades, é natural que a oferta aí localizada seja absorvida pelos que têm maior capacidade financeira, e que aqueles que têm menor rendimento tenham de migrar para outras zonas da cidade, ou para zonas limítrofes. Há décadas que tal acontece e que a classe média-baixa havia optado por residir ao redor de Lisboa, não pelo preço elevado dos imóveis no centro histórico (como se alega) mas pela falta de condições de habitabilidade que caracterizava o centro histórico.

    high-angle photography of white concrete buildings during daytime

    Só quem tinha muito amor à baixa lisboeta é que arriscava investir num apartamento num prédio antigo cheio de problemas e sujeito às decisões e capacidade de investimento de idosos com rendimentos de 300 euros por mês e despesas de condomínio de 15 euros, montante claramente insuficiente para reabilitar telhados, fachadas, substituir janelas, renovar zonas comuns, canalizações e tudo o mais que implica o conforto de um apartamento, ainda que os seus proprietários estivessem dispostos a investir na sua renovação interior.

    A deslocação da classe média para as zonas limítrofes teve, assim, origem na preferência por edifícios recentes, com facilidade de estacionamento e na qualidade de construção que dispensava obras difíceis de financiar e de executar, pelo facto de também não ser viável para os construtores investir na reabilitação de edifícios através dos quais não poderiam ter retorno. É neste ponto essencial assegurar que existem meios de transporte público.  

    Há assim um patamar do qual penso que não vamos descer, no segmento de “luxo”. Coloco luxo entre aspas no sentido de caracterizar os imóveis mais diferenciados e procurados para um público que não necessita de financiamento nem de fazer contas no momento de escolher a sua nova casa em Portugal. Apesar da conjuntura política e económica, os centros urbanos e os melhores bairros residenciais não têm muito por onde crescer, o que justifica a resiliência do seu valor de mercado.

    Desenvolvimento do mercado de arrendamento

    Ao contrário de outros países, em Portugal o mercado de arrendamento nunca alcançou a dimensão necessária para dar resposta às necessidades da população e é natural que, apesar do seu recente crescimento, este seja ainda insuficiente para os nossos jovens, pois a oferta está a ser absorvida, em primeiro lugar, pelos estrangeiros e pela população com maior capacidade financeira.

    low-angle photography of gray and white concrete building at daytime

    O aumento da oferta de imóveis para arrendamento de longo prazo representa uma habitação acessível, flexível e de qualidade às famílias que possam vir a ter maior dificuldade no acesso ao financiamento bancário, sobretudo jovens profissionais, cujos rendimentos são ainda mais instáveis e cujo agregado familiar não está estabilizado.

    Estabilização da legislação

    Este ponto é essencial, no sentido em que oferece uma garantia aos investidores (nacionais e estrangeiros) de que o capital investido na aquisição, na construção ou reabilitação de imóveis, é bem aplicado, pois terá retorno a médio longo prazo.

    O investimento na reabilitação teve resultados de tal forma positivos, que a procura cresceu mais depressa do que a oferta. É relevante a revisão ao Regulamento Geral das Edificações Urbanas (RGEU) e assegurar a necessária flexibilidade do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), de modo a responder às necessidades do mercado de arrendamento. O risco tem um preço e os proprietários estão mais disponíveis para reduzir as rendas, se o seu risco for minimizado.

    Desburocratização nos projetos de licenciamento

    A agilidade dos processos de licenciamento permite acelerar o aumento da oferta ao nível dos diversos segmentos de habitantes, o que permitirá, também, equilibrar e estabilizar os preços. Os investidores e promotores imobiliários interessados na construção e reabilitação de edifícios e frações habitacionais, dentro e fora dos centros urbanos, deparam-se com obstáculos de licenciamento que dificultam a execução dos seus projetos, pelo que há uma urgente necessidade de reduzir a burocracia e o tempo despendido, que se prolongam até aos cinco anos, dificultando a existência de soluções de alojamento para colmatar necessidades de mercado.

    black framed eyeglasses on top of white printing paper

    Tempo é dinheiro e, num contexto em que a população está a ser obrigada a ajustar-se à nova oferta, tempo significa não haver oferta disponível para todos os diversos segmentos e, por outro lado, pode significar que os investidores os canalizem para outros mercados mais rentáveis. Quanto maior o investimento de tempo e de recursos em cada projeto, maior terá de ser o preço dos imóveis para o consumidor, não há milagres numa folha de cálculo.

    Benefícios fiscais

    Esta é uma medida direccionada à oferta de imóveis adequados aos segmentos mais necessitados, com menor rendimento. Tendo em conta que os estrangeiros adquirem imóveis de preço por metro quadrado mais elevado e de preço por unidade em média acima dos 510.000 euros, de acordo com o Confidencial Imobiliário, podem os benefícios fiscais incentivar o investimento na construção, na reabilitação e no arrendamento de habitação adequada aos segmentos de rendimento médio e baixo.

    Qualidade de construção e eficiência energética

    Não é novidade que a qualidade térmica dos edifícios deixa muito a desejar. Tanto a nova construção como a reabilitação deverão ser mais eficientes e ambientalmente sustentáveis, no sentido de a população não depender tanto de recursos energéticos, o que pode ser incentivado ao nível fiscal e/ ou através de programas como o Fundo Ambiental. Esta necessidade já está espelhada nos actuais requisitos de construção, que vieram naturalmente aumentar os custos e, por conseguinte, os preços dos imóveis.

    Libertar activos detidos pelo Estado e pelas autarquias

    Grande parte destes activos estão em ruínas e sem qualquer utilidade pública, pelo que podem ser transformados pelo setor privado em unidades de alojamento no mercado de arrendamento acessível, o que pode ser conseguido através de incentivos fiscais e garantias ao arrendamento da classe mais jovem.

    É uma questão de tempo para que o problema da habitação se resolva e alcance o seu ponto de equilíbrio. É certo que as pessoas que ficaram sem casa não têm esse tempo, e esse deverá ser um dos principais e mais urgentes focos do Governo. Isto não significa que o investimento e a valorização da habitação nos centros urbanos sejam o problema; significa sim que são a solução de longo prazo e que é necessário encontrar soluções de curto prazo paralelas, de modo a que a renovada oferta de habitação possa abranger todos os níveis de rendimento da população.

    Esta oferta precisa, imediatamente, de todos os incentivos possíveis do Governo e das autarquias locais, para que o investimento privado continue a existir e a expandir-se de forma mais rápida de modo a dar resposta ao ajustamento demográfico, em especial no mercado de arrendamento.

    É provável que o aumento da oferta venha também a permitir uma desaceleração nos preços, mas esta não será homogénea, sobretudo se compararmos os centros urbanos ou costeiros com as zonas mais periféricas. Poderá haver efectivamente um abrandamento, e não uma queda abrupta de preços, até porque os factores que têm contribuído para o valor mais avultado das casas vão continuar a ser uma realidade: escassez de oferta, elevados custos de matérias-primas de construção e falta de mão de obra.

    Continuará a aumentar a procura por imóveis de segmento mais elevado, cujo principal fator de distinção está na localização central e na qualidade de construção. O factor localização poderá ser atenuado através do desenvolvimento das regiões não urbanas e do interior.

    man in blue dress shirt sitting on rolling chair inside room with monitors

    Em 2021, cerca de 31% dos imóveis residenciais vendidos foram moradias, correspondendo a 64.500 unidades transaccionadas. Este facto explica a liderança dos distritos de Faro e Setúbal na subida de preços, que chegou aos 26,4% e 18,7% face a 2020, respetivamente. Não obstante, o maior crescimento das vendas residenciais foi observado em Bragança, Beja e Portalegre, com aumentos de 30% a 60% no volume de casas vendidas, face a 2020.

    Os novos hábitos de teletrabalho vieram despertar o interesse dos compradores nacionais por moradias e quintas, um pouco por todo o país. Com o investimento em infraestruturas públicas, podem estas regiões tornar-se uma solução para a população portuguesa, com a deslocação de empresas e jovens que encontrarão nas aldeias e cidades do interior as condições adequadas a uma boa qualidade de vida.

    Sandra Viana, consultora imobiliária e fundadora da LOBA House Hunting


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM. A publicação deste texto de opinião foi decidida, após análise pelo director do PÁGINA UM, por critérios de interesse informativo e de debate de ideias, não envolvendo qualquer tipo de relação comercial ou contrapartida financeira passada, presente ou futura.

  • A pandemia no desenvolvimento psicossocial das crianças

    A pandemia no desenvolvimento psicossocial das crianças


    As crianças foram as “grandes vítimas” das medidas restritivas, adoptadas pelo Governo, no combate à pandemia, ao longo destes quase três anos. Medidas essas, implementadas sem base científica que as sustente, tiveram, têm e terão consequências inimagináveis no desenvolvimento psicossocial e emocional das crianças.

