Etiqueta: Opinião

  • Um ano de horror em Gaza: o cemitério da civilização

    Um ano de horror em Gaza: o cemitério da civilização


    Em 16 de Setembro, o Ministério da Saúde palestiniano publicou um documento de 649 páginas com uma lista de todas as mortes causadas pela punição colectiva israelita de Gaza pelo massacre do Hamas em 7 de Outubro.

    A lista inclui mais de 34 mil das 41 mil vítimas de Gaza. As restantes vítimas ainda não foram identificadas. A lista não inclui as 10 mil pessoas (no mínimo) presas sob os escombros nem todas as vítimas indirectas da agressão israelita. O prazo abrangido pelo documento estende-se até 31 de Agosto. Desde então, pelo menos mais mil habitantes de Gaza foram mortos.

    Ao lado dos nomes das vítimas também estão listados o sexo, número de documento pessoal e idade. Nas primeiras 14 páginas do documento, o número na faixa ‘Idade’ é 0 Zero. São 14 páginas com o nome de crianças mortas antes de completarem o seu primeiro aniversário.

    Foto: D.R.

    No passado dia 9 de Setembro, outro ano escolar deveria ter começado em Gaza. Depois de um ano de horror indescritível, cerca de 640 mil crianças deveriam estar voltando às salas de aula. Cerca de 45 mil teriam ingressado no primeiro ciclo.

    É claro que isso não aconteceu.

    Enquanto 700 equipas das Nações Unidas (ONU) vacinavam em massa as crianças palestinianas contra a poliomielite, cujo ressurgimento em Gaza marca uma forma de eclipse social, as bombas e mísseis israelitas continuavam a chover. No dia em que as aulas deveriam ter começado, o exército israelita invadiu a escola do campo de refugiados de Nuseirat, que funcionava no âmbito do programa Agência das Nações Unidas de Assistência e Obras para a Palestina (UNRWA). Doze mil pessoas que tinham sido expulsas das suas casas encontraram refúgio lá. Vinte e cinco foram mortas no ataque; seis eram funcionários da ONU. Em pouco menos de um ano, 250 trabalhadores humanitários e 170 jornalistas foram assassinados no enclave palestiniano – mais do que em qualquer guerra até agora.

    Este ataque ao que deveria ter sido uma zona segura custou a uma mãe palestiniana todos os seus seis filhos.

    Cerca de 40% das vítimas do massacre israelita em Gaza eram crianças. Outras 20.000 crianças ficaram órfãs ou separadas dos pais. Um ano de destruição indescritível que certamente se estenderá pelas gerações vindouras.

    Foto: D.R.

    Neste momento, nenhum lugar em Gaza é seguro. De acordo com dados da ONU, 93% dos habitantes foram deslocados internamente – a maioria deles várias vezes, alguns deles até 10 vezes. Mais de 80% de Gaza foi devastada. O enclave palestiniano foi praticamente demolido, portanto, tornou-se inabitável durante anos.

    Mais de um milhão de pessoas – um pouco menos de metade da população de uma das áreas mais densamente povoadas do mundo – está a tentar sobreviver nas condições brutais no campo de Al Mawasi, na costa do Mediterrâneo. A maioria deles fugiu para lá depois que o exército israelita lançou uma ofensiva terrestre em Rafah, onde 1,3 milhão de pessoas procuraram refúgio após os primeiros meses da invasão de Israel.

    Em Al Mawasi, os refugiados exaustos, doentes e profundamente traumatizados quase não têm água, alimentos e medicamentos à sua disposição. As condições nos outros abrigos temporários entre as ruínas pós-apocalípticas são praticamente as mesmas. Apenas alguns hospitais em Gaza conseguiram continuar a funcionar. Inúmeras instalações médicas foram saqueadas; centenas de trabalhadores médicos assassinados. Durante semanas a fio, as forças israelitas sitiaram vários hospitais, incluindo o maior deles – Al Shifa.

    A situação dos residentes de Gaza agravou-se ainda mais em Maio, durante a ofensiva terrestre em Rafah, quando o exército israelita assumiu o controlo do lado palestiniano da passagem da fronteira egípcia – e pouco depois também do chamado Corredor de Filadélfia.

    Isto provocou a paralisação quase total da ajuda humanitária, cujo afluxo já tinha sido severamente dificultado pelos bloqueios israelitas. É agora claro que Israel optou por recrutar a fome em massa como mais uma arma no seu arsenal. Neste momento, mais de 70% da população de Gaza está a passar fome, totalmente dependente da ajuda externa que quase nunca chega. Isto é especialmente verdadeiro no caso do isolamento a norte de Gaza, que foi transformado num gueto faminto onde as forças israelitas atacaram comboios humanitários em diversas ocasiões.

    Já há dois meses, a reputada revista médica britânica The Lancet estimou o número total de vítimas directas e indirectas da agressão israelita em 186.000. Ou 8% de toda a população de Gaza.

    Guerras Eternas

    Pode-se perguntar: como pode ser tudo isso?

    As estruturas internacionais não estão a funcionar. As Nações Unidas foram há muito reduzidas a um fóssil vivo que presidiu a um número cada vez maior de genocídios (Ruanda, Srebrenica, Darfur, Gaza, …). O domínio geral dos membros permanentes do Conselho de Segurança, em combinação com os seus direitos de veto, representam o obstáculo final a qualquer tipo de intervenção competente. Especialmente agora, em tempos de perturbação bipolar global, cujas guerras frias estão agora a fundir-se numa guerra bastante quente.

    As decisões do Tribunal Penal Internacional (ICC) e do Tribunal Internacional de Justiça (CIJ) em Haia perderam há muito tempo quase toda a relevância. O mesmo se aplica ao direito humanitário internacional, às principais convenções internacionais e ao próprio conceito de direitos humanos, que agora parecem meros ecos de uma época passada que talvez nunca tenha realmente existido. Os tempos tornam-se mais distópicos a cada hora – e mais divididos, racistas e estratificados. Todos os contratos sociais há muito existentes estão a desmoronar-se diante dos nossos olhos. É praticamente o mesmo em todo o mundo, e certamente no Ocidente agora quase impossivelmente narcisista.

    Esta é parte da razão pela qual vivemos numa época de guerra eterna.

    Nem uma única guerra iniciada depois do 11 de Setembro de 2001 terminou realmente. No Afeganistão, em Agosto de 2021 assistiu-se ao regresso dos Taliban ao poder, após 20 anos de ocupação norte-americana. Sim, muitos dos combates podem ter acalmado, mas a guerra contra a população afegã está longe de terminar. A invasão do Iraque pela “coligação” em Março de 2003 – seguida de uma ocupação e de uma guerra civil selvagem – enviou ondas de choque por toda a região. Os ecos da guerra no Iraque tiveram um impacto terrível na guerra sem fim na Síria e nos horrores em curso no Iémen, que a chamada comunidade internacional há muito varria para debaixo do tapete.

    A guerra que eclodiu no Sudão, em Abril passado é uma das guerras mais horríveis do nosso tempo. Segundo dados da ONU, também provocou a maior crise humanitária da história… E não há fim à vista. Tal como aconteceu com os conflitos na Líbia e na República Democrática do Congo. Este último conflito dura desde 1997. Os seus primeiros seis anos custaram seis milhões de vidas.

    E depois há a guerra na Ucrânia, que traz todas as características de mais uma guerra eterna. Ao lado dos massacres diários em Gaza, é o melhor testemunho da total irresponsabilidade da comunidade internacional, que é cada vez mais liderada por psicopatas e até por assassinos em massa.                         

    a yellow car is parked on the side of the road
    Foto: D.R.

    Poucos dias depois das atrocidades do Hamas no sul de Israel, o secretário-geral da ONU, António Guterres, comentou que os ataques do Hamas “não aconteceram no vácuo“. Foi a descrição mais branda possível de 75 anos de racismo sistematizado, roubo de terras, deslocalizações forçadas, apartheid, humilhação colectiva e violência perpetrada por Israel.

    A manhã de 7 de Outubro trouxe a constatação de que o status quo se foi para sempre. E que uma resposta selvagem de Israel era inevitável. Também era certo que a comunidade internacional não conseguiria encontrar uma resposta. Parafraseando o secretário-geral: o que aconteceu depois dos ataques do Hamas também não aconteceu no vácuo.

    Tudo o que foi dito acima foi perfeitamente compreendido pelos líderes do Hamas, que optaram por ceder à sua própria impotência política e ao estado completamente depravado da política interna palestiniana para levar a sua própria nação à beira da ruína total. Após a sua tomada violenta do poder no Verão de 2007, o Hamas governou o enclave palestiniano com mão de ferro. E também, de mãos dadas com os seus co-progenitores, a elite política israelita.

    Foi a receita perfeita para um desastre total e implacável.            

    Foto: D.R.

    Durante o ano de massacres em massa em Gaza, as autoridades israelitas de extrema-direita lideradas pelo eterno primeiro-ministro Benjamin Netanyahu não conseguiram alcançar um único dos seus objectivos oficiais. Cerca de 100 reféns israelitas ainda permanecem em Gaza, embora não esteja claro quantos ainda estão vivos e quantos foram mortos pelos seus captores ou pelas bombas e mísseis israelitas.

