No dia 13 de junho de 1654, em São Luís do Maranhão, o padre António Vieira proferiu o Sermão de Santo António aos Peixes aos brasilienses. Era dia de Santo António, santo propiciador na busca de objetos perdidos, padroeiros pobres e dos oprimidos, dos casais e das grávidas.
Trezentos e setenta anos depois, no Porto, a Senhora Ursula van der Leyen proferiu um discurso aos portuenses. Era Dia de São Norberto, que foi bispo de Magdeburgo, germânico como a Senhora Ursula e padroeiro da Boémia.
Durante o seu discurso no Porto, a Senhora Ursula foi confrontada com um grupo de jovens manifestantes que protestavam contra o alegado financiamento, feito pela Comissão Europeia, do “genocídio em Gaza”. Recordemos que a Senhora Ursula é presidente da Comissão Europeia, pelo que aquele protesto, concorde-se ou não com o motivo e com a forma, não parece ser totalmente deslocado. Os jovens foram, obviamente, detidos pela polícia, assim se provando a lendária hospitalidade portuguesa.
Claro que a Senhora Ursula não deixou o protesto passar incólume. E de pronto, dirigindo-se aos jovens que nesse momento estavam a ser arrastados pela Polícia, afirmou, num tom onde alguma pedagogia se mesclava com algum desdém, que, afinal, aqueles jovens tinham muita sorte, pois se estivessem na Rússia acabariam na prisão em dois minutos. E, sob os aplausos gerais das pessoas presentes no comício, bem como sob o perfume geral de incenso que a rodeava, a Senhora Ursula passou a sua mensagem contra a Rússia e contra os manifestantes.
Há 370 anos, o padre Vieira disse em São Luís do Maranhão:
«O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, outra corrupção?»
Há dois dias, a Senhora Ursula disse no Porto:
«Se vocês estivessem em Moscovo, estavam na prisão em dois minutos»
Duas mensagens fortes, dois estilos. Qual delas permanecerá para a posteridade? É ousado fazer previsões.
Todavia, ainda no contexto de uma -quiçá abusiva- comparação entre os dois discursos, persiste uma dúvida. O padre António Vieira fez o sermão num momento em que o Brasil-colónia se debatia com o problema da escravidão dos povos indígenas e os litígios daí decorrentes entre os colonos e alguns missionários.
A Senhora Ursula fez o seu sermão sobre a Rússia aos portuenses, a propósito de quê? Por outras palavras, o que tem a Rússia a ver com aqueles jovens que protestavam contra a política da Comissão Europeia em relação à Palestina? Que se saiba, a Palestina não é a Rússia, são coisas e causas diferentes, pelo que o sermão da Senhora Ursula aos portuenses me parece tão a deslocado (ao contrário da manifestação) como se o padre António Vieira, no sermão em São Luís do Maranhão, reclamasse contra a expulsão dos parlamentares ingleses adversários por parte de Oliver Cromwell, ocorrida no mesmo ano.
Talvez eu esteja a exagerar. Afinal, entre São Luís do Maranhão e Londres são 7.306 quilómetros, entre o Porto e Moscovo é cerca de metade. Por outro lado, a dita expulsão levada a cabo por Cromwell dos parlamentares desafetos, só ocorreu meses depois do sermão de Vieira, pelo que o bom padre nunca o poderia citar. Eis porque acho que, se calhar, estou mesmo a exagerar.
Mas a minha dúvida persiste.
Porquê referir tão enfaticamente a Rússia contra jovens que se manifestavam em relação à Palestina? Dizer que a questão da Rússia é uma das mais marcantes questões atuais, não me convence. Há outras questões atuais tão marcantes como essa. Imagine-se como nos soaria deslocado se a Senhora Ursula se virasse para os manifestantes e exclamasse:
«Se vocês estivessem na Amazónia, estariam a arder em dois minutos»
Ou:
«Se vocês estivessem num icebergue do Pólo Norte estariam a derreter em dois minutos»
Pois, de facto parece-me deslocado. Mas isso sou eu, pronto…
Talvez haja outras explicações.
Será que a Senhora Ursula, como muitos dos seus conterrâneos norte-europeus, persiste na ideia de que os povos do sul da Europa (os PIGS, como solidariamente lhes chamam) precisam de pedagogia político-financeira como de pão para a boca? É possível. Afinal, a tradição já vem de longe. Há uns aninhos, o Senhor ministro holandês Dijsselbloem afirmou que os povos do Sul gastam tudo em copos e mulheres. Note-se que não estou a criticar o Senhor ministro Dijsselbloem. Afinal, basta olhar para ele para perceber que aquilo é homem que nunca gastaria um euro numa coisa ou noutra.
Apenas trago à colação esta frase do Senhor holandês (agora neerlandês) para que se compreenda essa recorrente preocupação norte-europeia em instruir-nos, o que até será louvável. Por isso, aqueles jovens que, no Porto, protestavam contra o que se passa em Gaza, precisavam de ouvir a Senhora Ursula, alemã, a educar-nos com o exemplo da Rússia.
Se se pensar bem, até que o sermão da Senhora Ursula terá sido bem escolhido. A Rússia é tema presente, omnipresente, aliás, e está mesmo ali à mão de semear. Se a Senhora Ursula fosse buscar outras comparações históricas, talvez os jovens manifestantes não percebessem a alegoria e a atualidade. Imaginem que a germânica Senhora Ursula lhes bramava:
«Se vocês estivessem no meu país no tempo em que os alemães seguiam cegamente Hitler, estariam num campo de concentração em dois minutos».
Pois… Talvez os jovens não percebessem. Afinal, os portugueses são incultos, desorganizados, improdutivos e gastam tudo em copos e mulheres. Não somos organizados e poupados como a nação do Senhor Dijsselbloem, que, solidária, foi a nação estrangeira que mais voluntários deu às SS no tempo em que os alemães seguiam cegamente o senhor Hitler.
Bem, talvez eu esteja a ver mal as coisas. Não seria a primeira vez, não será a última. E talvez esteja a fazer uma comparação tola entre o discurso da Senhora Ursula aos portuenses e o sermão do padre António Vieira aos maranhenses. E daí, talvez não. A presidência da Comissão Europeia tem alguma tradição piscícola. Afinal, o antecessor da Senhora Ursula não era também conhecido pelo cognome de “o cherne”? Mas, lá está, se calhar estou de novo a exagerar…
Sérgio Luís de Carvalho é escritor e historiador
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Numa homenagem ao Professor Santana Castilho, ontem falecido, o PÁGINA UM publica um texto fundamental de cidadania, da sua autoria, lido num debate em 21 de Janeiro de 2021 sobre os efeitos sociais da pandemia. Foi escrito em pleno período de atropelos constitucionais, de promoção do medo e de perseguição a quem considerava que a gestão de uma crise sanitária não poderia ser feita (muito pelo contrário) com imposição de regras irracionais e mesmo erradas. A leitura deste texto, três anos depois, não é apenas um acto de respeito ao pensamento livre e independente de Santana Castilho, sobretudo na área que amava (a Educação); é algo que deve ser feito como uma reflexão para o presente e o futuro – é isso que nos ajuda a não permitir que se cometam os erros passados.
O PÁGINA UM agradece à Cidadania XXI, e particularmente a António Jorge Nogueira, organizador das Tertúlias da Junqueira, onde este debate (e muitos outros) se realizou – que contou também com a participação de Raquel Varela e Jorge Torgal – a amabilidade pela cedência do texto integral de Santana Castilho.
Decidi destacar a negrito as partes fundamentais, de leitura obrigatória, deste texto de Santana Castilho. Pequei por defeito; deveria ter destacado tudo!
Pedro Almeida Vieira
Desde que o Governo determinou a situação de alerta, o pânico foi alastrando e contagiando boa parte dos portugueses. Nesta onda de mata e esfola, cresceu o apoio a medidas mais drásticas e já vamos no nono estado de emergência. Porém, à democracia do medo (que tanto nos pode confrontar com o melhor como com o pior dos comportamentos cívicos), incentivada agora por muitos dos que foram imolando o SNS [Serviço Nacional de Saúde] no altar da austeridade, preferia a democracia da serenidade fundamentada e bem comunicada.
Cruzam-se decisões pouco fundamentadas com análises em cascata, criteriosas umas, simplesmente especulativas ou descuidadas outras, tudo contribuindo para a banalização do medo e escancarando portas a iniciativas, eventual e desnecessariamente atentatórias de responsabilidades partilhadas e de direitos e liberdades. Para dominar o contágio não chega a higiene sanitária. Precisamos, também, de higiene social, para simplesmente não enclausurarmos toda a vida.
Com o medo de ficarmos contaminados ou a angústia de vermos adoecer familiares e amigos, esquecemos rápido o vírus da xenofobia desumana que se abateu sobre milhares de refugiados, que continuam a fugir da guerra e da fome, sem pão nem amor, vindos não importa donde. É em momentos como este que a solidariedade incondicional deve ser reiterada.
Muitas doenças, evitáveis ou pelo menos substancialmente retardáveis por alteração de comportamentos ou estilos de vida, entram naquilo que aceitamos (erradamente) como determinismos do nosso existir. As mortes que provocam (porque dispersas no nosso desconhecimento da sua existência), numericamente bem mais significativas do que as que esta pandemia vai causar, não nos afligem como este confronto inesperado com a nossa fragilidade, para mais sujeito a uma mediatização, que tanto informa validamente, como agita o medo desnecessariamente.
Na longa vida que já levo, não guardo memória de uma hecatombe assim. Nunca vi uma travagem da Economia tão generalizada e um pânico social tão ampliado. Por isso, aflige-me não sabermos quando acabará a prisão preventiva da sociedade inteira. Embora a atmosfera actual esteja dominada por uma certa ideologia comportamental, seja opressiva e reaja mal a opiniões sem máscara, afirmo que não teria parado a economia deste modo, muito menos teria alimentado o medo desta maneira.
A opinião pública está hoje fortemente condicionada para aceitar um só ângulo de observação da pandemia. O receio deu lugar ao medo e o medo abriu a porta ao pânico, desproporcionado face a outras patologias e a outros males que assolam o mundo. As bolas de cristal foram substituídas por modelos matemáticos, que protagonizaram cenários em que, a breve trecho, teríamos mais infectados que população existente.