    As máscaras, os confinamentos obrigatórios e a constante promoção do distanciamento físico, tiveram impacto nas relações sociais, interpessoais, afectando a população em geral e desencadeando novas aprendizagens “perigosas” na relação com o outro. Uma grande percentagem de crianças, na primeira infância viram-se privadas de um ambiente normal, securizante e saudável, propicio a um desenvolvimento psicossocial, emocional, afectivo, normal. Viram-se cercadas de medos…

    girl in black long sleeve shirt reading book

    As máscaras e o distanciamento físico são causa disso. As máscaras impedem-nos de ver o rosto, consequentemente, de ver a expressão das emoções, ler nos lábios a articulação e produção da linguagem. A psicologia da Gestalt defende que para compreender as partes é preciso compreender o todo. O que acontece quando uma criança que, no início da sua vida, está a conhecer o mundo à sua volta, desenvolvendo competências cognitivas e emocionais, fica privada de ver o rosto das pessoas à sua volta e distante de afectos?

    Que consequências, em termos gerais, advirão destas privações? Não sabemos ainda. Para já, é possível observar atrasos em diversos aspectos do desenvolvimento infantil: atrasos na linguagem e na interacção social e relacional. Assim como alterações comportamentais, relatadas por pais, professores e pediatras: isolamento, problemas de sono, agitação, intolerância aos outros, aumento de agressividade e irritabilidade, entre outras coisas.

    Os confinamentos privaram as crianças de estar com os seus pares, de brincar nos parques, de correr, de ir à escola, de ver e abraçar os avós. Rotinas essenciais para um crescimento saudável. Para além disso, os confinamentos validaram e potenciaram o medo/ ansiedade de um vírus, algo invisível que os podia matar, ou aos seus, ou ainda, serem culpados por transmitirem a alguém e causar o pior desfecho.

    Esta introjecção da culpa, o medo paranóico da transmissão dos “assintomáticos”, o isolamento afectivo provocado pelo distanciamento, são indícios de um aumento de perturbações psiquiátricas e de um compromisso sério da saúde mental infantil (no geral da população, também, mas o enfoque aqui prende-se com uma análise do desenvolvimento infantil, no referido contexto).

    O distanciamento físico traduziu-se num distanciamento afectivo. O afecto, o amor, as emoções são vitais para o ser humano. A relação humana tem alicerces construídos na interacção social, familiar, na troca de afectos (toque, beijo, abraços). As crianças precisam de afecto para um desenvolvimento saudável. Tudo isso ficou comprometido, com tal medida restritiva, ridiculamente validada, com setas e marcações definidas e rigorosamente medidas, em espaços públicos. Acatada, também por muitos, na dinâmica familiar.

    Actividades virtuais, como jantares por videochamada, relações íntimas entre outras coisas, foram as soluções alternativas encontradas por organismos defensores da saúde mental. Promoveram-se novas aprendizagens ajustadas ao “novo normal”, à “nova realidade”. Que consequências terão no ser humano e essencialmente nas crianças, vivenciando uma realidade estranha como parte integrante do seu desenvolvimento cognitivo, social e emocional?

    woman sitting on black chair in front of glass-panel window with white curtains

    Somente com a realização de estudos científicos fidedignos, alguns longitudinais, obteremos respostas a estas questões. Contudo, é possível observar, desde já, alterações comportamentais negativas, aumento de perturbações do foro psicopatológico (ansiedade, depressão, entre outras).

    É urgente intervir. As crianças precisam de apoio psicológico, tendo em conta, a dura experiência pela qual passaram. Precisam de muito amor, compreensão e segurança, que promovam uma caminhada, pela vida, harmoniosa e feliz. Precisam de se sentir seguras num mundo que se encontra em transformações inesperadas, onde reina a incerteza, porém impera sempre a esperança de um futuro melhor.

    Cláudia Leão Lopes é neuropsicóloga


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Quo vadis Florestgal?

    Quo vadis Florestgal?


    “Não é com vinagre que se apanham moscas”

    (Adágio popular que ilustra que para cada objetivo deve ser usada a ferramenta adequada)

    A Florestgal – um empresa pública de gestão e desenvolvimento florestal – comprou 225 hectares no Parque Natural da Serra de São Mamede com o principal objetivo de avançar com a renaturalização dos terrenos, anunciou no passado sábado, dia 29, o presidente demitido da instituição. Mas… É, afinal de contas, para isto que queremos uma empresa pública florestal?

    Comecemos pelo principio: nas últimas décadas, tanto em Portugal como por toda a Europa, o papel da Administração Pública em matéria de florestas passou por alterações profundas, das quais se podem destacar funções menos de gestão direta e mais de regulação, concessão da gestão das áreas na posse do Estado e transferência de competências, por exemplo para Autarquias, assim como a passagem de áreas de elevado valor natural para a esfera do Ambiente.

    green leafed trees

    Entre estas alterações, e uma vez que o caso francês se tem constituído como um modelo de organização e funcionamento para muitos países europeus – Portugal incluído –, conta-se ainda a criação de uma Empresa Pública Florestal. Todavia, se o Office National des Forêts data de 1964, e rapidamente foi seguido por vários outros países – casos da Finlândia, do Reino Unido ou da Áustria –, por cá tivemos 50 anos de avanços e recuos.

    Com efeito, esta solução estava prevista desde 1970, no IV Plano de Fomento, mas este foi suspenso em 1974. Voltou à baila, na década seguinte – aquando da nacionalização e criação da Mata Nacional de Penha Garcia –, mas, novamente, os objetivos governamentais de então travaram-na. Paradoxalmente, o mesmo chefe de Governo (Cavaco Silva) criou uma Empresa Pública para desenvolvimento agrícola e cinegético, em 1993 – extinta volvidos três anos.

    O Governo seguinte (António Guterres) foi mais longe e, em 1998, teve mesmo criada uma Comissão Instaladora da Empresa Pública Florestal, que seria, contudo, extinta no ano seguinte, por se considerar que a solução mais adequada passava pela cooperação entre o Estado e outras entidades, sob formas alternativas de gestão, pelo que foram pontualmente aparecendo Cooperativas, Sociedades e Fundações a incorporar este espírito.

    trees on fire

    Assim, só em 2018, por entre a “maior reforma desde D Dinis”, e na ressaca das tragédias de 2017, nasceu finalmente a Florestgal.

    Mas o sector já não tem organismos que cheguem, e não abundam diferentes modelos no terreno? Sim, é verdade que há Matas Nacionais e Perímetros Florestais, geridos pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF); que outras áreas há classificadas como Parques e Reservas Naturais, algumas, como no Parque Natural Sintra-Cascais geridas já por empresas públicas (no caso a Parques de Sintra – Montes da Lua); como também a Portucel, enquanto foi pública, o fez em plantações (próprias) de eucaliptos; e temos também a Tapada Nacional de Mafra, gerida por uma Cooperativa de Interesse Público, a Mata do Buçaco, gerida por uma Fundação, ou o Parque Florestal do Monsanto, talvez o mais conhecido exemplo de gestão por uma autarquia.

    Assim sendo, para que serve afinal uma empresa pública florestal?

    Sendo uma empresa – cuja actividade é, em sentido lato, a articulação dos factores para a produção ou circulação de bens ou de serviços –, serve para outro tipo de abordagem, para uma via distinta com vista à dinamização do sector florestal: a via do negócio.

    body of water near trees during daytime

    Somos muitas vezes brindados com grandes números do sector, números de milhões: o seu peso no Produto Interno Bruto (PIB) ou nas exportações, e que, como um todo, não é mentira serem números relevantes.

    Mas raramente ouvimos a crua realidade: a floresta é, para os seus proprietários, ou por hectare – que também são milhões –, um negócio de tostões, e até o seu peso no PIB caiu a pique (para metade entre 2000 e 2010), assim como o emprego (de mais de 250 mil empregos nos anos 90, para menos de 100 mil).

    O mítico Pinhal de Leiria rendia (antes de 2017) anualmente uns míseros 160 euros por hectare. Ora, quando sabemos que uma empresa nos pede por hectare muitas vezes mais de 1.500 euros para roçar o mato, facilmente nos apercebemos da dimensão do problema económico.

    Sendo a esmagadora maioria da nossa floresta privada – porque foram os privados que nela investiram –, o resultado é o abandono generalizado, seguido pelo inevitável fogo.

    chainsaw near tree log

    Desta forma, reabilitar o negócio faz todo o sentido. E muito haveria a fazer nessa matéria, conciliando vontades e agentes numa espécie de plataforma em prol do desenvolvimento do sector, gerindo de forma exemplar e influenciando assim o sector, por via demonstrativa, rumo a melhores modelos, e tendo ainda capacidade para influenciar o mercado quando este não consegue dar respostas. Tudo sob uma óptica económica racional, dado o carácter empresarial…

    Não obstante, não vimos, por exemplo, a Florestgal na Serra da Estrela após o grande incêndio deste Verão, ou em catástrofes semelhantes, que deixam como rasto quilómetros de madeira queimada – influenciando os aprovisionamentos e/ou os preços. Como não a vemos em parcerias com gabinetes municipais onde convergem agentes e interesses. Ou a comprar para investir e tirar rentabilidade. Não, só a vemos numa compra, num Parque Natural, para… renaturalizar!

    Nada contra, antes pelo contrário, com a renaturalização de áreas, sobretudo quando incluídas em Parques e Reservas Naturais.

    low angle photography of trees during daytime

    Mas, para isso, já não temos o ICNF? Para isso não há outras organizações, incluindo algumas Associações de Conservação da Natureza? É assim que vamos influenciar o sector pela via do negócio?