    Esta é a principal razão por trás dos protestos em massa que ocorrem nas ruas de Tel Aviv e de outras cidades israelitas todos os fins de semana. Em 14 de Setembro, por exemplo, mais de um milhão de israelitas protestaram e exigiram a libertação imediata dos reféns. Não pela força militar, que já se revelou insuficiente, mas através da negociação de um cessar-fogo com o Hamas.

    Depois de um ano de selvageria desenfreada, o exército israelita não conseguiu derrotar o Hamas, nem no sentido militar nem no sentido político. Apesar de ter sofrido enormes baixas, a posição do Hamas na região foi significativamente reforçada. Acima de tudo, nas ruas do mundo árabe, onde ainda existe um mínimo de solidariedade para com os palestinianos… Ao contrário das elites políticas árabes corruptas, que ficaram suficientemente felizes em trair Gaza pelo que parece ser uma última vez.

    Tendo em conta o facto de o Hamas ser indiscutivelmente uma organização terrorista e de as autoridades palestinianas (AP) serem meros subcontratantes da ocupação israelita, os palestinianos não têm ninguém que os represente.

    Israel como uma ameaça a si mesmo

    Apesar de toda a carnificina, Israel ainda está inundada com enormes quantidades de armas.

    Segundo os últimos dados da Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), a grande maioria das armas importadas por Israel entre 2019 e 2023 veio dos Estados Unidos (65,6%); 29,7% vieram da Alemanha, 4,7% de Itália. Há dois meses, Washington autorizou uma venda adicional de armas a Israel no valor de 20 mil milhões de dólares.

    De acordo com dados do SIPRI, as vendas combinadas de armas europeias a Israel no ano passado totalizaram 326,5 milhões de euros – 10 vezes mais do que em 2022. Por outro lado, o Ministério da Defesa de Israel admite livremente que Israel exportou 13 mil milhões de dólares em armas em 2023. O seu acordo de armas mais lucrativo foi com a Alemanha, que pagou a Israel 3,5 mil milhões de dólares pelas suas armas. Interceptador de mísseis antibalísticos Arrow 3 sistema.

    No Médio Oriente, tal como em qualquer outro lugar, enriquecer com a guerra é normalmente uma via de dois sentidos.

    Foto: D.R.

    Um ano de violência em Gaza e cada vez mais ao longo da Cisjordânia ocupada também enfraqueceu significativamente o próprio Israel. As suas perspectivas de segurança, sociais, económicas e políticas diminuíram enormemente. Muitos investimentos internacionais foram retirados. Em todos os 76 anos da sua história, Israel nunca esteve tão dividido internamente e insultado globalmente.

    Vale a pena afirmar que Netanyahu e os seus parceiros de coligação de extrema-direita, messiânicos e semelhantes aos Taliban começaram a conduzir o Estado judeu para o seu actual caminho totalitário ainda antes de 7 de Outubro. A sede de poder do primeiro-ministro de Israel nunca foi tão evidente quando tentou aprovar uma forma judicial que colocaria o Supremo Tribunal – o tradicionalmente mais independente e progressista entre as instituições israelitas – inteiramente sob o seu controlo.

    Atenção: a motivação de Netanyahu era mais pessoal do que política. Ainda há um julgamento em andamento sobre suas supostas práticas corruptas.

    Ao longo dos últimos anos, os extremistas governantes liderados por Netanyahu levaram a cabo uma espécie de revolução (anti)cultural em Israel. No entanto, apesar disso, e do facto de as autoridades israelitas terem sido totalmente culpadas pelo fiasco de segurança de 7 de Outubro, o controlo do poder do primeiro-ministro parece mais firme do que era há um ano. Não importa que nenhum dos seus principais objectivos políticos declarados tenha sido alcançado. E não importa que, ao espalhar o conflito ao Líbano, à Síria, ao Irão e ao Iémen, o primeiro-ministro expôs o Estado judeu a um grave risco existencial.

    Em 13 de Setembro, o jornal israelita Maariv publicou uma sondagem segundo a qual Netanyahu e o seu partido ainda ganhariam o maior número de assentos no parlamento. A mesma sondagem também evidenciou que a popularidade pessoal do primeiro-ministro aumentou desde o início da guerra. O público israelita parece considerá-lo o homem mais adequado para o cargo.

    Foto: D.R.

    Mais uma vez: como pode estar a acontecer tudo isto?

    Toda a oposição política genuína no país foi extinta. O que resta é liderado por oportunistas desavergonhados como Beni Gantz, que a Casa Branca há muito escolheu como sucessor de Netanyahu.

    O que hoje em dia passa por oposição é, portanto, cúmplice da orgia contínua de crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Palavras semelhantes poderiam ser usadas para descrever uma grande parte dos actuais manifestantes antigovernamentais. O terrível sofrimento dos palestinianos não é algo com que se sintam obrigados a preocupar-se, dado que os seus protestos são sobretudo alimentados por preocupações etnocêntricas.

    Em abril passado, o historiador Amos Goldberg, professor associado da Universidade Hebraica de Jerusalém, publicou um artigo muito significativo na revista israelita Sicha Mekommit.  Intitulado, ‘Sim, isso é genocídio‘, o artigo classificava em alto e bom som as acções israelitas em Gaza como genocídio – e depois justificava meticulosamente a afirmação.

    É claro que tal posição exige enorme coragem no Israel de hoje. Os riscos estão longe de ser negligenciáveis.

    Prevalece na sociedade israelita uma atmosfera radical de desumanização dos palestinianos de um nível tal de que não me consigo lembrar nos meus 58 anos de vida aqui.” Goldberg declarou recentemente numa entrevista.

    Goldberg também relatou que a princípio hesitou muito em usar a palavra genocídio e tentou fazer tudo o que pôde para se convencer do contrário. “Ninguém quer ver-se como parte de uma sociedade genocida. Mas havia uma intenção explícita, um padrão sistemático e um resultado genocida – então, cheguei à conclusão de que é exatamente assim que o genocídio se parece”, diz Goldberg.

    Uma vez que você chega a essa conclusão, você não pode ficar em silêncio“, disse o historiador israelita de forma clara.

    Portanto, cabe aos corajosos historiadores locais continuarem dizendo a verdade. Mas quem fornecerá os dados para futuros bravos historiadores? Os jornalistas estrangeiros continuam impedidos de entrar em Gaza e os jornalistas nacionais estão a ser mortos propositadamente pelo exército israelita.


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  • Ditaduras também torturam a inteligência

    Ditaduras também torturam a inteligência


    Ditaduras são reconhecíveis pela violência e o horror. Assim, nada mais justo que as descrevamos através de termos como “sombra”, “escuridão”, “trevas”. Cá entre nós: elas merecem. Mas serão só isso? Certamente, não. Na contraface do espectro fantasmagórico que projetam existe a burrice. Não raro uma ignorância miúda mas uma daquelas de espessura colossal. Vejamos o caso da ditadura que mais conheço – graças à infausta condição de nela viver durante 21 anos – que é a brasileira. E que, neste ano, completou os 60 anos de sua implantação. De 1964 a 1984 não apenas as pessoas mas a inteligência foi torturada. Apanhou na cara, foi pendurada no pau-de-arara, recebeu choques de alta voltagem. Vamos à casuística. Que é apenas exemplificativa mas jamais exaustiva:

    Prendam o Feydeau

    Corria 1966 e um coronel, de nome Washington Bermudez, esbravejou contra o elenco que encenava peça do dramaturgo francês George Feydeau em Porto Alegre, cidade do Sul do Brasil. Bermudez exigiu a presença de todos os envolvidos em seu gabinete, inclusive de Feydeau. Relataram-lhe que, entre seu desejo de interrogar Feydeau e o mundo real havia um Atlântico de distância e mesmo assim sua ordem chegara 45 anos após a morte do intimado.

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    O valor da polícia

    Para não ficar atrás, outro coronel, Joaquim Gonçalves, de Minas Gerais, declarou que os jornalistas “deveriam apanhar da polícia não apenas durante a passeata, mas antes também”. Isto porque não reconheciam o valor dos agentes da lei e da ordem. E ilustrou: “Os fotógrafos, por exemplo, nunca fotografam os estudantes batendo no policial”.

    Queremos o Sófocles!

    Era 1965 e o Brasil se juntara aos marines norte-americanos na invasão da República Dominicana para entronizar outra ditadura. No Rio, os atores e atrizes da peça Electra, de Sófocles, queriam fazer alguma coisa. E a atriz Isolda Cresta, antes da função, leu um manifesto contra o papelão das tropas brasileiras no exterior. Foi presa. No dia seguinte, apareceu um agente da polícia política no teatro. Disse que todos ali eram “subversivos”. Mas queria mesmo saber “quem é esse tal de Sófocles? Onde ele está?” Contrafeito, teve que ouvir que o sujeito que queria prender habitava outro plano havia dois milênios.