O dilúvio noticioso sobre a covid-19 superou largamente a alienação de outras ondas mediáticas (futebol, incêndios, calamidades climáticas). Os noticiários são massacrantes e repetem ad nauseam quadros de desgraça. Perplexo, pergunto-me como é possível que equipas de reportagem, atropelando a privacidade e a dignidade mínima dos prostrados nos cuidados intensivos, filmem o que o decoro e a protecção de dados interdita.
Dia após dia, os mais populares pivots das nossas televisões descodificam gráficos mágicos, com as antevisões dos penúltimos dias da humanidade. No fim dos noticiários asfixiantes, paramentam-se de sacerdotes da esperança e catequizam-nos com uma longa e poética homilia de boas condutas.
Aos velhos foram aplicadas duas penas: aos que vivem em lares, a crueldade da solidão imposta; aos que lá não estão, a discriminação, como cidadãos de segunda. Não é aceitável que o Estado, que legalizou a eutanásia, decida retirar aos velhos o direito de continuarem a ver os filhos e os netos, se entenderem correr o risco.
Considero isto uma infantilização dos velhos, uma interrupção da democracia, um paternalismo que dispenso, um desrespeito pelo direito ao “convívio familiar” e à “autonomia pessoal”, que a Constituição expressamente consigna (Artº 72º).
Perante os números que documentam esta pandemia, o Mundo parece ter esquecido que morrem por ano 10 milhões com cancro. Que em 2018 morreram 200 mil crianças com tuberculose e 300 mil com malária.
Vejo com enorme preocupação que se comece a falar em certificados de vacinação, escabrosa ideia que nos ofereceria mais uma repugnante divisão social: cidadãos puros, devidamente munidos de passaporte de sanidade, e párias impuros, sem direito ao novo papel selado. O que é que isto nos recorda?
Santana Castilho lendo o seu texto na Tertúlia da Junqueira em 21 de Janeiro de 2021
Em tempo de restrições como nunca tivemos depois de Abril, a liberdade é o valor maior que me apetece invocar, num país sob uma autofágica polarização: os que querem permanecer fechados, encurralados pelo pânico, e os que, embora reconhecendo a gravidade da situação, sacodem cabrestos e discriminações que julgavam afastadas.
São livres os portugueses presos em lares miseráveis, que não percebem porque lhes desapareceram filhos e netos? Não é um défice de liberdade a falta de conhecimento para interpretar com serenidade o fenómeno que nos atormenta? São hoje livres os milhares de portugueses que ficaram ontem sem emprego? Os que já viviam na fronteira da sobrevivência e hoje desesperam, esses, são livres?
Porque não tenho senhores e penso livremente, ouso perguntar ainda: será que um estado de emergência nove vezes repetido, com tão pequeno questionamento e tão generalizada aceitação, pode ser socialmente havido como um resquício da ditadura de que Abril nos livrou? Como aceitar, sem enorme perplexidade, os delatores que a covid-19 destapou? Antes, a PIDE zelava pela ordem que o Estado Novo determinava e a censura amordaçava-nos. Hoje há quem defenda certificados de imunidade e a georreferenciação das pessoas, enquanto, sofredores, resignados, confinados, de máscara posta, adoecemos mentalmente.
Vão-me dizendo que as decisões políticas são tomadas depois de ouvir os especialistas. Mas há especialistas que não são ouvidos. Não são ouvidos os virologistas e os epidemiologistas que pensam a contrario sensu dos que são seguidos por Marcelo e Costa, muito menos são ouvidos outros especialistas, de outras áreas (psicólogos sociais e psiquiatras, por exemplo), que poderiam complementar o saber médico e epidemiológico e explicar as consequências do autêntico assédio moral que tem sido exercido sobre os mais velhos, ou a influência depressiva do massacre noticioso dos telejornais, sobre toda a população.
Uma grande parte dos portugueses, resignada, deprimida pela campanha da promoção do medo a que foi submetida, parece querer aceitar em silêncio a limitação dos seus direitos. Vive-se, assim, numa cidadania apenas simbólica, tutelada pela polícia e pela Direcção-Geral da Saúde, que têm agora o monopólio do espaço público. Sente-se, assim, a opressão de uma espécie de religião do confinamento, que nos empurra, em rebanho, para a neurose colectiva.
À salvação pelo grande confinamento e pela ditadura sanitária, opõe-se uma racionalidade ponderada para combater o vírus. Trata-se da dicotomia entre um risco de infecção e uma morte lenta, mas certa, por catástrofe económica, psíquica e social, sem precedentes.
No que toca à escola, custa-me ver que se aceite tão facilmente trocar relações pessoais por relações digitais, admitindo que a profissionalidade docente possa prescindir do contacto social e da empatia humana. Como se um colectivo de pessoas pudesse ser substituído por um colectivo de computadores, sem perda de humanidade. Tecnólogos e tecnocratas não entendem que a interacção pedagógica exige presença. Professores e alunos sabem e sentem isso. Agora, mais que nunca, interiorizaram, certamente, que uma aula tem múltiplos papéis sociais, que nenhuma máquina substitui.
O medo encerrou os parques infantis ao ar livre, castrando imbecilmente as crianças do direito de brincarem. As múltiplas proibições e obrigações, redefinidas hora-a-hora por catadupas de informações inúteis, incoerentes e contraditórias, são impostas pelas novas brigadas dos costumes sanitários, que despejam álcool-gel na inteligência dos cidadãos, enquanto o vírus comtempla o esplendor da desumanização que os humanos criaram.
A continuarmos assim, não me surpreenderá que eu ainda viva para lutar contra vacinações obrigatórias, impostas a sociedades sem vontade própria e alimentadas por sistemas de ensino meramente utilitários.
Vivemos numa sociedade desorientada entre a histeria e o desleixo, perdida no meio de um amontoado de pequenas razões incoerentes, governada por gente que pouco se importa com os danos que o medo impõe. A epifania da liberdade de Abril vai-se diluindo no seio de uma sociedade autoritária, onde, graças ao medo, os cidadãos trocam liberdade por segurança aparente e aceitam que se combata o vírus de pau na mão.
As regras opressoras, o controlo dos direitos individuais, a vigilância intrusiva e os abusos do Estado, consentidos por uma cidadania enfraquecida, vão-nos aproximando de novos autoritarismos, com aparência de democracia. Basta que atentemos em acontecimentos recentes:
– A PSP, diligente a responder à denúncia de um bufo anónimo, entrou na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, interrompeu uma aula e, à porta da sala escancarada para ventilação, multou um professor por, durante uma palestra de quatro horas e meia, ter retirado, por momentos, a máscara que usava.
– A distopia Orwelliana do 1984 aportou à Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa em 2020, ano da graça do SARS-CoV-2, sob forma de vigilância omnipresente: coleiras identificadoras em todos os circulantes e seguranças a controlar e delatar quem infrinja as normas sanitárias. Um sistema por pontos sociais, à chinesa, pode levar os prevaricadores à presença do Grande Irmão, desde que não usem uma máscara limpa e seca no campus universitário.
– Numa escola de Rio de Mouro, em Sintra, um aluno foi suspenso das aulas por ter partilhado o lanche com um colega que “tinha fome e não comia nada desde a manhã“.
Vejo demasiadas escolas mais preocupadas com máscaras, medidas sanitárias e regras, que com aqueles que as têm de cumprir e fazer cumprir. Com as suas perdas emocionais. Com as suas ansiedades. Com o esmagamento dos padrões de vida democrática. Com o mal-estar colectivo. Afinal, com aquilo que uma escola deve ser e ensinar, particularmente num momento de retorno de múltiplos impulsos autoritários que, a propósito da “guerra” ao vírus, abrem caminho para o êxito de agendas indesejáveis. Gradualmente, o absurdo e a anormalidade vão sendo adoptados como o “novo normal”, por uma sociedade domesticada pelo medo e pela perda do senso comum.
A hipocrisia abunda e enoja: festas com dezenas de jovens são apontadas como focos de contágio, enquanto de milhares de passageiros amontoados às horas de ponta nos meios de transporte se diz não haver indício de surtos; pune-se uma criança que partilha um sumo com colegas, mas celebra-se a singeleza do presidente da República, que divide com outra uma bola de Berlim; proíbem-se uns, inconstitucionalmente, de visitarem os seus mortos, quando outros, aos milhares e sem respeito pelas regras vigentes, se amontoaram em Portimão para ver a Fórmula 1 e foram abençoados pela engraçada Dra. Graça.
Santana Castilho (2021)
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Todas as vitórias são saborosas, mas há pelejas que, só por si, são uma derrota, mesmo que supostamente haja um vencedor. Neste caso, a derrota prevalece, porque em democracias adultas há direitos que são óbvios, que nem sequer merecem conflito – e, assim, se há um conflito, que ainda mais chega aos tribunais, e demora (por agora) 21 meses a resolver, não pode haver razões para comemorações. Como se pode festejar uma vitória numa democracia doente?
O acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul que confirmou uma sentença de Novembro de 2022 (num processo iniciado em Julho desse ano) a conceder o direito ao PÁGINA UM para obter documentos sobre processos relacionados com a Lei da Transparência dos Media é um desses casos: é uma vitória do PÁGINA UM, mas a necessidade de recorrer aos tribunais para exercer um direito – que deveria ser óbvio e pacífico – é, em si mesmo, e apesar de duas decisões favoráveis, uma derrota para a democracia.
Há 50 anos – e a data está bem presente, porque se comemorou na quinta-feira passada – encerrou-se um regime ditatorial e criaram-se as raízes para um país democrático. No papel – leia-se, na Constituição da República Portuguesa – ficaram consagrados diversos direitos fundamentais como “o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações”, bem como “a liberdade e a independência dos órgãos de comunicação social perante o poder político e o poder económico”.
Embora muitos se esqueçam, um dos artigos da CRP justifica a existência da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), que não tem somente um papel de fiscalização, mas sobretudo, sendo uma “entidade administrativa independente” (se bem que com os seus membros nomeados pelo chamado Bloco Central), a função de “assegurar (…) o direito à informação e a liberdade de imprensa”.
Ora, mas que sucedeu quando em Julho de 2022 o PÁGINA UM, poucos meses depois da sua fundação, requereu documentos administrativos à própria ERC sobre a sua fundamentação para a atribuição arbitrária de excepções à Lei da Transparência dos Media?
Recusou.
E o que sucedeu quando o PÁGINA UM interpôs uma intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa para que a ERC fosse obrigada a revelar essa informação?