    Claro que não, isto é tão absurdo quanto uma empresa municipal de construção, com vista a debelar problemas de habitação, derrubar prédios em zonas onde faltem casas, para fazer jardins… Para isso, existiriam outras empresas e/ou serviços públicos. Para matar moscas há insecticidas ou mata-moscas. Para isto, a ajuda aos proprietários, aos empresários, aos trabalhadores, à economia do setor, continuará a ser a mesma dos últimos 50 anos…

    João Adrião, é gestor ambiental e florestal


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Setembro, um mês à direita da direita

    Setembro, um mês à direita da direita


    Em Setembro, a Europa democrática viu-se confrontada com duas eleições com resultados aparentemente inesperados.

    Na Suécia, a coligação de centro e extrema-direita conseguiu 176 lugares no Parlamento, 73 destes preenchidos pelo SD (partido de extrema-direita) que convenceu 20% do eleitorado, tornando-se assim na segunda força política do país. É uma eleição histórica uma vez que nunca um Governo sueco foi composto por partidos desta natureza.

    person in blue denim jeans and white sneakers standing on gray concrete floor

    Em Itália as ideologias extremistas foram ainda mais longe, e o partido Irmãos de Itália (FDI) elegeu uma primeira-ministra, em coligação com Salvini e Berlusconi. Dos 50 milhões de votantes, esta “geringonça” obteve 43% dos votos, com cerca de 26% para Meloni e o restante dividido entre os dois outros partidos. Ainda assim a ascensão de Meloni é também o declínio de Salvini, o que indica que nem tudo são rosas no seio do eleitorado extremista.

    Se os casos acima mencionados são os mais gritantes, por serem os que já chegaram ao poder, importa ainda lembrar a subida do partido de Le Pen, na França, que chegou à marca dos 41%, e até no caso português. Apesar de números ainda escassos, o Chega é já a terceira força política portuguesa com 7% do eleitorado.

    Importa entender o motivo do avanço destas ideias dentro de um espaço comunitário, inclusivo, humanista e colaboracionista como a Europa pretende ser.
    Em primeiro lugar, destaque-se que os programas eleitorais e os manifestos destes partidos são, grosso modo, bastante idênticos. Se, por um lado, apelam a elementos de coesão social como os valores de Deus, pátria, e família, fazem-no através dos pânicos morais exacerbados que surgem em forma de ameaça a um pretenso bem-estar. Estes medos, que na era das redes sociais ganham uma carga viral, contêm uma mensagem simples e com setas apontadas.

    Giorgia Meloni

    Para eles, a culpa é dos estrangeiros, dos homossexuais, dos políticos corruptos – e estes partidos vendem-se como diferentes. Apregoam frases e entoações cuja digestão é bem recebida e, como no caso de Donald Trump, conseguem manipular a opinião de algum público ao ponto de conseguirem fazer-se passar por homens e mulheres do povo contra as elites. 

    Mais perto, dentro da realidade portuguesa, essa dicotomia das elites versus o povo é um grito utilizado por André Ventura que ironicamente (ou não) é apoiado e financiado por, imagine-se… as elites.

    Qual é então o falhanço dos valores europeus que têm vindo a dar lugar a plataformas radicais e populistas?

    No caso da Suécia e Itália – e, por mais simples que possa parecer –, a subida do eleitorado extremista estará ligado à crise migratória de 2015. Estes dois países abriram as suas fronteiras a refugiados sem gestão da narrativa moderada e inclusiva.

    Marine Le Pen

    Não é de estranhar o aproveitamento dos extremistas perante um vazio de mensagem humanista. E é fácil, razoável até, mais ainda no caso da Itália – cuja Economia é bastante mais fraca do que a sueca –, perguntar onde estava o apoio financeiro e logístico da Europa às constantes ondas de refugiados a entrar nos seus portos. A consequência disso leva inevitavelmente à pergunta mais simples e também perigosa, que é: e nós?

    A proliferação do sentimento anti-europeu torna-se num comboio a alta velocidade e, perante a falha dos moderados e a demora de implementações práticas perdidas nas burocracias do Parlamento Europeu, cria-se o sentimento que nada é feito. Um básico, “Falam, falam, mas não fazem nada”.

    É assim que se criam e recriam estes movimentos. Eles não são novos, mas adaptam-se aos tempos. Veja-se o caso das lideranças. Meloni, Le Pen e a alemã Alice Weidel são mulheres. Talvez a líder francesa seja menos surpreendente, porque vem de uma família política e tem já essa tradição.

    No entanto, a futura primeira-ministra italiana e líder extremista alemã são já um apelo ao voto feminino que, normalmente, não vota em partidos vistos como patriarcais e conservadores.

    André Ventura

    Curiosamente, estas políticas de carreira são consequência das lutas progressistas de esquerda pela igualdade de acesso a posições de liderança, que agora são aproveitadas pela extrema-direita para se capitalizar e captar eleitorado.

    O espaço das ideias extremistas está conquistado e não irá diminuir enquanto for subestimado ou insultado. Ele só pode ser derrotado em sede de ideias. A estas ideias tem de lhes ser emprestado um novo léxico, uma forma de desmascarar o extremismo pelo que ele é. A manipulação da carga emocional de pequenos e grandes grupos e o vazio de soluções.

    E será (extremamente) necessário que esse combate seja feito com a apresentação de soluções humanistas, sustentáveis, mas de rápida aplicação.

    Como diz Marcelo Rebelo de Sousa, o povo tem sempre razão.

  • Terrorismo: ser ou não ser, depende?

    Terrorismo: ser ou não ser, depende?


    Tomámos conhecimento este mês, pelos órgãos noticiosos, do comunicado conjunto dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros de nove países europeus (onde Portugal não figura) de que o Governo de Israel ocupou, encerrou e expulsou fisicamente das sedes respectivas seis organizações não-governamentais (ONG) na Cisjordânia, acusando-as de terrorismo, de serem associadas da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP).

    Esta acção vem na sequência da designação pelo mesmo Governo, já a 22 de Outubro de 2021, dessas mesmas organizações enquanto entidades terroristas, concretamente do desvio de fundos a favor dos guerrilheiros.

    blue and gray binoculars on top of the building

    Ora, sucede que, apesar de serem compreensíveis, de um ponto de vista lógico-argumentativo, os interesses que orientam estas acções do Estado de Israel (bastando para tal ler ou ouvir um qualquer teórico israelita hodierno sobre estas matérias, como seja Boaz Ganor) – com as quais, de resto, discordamos –, já diz a vox populi que se tudo for algo, então nada o é.

    Existe, por isso, um problema definitório, conceptual, quanto ao Terrorismo, “palavrão” tantas vezes usado, a maioria delas errónea ou imprecisamente.

    Havendo mais de uma centena de definições deste conceito, em termos doutrinários as Nações Unidas adoptaram a formulação académica do holandês Alex P. Schmid (1984) no seu Political Terrorism: A Research Guide to Concepts, Theories, Date Bases and Literature (apud Bessa, 2016), considerando o Terrorismo como um método “de reiterada acção violenta inspirada na angústia, utilizado por pessoas, grupos ou Estados de forma clandestina, por razões idiossincrásicas, criminosas ou políticas, por meio das quais – a diferencia do assassinato – o objectivo imediato da violência não é o objectivo final.

    Esta abordagem é prosseguida por diversos autores, menos e mais actuais, sendo que perfilamos uma visão distinta (de elevado impacto em termos práticos), onde se distingue “terror” de “terrorismo”, com o vector decisivo deste último ser a alteração política: “(…) the fundamental aim of the terrorist’s violence is ultimately to change ‘the system’ (…)” (Hoffman, 1998), o que redunda na circunstância de se considerar o terrorismo como “(…) the deliberate creation and exploitation of fear through violence or the threat of violence in the pursuit of political change” (Hoffman, 1998). Na prática, o que as instituições nacionais e internacionais que nos regem optaram por fazer, confrontadas que foram com este problema de falta de acordo universal para a definição desta realidade, foi contorná-lo, descrevendo e definindo as acções, os agentes, as consequências do terrorismo, e mesmo por referência às intenções de actos já criminalizados, utilizando até uma técnica jurídica remissiva não só confusa como pouco eficiente, pensamos.

    blue and white flag on pole

    Numa perspectiva não-Ocidental, a Convenção Árabe do Terrorismo que foi levada a efeito no Cairo em Abril de 1998, preconiza este fenómeno como “[q]ualquer acto ou ameaça de violência, quaisquer que sejam os seus motivos ou propósitos, que surjam por iniciativa própria ou colectiva, procurando semear o pânico entre os povos causando-lhes danos, ou colocando as suas vidas, liberdades ou segu­rança em risco, ou procurando causar prejuízos no ambiente, instalações públicas ou privadas, ou ocupando ou apoderar, ou procurando expor ao perigo recursos nacionais.” (Bessa, 2016).

    Compreensivamente abrangente e laica esta formulação, determinada a expurgar preconceitos de ordem religiosa.

    Qual a solução, então? Conhecimento e compreensão, com rigor. “Classificar um ato, um grupo, uma pessoa, mesmo um Estado ou uma entidade supranacional, como terrorista, depende do contexto, de quem classifica, de quem interpreta e da época histórica (os terroristas de uns podem ser os combatentes da liberdade para outros).” (Lemos Pires, 2017), ou seja, falamos da perspectiva.