    Desvairados e vagabundos

    Em janeiro de 1968, o general Juvêncio Façanha, diretor do Departamento de Polícia Federal, deu declaração autoexplicativa sobre a sofisticação dos quadros da ditadura que lidavam com a questão cultural. “A classe teatral só tem intelectuais, pés sujos, desvairados e vagabundos, que entendem de tudo menos de teatro”.

    Xixi com censura

    Para tornar ainda pior tudo o que já estava ruim, o Ato Institucional 5, expelido pelos generais em 1968, colocou censores-militares na redação do Correio da Manhã, no Rio. Suas tesouras eram infatigáveis. Qualquer possibilidade de crítica ao regime era sumariamente seccionada. Foi em uma dessas que o Papa Paulo VI levou a pior. Na tradicional mensagem natalina aos cristãos do mundo, o pontífice citava os “povos oprimidos”. Como “povos” e “oprimidos” separados já pareciam suspeitos, juntos eram algo simplesmente intolerável. E Paulo VI não escapou. Depois disso, alguém afixou um cartaz com uma recomendação de muito bom senso no banheiro masculino. Dizia: “Não faça xixi com os censores: eles cortam tudo”.

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    Torturas de amor.

     Hoje que a noite está calma/ E que minh’alma esperava por ti/ Apareceste afinal/ Torturando este ser que te adora”, são os versos iniciais de Torturas de amor, bolero de Waldick Soriano. Mas era 1974 e os censores entenderam que “tortura” e “bolero”, além de não rimarem, não tinham o direito de frequentar as mesmas notas. Portanto, a melosa canção foi proibida de tratar de torturas mesmo que fossem “de amor”. Curiosamente, o proscrito Soriano era bastante íntimo do estado de coisas que condenou sua letra. Em 1973, o cantor defendeu a ação dos grupos de extermínio. Achava também que Jesus Cristo era um “arruaceiro e enganador”.

    Os hippies que vieram da URSS

    Maioral do Centro de Informações do Exército, o general Milton Tavares de Souza palestrou na Escola Superior de Guerra para ensinar que “o movimento hippie foi criado em Moscou”. Já o ministro do Exército, Fernando Bethlem, vinculou a União Soviética às drogas “pelo interesse dos comunistas em corromper as mentes jovens”. Um terceiro general, Ferdinando de Carvalho, levou sua paranoia à literatura. Seu romance Os Sete Matizes do Rosa descreve as agruras de um pai cujo filho fora a um show de rock que desembocou em um “bacanal de nudismo”. O festival fora “organizado pelos comunistas”.

    Julinho, o que foi sem nunca ter sido

    Para um compositor que nunca existiu, Julinho da Adelaide foi muito bem sucedido. Em 1974, implantou duas músicas no ouvido do brasileiro: Acorda Amor e Jorge Maravilha. Nos jornais, apareceu uma entrevista sua falando mal de Chico Buarque. “Não tem voz”, sentenciou. Era uma época em que nenhuma das músicas de Chico sobrevivia à censura prévia. Enquanto isso, as canções de Julinho passavam incólumes. O que os censores não sabiam era que Julinho – cuja graça era Júlio César de Oliveira conforme constava no formulário da Censura – não fora nascido mas inventado. Era o modo matreiro que Chico Buarque encontrou para ludibriar suas tesouras.

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    Insulto, não!

    Quando a peça Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, foi interditada, a atriz Maria Fernanda apelou à sensibilidade do presidente da União Democrática Nacional que, confrontando o próprio nome de batismo, não era “união”, “nacional” e muito menos “democrática”, tanto que apoiara o golpe militar. Seu presidente era o deputado federal Ernani Sátiro. A conversa começou ruim e foi piorando até que, lá pelas tantas, a atriz inconformada bradou “Viva a Democracia!” E o deputado rebateu de pronto: “Insulto eu não tolero!”

    Devassa na biblioteca

    Quando o apartamento de Ferreira Gullar, no Rio, recebeu a visita da polícia política, o poeta ficou preocupado com a devassa na sua biblioteca e a quantidade de obras confiscadas. Em determinado momento, um livro de arte também acabou recolhido. Estranhou como um volume sobre pintura poderia ameaçar a segurança da pátria e perguntou ao agente qual o perigo que representava aquele tomo com o título de “Cubismo”. O policial explicou que a razão era óbvia e estava no próprio título. Ou seja, cubismo, para ele, só poderia ser algo ligado à Cuba.

    Shakespeare amputado

    O mundo festejava o quarto centenário de nascimento do pai de todos os dramaturgos, William Shakespeare. Mas era 1964 e o Brasil emitiu uma nota dissonante. Ninguém poderia imaginar que, a descansar sob a terra havia 348 anos, o autor de Macbeth, Romeu e Julieta, Otelo e mais 35 peças, pudesse irradiar suficiente potencial subversivo para afligir as autoridades abaixo da linha do equador. Mas foi o que aconteceu: nos 400 anos do bardo de Stratford-upon-Avon, a censura passou-lhe a faca nas falas que escreveu para A Megera Domada, então em cartaz.

    man holding wind instrument

    Encontro com Kafka

    Algumas das situações vividas na autocracia brasileira provém dos labirintos de Franz Kafka. Uma delas alcançou o empresário Fernando Gasparian, às vésperas do lançamento de seu semanário Opinião, em 1972. Chamado à Polícia Federal, ouviu do major que o atendeu que “no Brasil não existe censura prévia” e que poderia publicar “o que quisesse”. Em seguida, o major retirou da gaveta uma lista com 210 assuntos que ninguém poderia publicar mesmo que quisesse. Gasparian pediu-lhe uma cópia. Ouviu uma negativa e uma explicação: “A lista é secreta”. 

    Ayrton Centeno é jornalista e autor do livro ‘Dicionário da ditadura‘, volume com 530 verbetes que reproduzem factos, figuras e farsas do golpe militar no Brasil em 1964


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  • Elon Musk vs. Alexandre de Moraes: uma visão brasileira

    Elon Musk vs. Alexandre de Moraes: uma visão brasileira


    Reza a boa norma de convivência que os convidados a ingressar em casa alheia devem respeitar determinadas regras de conduta. Dentre elas, destaca-se a de não contrariar – ou, ao menos, não contrariar expressamente – o dono do sítio. Sendo esta a minha participação inaugural no PÁGINA UM, duas considerações me levaram a deixar de lado essa cortesia tão natural. A primeira é que, sendo este um periódico declaradamente plural, tanto melhor para o leitor ter à disposição posições conflitantes e, valendo-se da sua própria capacidade de avaliação, julgar aquela que deva prevalecer. A segunda é que, sendo o Brasil uma personagem que em regra desperta pouca curiosidade no cenário global, nem sempre o contexto dos acontecimentos que aqui têm lugar é suficientemente esclarecido para o leitor d’álém-mar. Eis, portanto, as razões pelas quais desde logo me escuso ao Pedro Almeida Vieira por discordar do seu recente editorial “Unanimismos e maniqueísmos, ou o colapso das democracias.

    Para começar a compreender melhor o imbróglio entre Elon Musk e o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, a primeira coisa a fazer é contextualizar a situação política do Brasil nos últimos dez anos.

    a white dice with a black x on it

    Desde as famosas jornadas de Junho de 2013, o panorama eleitoral tornou-se adverso à esquerda no país. Dilma Rousseff ainda logrou alcançar a reeleição em 2014, mas sua vitória dependeu de uma campanha suja contra a agora Ministra do Meio Ambiente Marina Silva e, ainda assim, deu-se por margem mínima de votos (menos de 3% do eleitorado). O “sucesso”, contudo, durou pouco, pois logo após ela viria a ser derrubada por meio de um ‘impeachment’ do Congresso.

    Seu vice, Michel Temer, experimentou aproximadamente um ano de lua de mel, quando então foi alvejado pela delação dos notórios irmãos Batista, senhores da JBS, um dos mais poderosos players globais em matéria de proteína animal. Temer sobreviveu às três denúncias apresentadas pelo então Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, mas dali em diante seria apenas um zumbi político ocupando temporariamente a Presidência da República.

    Estando o país virtualmente acéfalo, a campanha presidencial de 2018 tornou-se terreno fértil para acontecimentos inesperados. Com Lula barrado pela Lei da Ficha Limpa, coube a Fernando Haddad atuar como porta-estandarte do PT naquele pleito. Do outro lado, o hoje vice-presidente Geraldo Alckmin, vindo do quarto mandato como governador de São Paulo, acreditava que uma coalizão majoritária de partidos da centro-direita seria capaz de conferir-lhe o posto de “anti-Lula”.

    Mas havia um Bolsonaro no meio do caminho. Personagem caricata da política nacional, tendo-se notabilizado por defender a tortura e a infeliz ditadura militar que desgraçou o país por vinte e um anos, Jair Bolsonaro lançou-se abertamente como candidato de extrema-direita. Em quase trinta anos como deputado federal, não houve registo de sequer uma atividade digna de nota de sua parte. No começo da campanha, ninguém levava a sério suas chances eleitorais. Veio a facada contra o candidato na cidade de Juiz de Fora/MG e o resto é história.