A ERC montou-me, duas semanas depois, uma campanha de difamação, fazendo mesmo um comunicado de imprensa sobre uma situação inventada (e invertendo deveres e direitos), acusando-me mesmo “de insultar os membros do Conselho Regulador e a exercer coação sobre os funcionários”. O comunicado da ERC chegava mesmo a expor a seguinte e lastimável frase: “Intitulando-se jornalista, o referido cidadão tenta legitimar comportamentos nos quais, consideramos, que a classe jornalística não se revê”.
Patenteando uma lamentável dificuldade em aceitar escrutínios de jornalistas, a ERC tem procurado activamente descredibilizar o jornalismo do PÁGINA UM. São já quatro as deliberações completamente enviesadas contra notícias do PÁGINA UM, e houve mesmo uma queixa contra mim para a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) para tentar ‘branquear’ uma absurda confusão do próprio regulador. A queixa deu origem a um processo disciplinar, que só poderia ter o destino que teve: o arquivo.
Mas, mesmo acreditando que haja razões pessoais para que, na ERC, não se aprecie o PÁGINA UM e a minha teimosia em ser jornalista, há linhas vermelhas que jamais poderiam ser ultrapassadas pela tal suposta “entidade administrativa independente” com a função de “assegurar (…) o direito à informação e a liberdade de imprensa”.
Com efeito, como pode a entidade que deve assegurar o direito à informação e a liberdade de imprensa recusar um pedido legítimo de documentos administrativos feito por um jornalista?
Como pode depois continuar a recusar após um tribunal administrativo dizer que tem de mostrar?
Como pode, em sede de um recurso (que, por pudor, nem sequer deveria ter sido apresentado) para o Tribunal Central Administrativo Sul, a ERC alegar que um jornalista – uma profissão que constitucionalmente tem o dever de proteger – faz pedidos “manifestamente abusivos”? Um jornalista faz pedidos manifestamente abusivos num regime democrático? Brincamos às ditaduras? Ou assumimo-nos como uma democracia?
Hoje, e com mais este acórdão, confirma-se que existem pessoas que sequestraram os princípios do 25 de Abril, e foram colocados em cargos não para sustentaram a transparência e o necessário escrutínio público das instituições, mas sim para liquidarem um país democrático.
A ERC tem provado – ou, melhor dizendo, os seus membros do Conselho Regulador – que não está em funções para garantir uma imprensa livre nem para proteger jornalistas isentos. Pelo contrário: é uma das causas directas para a degradação da imprensa em Portugal, permitindo as maiores promiscuidades às empresas da denominada legacy media, enquanto tenta espezinhar e enlamear projectos jornalísticos independentes como o PÁGINA UM. A ERC, como está, é uma vergonha democrática.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
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Sigo com particular interesse o trabalho que têm desenvolvido no PÁGINA UM, um projeto com um modelo de negócio muito diferente de outros, o que prova que há espaço para vários formatos de jornalismo e que respondem a formas muito diferentes de levar notícias aos leitores.
Considero, aliás, particularmente importante o trabalho jornalístico que têm desenvolvido em relação a temas como a covid-19 e as restrições à liberdade que nos foram impostas, também quanto a mim excessivas face às necessidades e longe de garantirem os resultados propagandeados. Assim como o escrutínio às contas dos grupos de comunicação social. Se o nosso papel é escrutinar os poderes, temos também de prestar contas e aceitar o escrutínio sobre o nosso próprio trabalho, e nas várias dimensões: A editorial e também a económica e financeira.
Li com atenção o texto que escreveu sobre a nomeação do novo secretário de Estado da Presidência, Rui Armindo Freitas, e as ilações que retira na sequência dos resultados económicos e financeiros da Swipe News. O texto não é bem uma notícia, tem factos, mas também opinião e processo de intenção que justificam esta minha mensagem — que está autorizado obviamente a usar, só lhe pedindo que, se o fizer, a publique na íntegra; e não, isto não é um direito de resposta ao abrigo da lei [da imprensa], é apenas um comentário construtivo e que tenta ajudar os leitores da PÁGINA UM com informação e enquadramento que estão ausentes da texto que fez. É também, ainda mais importante um direito de defesa do trabalho de uma redação e de todos os trabalhadores.
O Pedro cita factos indesmentíveis: Rui Armindo Freitas foi vogal e presidente do CA [conselho de administração] e é também um acionista absolutamente minoritário da Swipe News. Obviamente não respondo por um acionista que passou a governante, mas considerar “larga experiência” de media uma presença não executiva num conselho de um jornal que nasceu em 2016 não será exatamente o que poderíamos classificar de rigor jornalístico. Eu tenho 32 anos de profissão, o que será então esta experiência? Depois, os resultados da Swipe, editoriais e económico-financeiros, são devidos em particular aos promotores executivos, portanto, a mim próprio, e não aos administradores não-executivos e menos ainda a acionistas que se limitam a aprovar contas anuais e demais atos competência de assembleia geral. Devo acrescentar que os acionistas do ECO são conhecidos desde o primeiro dia, com total transparência.
Começo, de qualquer forma, pelo fim: o Pedro faz um processo de intenções sobre prejuízos e a conversa sobre ajudas públicas. Deveria saber, e isso, neste contexto, justificava uma evidente referência, que o ECO recusou os apoios públicos que foram dados aos meios no quadro da pandemia. Fomos um dos dois meios que recusou a ajuda. Por convicção, independentemente do valor. Os órgãos de comunicação social devem escrutinar o poder político e não receber fundos decididos por governos. Cria no mínimo um risco de perceção de independência, mas cada um sabe de si. O ECO recusou, e voltará a recusar se a ajuda não for dada diretamente ao leitor. Mas o Pedro faz um processo de intenção que não é, permita-me também o escrutínio do que escreve, intelectualmente honesto nem justo: Faz uma relação entre membros do Governo e a sua passagem pela Swipe News com “o debate para eventualmente salvar com dinheiros públicos (leia-se dinheiro dos contribuintes) modelos de negócio de empresas de comunicação social com resultados económicos desastrosos”. Como escrevi, não subscrevemos esse modelo de negócio (se é que o podemos chamar assim).
António Costa, director do ECO desde a sua fundação.
O ECO tem sete anos, um período de vida ainda curto para um meio de comunicação social. Não sei exatamente o que considera “resultados económicos desastrosos”, mas o nosso plano previa – e prevê – um equilíbrio operacional ao fim de sete anos. Na verdade, as contas de 2023, já fechadas mas a aguardar aprovação da AG [assembleia geral], ainda ditam um prejuízo operacional, mas muito menor do que em 2022, próximo do equilíbrio, como terá oportunidade de confirmar em breve. Não, não é, como tenta adivinhar (num texto que se apresenta como notícia), mais meio milhão de euros de prejuízo.
Além disso, obviamente, o consumo de capital acionista – 4,6 milhões como é publico – não é o mesmo que prejuízos acumulados, como refere. Será seguramente um lapso, admito. Mas qualquer euro de prejuízo é sempre muito. Enquanto acreditar no caminho a seguir, e enquanto os leitores quiserem ler o ECO, continuaremos a fazê-lo, com todas as dificuldades que se apresentem.
Uma coisa é certa: nestes primeiros sete anos, o negócio do ECO resultou de publicidade e financiamento acionista. Não temos dívidas ao Estado, não aceitamos fundos públicos, nem sequer fizemos lay-off no período da pandemia, como sucedeu noutros meios. E não, como escreve erradamente, o ECO não vive de financiamento bancário, simplesmente porque não o tem, apenas de acionistas. Volto a repetir: Não temos dívidas ao Estado nem à banca.
O ECO tem mais de 25 jornalistas, portanto um criador de emprego num setor reconhecidamente difícil do ponto de vista do negócio, mas que depende em primeiro lugar da qualidade do jornalismo que se faz. E continua a crescer em receita e audiência. A operação económica e financeira é difícil? Claro que é. O ECO está a fazer um caminho para a sustentabilidade económica e financeira. O recente aumento de capital foi mais um passo, e outros se seguirão. Para garantir um objetivo estratégico, a situação líquida positiva. E as condições para continuar a investir em pessoas, e para pagar melhores salários.
Ainda há dias um meio de comunicação social anunciava o seu fim por razões “exclusivamente financeiras”. Obviamente uma falácia, porque se não há receitas para pagar a estrutura – sejam elas comerciais, de subscritores ou de acionistas, ou tudo somado – é porque o meio não está a corresponder às necessidades de informação dos leitores a que se dirigirá. Mas também tenho curiosidade em saber quais são as receitas da PÁGINA UM e os seus custos (confesso que não fui ao portal da ERC para ver as contas) e quantos jornalistas tem a trabalhar em exclusivo. Paga-se? Tem prejuízos? Qual é o salário médio bruto no PÁGINA UM?
Última nota para a referência às várias marcas do ECO – devidamente registadas na ERC – como meios de brand content. Talvez não seja leitor regular das notícias publicadas por meios como a Advocatus, o Capital Verde ou o ECO Seguros. O ECO identifica de forma clara o que é branded. Estes meios são especializados nestas áreas, têm editores e procuram responder às necessidades de informação dos leitores que têm interesse nas respetivas notícias.
Prezo mesmo o trabalho da PÁGINA UM, sou leitor assíduo. Não preciso de concordar com tudo o que fazem para considerar que prestam um serviço aos leitores. Mas tenho de discordar de um tom – muitas vezes, demasiadas vezes – moralista, a pregar uma verdade. Já temos disso em demasia no espaço público. Cumprindo-se as regras éticas e deontológicas, não há melhores e piores, nem os bons nem os maus. Descredibiliza o papel da PÁGINA UM quando não resiste a comentários e especulações no meio de notícias – pelo menos são apresentadas como tal –, algumas delas contra outros jornalistas e redatores que não têm quaisquer responsabilidades editoriais de decisão. Isso é um leitor a falar.
A independência é um critério essencial do jornalismo, mas não é um fim em si mesmo se o trabalho jornalístico não for rigoroso e se não separar de forma clara a notícia da opinião. Tão importante como a independência é a verdade. Podemos, na verdade, ser dependentes dos nossos próprios preconceitos e preferências, pondo em causa a verdade.
Bom trabalho a toda a equipa do PÁGINA UM, continuarei a ser leitor assíduo e exigente.