    O terrorismo depende da perspectiva. Depende do olhar de quem se debruça sobre esta temática, depende da compreensão de que este jogo de realidades nunca é apenas preto ou branco, mas sim de diversos matizes de cinzento – a “[z]ona cinzenta (…) onde encontraremos o terrorismo”, nas palavras de Townshend (2006) – que carecem de entendimento. É sobretudo uma questão de perspectiva, sobre quem olha para uma determinada realidade e sente medo (consequência) ou, por outro lado, desejo de iniciativa para alterar essa realidade, estando (normalmente) subjacente a isto um sentimento de injustiça.

    Injustiça percebida esta, muitas vezes, na base de processos de radicalização, mesmo com ausência de um input radicalizador externo, o que aumenta a exposição societária a retóricas de extremismos violentos. Para mais, hodiernamente, potenciados pelas TIC.

    people gathered near pole

    Para este desiderato, sustentamos que o terror (e não o terrorismo) é que pode ser considerado simplesmente um método, como ensina o politólogo Sunil Khilnani (citado por Townshend, 2006), sendo que, tendo presente que o terrorismo não se reconduz apenas àquele denominado jihadista, concebemo-lo com as seguintes características:

    1. Existência ou ameaça de violência;
    2. Acção voluntária, individual ou grupal, organizada ou não;
    3. Contra pessoas ou alvos indiscriminados ou com representação simbólica;
    4. Para atingir um objectivo secundário de condicionar uma acção ou abstenção duma entidade com poder, normalmente estatal, ou de perturbar os termos do «nexo sinalagmático» de uma sociedade;
    5. Orientada por uma arquitectura ética que o(s) autor(es) considera(m) legítima;
    6. Cujas consequências ou impacto potencial serão graves ou danosas;
    7.  Este estado de coisas seja passível de difundir uma mensagem ou sentimento generalizado, seja apelativo/cativante ou negativo (como o medo), condizente com a ética legitimadora subjacente.

    Identificamos também, mesmo no dia-a-dia, imprecisões conceptuais (sendo o conceito de jihad um caso paradigmático) que prejudicam uma boa construção dogmática das tipologias de terrorismo (conscientes de que existe mais do que uma categorização admissível), sendo fundamental, a nosso ver, compreender que aquilo que está em causa é o extremismo violento, tendo por base uma ideologia (normalmente) política.

    soldiers in green and brown camouflage uniform standing on gray concrete floor during daytime

    Se algumas destas imprecisões fossem ultrapassadas, alçando-nos em maior conhecimento, seria possível não se promoverem sentimentos de rejeição sem causa, afastando-se uma certa terminologia não só errónea como contraproducente, bastando atentar no caso do termo “terrorismo islâmico”. Apreenderíamos, destarte, que organizações como o ISIS (e outras semelhantes) não são organizações políticas que praticam violência, mas grupos armados que racionalizam politicamente as suas acções violentas.

    Estas conclusões convocam, como pretendemos demonstrar mais demoradamente noutros escritos, uma resposta contra-terrorista com base na investigação criminal preventiva (e proactiva) do terrorismo, não só por imperativos de acção, mas de princípios fundacionais do nosso ordenamento jurídico, como os direitos fundamentais, a legalidade democrática ou a separação de poderes.

    Daqui resultam aspectos de análise que poucas atenções têm obtido até agora, em termos de doutrina portuguesa, como sejam o ‘crime-terror nexus’ ou o estudo das ‘root causes’ do terrorismo. Rectius, compreender as razões de aparecimento de grupos, neste domínio, como os da aliança HTS (onde se inclui a Jabhat Fateh al-Sham, anteriormente Jabhat al-Nusra), na Síria, ou a da AQMI, al-Mourabitoun, Frente de Libertação de Macina e Ansar Dine (denominada JNIM), no Sahel, são de singular importância.

    No mesmo sentido, as especificidades ciber, nas suas vertentes do ciberterrorismo e da dimensão ciber do terrorismo, por serem realidades criminógenas distintas, exigem um tratamento diferenciado, mesmo tecnicamente. Em oposição, uma resposta meramente securitária (ou militarista) não alcançará os efeitos pretendidos a longo prazo: “[m]ore sophisticated technology and increased military force will not end terrorism in the longterm.” (Moghaddam, 2005).

    in flight dove

    Após aturado discorrer, concluímos pela indissociabilidade e interdependência do trinómio Segurança-IC-Intelligence no âmbito CT, o qual, na verdade, é uma disciplina que lida com um fenómeno criminal, simultaneamente prosseguindo fins securitários, com recurso a produção de informações, onde a garantia do conteúdo substantivo da segurança interna é inerente à defesa da legalidade democrática e dos direitos dos cidadãos. Decorre daqui, ainda, a desnecessidade dos serviços de informações internos, pelo menos no que ao campo CT diz respeito, o que advogámos.

    De um ponto de vista hermenêutico, o terrorismo, considerado holisticamente, para além de ser um fenómeno hodierno político-social, é, sem margem para dúvida, um fenómeno criminal. Não só é criminal ao nível do combate e das respostas que as nossas sociedades lhe encontram (neocriminalização de comportamentos normais num determinado contexto, cf. nº 11 do artigo 4º da Lei nº 52/2003), uma vez que contende com bens jurídicos que elegemos com a maior dignidade jurídica (nomeadamente a constitucional e a do direito natural), mas é também criminal ontologicamente.

    Na sua origem identificámos dois níveis. Um, porquanto as acções de que lança mão, ab initio, são em si já tipificadas ou genericamente consideradas como crime, com especial manifestação no ciberespaço (designadamente na utilização da darknet, etc.). Outro, visto as motivações subjacentes à actividade terrorista, mesmo na sua vertente ciber, serem muitas vezes, em primeira linha, mas ocultas, razões mais orientadas para a obtenção de vantagens ilícitas individuais, com um mero “aparente” radicalismo ideológico.

    Inspector da Polícia Judiciária, licenciado em Direito e mestre em Direito e Segurança

    Autor do livro Contra-Terrorismo – Tópicos Essenciais e a Unidade CT “Ideal”


    BIBLIOGRFIA

    BESSA, João Manuel de Andrade Pinto – “As Nações Unidas e o Terrorismo”. Revista Militar n.º 2458 – Ano III, Novembro de 2016.

    HOFFMAN, Bruce – Inside Terrorism. 1.ª Ed. London, 1998, ISBN: 0575065095.

    LEMOS PIRES, Nuno – “As plataformas cibernéticas para a exponenciação do terrorismo transnacional”. Revista CYBERLAW (CIJIC). ISSN: 2183-729. N.º III (2017), p. 80-92.

    MOGHADDAM, Fathali M. – The Staircase to Terrorism: A Psychological Exploration. American Psychologist. Ano LX, n.º 2 (Feb./Mar. 2005), p. 161-169.

    TOWNSHEND, Charles (2002) – O Terrorismo. 1.ª Ed. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2006. ISBN: 989-552-189-8.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Medidas políticas da gestão da pandemia assentaram em diploma que caducou em Abril de 2021

    Medidas políticas da gestão da pandemia assentaram em diploma que caducou em Abril de 2021


    Tem-me sido questionado se o diploma que instituiu o primeiro Estado de Calamidade em 13 de Março de 2020 (Decreto-Lei nº 10-A/2020) está ou não está em vigor. E, consequentemente, quais os efeitos de todas as resoluções do Conselho de Ministros, bem como de todos os decretos-lei publicados e promulgados pelo Presidente da República desde o fim do Estado de Emergência em Abril de 2021.

    E inclui-se aqui, também, a validade do Decreto-Lei 30-E/2022, do passado dia 21 de Abril, que aboliu o uso das máscaras em alguns espaços.

    Desde já afirmo que, para além de material e organicamente inconstitucionais, todos os diplomas que foram sendo publicados assentam no Decreto-Lei nº 10-A/2020, que, na minha opinião, já há muito deixou de vigorar, e desde o fim do Estado de Emergência, ou seja, em Abril de 2021.

    person in white shirt holding pen

    Tentando usar uma linguagem o mais simples possível – sendo certo que, nesta matéria, afigura-se um pouco mais difícil, uma vez que se trata de conceitos algo técnicos –, tudo o que afirmo assenta em suporte legal, como sempre tenho feito.

    As Resoluções do Conselho de Ministros que, desde 1 de Maio de 2021, têm servido para impor normas ao abrigo do Estado de Calamidade, vão buscar a sua legitimidade ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020.

    Sucede, todavia, que:

    • Esse Decreto-Lei n.º 10-A/2020 teve de ser ratificado pela Assembleia da República, através das Lei nº 1-A/2020, publicada em 19 de Março de 2020, que impôs o primeiro Estado de Emergência. Não deixo de estranhar e de sublinhar que uma Lei apenas dispõe para o futuro, e nunca retroactivamente, como foi o caso desta, que fez retroagir a produção dos seus efeitos, para seis dias atrás!

    Apenas a Lei Penal tem efeitos retroativos, quando descriminaliza ou despenaliza condutas, o que bem se compreende.

    O Governo não tem competência para poder dispor inovatoriamente em matérias que incidem sobre direitos, liberdades e garantias, em situação de calamidade, como tinha feito através desse Decreto-lei. Assim, à data em que o mesmo foi exarado, padecia de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 165º e do nº 1 do artigo 19º da Constituição da República Portuguesa.