    Com Bolsonaro no poder, o Brasil viveu o maior regresso democrático de sua história pelo menos desde 1964, ano do último golpe militar no país. E aqui não pode haver margem a tergiversações: durante os quatro anos de governo Bolsonaro, o Brasil viveu em um estado de exceção. À parte os tanques nas ruas, quase todos os elementos de um regime ditatorial clássico estavam presentes, a começar pelo loteamento do governo a militares da ativa e da reserva e à constante ameaça de Bolsonaro recorrer “às minhas Forças Armadas” para resolver disputas políticas. O facto de Bolsonaro transitar impune, sem capacete, durante suas famigeradas “motociatas”, era apenas o aspeto mais grotesco dessa verdadeira ditadura de baixa intensidade à qual o Brasil foi submetido nesse período.

    Alexandre de Moraes

    A despeito de sua medíocre trajetória como político do baixíssimo clero congressual, Bolsonaro soube entender como poucos o quão susceptíveis à cooptação são algumas instituições nacionais. Manejando porretes e cenouras, Bolsonaro ora ameaçava com a força, ora seduzia com prebendas determinadas pessoas em posições de poder. Foi com essa estratégia que ex-capitão do Exército conseguiu passar incólume por quatro anos de desgoverno, sem enfrentar nenhuma acusação criminal ou responder sequer a um processo de ‘impeachment’, em que pese as dezenas de crimes comuns e de responsabilidade que praticou no exercício do cargo.

    Uma das poucas instituições que não cedeu à tática de aliciamento foi o Supremo Tribunal Federal. E aqui não se deve alimentar grandes ilusões. Se o STF não se curvou ao assédio bolsonarista, não foi – ou não foi somente – por convicções democráticas genuínas, mas pela clareza de que, numa ditadura, o Judiciário torna-se um apêndice irrelevante na estrutura estatal. Se a legalidade é posta de lado para dar lugar a um regime de exceção, ser ministro do STF torna-se menos importante do que ser ministro do STF numa democracia. O que estava em causa, também, era um jogo de poder entre Bolsonaro e o Supremo.

    Coube a Alexandre de Moraes – o “Xandão”, segundo o epíteto a um só tempo irónico e jocoso pespegado pelo ex-deputado Roberto Jefferson –, capitanear a reação da Corte ao avanço bolsonarista sobre a democracia brasileira. Senhor do “Inquérito das Fake News”, Alexandre de Moraes resolveu bater de frente com o ecossistema de desinformação arquitetado no seio do bolsonarismo. Como as redes sociais constituem o principal meio de difusão das mentiras produzidas nesse ambiente, era apenas questão de tempo até que Xandão entrasse em rota de colisão com alguma delas. E é aí que entra Elon Musk.

    Bilionário sul-africano radicado nos Estados Unidos, Musk divide seu tempo entre empreendimentos grandiloquentes (como levar o homem a Marte) e proselitismo político. A compra do Twitter – posteriormente renomeado para X, um dos piores episódios de rebranding de todos os tempos – veio justamente para conferir-lhe o poder de influenciar o debate político a nível global. Alegando que a liberdade de expressão deve ser total e imune a qualquer tipo de restrição, Musk derrubou os filtros do Twitter e restabeleceu contas que antes estavam suspensas, como a do ex-presidente norte-americano Donald Trump, responsável pela infame tentativa de golpe em 6 de janeiro de 2021.

    Deixemos de lado o facto de que Musk mantém negócios com a ditadura chinesa, onde o Twitter é proibido desde sempre. Deixemos de lado, também, o facto de que Musk cumpre obsequiosamente as ordens de exclusão de contas emitidas pelos governos da Índia e da Turquia. A grande questão é: uma corte de Justiça pode determinar a exclusão por inteiro de uma rede social utilizada por milhões de nacionais?

    Elon Musk

    Para melhor compreensão da controvérsia aos não versados nas letras jurídicas, vamos recorrer a uma metáfora futebolística:

    Imagine, por exemplo, um sujeito erguer um estádio para explorar comercialmente o que se faz nele. Se o que se passa no interior do local é apenas um inocente jogo de futebol, tudo bem; o Estado fica do lado de fora e não tem nada que se meter lá dentro. Agora, se em partes da arquibancada dessa arena existe gente defendendo abertamente o nazismo (crime), trocando conteúdo de pedofilia (crime) ou articulando contra a democracia (crime também), ou o dono do estádio toma uma providência, ou o Estado tem o dever de entrar lá para dar fim à balbúrdia.

    Foi exatamente isso que aconteceu no caso do Twitter no Brasil. Tendo verificado a existência de contas que praticavam crimes através dessa plataforma, Alexandre de Moraes notificou a empresa para que tais contas fossem removidas. Como Musk se recusasse a cumprir essas ordens, Xandão impôs multas à empresa para que as determinações fossem cumpridas. Ignorando as multas, restou a Moraes ameaçar com a prisão dos representantes legais da rede.

    Vem Elon Musk e faz o quê? Retira a representação legal do Twitter no Brasil. Ao fazê-lo, a rede social deixa de atender a uma determinação expressa do Marco Civil da Internet, segundo o qual toda empresa que comercie dados de brasileiros deve, obrigatoriamente, submeter-se à legislação brasileira e, para esse efeito, possuir representante legal no país. A menos que se queira defender a hipótese de que um bilionário qualquer possa erguer um espaço imune às leis e à jurisdição do Brasil, não há o que criticar na decisão de suspensão emitida por Alexandre de Moraes.

    Claro, a decisão do ministro não veio sem efeitos colaterais indesejados. Assim como no exemplo do estádio acima, muita gente usava o Twitter legalmente, para fins de informação e compartilhamento de pensamentos (inclusive este que vos escreve). Como não havia hipótese de a Justiça intervir diretamente para excluir somente os criminosos da rede, só lhe restou a alternativa de fechá-la por inteiro. E aí 20 milhões de usuários que não tinham nada a ver com a briga de Musk com Moraes tiveram de migrar para o BlueSky ou outro aplicativo assemelhado.

    Christ Redeemer statue, Brazil

    Mas de quem foi a culpa pela suspensão da rede? Do ministro do Supremo, que teve suas ordens solenemente descumpridas? Ou do dono da plataforma, que deliberadamente perseguiu esse objectivo para fins políticos?

    Apenas para esclarecer do que exatamente se está a tratar, logo após as eleições, por exemplo, o comentarista da rede Jovem Pan, Paulo Figueiredo (neto do último ditador-general do Brasil, João Figueiredo), veio a público “denunciar” três generais do Alto-Comando do Exército por se recusarem a uma “ação mais efectiva” das Forças Armadas contra o resultado eleitoral. A idéia, por óbvio, era intimidar os estrelados a aderir ao golpe gestado nas hostes bolsonaristas. É esse tipo de “liberdade de expressão” que Elon Musk diz defender.

    Os seguidores de Voltaire ou os adeptos de uma linha mais chomskyana de pensamento sempre poderão argumentar: “mas não haverá aí censura prévia?” E a resposta a essa pergunta é um rotundo não.

    No nosso ordenamento jurídico, a regra é a liberdade de “expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (art. 5º, inc. IX, da Constituição Federal). Como todo direito, este também se sujeita a limites. Do contrário, teríamos que considerar como inconstitucionais, por exemplo, os crimes de injúria, calúnia e difamação.

    Estabelecida essa premissa, resta claro que o caso de Alexandre de Moraes contra o Twitter está longe de caracterizar “censura prévia”. Não é que Xandão estabeleceu um departamento para escrutinar todo e qualquer pensamento que vai ao ar nessa rede social. Pelo contrário. Diante de reiterados abusos cometidos por indivíduos previamente determinados, o Judiciário intervém para tirar deles o megafone que a rede social lhes provê.

    Repare, leitor amigo, que nem sequer o “pensamento” dos sujeitos bloqueados está tolhido. O que lhes é suprimido é o poder de amplificar o discurso. Trata-se de medida razoabilíssima e plenamente compatível com nosso ordenamento constitucional, ainda mais quando os crimes praticados por esses cidadãos têm como alvo a própria democracia.

    woman in dress holding sword figurine

    Curioso é também observar a ironia (e também a ignorância) de ver esses mesmos sujeitos irem se socorrer do ordenamento jurídico norte-americano para defender uma liberdade de expressão “absoluta, ampla e irrestrita”. Lá, onde o sujeito pode até queimar a bandeira do próprio país como forma de protesto (Texas vs Johnson), são aplicadas rotineiramente as chamadas gag orders, que nada mais são do que “ordens de silêncio”. No julgamento em que foi condenado por fraude contábil, decorrente de pagamentos ilegais destinados a esconder o caso extraconjugal que mantivera com uma atriz pornô, Donald Trump recebeu uma. E ninguém a sério, nem aqui nem lá, veio a público reclamar pela aplicação da First Amendment da Constituição dos Estados Unidos.