António Costa
Diretor do ECO
Resposta de Pedro Almeida Vieira
Alguns dos pontos da carta do director do ECO, que agradeço pessoalmente, até pela postura dialogante necessária entre camaradas de profissão com pontos de vista distintos, merecem breves esclarecimentos. A crítica ao meu estilo de escrita jornalística – que não é único, e que tem ganho adeptos sobretudo na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) e no Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (CD-SJ) – tem um claro intuito depreciativo, no sentido de falta de rigor. Estranho muito (ou talvez não) que tal suceda, porque o estilo que uso – e onde explicitamente se mostra o que são factos e o que é opinião (tanto assim que os visados facilmente distinguem) é muito similar ao que usava, por exemplo, na revista Grande Reportagem há já mais de 20 anos. Ficam agora chocados por o manter nesta década num jornal independente? Convenhamos: aquilo que no PÁGINA UM talvez incomode certos arautos é exactamente o rigor: raramente escrevo sem dados, sem números, sem documentos. Ora, detendo os factos, analiso e interpreto-os, contextualizo, e se considerar relevante oiço opiniões ou peço comentários.
No jornalismo começam a surgir ‘correntes’ (defendidas pela ERC, CCPJ e CD-SJ) de que, para tudo, se exige contraditório (mesmo quando existem documentos) e que só uma condenação em tribunal concede o direito de se fazer denúncias jornalísticas, não bastando apenas documentos nem fontes seguras. Quer-se fazer do jornalismo um mero ‘relator’ de opinião, um simples ‘pé de microfone’. Quer-se um jornalismo amorfo, irrelevante, inútil. Sou contra essa visão. Se o jornalismo não servir para denunciar casos anómalos, para interpretar documentos, para expor estratégias ou estratagemas que se podem tornar ‘daninhas’, então serve apenas como meio de comunicação social. Isso é muito pouco. O jornalismo é muito mais do que isso.
Portanto, a notícia sobre o desempenho empresarial do novel governante Rui Freitas na sua passagem pela Swipe News – que deverá ser relevante, até porque mereceu a sua ida para a administração da Media Capital, que teve um volume de negócios de 149 milhões de euros em 2022 – tem evidente interesse noticioso. E ademais usando os indicadores financeiros desta empresa disponíveis, incluindo as demonstrações financeiras de 2022. Sobre este aspecto, os ‘erros’ apontados por António Costa não fazem sentido, a menos que as contas da Swipe não revelem a realidade. Por um lado, na notícia falei sempre em capitais próprios (ou seja, naqueles que estão sob a alçada dos accionistas, e que não são meramente as acções subscritas) e quanto aos prejuízos acumulados constituem o somatório dos resultados transitados desde 2016.
Por outro lado, sobre a alegada ausência de dívidas bancárias, reiterada por António Costa, convém referir que na demonstração dos fluxos de caixa da Swipe News em 2022 surge o recebimento de 529.265,36 euros através de “financiamentos obtidos” e no balanço contabiliza-se um passivo de cerca de 1,58 milhões de euros na rubrica de “financiamentos obtidos”, que não empréstimos sequer dos accionistas. Pode haver, obviamente, outras modalidades de financiamento (que não passem por instituições bancárias), mas numa simplificação (e à falta de dados) estamos perante o equivalente a empréstimos bancários com pagamento de juros. Aliás, a Swipe News assume mesmo a existência de empréstimos bancários na sua demonstração de resultados de 2022, uma vez que suportou o pagamento de juros no valor de 29.167,51 euros, o que se coaduna, face às taxas de juro praticadas naquele ano, com empréstimos em curso na casa de um milhão de euros.
Além dessa análise financeira, enquadrei-a justificadamente no contexto político de profunda crise financeira da imprensa tradicional em Portugal. Praticamente todas as grandes e médias empresas de media estão com prejuízos inacreditáveis, e há duas soluções políticas: ou salvar tudo, ou deixar o mercado funcionar, aceitando que haja despedimentos, mas tornando os títulos que sobrevivem com maior capacidade de fazer bom jornalismo com um mercado publicitário sem se imiscuir na parte editorial. Neste contexto, é mais do que aceitável a especulação – que diabo!, nas secções de política fartam-se de fazer isso, e sem sequer uma fonte –, atendendo ao facto de a crise na Global Media (e em tantos outros grupos de media) terem levado diversos partidos a considerarem viável e aceitável uma intervenção do Estado para ‘salvar’ o jornalismo. Aceito que o António Costa tenha um conceito demasiado restrito do termo ‘especulação’; eu prefiro no jornalismo usar a acepção mais filosófica de especulação: indagação intelectual, feita de forma autónoma ou independente de fundamentos empíricos, mas com premissas em dados. Essa é também a função de um jornalista: dar ‘pistas’ para uma reflexão. Desde que se seja honesto na apresentação dos dados é mais do que legítimo.
Um outro ponto relevante na missiva de António Costa refere-se à questão dos branded contents. Como se sabe, sou visceralmente contra a promiscuidade entre jornalismo e conteúdos pagos ou eventos que empresas privadas e públicas pagam aos media e que têm a presença de ‘jornalistas da casa’. O ECO – mais as suas diversas marcas – é um dos órgãos de comunicação social que mais usa esse modelo de negócios, e pode António Costa garantir haver uma clara distinção. Eu acho que não há, porque alguém escreve aqueles textos e eu não vejo na ficha técnica do ECO uma lista de pessoas (não-jornalistas) responsáveis pela escrita dos tais branded contents. E mesmo nas diversas marcas do ECO, como, por exemplo, na Capital Verde, nem sequer tem a lista de jornalistas ou a identificação de quem escreve os textos de marketing. Aliás, o caso do ECO deve mesmo merecer uma profunda reflexão. Não me parece que seja bom para o jornalismo – e para o próprio António Costa, como jornalista – haver uma ‘secção’ no seu jornal, a Advocatus, e da qual ele é formalmente responsável editorial, mas que, na verdade, é detida por uma empresa, a Newsengage, da qual o dono (com 99%) é João Paixão Martins, actual dono da LPM (fundada pelo seu pai, Luís Paixão Martins), uma das mais influentes agências de comunicação do país. Haver agências de comunicação a deterem órgãos de imprensa parece-me um absurdo.
No dia em que os órgãos de comunicação social com branded contents passarem a exibir, na ficha técnica, a lista de redactores (sem carteira profissional de jornalista, mas devidamente identificados) que escrevem os conteúdos patrocinados, e os directores e ‘jornalistas da casa’ deixarem de participar em eventos de marketing das suas empresas, então aí muitas questões serão clarificadas e a confiança aumentará.
São estas as questões fundamentais a debater numa profissão onde a credibilidade vale muito, onde mais se aplica a máxima “a mulher de César tem de ser e parecer séria”.
Por fim, o PÁGINA UM não tem um modelo de negócio tradicional; aliás, desafia os princípios económicos, porque é de open access – ou seja não está restrito apenas aos assinantes – e não tem publicidade nem parcerias comerciais. Vive apenas de donativos dos leitores. O objectivo fundamental do PÁGINA UM, além de dar notícias (e sobretudo daquelas que os outros não dão), é demonstrar valor intrínseco do Jornalismo. Ora, como é óbvio, em Portugal esta modalidade não dará (ainda) para criar uma redacção digna com meios semelhantes aos outros. E por uma simples razão, o PÁGINA UM não se endivida, e por isso o seu passivo é virtualmente zero (no final de Dezembro fica apenas para pagar o remanescente de impostos à Autoridade Tributária e Aduaneira, que são saldados nos primeiros dias de Janeiro). Em dois anos, o PÁGINA UM teve receitas de um pouco menos de 100 mil euros; e poderíamos ter contratado cinco ou seis jornalistas, teríamos feito muito mais, mas provavelmente teríamos agora um prejuízo de 200 mil ou 300 mil euros. Estaríamos como o ECO e muitos outros. Ora, somos de opinião de que esse não é o caminho para o PÁGINA UM. Cresceremos se os nossos leitores assim o desejarem. São eles, na verdade, os nossos accionistas: valorizando o nosso trabalho com os seus donativos.
P.S. Esta resposta está longe de encerrar o debate. Pelo contrário. Penso que somente agora começa.
Pedro Almeida Vieira
Director do PÁGINA UM
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Já não sou professor de Medicina na Universidade de Harvard. O lema de Harvard é Veritas, latim para ‘verdade’. Mas, como descobri, a verdade pode levá-lo a ser demitido. Esta é a minha história – uma história de um bioestatístico de Harvard e epidemiologista de doenças infeciosas, agarrado à verdade enquanto o mundo perdia o rumo durante a pandemia de covid-19.
Em 10 de março de 2020, antes de qualquer solicitação do governo, Harvard declarou que “suspenderia as aulas presenciais e mudaria para o ensino online”. Em todo o país, universidades, escolas e governos estaduais seguiram o exemplo de Harvard.
(Foto: D.R.)
No entanto, ficou claro, desde o início de 2020, que o vírus acabaria espalhando-se pelo mundo e que seria inútil tentar suprimi-lo com confinamentos. Também ficou claro que os confinamentos infligiriam enormes danos colaterais, não apenas à educação, mas também à saúde pública, incluindo tratamento para cancro, doenças cardiovasculares e saúde mental. Durante anos vamos estar a lidar com os danos causados pelos confinamentos. As nossas crianças, os idosos, a classe média, a classe trabalhadora e os pobres em todo o mundo – todos sofrerão.
As escolas também fecharam em muitos outros países, mas sob fortes críticas internacionais, a Suécia manteve as suas escolas e creches abertas para seus 1,8 milhões de crianças, de um aos 15 anos. Porquê? Embora qualquer pessoa possa ser infectada, sabemos desde o início de 2020 que existe uma diferença de mais de mil vezes no risco de mortalidade por covid-19 entre jovens e idosos. As crianças enfrentavam um risco minúsculo de covid-19, e interromper a sua educação iria prejudicá-las por toda a vida, especialmente aquelas cujas famílias não podiam pagar escolas particulares ou tutores para estudar em casa.
Quais foram os resultados durante a primavera de 2020? Com as escolas abertas, a Suécia teve zero mortes por covid-19 na faixa etária de um aos 15 anos, enquanto os professores tiveram a mesma mortalidade que a média de outras profissões. Com base nesses factos, resumidos num relatório de 7 de Julho de 2020 da Agência de Saúde Pública sueca, todas as escolas dos Estados Unidos deveriam ter reaberto rapidamente. Não fazê-lo levou a “evidências surpreendentes sobre a perda de aprendizagem” nos Estados Unidos, especialmente entre crianças de classe baixa e média, um efeito não observado na Suécia.