    Reparem, tentando simplificar o discurso: o Decreto-Lei nº 10-A/2020 decreta o primeiro Estado de Calamidade. A Lei nº 1-A/2020 decreta o primeiro Estado de Emergência, ratificando o Decreto-Lei promulgado seis dias antes.

    woman in red and white santa hat
    • Terminado o Estado de Emergência, no final de Abril de 2021, tal decreto deixou de vigorar na ordem jurídica portuguesa, não só porque caducou com o termo das leis de emergência que o ratificaram, como porque não pode subsistir autonomamente, por incompetência orgânica do Governo para a sua produção original.
    • Assim, todas as Resoluções do Conselho de Ministros que têm vindo a ser publicadas, por lhes faltar qualquer arrimo normativo, padecem de inconstitucionalidade orgânica, mas como também são violadoras de direitos fundamentais, faz-me considerá-las também como materialmente inconstitucionais
    • Acresce que, nessas Resoluções, tem vindo o Governo a criar normas inovatórias, o que não se mostra por lei abrangido no âmbito de Resoluções do Conselho de Ministros, mas tão-somente no de decretos-lei.
    • Os decretos-leis inserem-se na área legislativa do Governo, permitindo-lhe assim impor novas regras; isto é, fazer surgir no ordenamento jurídico, novas normas e conteúdos normativos (embora também possam, estes decretos-lei, ter conteúdo regulamentador).
    • Por outro lado, as Resoluções do Conselho de Ministros inserem-se na área administrativa do Governo e destinam-se a regulamentar o que de inovatório foi determinado por lei; isto é, regulam os conteúdos definidos através de decreto-lei, que se reportam a decisões político-normativas primárias.
    • No caso, as Resoluções de Conselho de Ministros, porque diplomas de carácter administrativo, não poderiam nem conter normas inovatórias na ordem jurídica diversas das estabelecidas por decreto-lei que visassem regulamentar nem, no caso, existia sequer, vigente na ordem jurídica, decreto-lei que legitimasse e carecesse de tal regulamentação.
    cars parked on side of the road in between buildings during daytime
    • Estamos pois perante diplomas inconstitucionais (todas as ditas Resoluções), quer por violação do princípio da precedência da lei, decorrente designadamente dos nº 1, 6 e 7 do artigo 112º, da alínea c) do artigo 199º, e também por violação da alínea a) do nº 1 do artigo 198º, todos da Constituição da República Portuguesa (no que concerne ao uso de Resoluções não para prover à boa execução de leis, mas para criação, inovatória, de deveres e de restrições); quer por inconstitucionalidade orgânica (no que se refere à restrição de direitos, liberdades e garantias, por via governamental, em matéria para a qual a Constituição não lhe confere competência para tal), por violação do disposto nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 198º e alíneas c) e d) do artigo 161º, alínea b) do nº 1 do artigo 165º e ainda nº 1 do artigo 200º, todos da Constituição da República Portuguesa.

    CONCLUSÃO: Todos os Decretos-Lei publicados e promulgados desde o fim do Estado de Emergência em Abril de 2021 e que têm como base no Decreto-Lei nº 10-A/2020, para além de serem todos organicamente inconstitucionais, “usam” como suporte um diploma que deixou de existir no ordenamento jurídico português.

    Em consequência, o (novo) Decreto-Lei nº 30-E/2022 de 21 de Abril – que terminou com o uso de máscaras em alguns locais, procedendo à trigésima norma ou quadragésima alteração do artigo 13º B, (aquele artigo que estabelece quais os locais em que as máscaras são obrigatórias, para mais fácil compreensão do leitor) – tem como base um diploma que, desde finais de Abril de 2021, com o fim do Estado de Emergência, deixou de vigorar na nossa ordem jurídica.

    João Pedro César Machado é advogado


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Morri-me: a “morte assistida” ou o paradoxo da Consciência

    Morri-me: a “morte assistida” ou o paradoxo da Consciência


    Sempre que discuto a “morte assistida”, morro mais um pouco. E por ser “um pouco”, morro de morte sofrida e não de morte morrida.

    Assim, posso voltar para contar como foi estar morto, doutro modo preferiria estar morto de vez. Mas não me deixam “querer”, porque me dizem que só morto desejaria morrer, porque os vivos querem sempre morrer às prestações.

    man sitting on chair

    Mas há prestações demasiado pesadas, e esperar morrer para poder escolher é, já, ser moribundo. Aliás, se pudesse, realmente, escolher estaria morto por voltar a viver. Mas acontece que é a proximidade da morte que me faz escolher preferi-la à vida morrida.

    Dizem-me que não sou “objectivo”, mas como posso sê-lo sem que me torne Objecto de mim mesmo? Ora, para consegui-lo é necessário viver, não vá a morte avisar-nos que existe um modo de descontar o tempo perdido.

    Disseram religiões e filosofias que antecipar a morte é fazer batota. Elas convenceram-nos que morrer é o objectivo da vida e, depois, arranjaram um modo de nos complicar o caminho: uns com a reencarnação, outros fazendo do matar(-se) um pecado.

    Ninguém quer ver o que a Consciência frustra a si mesma: a Razão, que permite fazer viver mais e melhor, apenas faz adiar o momento inevitável; ela existe, contudo, para dar uma “razão” à vida, razão que a morte não perdoa.

    Se nos pusermos a questionar a moral, estaremos a admitir que a vida é irracional, que não vale a pena sofrer a mais ínfima questão íntima. Então, para que não tenhamos inveja, vendemos a Razão e criamos regras e “deônticas” para os mais in-conscientes.

    Mas sem que o indivíduo viva por “si mesmo” ele não poderá regrar-se com liberdade. É obrigatório que se mate devagarinho, que cresça sozinho, para que possa, um dia, desejar não morrer.

    A moral quer frustrar a liberdade de cada um querer viver por si mesmo. E é por isso que convém falar destas coisas às escondidas, porque cada um evolui como quer a expensas do Colectivo. Só assim, próximo da morte, terá o Ser o último fôlego, que é viver pela primeiríssima vez, que é ver que já não tem de escolher coisíssima alguma.

    Assim, torna-se parte da moral que o queria fazer viver à força. Mas isto não é, já, estar morto? Pois claro que sim, mas ele pôde matar-se à vontade, o que, de mais a mais, mata a moral, mas também a ressuscita.

    Ora, ser livre, bem como perder o medo da morte, não mata a ética, é um seu pressuposto. O mais que poderia acontecer é que as pessoas se matassem cedo de mais. Frustrar-lhes o caminho pode, não obstante, servir-lhes de mote. Mas se lhes dás palco, arriscas-te a assegurar, ainda melhor, a velha moral restritiva.

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    Não há, assim, necessidade de moralizar, mas, apenas de deixar de dar palco à questão, que, ainda por cima, pode fazer sofrer até morrer. Quem precisa, muito, da velha moral, tem, em absoluto, medo da liberdade de morrer, e isto mata, também; mata, aliás, quem ainda tem muito para sofrer, para que possa, deveras, perder o medo de ser livre.

    Saber se o sofrimento compensa ou não, esta é a grande questão, se soubéssemos responder-lhe em absoluto estaríamos mortos. Pretendem os moralistas responder-lhe, e eles falam pela morte, mas para matarem os outros à sua medida.

    São tão “livres”, mas não se livram de querer matar, que é uma forma de se matarem para serem, finalmente, livres. Até lá, sofrerão a irracionalidade, e o medo de poderem desejar matar-se antes de morrerem vivos o ludíbrio da morte morrida.

    Fisioterapeuta e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Narrativa extremista: terrorismo, pandemia e guerra

    Narrativa extremista: terrorismo, pandemia e guerra


    Recentemente, um Inspector-Chefe disse-nos, numa discussão sobre lidar com autores/criminosos, mesmo que de crimes hediondos de homicídio ou crimes sexuais, que “não podemos ser iguais a eles, temos que ser melhores.”

    Pensamos que isto é verdade, em especial a nível institucional, quando se aborda questões de índole societária, como se pretende neste texto. Esta ideia é fundamental: o Estado/Sociedade não pode agir como um cidadão particular, sujeito às emoções, preconceitos e vicissitudes inerentes à condição humana.

    girl in white t-shirt holding happy birthday signage

    Deve, rectius, tem de ser melhor, almejar o bem-comum, com credibilidade, para que o exercício da potestas seja uma manifestação da auctorictas, teleologicamente aceite, porque compreendida.

    Ora, esta compreensão, é aquilo a que nos propomos, nestas linhas. Deste modo, a forma como se comunica, quando se pretende transmitir uma ideia (v. g. uma justificação para uma acção estatal, como seja restrições de direitos e liberdades fundamentais, ou uma acção ofensiva contra actor de nível estatal), em particular se o objectivo é convencer uma determinada audiência (como uma população/opinião pública), é mais eficazmente veiculada através de uma história, de uma narrativa, o que tem explicação nos processos neuropsicológicos de processamento de informação (vide o brilhante livro do investigador Angus Fletcher, ‘Wonderworks’).

    Isto porque os “Porquês” importam, não só os “Como, Quando, Onde e Quem”, como nos ensinam os estudos dos fenomenologistas Boss ou Binswanger (como este último sintetizou, com rasgo, na ideia de “estrutura ontológica apriorística do significado”), sobre a apreensão da realidade e significados dos seus elementos constituintes.  