    Obviamente, Alexandre de Moraes não é Deus e suas decisões nem sempre são as mais acertadas. A proibição das VPNs e o bloqueio das contas da Starlink para forçar o pagamento das multas impostas ao Twitter são juridicamente questionáveis e dão margem a justos e sinceros receios por parte de pessoas que podem ser acusadas de tudo, menos de bolsonaristas. Em outra oportunidade, para não vos cansar com um texto já deveras longo, será possível abordar onde, quando e como Xandão errou. No caso da suspensão do X, entretanto, sua determinação não poderia estar mais acertada.

    O que falta ao debate público nesse particular, tanto em relação aos embates políticos quanto aos que são retratados nos meios jurídicos, é um pouco mais de conhecimento e um pouco menos de espuma.

    Quanto à Constituição brasileira, vai bem, obrigada.

    Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


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  • O SNS e um sapo encontram-se numa panela

    O SNS e um sapo encontram-se numa panela


    É conhecida a experiência em que colocando um sapo numa panela de água quente, ele saltará rapidamente para fora, mas se for colocado em água fria que vai aquecendo lentamente, o bicharoco acabará cozido sem dar por ela.

    Esta imagem veio à memória ao reflectir nas “mudanças” do SNS a caminho do seu futuro, ao ouvir o que nos diz quem gere o sistema.

    Há poucos dias, o Primeiro-Ministro afirmou, no decurso da celebração do 45º aniversário do SNS que “a Saúde não se gere com preconceitos ideológicos”. Os responsáveis políticos devem ter presente que fazer afirmações “bombásticas” pode encher os cabeçalhos dos jornais, mas devem obrigar-se a ser rigorosos e bem interpretados.

    frog on gray surface

    Há numerosas formas de tratar quem está doente e são muitos os sistemas em uso pelo mundo: em alguns países cada um trata de si e assume o pagamento do que deseja ter quando precise; noutros, há seguros cobertos por fundos públicos, mas que vão aumentando o pagamento directo dos cidadãos quando se ultrapassa um determinado plafond (como os nossos seguros automóveis) pelo que devem ser poupados para situações graves enquanto se vai pagando directamente como se puder; noutros, como foi criado o nosso SNS, a Sociedade assume a sua responsabilidade solidária de cuidar de quem precisa a partir da colecta de impostos sobre quem trabalha. Qualquer destes modelos, ou outros, tem inevitáveis pressupostos ideológicos. Ignorá-lo, ou tentar convencer-nos de que não é assim é, no mínimo disparatado ou intencionalmente ligeiro.

    Portanto, é inevitável que a forma como lidamos com a saúde e a doença colectiva tem de definir quem, e como, se paga. Ninguém ignora que os parceiros privados actuam com o legítimo objectivo de proporcionar lucro aos seus proprietários. E isso condiciona a sua estratégia negocial e de actuação diária, ou de estímulo de consumo e venda dos próprios produtos. Se isto não é ideológico, o que será então ideologia? Bater palmas em comícios partidários?

    O pressuposto fundador do nosso SNS foi assegurar promoção de saúde e apoio na doença a todos os cidadãos, mediante pagamento solidário de quem trabalha, sem esquecer que os doentes já vão pagando uma significativa e progressiva fatia da despesa. Há alguns anos começaram a surgir iniciativas privadas, que já não são pequenos consultórios individuais, mas estruturas enormes e sólidas que competem com os hospitais públicos. São bonitos, atraentes, silenciosos e somos atendidos com sorrisos, por vezes por quem é menos cortês noutros horários do dia…

    O hospital russo tem tudo menos doentes… Fotos: Serviço secreto ocidental

    Mas, quem tenta marcar uma consulta sem ter cobertura de um seguro (pago pelo próprio) terá de cobrir todos os custos e mesmo se tiver ADSE em muitos casos não conseguirá marcar consulta ou, com sorte, terá vaga daqui a muitos meses! O que começou por ser um serviço paralelo para pequenas ocorrências foi crescendo e tornou-se em muitos casos a primeira opção quando se pensa em ir ao médico. Quem tem automóvel sabe como funcionam os seguros. São simpatiquíssimos para receber o nosso dinheiro, mas muito relutantes a pagar os serviços contratados, com frequentes dúvidas e hesitações. Há anos num pequeno incidente automóvel o seguro insistiu, sem apelo, que parte dos estragos não decorriam daquele incidente. Juro que eram!

    Esta onda “seguradora na saúde” tem crescido de tal forma que até vimos candidatos em eleições a prometer seguros de saúde aos cidadãos eleitores! Isto é, o exercício de funções públicas já cria e alimenta o bichinho do seguro privado!

    Nada há de censurável a quem oferece emprego ou quem o aceita em instituições privadas. O negócio é legítimo e deve existir sempre que haja interessados em comprar-lhes serviços. A questão que quero suscitar é esclarecer onde é que o Estado gasta os recursos de que dispõem e que garantia de continuidade de cuidados assegura aos Portugueses sem lhes pedir ainda maior contribuição nos custos. Sabemos também que o diagnóstico e tratamento de muitas doenças tem tido incontrolável aumento de custos. Ora, se o Estado se for desvinculando de gerir directamente os cuidados que pode proporcionar e os for transferindo para prestadores privados, conhecendo a altivez com que negoceia os pagamentos que promete, e a inegável necessidade de obter lucro dos privados, temos uma receita pronta para um desastre social! Que começou a cozinhar-se há vários anos, como o pobre sapo que vai cozendo.

    A contraption with a drawing of a man on it

    Talvez assim se perceba e contextualize a falta de vontade em melhorar as condições de trabalho de profissionais, vitais ao saudável funcionamento do SNS, preferindo gastar em prestações de serviço avulsas que diminuam o tamanho das manchetes de alarme nos noticiários, mas abalando pouco a capacidade assistencial regular das instituições públicas. É significativo que se exija mais de metade do horário de trabalho semanal em Bancos de Urgência. Tudo o resto vai sendo suavemente entregue aos tais parceiros…

    Talvez se perceba também que alguns dos responsáveis pelos planos amplamente anunciados tenham pés em vários “parceiros” do sistema (público, social, privado) pelo que haverá benefício em qualquer vertente do processo.

    Como é habitual dizer-se, “primeiro estranha-se e depois entranha-se”. E assim o SNS corre o risco de encontrar um destino parecido com o batráquio na panela.

    Talvez seja preciso dar um salto enquanto é tempo, reclamando melhores objectivos, aceitando que tem de haver um pressuposto socialmente ideológico, o que é diferente de estritamente partidário, ainda que algumas partes venham já irremediavelmente cozinhadas…

    Jorge Amil Dias é médico pediatra


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  • Gouveia e Melo tem razão. E depois?

    Gouveia e Melo tem razão. E depois?


    Gouveia e Melo tem razão: qualquer militar fora da efectividade de serviço pode concorrer a um cargo político, e ocupá-lo, como qualquer outro cidadão. É assim em democracia. Então por que não largam os media esta questão?

    Se tantos comentadores se informassem antes de debitar, conheceriam as restrições ao exercício de direitos pelos militares estabelecidas na Constituição (art.270º) e na lei (art.25º a art.33º da Lei de Defesa Nacional). E então emitiam opiniões informadas e substantivas, em vez de só martelarem o tema. Claro que Gouveia e Melo pode ser candidato a eleições políticas, se deixar a efectividade de serviço; para quê insistir na questão? A insistência só dá palco mediático ao protocandidato; e assim se vitimiza (as massas “adoram” vítimas) e compensa o autoritarismo que o revela como aspirante a caudilho – algo tão apreciado pela direita sociológica e alguns membros da sua tribo corporativista. Os jornalistas sabem do seu ofício e não são ingénuos: martelar o tema é só um pretexto para manter a notoriedade. É a notoriedade que lhe garante números menos maus nas sondagens, e a ideia da candidatura.

    De notar que até o comandante de um exército está vinculado a um dever de isenção: “Os militares em efectividade de serviço são rigorosamente apartidários e não podem usar a sua arma, o seu posto ou a sua função para qualquer intervenção política, partidária ou sindical, nisto consistindo o seu dever de isenção.” (nº2 do art.27º da LDN, reforçado no art.20º do RDM). Gouveia e Melo violou abundantemente este dever de isenção ao emitir opiniões sobre políticas públicas, até de defesa; basta destacar o debate que lançou sobre a conscrição, ou o excesso de elogios pelos quais o PS (que o colocou nos cargos que lhe deram mediatismo) o acusou de ir longe demais. Gouveia e Melo fala várias vezes como se representasse e comandasse as Forças Armadas, menosprezando o CEMGFA, seu chefe militar, que tem essas competências legais. Além disso, não é humanamente possível estar sempre no palco mediático (e reger cadeiras universitárias) e estar “110% ocupado com a Marinha”. A sua atuação revela bem que o comando da Armada é só (mais) um meio para a sua promoção pessoal – e a par se revela a sua vaidade e o seu messianismo, típicos dos caudilhos.