A Suécia foi o único grande país ocidental que rejeitou o encerramento de escolas e outros lockdowns em favor [da estratégia] do foco na protecção dos idosos, e o veredicto final está agora emitido. Liderada por um inteligente primeiro-ministro social-democrata (um soldador), a Suécia teve o menor excesso de mortalidade entre os principais países europeus durante a pandemia, e menos de metade da dos Estados Unidos. As mortes por covid-19 na Suécia ficaram abaixo da média e evitaram a mortalidade colateral causada por lockdowns.
Crianças a brincar num parque infantil em Estocolmo, em Agosto de 2020. A Suécia manteve a sociedade a funcionar durante a pandemia. Manteve as escolas e creches abertas e recusou confinamentos, em geral. Também não recomendou o uso de máscara facial, com raras excepções. (Foto: PAV)
No entanto, em 29 de julho de 2020, o New England Journal of Medicine, editado por Harvard, publicou um artigo de dois professores de Harvard sobre se as escolas primárias deveriam reabrir, sem sequer mencionar a Suécia. Foi como ignorar o grupo de controle placebo ao avaliar um novo medicamento farmacêutico. Esse não é o caminho para a verdade.
Nessa primavera, apoiei a abordagem sueca em artigos de opinião publicados no meu país natal, a Suécia, mas, apesar de ser professor de Harvard, não consegui publicar as minhas ideias nos meios de comunicação social americanos. As minhas tentativas de divulgar o relatório da escola sueca no Twitter (agora X) colocaram-me na lista negra de tendências da plataforma. Em agosto de 2020, o meu artigo de opinião sobre o encerramento de escolas e a Suécia foi finalmente publicado pela CNN em espanhol mas não aquele em que está a pensar. Escrevi-o em espanhol, e a CNN-Español publicou-o. A CNN-English não estava interessada.
Não fui o único cientista de saúde pública a manifestar-se contra o encerramento de escolas e outras medidas não científicas. Scott Atlas, uma voz especialmente corajosa, usou artigos e factos científicos para desafiar os conselheiros de saúde pública na Casa Branca de Trump, o diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, Anthony Fauci, o diretor dos Institutos Nacionais de Saúde, Francis Collins, e a coordenadora da covid-19, Deborah Birx, mas sem sucesso. Quando 98 de seus colegas do corpo docente de Stanford atacaram injustamente Atlas numa carta aberta que não forneceu um único exemplo sobre onde ele estava errado, escrevi uma resposta no Stanford Daily para o defender. Terminei a carta salientando que:
“Entre os peritos em surtos de doenças infeciosas, muitos de nós, há muito que defendemos uma estratégia orientada para a idade, e eu teria todo o gosto em debater esta questão com qualquer um dos 98 signatários. Entre os apoiantes está a professora Sunetra Gupta, da Universidade de Oxford, a epidemiologista de doenças infecciosas mais proeminente do mundo. Assumindo que não há preconceito contra mulheres cientistas negras, peço aos professores e alunos de Stanford que leiam os seus pensamentos.“
Nenhum dos 98 signatários aceitou a minha proposta de debate. Em vez disso, alguém em Stanford enviou queixas aos meus superiores em Harvard, que não ficaram entusiasmados comigo.
Estocolmo, na Suécia, em Agosto de 2020. em 29 de julho de 2020. O New England Journal of Medicine, editado por Harvard, publicou um artigo de dois professores de Harvard sobre se as escolas primárias deveriam reabrir, sem sequer mencionar a Suécia, onde não havia confinamentos nem fecho de creches e escolas, ou sequer máscaras, em geral. (Foto: PAV)
Eu não tinha nenhuma inclinação para recuar. Juntamente com Gupta e Jay Bhattacharya em Stanford, escrevi a Declaração de Great Barrington, defendendo uma proteção centrada na idade em vez de lockdowns universais, com sugestões específicas sobre a melhor forma de proteger os idosos, permitindo que crianças e jovens adultos vivessem perto de vidas normais.
Com a Declaração de Great Barrington, o silenciamento foi quebrado. Embora seja fácil descartar cientistas individuais, era impossível ignorar três epidemiologistas seniores de doenças infeciosas de três universidades importantes. A declaração deixou claro que não havia consenso científico para o fecho de escolas e muitas outras medidas de confinamento. Em resposta, porém, os ataques intensificaram-se – e até se tornaram caluniosos. Collins, um cientista de laboratório com experiência limitada em saúde pública que controla a maior parte do orçamento de pesquisa médica do país, chamou-nos de “epidemiologistas marginais” e pediu aos seus colegas que orquestrassem uma “retirada devastadora da publicação”. Alguns em Harvard obedeceram.
Um proeminente epidemiologista de Harvard chamou publicamente a declaração de “uma visão marginal extrema“, equiparando-a ao exorcismo para expulsar demónios. Um membro do Centro de Saúde e Direitos Humanos de Harvard, que tinha defendido o encerramento das escolas, acusou-me de “provocar [trolling]” e de ter “política idiossincrática”, alegando falsamente que eu estava “aliciado (…) com o dinheiro de Koch“, “cultivado por think tanks de direita” e “não iria debater com ninguém“. (A preocupação com os menos privilegiados não torna alguém automaticamente de direita!) Outros em Harvard preocuparam-se com a minha “posição cientificamente imprecisa” e “potencialmente perigosa”, enquanto “lutavam com as proteções oferecidas pela liberdade académica”.
Embora cientistas, políticos e os media poderosos a tenham denunciado vigorosamente, a Declaração de Great Barrington reuniu quase um milhão de assinaturas, incluindo dezenas de milhares de cientistas e profissionais de saúde. Estávamos menos sozinhos do que pensávamos.
Martin Kulldorff, Sunetra Gupta e Jay Bhattacharya escreveram a Declaração de Great Barrington. (Foto: D.R./GBD)
Mesmo de Harvard, recebi mais feedback positivo do que negativo. Entre muitos outros, o apoio veio de uma ex-presidente do Departamento de Epidemiologia – uma ex-reitora, uma cirurgiã de alto nível e uma especialista em autismo, que viu em primeira mão os danos colaterais devastadores que os lockdowns infligiram aos seus pacientes. Embora parte do apoio que recebi tenha sido público, a maioria foi nos bastidores, de professores que não estavam dispostos a falar publicamente.
Dois colegas de Harvard tentaram organizar um debate entre mim e os professores de Harvard, mas, tal como aconteceu com Stanford, não houve interessados. O convite ao debate permanece em aberto. O público não deve confiar nos cientistas, mesmo nos cientistas de Harvard, que não estão dispostos a debater as suas posições com outros cientistas.
O meu antigo empregador, o sistema hospitalar Mass General Brigham, emprega a maioria dos professores da Harvard Medical School. É o maior beneficiário individual de financiamento do NIH [National Institutes of Health] – mais de mil milhões de dólares por ano dos contribuintes dos Estados Unidos. Como parte da ofensiva contra a Declaração de Great Barrington, um dos membros do conselho do Mass General, Rochelle Walensky, uma colega professora de Harvard que havia servido no conselho consultivo do diretor do NIH, Collins, envolveu-me num “debate” unidireccional. Depois de uma estação de rádio de Boston me ter entrevistado, Walensky apareceu como representante oficial do General Brigham para me rebater, sem me dar a oportunidade de responder. Alguns meses depois, tornou-se a nova diretora do CDC [Centers for Disease Control and Prevention].
Neste ponto, ficou claro que eu estava diante de uma escolha entre a ciência ou minha carreira académica. Escolhi a primeira. O que é ciência se não buscarmos humildemente a verdade?
Na década de 1980, trabalhei para uma organização de direitos humanos na Guatemala. Nós fornecíamos acompanhamento físico internacional ininterrupto a camponeses pobres, sindicalistas, grupos de mulheres, estudantes e organizações religiosas. A nossa missão era proteger aqueles que se manifestaram contra os assassinatos e desaparecimentos perpetrados pela ditadura militar de direita, que evitou o escrutínio internacional de seu trabalho sujo. Embora os militares nos tivessem ameaçado, esfaqueado dois dos meus colegas e lançado uma granada de mão para a casa onde todos vivíamos e trabalhávamos, ficámos para proteger os bravos guatemaltecos.
Escolhi, então, arriscar a minha vida para ajudar a proteger pessoas vulneráveis. Foi uma escolha relativamente fácil arriscar a minha carreira académica para fazer o mesmo durante a pandemia. Embora a situação fosse menos dramática e aterrorizante do que a que enfrentei na Guatemala, muitas outras vidas acabaram por estar em jogo.
Jovens a praticar desporto em Estocolmo, em Agosto de 2020. Enquanto que nos Estados Unidos e em Portugal se fechavam escolas, creches e parques infantis, na Suécia a vida continuou praticamente como era habitual. (Foto: PAV)
Embora o fecho de escolas e os lockdowns tenham sido a grande polémica de 2020, uma nova disputa surgiu em 2021: as vacinas contra a covid-19. Por mais de duas décadas, ajudei o CDC e a FDA [Food and Drug Administration] a desenvolver seus sistemas de segurança de vacinas pós-comercialização. As vacinas são uma invenção médica vital, permitindo que as pessoas obtenham imunidade sem o risco que advém de ficarem doentes. Só a vacina contra a varíola salvou milhões de vidas. Em 2020, o CDC pediu-me para participar de seu Grupo de Trabalho Técnico de Segurança de Vacinas covid-19. O meu mandato não durou muito tempo – embora não pela razão que possa pensar.
Os ensaios clínicos randomizados e controlados (ECRCs) para as vacinas contra a covid-19 não foram adequadamente desenhados. Embora tenham demonstrado a eficácia a curto prazo das vacinas contra a infecção sintomática, não foram projectadas para avaliar a hospitalização e morte, que é o que importa. Em análises subsequentes agrupadas de RCT por tipo de vacina, cientistas dinamarqueses independentes mostraram que as vacinas de mRNA (Pfizer e Moderna) não reduziram a mortalidade de curto prazo, por todas as causas, enquanto as vacinas de vector de adenovírus (Johnson & Johnson, AstraZeneca, Sputnik) reduziram a mortalidade em pelo menos 30%.