    Destarte, principiamos pelos modelos conceptuais explicativos dos processos de radicalização no extremismo violento, vertente específica na análise do fenómeno terrorista, que mais relevo tem para a presente discussão. Dos vários existentes, salientaremos dois que nos parecem não só mais claros como mais abrangentes e capazes de compreender as várias dimensões na lide: o “Staircase model”, de F. Moghaddam (The Staircase to Terrorism – A Psychological Exploration, 2005), e o “Process of Ideological Development”, de R. Borum (“Understanding the Terrorist Mindset”, 2003).

     O primeiro, define seis níveis que, como uma escada, um indivíduo “sobe” no decorrer do seu processo de radicalização, conforme melhor se ilustra na imagem infra.

    Destacam-se pela relevância, contudo, dois níveis, a saber o de base (“ground floor”), “Psychological Interpretation of Material Conditions”, onde a maioria das pessoas se encontra, e as considerações de injustiça percebida são determinantes, logo o nível mais importante onde as acções individuais e societárias de prevenção da radicalização se devem focar; e o último (“5th floor”), “The Terrorist Act and Sidestepping Inhibitory Mechanisms”.

    Este último remete-nos para a hierarquia de valores e os princípios de humanidade de cada indivíduo, e a justificação ou construção psicológica que permite a prática de acções limite contra outrém, com destaque para a demonização/desumanização do outro (o “inimigo”, assim feito não-humano).

    Isto é decorrente da visão dicotómica do mundo e/ou realidade (e/ou mesmo duma visão e terminologia militaristas), ou para a intervenção do supernatural, seja pelo sancionamento divino ou pelo aniquilar do mal, o que por sua vez se encontra associado à elevação da vingança e/ou da violência a virtudes.

    De uma forma mais simples, mas não simplista, a concepção de Borum acentua a centralidade dos conceitos de Justiça e justeza, demonstrando de uma forma até intuitiva o quão importantes as percepções de Injustiça para o processo de radicalização, e como uma, ou melhor, como a narrativa extremista “ajuda” a racionalizar um esquema mental apto a explicar logicamente uma história de vitimização, demonização e justificação, não obstante os sempre existentes factos ou eventos que originam, ou permitem o início, do processo de radicalização (Wiktorowicz falava no conceito de “abertura cognitiva” – no seu ‘Radical Islam Rising: muslim extremism in the west’, de 2005), ainda que normalmente acompanhados de falácias ou viés: “Not Right » Not Fair » Your Fault » You’re Evil”.”

    Destacaríamos, aqui, os momentos de “atribuição de culpa” e “generalização/estereotipização”, que facilmente deixam antever algumas falácias-tipo (como teorizado, contemporaneamente, por Daniel Köhler, no seu “Understanding deradicalization. Methods, tools and programs for countering violent extremism”, de 2016), como por exemplo: falácia de confirmação (procurar comprovação para argumento próprio, ignorando contradições), realismo ingénuo (o mundo é tal e qual o vejo), falácia do ângulo morto (só a visão dos outros é que é enviesada), ou efeito do falso consenso (os outros partilham a minha perspectiva), este último muito ligado ao ‘efeito de eco’ no âmbito ciber e das redes sociais. 

    O acima exposto foi-nos possível verificar, por diversas vezes, em sede de investigações de terrorismo e terrorismo internacional, em particular as atinentes às vertentes de (des)radicalização e Foreign Terrorist Fighters (FTF). Com algum pesar, identificamos, às vezes sem esperar, elementos da retórica ou narrativa do extremismo violento na comunicação pública, seja institucional, de comentário e dos meios de comunicação social (aqui referimo-nos aos Main Stream Media – MSM).

    Este iter comunicacional é muitas vezes acompanhado de uma doutrina de pensamento único, o certo, o “nosso”, o lado “bom”, traduzido no conceito do ‘politicamente correcto’, o qual mais não é do que uma limitação encapotada (a coberto de aparentes sentimentos nobres ou virtudes) do direito fundamental da Liberdade de Expressão.

    Algo que, por sua vez, socio-politicamente, se manifesta em movimentos e/ou eventos, ainda que com uma lógica ou incidente de base eventualmente válidos, que, distorcendo ou reorganizando a realidade dos factos (com recurso àquelas falácias), desvirtuam os próprios princípios que alegam sustentar a sua actuação. Exemplos disso são a ’Black Lives Matter’, o ‘Woke movement’ ou a (consequente) ‘Cancel Culture’.

    Adicionaríamos, aqui, o actualíssimo ‘lugar de fala’, um pouco associado aos movimentos de minorias ou LGBTQ, em que quem não partilha da experiência concreta não teria “direito” a ter, e a expressar, uma opinião sobre um determinado assunto, numa negação intelectual… do intelecto dos outros, erga omnes.

    Obviamente, tudo isto se interliga numa questão superior, que é a da utilização de política identitária (“Identity Politics”), temática que, pela sua extensão, não iremos aqui abordar.

    Evidentemente que o problema principal se centrará na comunicação institucional, enquanto emanação da vontade e actuação da sociedade, a qual se desejará, espera-se, melhor e não sujeita aos defeitos e emoções inerentes à condição humana individual.

    man using headphones shouting beside wall

    Como tivemos oportunidade de escrever anteriormente, “[é] absolutamente relevante que a comunicação institucional se efectue projectando valores da seriedade, tolerância, legitimidade e proporcionalidade das acções tomadas, mas sempre no quadro de equilíbrio e justiça, para que a legitimidade de actuação com base numa auctoritas, mormente jurídica, permita o exercício da potestas. (…)”.

    Como se compreende a acção internacional de alguns países, com direito de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas, à revelia das normas de Direito Internacional, como os Estados Unidos no Iraque em 2003 ou a Rússia na Crimeia em 2014?

    Se tais situações fossem expurgadas do quotidiano, eliminando causas de descontentamento e injustiça, adquirir-se-ia mais legitimidade no exercício político, o que levaria ao alcance de mais bem comum, percepcionado como uma maior realização do pacto social, o que redundaria em coesão social e política, aumentando o vínculo societário, fosse através da identificação com a nação, ou apenas do vínculo jurídico da cidadania, ultrapassando eventuais questões multiculturais, e reduzindo, consequentemente, a exposição a retóricas de extremismo violento.” (Contra-Terrorismo: Tópicos Essenciais e a Unidade CT “ideal” – 2021).

    Ora, estas características discursivas ou comunicacionais foram, ou são, passíveis de serem identificadas paradigmaticamente em dois contextos recentes e relevantes: a Pandemia da doença Covid-19 e a Guerra na Ucrânia por invasão russa.

    Quanto à Pandemia, desde logo identificamos aquela visão dicotómica da realidade, numa conjugação das falácias do realismo ingénuo e do ângulo morto, e da do falso consenso com a doutrina do pensamento único, em que toda e qualquer opinião que não se manifeste em absoluta concordância com a “tese vigente” é não só descartada, e acriticamente etiquetada como “negacionismo”, toda a opinião “metida no mesmo saco”, como, pior, não tem sequer espaço para ser apresentada, discutida, analisada, e, potencialmente, compreendida, assim alimentando-se o ciclo de pensamento unívoco, o qual não oferece possibilidades de descoberta ou evolução no conhecimento.

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    Exemplos disto são, desde logo, o artigo de opinião do médico anestesiologista Pedro Girão no Público, que, em Agosto de 2021, foi retirado da plataforma online daquele jornal, depois de 24 horas.

    No termo do próprio periódico, a “despublicação” do texto deste médico deveu-se a uma falha editorial na análise, que precedeu a publicação, ao seu conteúdo, à opinião nele vertida (contra) sobre a vacinação dos adolescentes, contrário à interpretação dominante e defendida (como se veio a verificar) institucionalmente, nomeadamente pela Direcção-Geral da Saúde (DGS), num acto efectivo de censura, condicionando o acesso livre a opiniões distintas.

    Existem poucos direitos fundamentais tão importantes quanto a Liberdade de Expressão, o qual alcança um impacto societário assinalável, por isso meritório de protecção. Outro exemplo em que esta visão redutora do mundo a apenas dois actores, o “nós” e o “eles” (dicotomia militarista por excelência), é não só exibida como assumida, são as declarações do Vice-Almirante (agora Almirante) Gouveia e Melo, este já um discurso institucional pelo cargo desempenhado, nas quais afirma, na ‘Web Summit’, que usou “… uma retórica de guerra em que o vírus era o inimigo, em que ou a pessoa estava connosco ou com o vírus. Penso que este plano de comunicação foi importante para as pessoas perceberem que não podiam ficar em casa sem vacinação.

    Portanto, não sendo censura propriamente dita, mas uma quase exigência de acatamento sem crítica, sem questionar, como se de uma ordem (militar) se tratasse, em que a conclusão de actuação diversa era estarmos “ao lado do inimigo”, com todas as consequências associadas (a palavra “traidor” vem à mente).