    Gouveia e Melo tem desproporcionada notoriedade mediática e promove a sua imagem pelo cargo que ocupa, sempre a dizer que não faz política. É óbvio que faz. Mas, sem contenção por cima, e mostrando-se sempre simpático para quem lhe pode ser útil, o Governo tem-no protegido (porquê?), em vez de o advertir publicamente (como fez o seu anterior chefe em 2023) ou de o exonerar com justa causa. Face à passividade dos órgãos de soberania ante flagrantes violações de deveres militares e do seu cargo, Gouveia e Melo tem razões válidas para achar-se invulnerável e impune. E os observadores, em todos os setores dos media, à política à justiça, percebem que a passividade dos órgãos de soberania face aos excessos de um funcionário seu subordinado revela fragilidade e receio. Mas têm receio de quê?

    Diz-se que exonerar Gouveia e Melo, ou não o reconduzir, torna-o mártir, e que a agência de comunicação, formal ou informal, que o promove exploraria esse facto; neste cargo pode ser contido. Errado: a promoção mediática resulta mormente do cargo público, que usa para ter palco formal e permanente nos media; mantê-lo em funções só garante que é ele que decide quando sai. A exoneração extemporânea no comando da Armada não deixam dúvidas que os órgãos de soberania exercem o seu poder sem receio; mas o Governo tem de explicar com objectividade a justa causa para o afastar, para esvaziar o “martírio”.

    Regressando ao ponto inicial, há uma apreensão legítima por trás do formalismo: Gouveia e Melo fora da efectividade de serviço não é um militar num cargo político, formalmente; mas a sua conduta substantiva seria ditada por aquilo que o moldou e foi durante 40 anos, chefe militar – não é um “sinal na testa”, é uma marca indelével na personalidade e na conduta. Desde 1979, Gouveia e Melo nunca foi outra coisa senão militar, sobretudo operacional, e submarinista. Nem formação tem noutras áreas. Como disse o General Loureiro dos Santos: “O grande problema dos militares a partir de certa altura é que não sabem fazer mais nada.”

    A comparação com o General Ramalho Eanes menospreza a diferença de idades (40s-60s) com que se colocou a mudança, o percurso académico e a grande flexibilidade e curiosidade intelectuais do PR eleito em 1976. Alguém consegue imaginar Gouveia e Melo, hoje com mais de 60 anos, a fazer, sem favores, investigação e um doutoramento seja no que for?

    Com a memória das massas sobre o vice-almirante das vacinas a dissipar-se, a “agência de comunicação” vai arranjando pretextos para ele ter frequente palco mediático, nos jornais e nas TVs, como já assinalei. Ele cumpre com gosto: exibe-se e debita slogans para fazerem manchetes. Há décadas que debita slogans; e tem êxito com tantos que preferem a imagem à substância. Por isso, não houve reações públicas à frase “Os chefes militares eram mais do tipo Português Suave”, que prova que rejeita as restrições legais ao exercício de direitos pelos militares, que os anteriores (em geral) respeitaram. Entre os quais estão o General Ramalho Eanes, que elogia, enquanto se refere a ele como indíviduo

    Merecem atenção as mais recentes ações de promoção mediática, duas entrevistas e três artigos de opinião. Na primeira entrevista, cumpriu o débito ritmado de slogans para aplauso das massas. O entrevistador parecia perdido, quiçá a fazer um frete; mas prestou-se a fazer um hino à superficialidade e à frivolidade.

    No primeiro artigo, uma jornalista (ligada ao CDS) usou técnicas subtis para disfarçar que ela também está, pelo menos, a promover a notoriedade de Gouveia e Melo. E também martelou o tema do militar na política. Realço ainda esta “pérola”: “São muitos os que informalmente têm insistido junto de Gouveia e Melo para que arrisque uma candidatura a Belém”. Se é verdade, por que razão não pôs nomes? Dizer só “muitos”, e citar afirmações sem as atribuir, sugere uma ideia diferente do que pode ser a realidade: serão “muitos” só a autora e os que sonham com caudilhos? Se queria excluir esta interpretação, devia ter sido clara, e devia atribuir todas as citações.

    Seguiu-se um artigo do director do Sol, com uma narrativa assente em desejos que tenta passar por factos, pretensamente determinista e sem considerar os pontos negativos deste protocandidato mas notando os dos eventuais demais. Calhou vir logo a seguir o relatório 3/2024 do Tribunal de Contas, que aponta falhas graves em processos de despesas da sua responsabilidade; logo o militar tratou de culpar os subordinados – enquanto reserva sempre para si os méritos quando as coisas correm bem. A desresponsabilização não é novidade. Mas onde está o exemplo de integridade, que alguns só pelas aparências lhe atribuem?

    Veio a seguir uma entrevista na RTP. Parecia aquelas conversas entre um funcionário de um clube e o presidente desse clube para a televisão do clube. O entrevistador martelou o tema dos militares na política; e omitiu tudo o que pudesse prejudicar a imagem do entrevistado.

    Por fim, destaco um artigo de opinião, que comentou esta entrevista. É patente a satisfação da autora com a entrevista e a candidatura presidencial. Como todos os anteriores, e outros, sustenta tudo em sondagens. Mas o número de contactos para obter uma resposta é crucial; hoje, longe das eleições, as sondagens representam quase só os ativistas e os que aceitam participar, uma fração cada vez menos significativa da população. Por isso, a notoriedade é decisiva: falar nele evita que a imagem nas massas se dissipe, e desapareça das sondagens, sobretudo face aos “pesos pesados” com um discurso alargado e profundo.

    Nas referidas peças mediáticas vem a ideia de congregar votos à esquerda, o que merece uma gargalhada depois do Caso Mondego, no qual Gouveia e Melo violou os direitos de todos os membros da guarnição do navio perante todo o país e não só.

    Mas o mais importante das referidas peças mediáticas é que nada dizem de substantivo, e ainda menos de negativo, sobre o protocandidato. Nada dizem sobre como alguém famoso por distribuir injeções e sem experiência política pode exercer bem o cargo mais político e menos executivo do regime. Nada dizem sobre o seu restante passado. Nada dizem sobre as virtudes e defeitos de Gouveia e Melo em geral, ou para o cargo de PR. Nada dizem sobre o seu programa. Nada dizem que justifique o voto numa figura com traços messiânicos e autoritários, e falhas graves na gestão pública. Nada informam; nada tentam esclarecer; nada escrutinam; nada acrescentam de substantivo. Parece que acham que se vota com base em slogans feitos manchetes, insistentemente debitadas pelos media. Assim como um cosmético…

    Enfim, são hinos à superficialidade e à frivolidade; não são peças de informação nem de comentário: são peças de propaganda. Têm todo o direito de fazer propaganda por quem quiserem; mas então assumam essa agenda. Em suma, o tema dos militares na política é irrelevante. A questão substantiva é: este militar está a fazer política e campanha política no ativo, violando os deveres militares; os órgãos de soberania fazem de conta que nada se passa; este militar não tem as virtudes que os media lhe atribuem, nem está isento de graves condutas reprováveis no seu passado, apesar de a maioria dos media as evitarem; e este militar é um aspirante a caudilho. Já é tempo de alguém o dizer: Gouveia e Melo não serve para Presidente da República

    Jorge Silva Paulo é doutorado em Políticas Públicas


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  • Ambiente, clima e democracia: para onde caminhamos?

    Ambiente, clima e democracia: para onde caminhamos?


    O Plano Nacional de Energia e Clima 2030 (PNEC) atualizado, e em consulta pública até esta quinta-feira, 5 de 5etembro, é suposto ser o eixo da política energética e climática, em execução entre 2021 e 2030, para que Portugal se transforme numa “sociedade neutra em carbono”, sobretudo através da “redução das emissões de GEE e o compromisso da neutralidade climática até 2045, conforme preconizado pela Lei de Bases do Clima”. Para isso, 96% da energia produzida no sistema eletroprodutor português deverá ser de origem renovável, e dessa energia 40% terá de ser de origem eólica e 42% de origem solar.

    O Plano aponta oito Objetivos Nacionais (PNEC, pág. 35), de entre os quais destaco o Objetivo 8: “Garantir uma transição justa, equitativa, democrática e coesa”. Como activista ambiental, não tenho dúvidas em dizer que este objetivo está longe de ser implementado.

    path surrounded by green grass and trees

    São inúmeras as causas ambientais activas pelo país: SOS Quinta dos Ingleses, em Carcavelos; Dunas Livres, entre Tróia e Melides; Salvem os Sobreiros de Morgavel, em Sines; Minas Não, em Covas do Barroso; Contra a Ampliação da Mina de Alvarrões, na Serra da Estrela; Não às obras na Cascata do Tahiti e aos Painéis nas Barragens de Paradela e Samalonde, no Gerês, o nosso único Parque Nacional; ou Juntos pelo Divor em Évora – apenas para nomear algumas.

    Directamente envolvida ou a acompanhar o evoluir de algumas destas causas, a percepção é a de que, no geral, as populações que nelas participam, genuinamente interessadas e preocupadas, tanto com as questões ambientais como com o património paisagístico e cultural dos lugares onde vivem, não têm sido devidamente escutadas.