Passei décadas a estudar reacções adversas a medicamentos e vacinas sem receber dinheiro das empresas farmacêuticas. Toda a pessoa honesta sabe que novos medicamentos e vacinas vêm com riscos potenciais que são desconhecidos quando aprovados. Este era um risco que valia a pena correr para pessoas mais velhas com alto risco de mortalidade por covid-19 – mas não para crianças, que têm um risco minúsculo de mortalidade por covid-19, nem para aquelas que já tinham imunidade adquirida por infecção. A uma pergunta sobre isso no Twitter em 2021, respondi:
“Pensar que todos devem ser vacinados é uma falha científica tal como pensar que ninguém deve. As vacinas contra a covid-19 são importantes para pessoas idosas de alto risco e os seus cuidadores. Aqueles com infecção natural prévia não precisam dela. Nem crianças.“
A pedido do governo dos EUA, o Twitter censurou o meu tweet por violar a política do CDC. Tendo sido também censurado pelo LinkedIn, Facebook e YouTube, não conseguia comunicar livremente como cientista. Quem decidiu que os direitos americanos de liberdade de expressão não se aplicavam a comentários científicos honestos em desacordo com os do diretor do CDC?
(Foto: D.R.)
Fiquei tentado a calar-me, mas um colega de Harvard convenceu-me do contrário. A sua família tinha sido activa contra o comunismo na Europa de Leste, e ela lembrou-me que precisávamos usar todas as aberturas que pudéssemos encontrar – e autocensura, quando necessário, para evitar ser suspenso ou demitido.
Nesse aspeto, porém, falhei. Um mês depois do meu tweet, fui demitido do Grupo de Trabalho de Segurança de Vacinas Covid do CDC – não porque eu fosse crítico das vacinas, mas porque eu contradizia a política do CDC. Em abril de 2021, o CDC interrompeu a vacina da J&J após relatos de coágulos sanguíneos em algumas mulheres com menos de 50 anos. Não foram notificados casos entre os idosos, que são os que mais beneficiam da vacina. Como havia uma escassez geral de vacinas naquela época, argumentei num artigo de opinião que a vacina da J&J não deveria ser suspensa para norte-americanos mais velhos. Foi isso que me deixou em apuros. Eu sou provavelmente a única pessoa já demitida pelo CDC por ser muito pró-vacina. Embora o CDC tenha suspendido a pausa quatro dias depois, o estrago estava feito. Sem dúvida, alguns norte-americanos mais velhos morreram por causa dessa “suspensão” da vacina.
A soberania sobre o corpo não é o único argumento contra a obrigatoriedade da vacina contra a covid-19. [A obrigatoriedade] É também anticientífica e antiética.
Com uma condição genética chamada deficiência de alfa-1 antitripsina, que me deixa com um sistema imunológico enfraquecido, eu tinha mais motivos para estar pessoalmente preocupado com a covid-19 do que a maioria dos professores de Harvard. Eu esperava que a covid-19 me atingisse fortemente, e foi exatamente isso que aconteceu no início de 2021, quando a equipe dedicada do Hospital Manchester, em Connecticut, salvou a minha vida. Mas teria sido errado para mim deixar que a minha vulnerabilidade pessoal às infecções influenciasse as minhas opiniões e recomendações como cientista de saúde pública, que deve concentrar-se na saúde de todos.
A beleza do nosso sistema imunitário é que aqueles que recuperam de uma infeção estão protegidos se e quando forem novamente expostos. Isso é conhecido desde a Peste Ateniense de 430 a.C. – mas já não é conhecido em Harvard. Três proeminentes professores de Harvard foram coautores do agora infame memorando de “consenso” na revista The Lancet, questionando a existência de imunidade adquirida pela covid-19. Ao continuar a exigir a vacina para estudantes com uma infecção prévia por covid-19, Harvard está de facto a negar 2.500 anos de ciência.
Martin Kulldorff criticou a decisão de suspensão da vacina contra a covid-19 da Johnson & Johnson no caso dos idosos. (Foto: D.R.)
Desde meados de 2021, sabemos, como seria de esperar, que a imunidade adquirida pela covid-19 é superior à imunidade adquirida pela vacina. Com base nisso, defendi que os hospitais deveriam contratar, e não demitir, enfermeiros e outros funcionários hospitalares com imunidade adquirida pela covid-19, uma vez que têm imunidade mais forte do que os vacinados.
Os mandatos de vacinação são antiéticos. Os ECRs incluíram principalmente adultos jovens e de meia-idade, mas estudos observacionais mostraram que as vacinas contra a covid-19 evitaram hospitalizações e mortes por covid-19 em pessoas mais velhas. No meio de uma escassez mundial de vacinas, era antiético forçar a vacina em estudantes de baixo risco ou aqueles como eu que já estavam imunes por terem tido covid-19, enquanto o meu vizinho de 87 anos e outras pessoas idosas de alto risco em todo o mundo não podiam receber a vacina. Qualquer pessoa pró-vacina deveria, apenas por esta razão, ter-se oposto aos mandatos de vacina contra a covid-19.
Por razões científicas, éticas, de saúde pública e médicas, opus-me pública e privadamente aos mandatos da vacina covid-19. Eu já tinha imunidade superior adquirida por infecção. E era arriscado vacinar-me sem estudos adequados de eficácia e segurança em doentes com o meu tipo de imunodeficiência. Essa postura fez-me ser demitido pelo General Brigham e, consequentemente, demitido do meu cargo de professor de Harvard.
Embora várias isenções de vacina tenham sido dadas pelo hospital, o meu pedido de isenção médica foi negado. Fiquei menos surpreso que o meu pedido de isenção religiosa tenha sido negado: “Tendo tido a doença covid-19, tenho imunidade mais forte e duradoura do que os vacinados (Gazit et al). Sem fundamentação científica, os mandatos de vacina são dogmas religiosos, e solicito uma isenção religiosa da vacinação contra a covid-19.”
Se Harvard e os seus hospitais querem ser instituições científicas credíveis, devem recontratar aqueles de nós que despediram. E Harvard seria sensata em eliminar seus mandatos de vacina contra a covid-19 para estudantes, como a maioria das outras universidades já fez.
(Foto: D.R.)
A maioria dos professores de Harvard busca diligentemente a verdade em uma ampla variedade de campos, mas Veritas não tem sido o princípio orientador dos líderes de Harvard. Nem a liberdade académica, a curiosidade intelectual, a independência em relação a forças externas ou a preocupação com as pessoas comuns orientaram as suas decisões.
Harvard e a comunidade científica em geral têm muito trabalho a fazer para merecer e recuperar a confiança do público. Os primeiros passos são a restauração da liberdade académica e o cancelamento da cultura do cancelamento. Quando os cientistas têm visões diferentes sobre temas de importância pública, as universidades devem organizar debates abertos e civilizados para buscar a verdade. Harvard poderia ter feito isso – e ainda pode, se quiser.
Quase todo mundo agora percebe que o fechamento de escolas e outros lockdowns foram um erro colossal. Francis Collins reconheceu seu erro de se concentrar singularmente na covid-19 sem considerar danos colaterais à educação e resultados de saúde não-covid-19. Essa é a coisa honesta a fazer, e espero que essa honestidade chegue a Harvard. O público merece-o e a academia precisa dele para restaurar a sua credibilidade.
A ciência não pode sobreviver numa sociedade que não valoriza a verdade e se esforça por descobri-la. A comunidade científica perderá gradualmente o apoio do público e desintegrar-se-á lentamente nessa cultura. A busca da verdade requer liberdade acadêmica com discurso científico aberto, apaixonado e civilizado, com tolerância zero para calúnias, bullying ou cancelamento. A minha esperança é que, um dia, Harvard encontre o seu caminho de regresso à liberdade e independência académicas.
Martin Kulldorff é ex-professor de Medicina na Universidade de Harvard e no Mass General Brigham. É membro fundador da Academia para a Ciência e a Liberdade.
Nota:
Este artigo foi publicado originalmente, em inglês, no dia 11 de Março de 2024, no City Journal.
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Sou um antigo jornalista, trabalhei no Diário de Notícias entre 1991 e 2009, com experiências intercalares curtíssimas em redacções de outros jornais. Hoje, tendo a Internet como fonte genérica de informação, devido à perda de credibilidade dos media corporativos, consulto regularmente o PÁGINA UM. E foi de lá que extraí a motivação para escrever.
Quero apenas partilhar uma ideia, a que não posso chamar de reflexão porque me surgiu de impulso: temo que artigos como os do Paulo Salvador [‘Mea culpa’, jornalista] legitimem um atraso vergonhoso no reconhecimento de culpa da classe jornalística por parte de quem sempre possuiu todos os instrumentos de análise. Mais simplesmente: que abra caminho a Madalenas arrependidas chorando lágrimas de crocodilo que as abençoam à luz dos olhares comuns.
Eu nunca me considerei especial, sou um tipo normalíssimo, nem burro nem particularmente inteligente, mas vivo apontado ao que vejo como grandes virtudes: honestidade, simplicidade, bondade, etc. Por outras palavras, persigo horizontes, só me movem objectivos que sei de antemão não poder atingir. Talvez isso me tenha ajudado a perceber, há mais de 30 anos, para onde caminhava o jornalismo.
E foi isso, certamente, o que fez de mim uma das 123 pessoas despedidas pela Controlinveste, na primeira grande sangria de jornalistas de que tenho memória [em 2009]. Na altura, em assembleias, recorri a um clichê – aludir àquele tão estafado quanto preciso poema do Brecht que diz: “Primeiro levaram os negros/Mas não me importei com isso/Eu não era negro; Em seguida levaram alguns operários/Mas não me importei com isso/Eu também não era operário; Depois prenderam os miseráveis/Mas não me importei com isso/Porque eu não sou miserável; Depois agarraram uns desempregados/Mas como tenho o meu emprego/Também não me importei; Agora estão me levando/Mas já é tarde; Como eu não me importei com ninguém/Ninguém se importa comigo.” – para dar conta aos colegas do seu destino inevitável, inevitavelmente igual ao meu, mas apenas protelado.
Foi quase em vão, dado que a maior parte não se solidarizou connosco. Os tempos foram correndo e, em vagas espaçadas, a ampulheta da razão acabou por encher de areia a minha campânula. Mais uma vez, nada que espante: as coisas estavam-nos à frente dos olhos.