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    Um último exemplo, aqui, será a da opinião do médico intensivista Gustavo Carona, o qual, em artigo publicado no jornal Público a 14/12/2021, escreveu que “(…) a única forma de não tornar a pandemia uma arma de arremesso político é compreender que o negacionismo/relativismo/obscurantismo é um cancro que mata, e que em matéria de ciência não há vergonha nenhuma em ser um “aceitacionista acéfalo” e acreditar na seriedade e competência das autoridades de que vamos precisar, (…) porque é isso que a comunidade científica nos está a dizer, para melhor nos protegermos da Ómicron.”.

    Só para deixar claro, um médico sustenta que em matéria de ciência se deveria ser “aceitacionista acéfalo” e acreditar na seriedade e competência das autoridades… Não nos lembramos, no método científico, quer nas variantes dedutiva, indutiva, ou outras, da fase ou etapa metodológica de “acreditar”.  

    Também a Guerra na Ucrânia, invadida pela Rússia (poderíamos abordar outros conflitos armados/invasões hodiernos, como sejam o Tibete, ocupado pela China desde 1950, a expansão anual dos colonatos israelitas na Palestina, ou a Síria, ainda hoje invadida e ilegalmente ocupada, pelo menos, por turcos e israelitas – isto se quisermos abordar o assunto da(s) Soberania(s) de um ponto de vista intelectualmente honesto, conforme Jean Bodin teorizou o conceito), é terreno fértil para a manifestação dos fenómenos ora em análise.

    Não sendo necessário afirmar a absoluta objecção a qualquer tipo de guerra e oposição a qualquer actividade com custo de vidas humanas, e sem nos delongarmos em demasia, salientaremos alguns aspectos que julgamos fundamentais.

    Em primeiro lugar, o assumir enquanto dogma, que a acção do Presidente Putin corresponde ao “delírio de um louco” (como verificamos mais do que um comentador afirmar), novamente, desumanizando-o, tornando-o no “inimigo” de todos os “sãos”, reduzindo-o a algo incompreensível, ao invés de se tentar compreender todos os factores, estratégias e contextos que terão levado a esta tomada de acção.

    Mendes Corrêa constatou algo similar quanto ao estudo de delinquentes, em que na altura, as pessoas normais, sãs, eram as menos estudadas, mas a maioria das que cometiam crimes, uma vez que existia um preconceito ao se pressupor que o comportamento desviante na prática de crime deveria ter na base um problema mental. Compreensão esta que não implica, obviamente, defender como legal ou admissível a invasão de um país, seja a Ucrânia, o Iraque ou qualquer outro.

    De resto, subscrevemos a análise do Professor J. Mearsheimer, da Universidade de Chicago, o qual em Junho de 2015 deu uma palestra com o título “The Causes and Consequences of the Ukraine Crisis”, o qual atribui a corrente situação geopolítica à acção dos poderes políticos do Ocidente, numa lógica de “balance of power politics”, o que não invalida que reconheçamos o autoritarismo patente na Rússia de hoje.

    No mesmo sentido, o Major-General Raúl Cunha, comandante de forças NATO na antiga Jugoslávia, em declarações ao jornal online ‘setenta e quatro’ (publicado a 17/03), referiu que “Eu próprio me enganei, convenci-me que havia bom senso e que iam aceitar as linhas vermelhas de Putin. Oito anos de guerra no Donbass, 14 mil mortos, assinados os Acordos de Minsk com o testemunho do presidente da França, Holland, Merkel e Putin. Então? Cumpram os acordos que assinaram. (…) Putin avisou em 2007 sobre o que pensava, depois pediu, repetiu e pôs forças na fronteira, como quem diz: ‘Ou vocês fazem aquilo que ando há séculos a pedir ou ataco’.”, acrescentando ainda, a propósito da presença neonazi na Ucrânia, que “ao nível sobretudo das forças armadas e das forças de segurança estão infiltrados a todos os níveis, estão infiltrados ao nível do comando das forças armadas da Ucrânia, atenção. Um dos conselheiros do chefe de Estado-Maior General ucraniano foi o primeiro comandante do Batalhão Azov.” Isto apesar de ter consciência que, hoje em dia, “Esta malta gosta pouco de ouvir opiniões contrárias. Aqui é um bocado assim. O pensamento único está a imperar neste momento. É uma coisa assustadora.

    Este impingir de ideias, e manipulação de termos, sobre um determinado assunto, sem permitir outras diferentes (falácias do ângulo morto e da confirmação), apenas encontra paralelo no famoso ‘Luntz Document’ de 2009, um dicionário de linguagem com o objectivo de servir o “The Israel Project”, passando a mensagem através de “words that work”, como se pode ler no citado documento. Paradigmaticamente, nas próprias palavras do seu autor, Frank Luntz: “And remember, it’s not what you say that counts. It’s what people hear.”

    Por outro lado, de um ponto de vista mais imagético, a jornalista do órgão MSM CNN americano, Christiane Amanpour, no passado dia 28 de Fevereiro publicou uma foto sua, no seu perfil de Facebook, a propósito da cobertura jornalística dos esforços diplomáticos do presidente francês quanto ao conflito armado na Ucrânia, onde envergava um casaco camuflado. Nada de extraordinário, não fosse encontrar-se a fazer reportagem… em Paris, muito longe dos tiros e bombas do conflito.

    Perguntamos, senão alarmismo e condicionamento da opinião pública, que lógica ou intenção poderá estar na base da decisão de se apresentar desta forma perante as câmaras, sem necessidade real?

    Deverão os jornalistas, quando reportam sobre Saúde, envergar uma bata médica?

    Ou sobre Justiça, uma toga, quiçá uma beca?

    A militarização da sociedade (como são exemplos o caso de Gouveia e Melo na vacinação no âmbito da Pandemia, ou, mais recentemente, o do Brigadeiro General Paulo Viegas Nunes na presidência do SIRESP, empresa pública), em especial das suas “forças vivas”, inclusive uma denominada “4º Poder” como o é o jornalismo, não pode ser considerado como algo positivo, não onde o bom-senso impere.

    Por último, quanto a esta análise, causa-nos elevada estranheza as críticas efectuadas a quem procura analisar o que se passa na Guerra da Ucrânia com objectividade ou considerações diferentes das “aceites” na cartilha única que os MSM permitem.

    Falamos em concreto das objecções do “whataboutismo” e do princípio da autodeterminação dos povos, ainda decorrente da aplicação do Direito Internacional, por um lado, e, por outro, das objecções às críticas à Ucrânia (da sua actuação, pelo menos, desde 2014, concretamente do papel que a extrema-direita neonazi desempenhou e continua a desempenhar no país, os incidentes em Maio desse ano em Odessa, a perseguição e detenção de jornalistas sem julgamento, como o caso de Kirill Vyshinsky, o já afamado conflito no Donbass, ou a interferência de potências estrangeiras como os EUA).

    No primeiro aspecto, dá-se o caso de uma contradição evidente: se não se pode alegar outras situações idênticas ou similares, como o da Síria, Iraque (2003) ou Iémen, enquanto paralelos de análise e compreensão, uma vez que se trata “deste caso concreto, da invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin”, segundo vemos/ lemos/ ouvimos sustentar, então não se pode, ao mesmo tempo, alegar o Direito internacional para alocar à Ucrânia o direito de integrar a União Europeia ou a NATO, em decorrência do princípio da autodeterminação dos povos e da sua Soberania.

    Ou se analisa o problema do ponto de vista do Direito internacional ou do ponto de vista da realpolitik (“balance of power politics”), ou no plano do ‘Dever-Ser’ ou do ‘Ser’.

    Se formos intelectualmente sérios, não se pode escolher consoante o argumento que nos dá mais jeito. Além do mais, quando os Estados Unidos, “líderes” do Ocidente, aplicam a Doutrina Monroe, como ficou patente com o caso de Cuba, na crise dos mísseis de 1962, que se tratou não só de uma manifestação explícita da visão da realpolitik, como a sua tese de base é a mesma que esteia, essencialmente, a actuação da Rússia neste cenário actual (como de resto aconteceu em 2008, com a invasão da Geórgia, após a declaração final da Cimeira de Bucareste desse ano, da NATO, em que se assumia, no ponto 23, a intenção de incorporar a Geórgia e a Ucrânia nesta aliança militar), desde logo só “permitida” pela viciação existente nas Nações Unidas, quanto aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança e o seu direito de “veto” – nr.º 3 do art. 27.º da Carta das Nações Unidas.

    man riding bike and woman running holding flag of USA

    Quanto ao segundo aspecto, mais uma vez, não se pode silenciar ou “cancelar” quem tem uma opinião ou interpretação diferentes.

    Desde logo, apelidar três Generais, militares que comentam no espaço público, como “putinistas”, como o Expresso fez, dando eco a esta narrativa, é, no mínimo, tentativa de “assassínio de carácter”.

    Como o são as recentes noticias da Visão e Diário de Notícias sobre Alexandre Guerreiro, aliás com afirmações, depois verificadas, falsas. De resto, a interferência dos Estados Unidos (e, por inerência, da NATO) na Ucrânia está mais que demonstrada, não só agora pela “ajuda” militar, não só no passado com a conversa telefónica que caiu no domínio público entre Trump e Zelensky sobre os interesses de Joe Biden (o agora Presidente americano, note-se) e o seu filho, mas particularmente pelo recente reconhecimento da existência de laboratórios de investigação biológica naquele país por Victoria Nuland, sub-secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros dos Estados Unidos.