    Com demasiada frequência as questões remetidas por interpelação em consulta pública, em assembleia municipal ou de freguesia, por carta, por e-mail, por petição à Assembleia da República, por manifesto ou protesto público, acabam sem ser cabalmente respondidas, ou são mesmo simplesmente ignoradas. Algumas destas causas, entretanto levadas a tribunal, entram num impasse que pode levar anos a resolver, consumindo recursos e tempo de todas as partes envolvidas.

    Neste PNEC, pouco ou quase nada se refere à importância da conservação, regeneração e criação de espaços florestais e da Natureza, essenciais como sumidouros de carbono e de calor, áreas de biodiversidade e de conservação dos solos e aquíferos para prevenir tanto as secas, como as cheias. Como contraponto às ilhas de betão e actividade humana, dentro e fora dos centros urbanos, as florestas e outros espaços onde a natureza respira, tornaram-se fundamentais, como, aliás, se reconheceu recentemente na Lei do Restauro da Natureza, aprovada pela União Europeia, com o voto favorável de Portugal.

    green grass field near road during daytime

    Qual, então, o sentido de se destruírem ecossistemas existentes para se criarem parques de energia solar ou eólica?

    No âmbito do Objetivo 8, o PNEC indica, como linha de actuação, “promover plataformas de diálogo e debate permanentes e duradouras, à escala nacional e local, que envolvam os principais agentes dos vários setores, e que possam contribuir de forma ativa para a construção de uma política energética mais transparente, proactiva e inclusiva, que assegure o cumprimento das metas e compromissos nacionais em matéria de energia” (PNEC, pág. 138).

    Passemos à sua concretização efectiva. Para além das consultas públicas online, é essencial sentar à mesma mesa, para ouvir e dialogar de forma construtiva, compreender as razões de quem quer ser escutado, e tudo fazer para verter essa informação nas decisões que enformam e melhoram a gestão desses políticas e recursos. Por parte do Governo, Assembleia da República, autarquias, e demais instituições, sobretudo da área ambiental, como a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF).

    blue and white solar panel lot

    O artigo 48º da nossa Constituição consagra aos cidadãos o direito de participação na vida pública, nomeadamente “tomar parte na vida política e na direção dos assuntos públicos do país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos,” e “ser esclarecidos objetivamente sobre atos do Estado e demais entidades públicas e de ser informados pelo Governo e outras autoridades acerca da gestão dos assuntos públicos”.

    A democracia e a cidadania participativa só se tornam plenas se exercidas proactiva e regularmente, tanto pelos cidadãos como pelas instituições do Estado. O propósito não é mais do que encontrar as melhores decisões em favor do interesse público: desenvolver uma sociedade neutra em carbono, sem pôr em causa o desenvolvimento sustentável e a produção de energia mais limpa, nem os direitos a viver em ambiente sadio e à proteção do património local.

    Silvie Lai é activista ambiental e licenciada em Ciências da Comunicação e mestre em Estudos Europeus


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Marinha portuguesa: o Polígrafo engana

    Marinha portuguesa: o Polígrafo engana


    O Polígrafo afirmou que a Marinha portuguesa é a mais antiga do Mundo. Informei-o que não é verdade. O Polígrafo não reconheceu o erro, e o texto continua ativo. Este caso prova que os factos e o rigor metodológico são alheios ao Polígrafo e à sua editora-executiva, Salomé Leal, em concreto. O Polígrafo não tem credibilidade como fonte de informação.

    Vejamos toda a sequência de factos, pois é ainda mais eloquente do que o resumo.

    Em 9 de Setembro de 2022, Salomé Leal fez um “fact-check” (dizer “verificou uma afirmação” é popularucho…) sobre a afirmação, que circula na Internet, de que a nossa Marinha é a mais antiga do Mundo: “Marinha mais antiga do mundo tem 705 anos e é portuguesa”, destaca-se nas redes sociais – Poligrafo (sapo.pt).

    brown wooden ship on sea shore during daytime

    Foi a Armada (designação mais rigorosa do que “Marinha”) que, em 2017, pela primeira vez, o proclamou, sem ter nem apresentar qualquer fundamento sólido: Cerimónia de encerramento das Comemorações dos 700 anos da Marinha (youtube.com). A Armada tem continuado a fazer esta afirmação, e continua sem ter nem apresentar qualquer fundamento sólido: 707 anos de Marinha Portuguesa.

    Esta matéria atravessou-se na investigação que venho fazendo desde 2007 sobre as origens do órgão administrativo de capitão de porto e das autoridades marítimas em geral. Deste alargamento da minha investigação resultou um artigo, submetido em Setembro de 2023, à crítica de especialistas e ao processo de revisão por pares. Nesse artigo mostro que há várias marinhas de guerra na Europa mais antigas do que a portuguesa; e noto que em 1317 foi feito um contrato com um almirante genovês, Manuel Peçanha, e que esse contrato não criou um serviço público, só se estendia aos seus herdeiros, cuja linhagem acabou um século e meio mais tarde. Assim, desmenti e desminto as afirmações da Armada, e o “fact-check” do Polígrafo, da autoria de Salomé Leal.

    Em 03-Jul-2024, contactei o Polígrafo e Salomé Leal, notando que a Marinha não tinha sequer 700 anos, nem era a mais antiga do Mundo. Por isso, o “fact-check” estava errado, e devia ser removido, porque estava a enganar os leitores.

    Salomé Leal respondeu-me em 8 de Julho de 2024. Destaco quatro aspetos dessa resposta:

    • “[…] O seu argumento menciona marinhas como as de Génova e Castela, que já não existem como entidades em serviço contínuo, o que é fundamental para a narrativa que está a contestar. […]

    A condição “em serviço contínuo” não consta da afirmação verificada, nem da verificação. Foi adicionada na resposta para validar o “fact-check”. Não o valida, mas isso é irrelevante neste contexto: adicionar condições depois do texto publicado revela falta de seriedade intelectual (pelo menos). Acrescento que, por exemplo, a marinha de Castela foi a base estruturante da marinha de Espanha, pelo que mesmo a condição adicionada não desfazia o erro substantivo e formal de Salomé Leal.

    • “[…] A nossa posição baseia-se em fontes amplamente reconhecidas, como o US Naval Institute e o Civil Services Examination (CSE) do Union Public Service Commission (UPSC), entre outras. Estas fontes, consideradas oficiais e respeitáveis, apoiam a tese de que a Marinha Portuguesa é a mais antiga em serviço contínuo. […]”

    As fontes que podem infirmar ou confirmar eventos históricos são os historiadores, através dos seus trabalhos publicados e sujeitos a revisão pelos pares. As organizações que Salomé Leal refere (no “fact-check” refere mais duas) não produziram investigação própria (e não deixam de ser responsáveis por isso; só não são referências na matéria); cingem-se a ecoar o que a Armada portuguesa afirmou e difundiu em 2017. Um evento histórico não se verifica por alguém, ou alguma organização, apoiar teses. Mais: uma investigação intelectualmente honesta busca divergências; e se há várias versões sobre um evento histórico, ele não se pode considerar um facto provado.

    • “[…] Repare que a sua abordagem é tão válida como qualquer outra. […]” Salomé Leal não percebe que um trabalho académico, sujeito a revisão por pares, não é uma abordagem equivalente a encontrar quem ecoa uma posição, não procurar quem a contrarie, e daí concluir que ela é verdadeira. A única coisa que Salomé Leal fez foi encontrar eco a uma posição; não apurou os factos nem se a afirmação era verdadeira. Isso dá mais trabalho, a que a senhora obviamente se quis poupar; mas sem a humildade que deve nortear quem busca os factos com rigor e seriedade.
    • “[…] assume que não há estudos amplamente aceites que possam desacreditar a narrativa de que a Marinha Portuguesa é, efetivamente, a mais antiga em serviço contínuo. […]” Esta afirmação é falsa: eu afirmei exatamente o contrário no meu estudo. A falta de rigor e de seriedade intelectual de Salomé Leal é chocante; mas mentir, voluntariamente ou por leitura enviesada, é repugnante.

    O Polígrafo anuncia que consulta “fontes de natureza documental que possam solidificar o processo de checagem”, conforme se pode let em O nosso método – Poligrafo. Admitamos que o texto quer dizer o que parece, embora esteja longe de ser claro e rigoroso. Este método é inadequado para avaliar eventos históricos. Para tratar deste tipo de eventos, não basta uma consulta; é necessário estudar e comparar, porque só é adequado o fundamento em fontes documentais acreditadas por especialistas (em geral, historiadores) através de estudos em publicações especializadas e com revisão por pares. E para fazer uma afirmação definitiva, como “a mais antiga”, não pode haver posições divergentes, ou dúvidas fundamentadas. Portanto, o método do Polígrafo é inadequado para o “fact-check” em causa; e por isso, errou a conclusão. Expliquei isto mesmo a Salomé Leal.

    Pior do que um método inadequado é que Salomé Leal e o Polígrafo não foram capazes de reconhecer o erro, e atuar em conformidade, como resulta de o texto em causa (ainda) estar ativo no mural do Polígrafo.