É por isso que me custa imenso aceitar estas epifanias de 25ª hora, mais ainda vindas de profissionais com cargos de chefia que podiam e deviam ter acordado a tempo de lutar contra o que agora denunciam. Supõe-se que um jornalista chegue primeiro à informação e depois a transmita aos seus leitores. Como podemos elogiar o contrário? Neste caso, aposto que a generalidade dos leitores do PÁGINA UM já tinha o diagnóstico mais que feito, anos ou décadas antes de o Paulo Salvador o vir anunciar.
Não quero com isto, até porque não o conheço pessoalmente, insinuar que o Paulo Salvador tenha escrito o artigo para salvar a face ou fazer-se passar por bonzinho quando já quase não há caldo na malga. Até acredito na bondade do seu gesto. Mas, sinceramente, não vejo como encaixar aqui o “mais vale tarde que nunca”. Preferia o silêncio dele e uma mudança de conduta.
Marcos Cruz é um antigo jornalista do Diário de Notícias
N.D. (4/2/2024) – Atribuído muitas vezes a Bertold Brecht, convém referir que, em abono a verdade, quem enunciou o texto conhecido por ‘First they came‘ foi o pastor protestante Martin Niemöller (1892-1984), que inicialmente foi um adepto do regime nazi. O texto aborda o desinteresse inicial nas perseguições aos comunistas, socialistas, sindicalistas e judeus.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM. Neste caso, o director do PÁGINA UM não apenas subscreve como aplaude este texto, considerando que constitui mais um bom contributo para uma reflexão séria sobre a crise no jornalismo, que começa na própria classe, e sobre a qual há muito a mudar. O PÁGINA UM convida todos os antigos e actuais jornalistas, bem como estudiosos sobre os media, a enviarem-nos textos para publicação.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Como qualquer jornalista, a actual situação dos media preocupa-me por tudo aquilo que representa para nós, profissionais. O esgotamento de um modelo de negócio e o claudicar das redacções enquanto agentes de intervenção e de mudança.
Nesta, como em todas as crises, não há responsabilidades de um só lado. Não foi só o mercado que mudou, os empresários que se transformaram, o neoliberalismo que deixou de respeitar limites de decência. Fomos também nós que mudámos, aos poucos, sempre levados a reboque das novas formas de comunicação com as quais não podemos rivalizar.
A nossa profissão está cada vez mais desacreditada junto de quem nos move: os nossos leitores, ouvintes e espectadores. Perdemos muita da credibilidade que nos garantia algum respeito por parte dos vários poderes instituídos e da população em geral. Não faltam estudos a comprovar a degradação da nossa imagem enquanto classe profissional.
As redes sociais foram uma grande ajuda para essa perda de influência. No entanto, ao fazer delas a nossa própria fonte de noticias, de temas, opiniões e agitação informativa, contribuímos para lhes atribuir um estatuto que não tinham. Enchemos páginas, minutos e horas de emissão com milhares de casos plasmados das redes. Acríticos e fascinados, sucumbimos ao poder de fogo de uma realidade que nos ultrapassava e que não é permeável a critérios jornalísticos.
A gradual degradação do mercado publicitário, o decréscimo de leitores e de investimentos, empurrou a nossa profissão para lá dos limites do suportável e jornalisticamente sustentável.
Podemos e devemos criticar os gestores que fazem cortes cegos numa simples e anónima folha de Excel, porque afinal muitos deles nem sequer entendem que o negócio dos media é diferente de todos os outros. Porém, o que é mais difícil de aceitar é que camaradas aceitem, ou se sintam obrigados a aceitar, condições inviáveis para o exercício da profissão e as imponham às suas redacções, sabendo que tal terá efeitos na degradação do qualidade do trabalho produzido.
Fomos tentando trabalhar com cada vez menos, para fazer cada vez mais. Aceitámos retóricas puramente financeiras, uma, outra e outra vez.
A cada argumentação de que era preciso cortar, porque as receitas estavam a cair, pactuámos silenciosamente com lógicas de racional duvidoso. Acredito que muitas das vezes o fizemos para tentar salvar postos de trabalho, camaradas e projectos. Mas nunca nos interrogámos se não estaríamos a comprometer a essência da nossa profissão, a independência e a credibilidade. Fomos aceitando tentar salvar uma árvore e depois outra, sem pensarmos nunca na floresta.
Directores, coordenadores, editores, os cargos de chefia, fomos sempre cúmplices de uma lógica de despedir, não renovar e substituir o melhor pelo menos mau. Abdicámos de profissionais com carreira e saber para poder contratar mão de obra barata, sem nos interrogarmos se não estaríamos apenas a adiar um problema. Poucos são os grandes projectos de jornalismo que sobreviveram e recuperaram desta esta lógica suicida.
Quando o “monstro” chamado Internet ajoelhou a imprensa mundial nos anos 90, o desespero foi grande nos Estados Unidos (EUA). A perspicaz fórmula “mais por menos” fez o seu caminho, com milhares de despedimentos. Nos últimos 20 anos, os EUA perderam um quarto dos seus jornais, 57% da sua mão de obra jornalística.
No entanto, quando um jornal de referência mundial resolveu salvar-se do abismo por via inversa, muitos outros o seguiram, investindo no saber e na experiência que os podia prestigiar, não em mão de obra mais barata. Foi assim com o New York Times, depois o Washington Post.
Portugal é um outro mundo, sabemos, mas de cedência em cedência, qual uma velha história popular, tentámos ensinar o burro a viver sem água e, agora que ele está quase a aprender, corre o risco de morrer de sede.
Não podemos ignorar que ao longos das últimas décadas fomos os únicos responsáveis por todos os atentados aos mais básicos princípios do jornalismo. Violámos todos os códigos éticos para ganhar vantagem, para conseguir mais um “exclusivo de primeira mão”. Foram muitos os exemplos que minaram o nosso património de respeito e credibilidade, agora tão pouco valorizado. Fomos nós que o fizemos, não os gestores, não o mercado.
Se de uma forma geral a oferta jornalística é cada vez mais superficial, espectacular, pouco sustentada, tecnicamente deficiente, acrítica, seguidista das agendas dos poderes políticos e das agências de comunicação, sem rasgos nem imaginação. Se os vários media se tornaram cada vez mais iguais, miméticos e cinzentos, só a nós se deve. Devíamos ter conseguido lutar por melhor jornalismo, melhores profissionais, melhores condições e real autonomia editorial.
Quantas vezes não nos apercebemos de ingerências inaceitáveis na nossa cadeia produtiva de notícias e pouco fizemos para as contrariar, expor ou combater? Tais práticas sempre existiram, mas numa outra escala e noutras circunstâncias. Hoje, a fragilidade contratual das redacções é terreno fértil para atropelos, já tidos como aceitáveis. E assim fomos vivendo estes anos, mudando, encolhendo, em direcção a nada, em direcção a isto que vivemos hoje.
O jornalismo tem vindo a ser encurralado e tem estado a ceder a incontáveis pressões, algumas delas novas, mais eficientes, mais discretas. Os anunciantes, os departamentos comerciais, os financiadores e os “parceiros” estratégicos, ganharam uma influência inusitada nas redacçōes dos media nacionais. Não a tinham a esta escala nos anos 90, porque havia dinheiro suficiente para garantir a independência de jornais, rádios e TV”s. Ao longo deste tempo não nos soubemos defender. Os nossos organismos de classe fecharam os olhos a claros atropelos da lei e dos códigos profissionais, legitimando a indiferença e irrelevância de conduta. O mesmo fizeram as instituições fiscalizadoras do sector.
Aqui chegados, lutamos todos por um lugar ao sol, uma réstia de luz que nos permita fazer um pouco mais daquilo que sabemos e gostamos. Fazemo-lo com uma esperança decrescente no futuro da profissão. Não acredito em jornalismo livre sem liberdade financeira, sem estabilidade contratual, assim como não podemos acreditar num futuro sem uma profunda e séria autocrítica, sem redacções fortes, reivindicativas e com memória. Mas isso custa aquilo que dizem não haver, dinheiro.
Isto é quase como afirmar que o jornalismo é um luxo. Em boa verdade já o foi, mas era assim que ainda o deveríamos entender dada a sua importância social. Caso contrário, estaremos a caminho do lixo, pois o preço da jorna já disso nos aproxima.
Paulo Salvador é jornalista (CP 827), editor executivo e grande repórter da TVI
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PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
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Voltamos a ser mais humanos, a sopa quente do sem-abrigo, dos Aliados ao Oriente
e este ano, excepcionalmente, temos o apoio do Parlamento, dos partidos
Toma uma sopa e um panfleto, mas só comes se votares! Ouviste?
Viva a campanha eleitoral
em época de Natal.
Viva Portugal!
Tudo ao rubro entre o Wonderland, as compras e o trânsito infernal, o funeral da democracia e o orgulho nacional,
da bandeira sem as quinas e os castelos.
[Já agora, mudem também a poesia de Fernando Pessoa, o fado de Amália e o nome de Lisboa para… Lisbon; é mais bonito.]
Vai, cala-te e come.
Come mais um aumento da renda,
da luz,
da água.
Reclama que está caro; é o progresso da agenda globalista: sem nada, feliz e cada vez mais escravo.
A casa não é tua,
o carro também não.
Até o teu filho já é propriedade do Estado.
Mas aguenta, aguenta, Zé Povinho, lamenta, mas no sofá: sentadinho, caladinho, a mandar postas de pescada na internet.
“Eu sou Chega”, “ele é PS”, “o meu partido é que é honesto!”.
“Mas que cor é que ele veste?”
Isso é que importa, não é?
Tirar o poder ao povo e dar aos políticos, e eles adoram isto, de dar aos políticos e tirar ao povo.
Até aqui, nada de novo,
mas pronto, vamos dar seguimento.
Este ano, tivemos o aparecimento em massa do movimento burguês pelo clima, com um enorme esforço e financiamento internacional.
Tivemos também o desentendimento da família PS. Eu relembro: 10 mudanças no alinhamento do Governo,
com despedimentos por corrupção.
Mais recentemente, o afastamento do Costa, que de repente voltou ao posto. Em breve… está na Europa.
Tivemos o Galamba, o aluno do nosso querido engenheiro, o grande José.
Ele está fora, mas continua sempre lá no meio.
Ó Galamba passa a ganza que a bófia não vê, e o povo não sente o cheiro,
nem da ganza, nem do dinheiro.
Faz um esforço, corta no jantar, reduz no almoço.
Hospital, ou é privado, ou acabas morto.
Saúde é para quem tem dinheiro. Neste país, é assim,
já dizia o outro: uns são filhos, outros enteados, e outros… Nuno Rebelo de Sousa.