    Não sendo, aliás, despicienda a ligação desta política ao aparelho de estado americano, porquanto é casada com Robert Kagan, conhecido neoconservador fundador do PNAC – Project for the New American Century – think tank cujo um dos esteios era a promoção da liderança americana e exportação dos valores da democracia liberal, isto é, a doutrina expansionista que tem guiado a política externa americana, e por inerência, a expansão da NATO, em particular em direcção à Europa de Leste). 

    A solução, já o escrevemos no passado, passa necessariamente pela Educação, por termos membros da sociedade mais capazes de compreender e criticar a realidade motu próprio, ainda que tenhamos consciência que é hipótese que demora 20 ou 30 anos a surtir efeito, pelo que ontem já era tarde para começar.

    Infelizmente, o sentido das recentes alterações legislativas das ‘Aprendizagens Essenciais’ (efectuadas, com pouca discussão no fórum público), com eliminação dos currículos escolares existentes até agora, vão no sentido oposto ao desejável. Como defendeu, em 1956, o filósofo judeu alemão Günther Anders, na sua obra ‘A obsolescência do homem’: “(…) O ideal seria formatar os indivíduos desde o nascimento limitando suas habilidades biológicas inatas… Em seguida, o acondicionamento continuará reduzindo drasticamente o nível e a qualidade da educação, reduzindo-a para uma forma de inserção profissional. (…) Especialmente sem filosofia. Mais uma vez, há que usar persuasão e não violência direta: transmitir-se-á maciçamente, através da televisão, entretenimento imbecil, bajulando sempre o emocional, o instintivo. Vamos ocupar as mentes com o que é fútil e lúdico. (…) Qualquer doutrina que ponha em causa o sistema deve ser designada como subversiva e terrorista e, em seguida, aqueles que a apoiam devem ser tratados como tal.” Assustadoramente na mouche, diríamos.

    A polarização da visão do mundo, da nossa actuação e expressão nele, não é apta a melhorar o status quo. É mesmo contraproducente porque convoca, precisamente, o nosso oposto, quando a realidade não é simples, assim “preta e branca”, mas complexa, multifactorial, cheia de matizes de cinzentos, desde logo a partir das nossas próprias limitações de intelecção.

    Não podemos desumanizar ou demonizar quem questiona, quem discorda de nós. É preciso compreender o outro, os outros, o mundo. É assim que o conhecimento evolui.

    Bem-hajam, entre outros e os já citados acima, os Manuel Loff e as Raquel Varela deste mundo.

    persons right foot on white wall

    Aliás, nas palavras desta última excelsa Professora (em post na sua página de Facebook, de dia 30/03): “Os critérios, amplamente conhecidos dos académicos críticos, são a metodologia que sustenta os argumentos, a coerência, a intenção da verdade, a verificação externa de argumentos, a fiabilidade das fontes, etc. O combate pelo conhecimento e pelo acesso à verdade faz-se com educação e politização, com debate aberto, com desenvolvimento de uma ciência livre de pressões do Estado e do Mercado (…). Não se faz com censura. Não se luta contra as ideias – que consideramos erradas – à chapada.

    A Liberdade de Expressão é, na (correcta, pensamos) acepção de alguns autores, vital ao pensamento humano e ao conhecimento societário. A acção do intelecto, vulgo pensar, é, em grande medida, internalização do discurso, cujas palavras/ ideias assim expressas criam, condicionam, e alteram caminhos neuronais, literalmente.

    É, por isso, um acto de coragem, aceitar poder estar errado umas vezes, para estar certo numa, que fará a diferença. Aos investigadores, em especial, cumpre questionar quando mais ninguém o faz.

    Inspector da Polícia Judiciária, licenciado em Direito e mestre em Direito e Segurança

    Autor do livro Contra-Terrorismo – Tópicos Essenciais e a Unidade CT “Ideal”


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  • As “bolhas” nas escolas

    As “bolhas” nas escolas


    O meu nome é Ana Raquel Serra Evaristo e sou mãe de uma criança de oito anos que frequenta a EB1/JI do Bairro Novo no Seixal.

    Fui desde cedo crítica das medidas aplicadas nas escolas, sobretudo pela desproporcionalidade e pela diferença na actuação entre as próprias escolas, que adoptaram cada uma as medidas que entenderam…

    No auge da pandemia (ainda a minha filha andava na pré), vi-a a chorar em frente ao computador, a dizer que não queria ver os amigos assim, que queria estar com eles na escola. No regresso à escola em 2020, tive que pedir que não lhe aplicassem tanto álcool-gel nas mãos por lhe estar a fazer alergia.

    No primeiro dia de aulas em 2021 (já no primeiro ano), uma das meninas da sala dela, ficou a chorar no recreio sem entrar na escola. Precisava claro, de um último abraço ou de mais um bocadinho de conforto, mas os pais não podiam entrar, e as auxiliares entre aplicar álcool-gel a quem entrava e assegurar o distanciamento social, limitavam-se a dizer-lhe para entrar na escola, aos gritos e gesticulando.

    Foi a minha filha que, por indicação minha, lhe deu um abraço, lhe deu a mão e confortou a amiga, e assim entraram as duas na escola. Devia ter sido um dia de alegria, mas saí dali com o coração pesado.

    red and yellow metal frame under blue sky during daytime

    A minha filha anda agora no 2º ano, e não conhece o recreio de outra forma, a não ser em “bolhas”. Mesmo apesar do Referencial Escolas, para controlo da transmissão de covid-19 em contexto escolar, ter sido revogado, e de as mais recentes orientações da Direcção-Geral da Saúde (DGS) nada referirem quanto à necessidade de distanciamento social nas escolas.

    Contactei a escola, em busca de esclarecimentos, e fui encaminhada para o Agrupamento. As respostas que obtive foram totalmente desfasadas da realidade e desprovidas de qualquer enquadramento legal.

    Contactei vários pais. Poucos concordam com as “bolhas”, mas nenhum se atreveu a questionar, ou a procurar esclarecer a situação, e quase todos demonstraram um desconhecimento total das orientações em vigor.

    Senti-me impotente para enfrentar sozinha este processo e contactei vários advogados e entidades. Apenas o Dr. Paulo Edson da Cunha acedeu a avançar comigo, assim como a organização Habeas Corpus, que deu o seu contributo com um parecer que suportava a nossa causa.

    E em boa hora o fiz. Durante mais de uma semana tentámos gerir um gigantesco muro de silêncio ou de respostas cheias de nada. Sem a ajuda do Dr. Paulo Edson da Cunha dificilmente eu teria conseguido avançar.

    Iniciámos, pois, uma escalada de contactos que implicou voltar a inquirir a direcção do Agrupamento, para construir um caso sólido. Eu a insistir numa actuação rápida, o Dr. Paulo Edson da Cunha a gerir a minha ansiedade, e a explicar que eram passos pequenos, e que embora parecessem retrocessos, teriam que ser dados.

    O Agrupamento recusou a realização da reunião que solicitámos e encaminhou para a Direção Regional de Educação de Lisboa e Vale do Tejo (DSRLVT). A DSRLVT devolveu para o Agrupamento. Recorremos à DGEstE (Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares), que encaminhou para a DGS e para o respectivo delegado de saúde da área. A resposta ainda a esperamos, e assim andámos, num processo kafkiano, sem que nenhuma entidade fosse capaz de esclarecer de forma clara, objectiva e directa, acerca do enquadramento legal e o que é que suportava a continuação das “bolhas” no recreio.

    group of people wearing white and orange backpacks walking on gray concrete pavement during daytime

    Estas diligências aconteceram maioritariamente durante a pausa lectiva da Páscoa, e face à ausência de respostas, informámos que estaríamos dispostos a recorrer judicialmente para obter, por essa via, o que não estávamos a conseguir junto das entidades competentes.

    Surpreendentemente, ou talvez não, no primeiro dia de aulas “surgiram” orientações da  Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE) indicando que “as crianças que se encontrem no espaço exterior, na altura do intervalo escolar podem circular/interagir livremente (…)”

    Gostaria muito de dizer que a história acaba aqui, mas infelizmente ainda não.

    Quando fui buscar a minha filha à escola ao final do dia, disse-me bastante entusiasmada que já não havia “bolhas”. No desenvolvimento da conversa, percebi que afinal ainda existiram duas “bolhas” e que as auxiliares ainda não agiam de forma uniforme, umas já não dando importância à circulação das crianças, outras insistindo na permanência nas mesmas.

    O meu coração gelou, a pensar que afinal ainda não podíamos cantar vitória e lá se passou mais uma noite mal dormida, a pensar no que faríamos a seguir, caso as “bolhas” não fossem totalmente removidas.

    No dia seguinte lá estávamos junto da escola, à hora do intervalo para perceber o que aconteceria às “bolhas”. Felizmente, desapareceram! Vimos um recreio cheio de meninos a circular livremente e a finalmente interagir sem nenhum constrangimento.

    Resta-lhes agora ser crianças, brincar muito e recuperar destes dois anos de falta de interacção. O meu coração de mãe está agora mais leve e infinitamente mais feliz, e com a certeza de que tudo fiz para garantir à minha filha nada menos do que lhe é devido enquanto criança.

    “Bolhas” no recreio, só se forem das de sabão, para as crianças brincarem com elas!!


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