Mas que venha 2024, com este grande aumento de ordenado.
Já dá para comprar uma tenda nova e um casaco para os dias mais frios.
É que isto com as alterações climáticas nunca se sabe.
Aumenta a mortalidade, os enfartes,
está tudo comprovado.
Um aparte, cenário internacional: Rússia, Ucrânia, Israel, Palestina. Já só falta China e Taiwan.
Não querendo ser chato, para terminar… desculpa, podes-me… um obrigado à Cristina Ferreira, ao Cavaco, ao Marques Mendes, ao Malato, ao ChatGPT, ao José Alberto Carvalho, ao Papa Francisco, à Kikas, à Joana Marques, à Prozis, ao lítio de Montalegre e às bifanas de Vendas Novas.
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É tradição, é cultura, é um subsídio ao humor nacional. A longa saga do Novo Aeroporto de Lisboa (NAL) é o nosso próprio “Dallas” encenado no Terreiro do Paço! Há lá rábula melhor do que aquela de que nem o pai morre nem a gente almoça, e já lá vão 50 anos, mas desta é que a Portela satura, ou nós saturamo-nos dela, mas agora fora de brincadeiras que sem NAL não há nação, e que o digam os maldispostos dos nortenhos que vieram cá baixo de trombas e tudo, só porque se lhes cancelou voos longos a partir do Porto, como se fosse mau saturar mais um bocadinho, senão veja-se o milhão de peregrinos que se transportou sem sobressaltos durante as Jornadas Mundiais da Juventude, e se nem isso vos convence então não sei mais que diga!
Que a opinião pública engula esta comédia à colherada atesta bem o poder e a voracidade dos interesses que se perfilam para a manipular. Que de vez em quando se torre uns milhões em estudos infecundos e se agite a especulação imobiliária, é nacional e endireita as costas, mas outra coisa é concretizar a farsa ao fim de meio século e já muito depois das alterações climáticas terem passado da teoria à prática.
Prevê-se que a obra se prolongue por 10 anos portugueses (aproximadamente 15 anos ISO), o que significa que o NAL ficará pronto muito depois de se ter transformado num objecto anacrónico, num monumento aos tempos em que com muita coragem e muita virtude se fechava os olhos ao óbvio, ainda antes do aquecimento global ter transformado o Sul de Portugal num Norte de África mais caro mas com um toque inequivocamente europeu nos MacDonalds. Perguntar-se-á então “Como é que foi possível” e ficaremos a saber que afinal toda gente era contra, e já o era desde 1968.
Contudo, estamos em 2023 e a farsa ainda não saiu de moda. É preciso animar o mercado imobiliário, esse fiel mealheiro dos ricos, estourar milhões num elefante branco camuflado que vai exacerbar a macrocefalia lisboeta fazendo um aeroporto não em Lisboa mas num município vizinho que sirva Lisboa, e daí que nenhum partido ecologista (LIVRE, PAN, e Verdes) se tenha oposto frontalmente ao NAL, pois sede e dirigentes estão em… Lisboa (um município que perdeu moradores, segundo os Censos 2021); e por último é preciso abrir garganta e gargalo ao turismo, tão competente a exportar mão-de-obra como convicto a explorá-la, ou não fosse o turístico Allgarve a região continental mais pobre do país. Pois que interessa o derrapar de todas as metas para reduzir as emissões de CO2, as previsões cada vez mais sombrias, ou os humores das correntes termohalinas? Que interessa o aquecimento global a quem tem ar-condicionado? E se as colheitas não derem para pão, hão-de sempre dar para brioche.
Mas afinal o que propomos nós? Porventura não precisamos do turismo? E não está a Portela de facto saturada?
Reconhecemos que há razões práticas, de saúde e de segurança para tirar o aeroporto da cidade, mas nem por isso deixa de ser má ideia caminhar em direcção ao desastre. A mesma Ciência que nos permite partilhar fotos das nossas cabeças tapando a Torre Eiffel também nos faculta sérios avisos sobre o futuro imediato — a prudência atempada sempre será melhor conselheira do que o pânico.
Propomos que se distribua melhor o tráfego aéreo, que se encarregue especialistas e responsáveis de encontrar soluções com os meios que já existem, ou que sejam substituídos por especialistas e responsáveis competentes. Poupemo-nos ao enorme esforço financeiro que o NAL exige, e consequente favorecimento de uma indústria fortemente subsidiada, que além de não pagar IVA sobre o combustível ainda goza de mais 14 subsídios no espaço europeu, e invistamos desesperadamente na ferrovia, no ordenamento do território, nomeadamente na contenção da malha urbana, na gestão eficiente da água (reserva, distribuição e consumo), e que se prepare o país para o inexorável avanço do mar, que quanto a esse já nada há a fazer. Talvez assim se dê um forte sinal para dentro e para fora, transportando-se o testemunho recebido da França, que recentemente proibiu voos internos com alternativa ferroviária.
O IPCC, o órgão das Nações Unidas que estuda as alterações climáticas, publicou o seu primeiro relatório em 1990, e previsão-após-previsão antecipou a realidade que hoje sentimos na pele; quanto ao futuro próximo, foi compondo pincelada-a-pincelada um quadro simplesmente aterrador. Disso ciente na teoria mas alheio na prática, o nosso Estado mostra-se dúbio nos momentos decisivos, constituindo-se assim num corpo nocivo que serve a interesses que não os nossos, e que continua a meter balas no tambor do revólver.
Este apelo que muitos acolherão como infantil, pueril, irrealista, ou até demagógico, parecerá a cada ano cada vez menos um atrevimento e cada vez mais uma mera constatação da evidência e do óbvio, mas o prazer duvidoso de ter razão não compensa a vida menor que nos espera a todos, primeiro aos pobres e depois aos outros.
Levante-se agora ou arrependa-se depois. Quem diz não ao NAL?
Alberto Bettencourt, Oceanógrafo Filipe Martins, Informático Francisco Martins, Operador de Call-center Joaquim Monteiro, Engenheiro Mecânico Luísa Alvares, Farmacêutica (Saúde pública) Marco Craveiro, Imunologista Marta Setúbal, Arquitecta Paulo Carreira, Comercial Pedro Gomes, Engenheiro Florestal
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A comunicação social refere-se aos “Almoços do Isaltino”. Por respeito institucional não posso utilizar a mesma expressão.
Obviamente que não fiquei indiferente à notícia da “Sábado”, e se até ao momento me mantive publicamente em silêncio, tal facto se deve à necessidade de as coisas esfriarem e qualquer declaração da minha parte ou da Comissão de Trabalhadores da Câmara Municipal de Oeiras dever ser feita de forma serena.
E se o quebro agora é porque não poderia ficar indiferente ao artigo de opinião publicado [no PÁGINA UM] por Vítor Ilharco, secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso, prenhe de lambe-botismo.
E como é que Vítor Ilharco branqueia os “Almoços do Isaltino”?
“Oeiras é um pequeno concelho com um tão grande sucesso…”
“Em quatro décadas passou de um dormitório de Lisboa, repleto de bairros de barracas sem saneamento básico (que desapareceram por completo), para o segundo concelho cujas empresas financeiras mais facturam (vinte e cinco mil milhões de euros, ano).”
“É o segundo concelho mais exportador de Portugal.”
“A Câmara de Oeiras é visitada, semanalmente, por políticos dos quatro cantos do Mundo, incluindo Presidentes, Primeiros-Ministros, Ministros, Embaixadores, Autarcas.”
Pena é que Vítor Ilharco não tenha feito uma “declaração de interesses”, nomeadamente qual o seu relacionamento pessoal e institucional com o Senhor Presidente da Câmara Municipal de Oeiras e com o cidadão Isaltino Morais.
É verdade que o Senhor Presidente Isaltino Morais fez tudo o que é referido no artigo de Vítor Ilharco, que regularmente vêm a Oeiras diversas personalidades; porém, o que está em causa não são as refeições que possam ser classificadas como “despesas de representação” e/ou “ajudas de custo”, mas sim refeições do Senhor Presidente, dos Senhores Vereadores (alguns), de adjuntos, de assessores, de dirigentes e entre si.
O que Vítor Ilharco não refere, e para ser opiniosamente honesto deveria tê-lo feito, é que o Senhor Presidente da Câmara Municipal de Oeiras recebe mensalmente Despesas de Representação no valor de 1.124,33 euros e cada vereador com pelouro aufere 599,65 euros (Remuneração dos Eleitos Locais 2022), o mesmo sucedendo com o Senhor Diretor Municipal referido na notícia, que aufere mais de 700,00 euros mensais em ajudas de custo!
Mesmo tendo liderado o Município de Oeiras com o sucesso conhecido, o Senhor Presidente Isaltino Morais não pode continuar a ser endeusado, a quem tudo se permite, a quem tudo se tolera.
As despesas divulgadas e não desmentidas, e algumas das ementas e acompanhamentos são um insulto a quem desesperadamente procura uma habitação, um lugar para dormir, porque se é verdade que o Presidente Isaltino Morais aproveitou os dinheiros vindos da então CEE para terminar com as “barracas”, não é menos verdade que a última construção habitacional social foi em 2002, na Portela de Carnaxide.
Ou seja, durante mais de 20 anos não se construiu, apesar das promessas feitas nos anos seguintes.
E agora “corre-se atrás do prejuízo”.
Poderia o secretário-geral da APAR ter falado dos investimentos ruinosos do SATU – Sistema Automático de Transporte Urbano de Oeiras, do LEMO – Laboratório de Ensaios de Materiais de Obras, EIM, SA (que alguns “iluminados” tiveram a ousadia de pretender que fosse um LNEC 2) e na HABITÁGUA – Serviços Domiciliários e Técnicos, EM, liquidadas já no mandato de Paulo Vistas (2013-2017).
Se o secretário-geral da APAR conhecesse minimamente o Município de Oeiras, saberia o que se passa na MUNICÍPIA, E.M. e na OEIRAS VIVA, E.M., artificialmente mantidas com as transferências financeiras do acionista Município de Oeiras.
Foram e são milhões de euros deitados à rua!
Vítor Ilharco inicia a sua prosa com a expressão “Está difícil a vida para alguma comunicação social”.
Eu remataria “Isaltino pôs-se a jeito”!
E por aqui me fico.
Helder Sá é coordenador da Comissão de Trabalhadores da Câmara Municipal de Oeiras
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