    E, como se fosse pouco, Salomé Leal recorreu a desculpas infantis para evitar reconhecer o seu erro, e que nada mais fizeram do que exibir com arrogância a sua ignorância sobre apuramento de factos. Este ponto é especialmente grave, pois informa-nos que se licenciou em Comunicação. Se erra os factos, não reconhece o erro, e ainda se desculpa infantilmente, não está a informar.

    Uma vez que Salomé Leal é a autora de vários “fact-checks”, e é editora-executiva do Polígrafo, está demonstrada a total falta de credibilidade do Polígrafo: não sei o que visa ou faz; mas sei que não informa e até engana, e nem reconhece os erros.

    Jorge Silva Paulo é doutorado em Políticas Públicas


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  • Que Camões nos proteja!

    Que Camões nos proteja!

    Informa-me um amigo português que um jornal daquela terra de navegadores [o Diário de Notícias] vai publicar semanalmente uma edição em “português brasileiro” e que manterá um sítio no qual colocará, todos os dias, notícias de interesse da vasta parcela de brasileiros que por aí vivem.

    Num primeiro momento, leva-se um susto porque se trata de algo que soa estranho. Ou seja, uma empresa noticiosa se propõe a traduzir informações escritas, em tese, na mesma língua.

    Pouco depois, mais calmos, temos que admitir que são grandes as diferenças entre o português europeu e o linguajar brasílico.

    Christ Redeemer statue, Brazil

    A tradução em si já é um baita pepino. Ao se referirem à quase impossibilidade de verter um texto de uma língua a outra sem que se perca parte do sentido original, sentenciam os inventores da pizza: traduttore, traditore.

    Como seria a coisa entre “dois” idiomas que têm o mesmo nome?

    Vamos por partes, como diria o esquartejador no matadouro.

    Imagino que os dirigentes do jornal certamente fizeram estudos sobre a viabilidade dessa empreitada. Torço para que sejam bem-sucedidos!

    Ocorre-me, de início, que duas das nossas maiores diferenças linguísticas vêm do futebol: a divisão entre “adeptos” e “torcedores” e entre “times” e “equipas”.

    Aliás, por falar no esporte bretão, dele vem grande parte do nosso atual intercâmbio: há incontáveis jogadores brasileiros por aí, enquanto por cá pululam os treinadores lusos.

    Nas vezes em que fui a Portugal costumava frequentar as bancas de revistas porque aqui, em Brasília, sumiram. Melhor dizendo: transformaram-se em lanchonetes.

    Por que ia às bancas? Porque gosto de ler jornais e, em Lisboa, podia comprar vários.

    Aqui os impressos estão virando raridade.

    Recentemente, num voo para o Rio de Janeiro, desfraldei um exemplar de O Globo. Na fila dos que entravam no avião, todas as pessoas com menos de trinta anos me olhavam intrigadas, perguntando-se: para que serve essa imensa bandeira (tabloides aqui são raros) de papel borrado?

    Voltando. Nas minhas passagens por Portugal, sempre pensei que deveria haver um sítio jornalístico para os nossos exilados em Lusitânia, que são multidão. Uns 5 por cento da população local, dizem. É muita gente!

    Na base do puro palpite, acho que esses nativos de Pindorama querem, antes de tudo, notícias da sua “terrinha”.

    Mas não será “terrinha” uma expressão privativa dos filhos do país do bacalhau?

    Os brasileiros também precisam muito de notícias sobre o país no qual vivem, em especial dos órgãos públicos aos quais precisam recorrer no seu dia-a-dia.

    Mas quem é o brasileiro que vive em Portugal?

    Quando por aí passei, pareceu-me que o grupo mais numeroso dos brazucas (assim são chamados aqui os que moram nos Estados Unidos) seria o daqueles que, com menor escolaridade, exercem funções mais modestas.

    Percebi que há também muitas pessoas com mais estudo, saídas da classe média, na maioria jovens, que se lançam como empreendedores ou profissionais liberais.

    Há, ainda, uma ala de pessoas de mais idade, quase sempre aposentadas aqui (seriam reformadas aí), que escolhem viver seus anos outonais sem os muitos sobressaltos das nossas maiores cidades.

    Posso imaginar, por fim, que há ricos também, embora as más línguas digam, por aqui, que esses, na maioria, preferem Miami, a Meca Mundial da Cafonice.

    Traduzo: cafonice é mau gosto extremo.

    Os conterrâneos que encontrei por aí elogiavam, antes de mais nada, o sentimento de segurança. Podiam, em Portugal, flanar pelas ruas, mesmo à noite, sem grandes preocupações.

    Eu também pensava o mesmo. Nos anos de 2016 e 2017, quando fui a Lisboa, sentia-me como se estivesse caminhando na minha cidade (Pelotas, 300 mil habitantes, muitíssimos luso-descendentes) no começo dos anos 1970.

    Retornando à edição brasílica do periódico lusitano: 600 mil pessoas formam um belo público-alvo, como diriam publicitários ou marqueteiros tupiniquins.

    Mas quem serão os tradutores? Tudo nos leva a crer que serão brasileiros conhecedores do idioma de Graciliano Ramos. Não sei se lusos, mesmo tendo residido por muitos anos no Brasil, conseguirão trocar o infinitivo pelo gerúndio.

    a large ornate ceiling with a stained glass window

    É missão dificílima.

    Ouvi alguém (um brasileiro, claro) dizer certa vez:

    – Sempre que leio um texto acadêmico rabiscado em português de Portugal tenho a impressão de estar enfrentando um trabalho escrito originalmente em finlandês e traduzido, depois, por um húngaro.

    Não chego a tanto, mas penso, sem ser íntimo de gramáticas e dicionários, que os imensos Machado de Assis e Eça de Queiroz escreviam em uma língua que parecia a mesma. Hoje, sinto que é considerável a diferença entre as duas escritas (no jornalismo, na literatura).

    Publicar, em Portugal, um jornal para os que nasceram na nação dos sambistas, além de ser uma árdua tarefa, certamente será uma grande diversão.

    Que Camões nos proteja!

    Lourenço Cazarré é um escritor brasileiro


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  • Sermão da Senhora Ursula aos portuenses

    Sermão da Senhora Ursula aos portuenses


    No dia 13 de junho de 1654, em São Luís do Maranhão, o padre António Vieira proferiu o Sermão de Santo António aos Peixes aos brasilienses. Era dia de Santo António, santo propiciador na busca de objetos perdidos, padroeiros pobres e dos oprimidos, dos casais e das grávidas. 

    Trezentos e setenta anos depois, no Porto, a Senhora Ursula van der Leyen proferiu um discurso aos portuenses. Era Dia de São Norberto, que foi bispo de Magdeburgo, germânico como a Senhora Ursula e padroeiro da Boémia. 

    Durante o seu discurso no Porto, a Senhora Ursula foi confrontada com um grupo de jovens manifestantes que protestavam contra o alegado financiamento, feito pela Comissão Europeia, do “genocídio em Gaza”. Recordemos que a Senhora Ursula é presidente da Comissão Europeia, pelo que aquele protesto, concorde-se ou não com o motivo e com a forma, não parece ser totalmente deslocado. Os jovens foram, obviamente, detidos pela polícia, assim se provando a lendária hospitalidade portuguesa.

    Claro que a Senhora Ursula não deixou o protesto passar incólume. E de pronto, dirigindo-se aos jovens que nesse momento estavam a ser arrastados pela Polícia, afirmou, num tom onde alguma pedagogia se mesclava com algum desdém, que, afinal, aqueles jovens tinham muita sorte, pois se estivessem na Rússia acabariam na prisão em dois minutos. E, sob os aplausos gerais das pessoas presentes no comício, bem como sob o perfume geral de incenso que a rodeava, a Senhora Ursula passou a sua mensagem contra a Rússia e contra os manifestantes.

    Há 370 anos, o padre Vieira disse em São Luís do Maranhão:

    «O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, outra corrupção?»

    Há dois dias, a Senhora Ursula disse no Porto:

    «Se vocês estivessem em Moscovo, estavam na prisão em dois minutos»

    Duas mensagens fortes, dois estilos. Qual delas permanecerá para a posteridade? É ousado fazer previsões.

    Todavia, ainda no contexto de uma -quiçá abusiva- comparação entre os dois discursos, persiste uma dúvida. O padre António Vieira fez o sermão num momento em que o Brasil-colónia se debatia com o problema da escravidão dos povos indígenas e os litígios daí decorrentes entre os colonos e alguns missionários.

    A Senhora Ursula fez o seu sermão sobre a Rússia aos portuenses, a propósito de quê? Por outras palavras, o que tem a Rússia a ver com aqueles jovens que protestavam contra a política da Comissão Europeia em relação à Palestina? Que se saiba, a Palestina não é a Rússia, são coisas e causas diferentes, pelo que o sermão da Senhora Ursula aos portuenses me parece tão a deslocado (ao contrário da manifestação) como se o padre António Vieira, no sermão em São Luís do Maranhão, reclamasse contra a expulsão dos parlamentares ingleses adversários por parte de Oliver Cromwell, ocorrida no mesmo ano.

    Talvez eu esteja a exagerar. Afinal, entre São Luís do Maranhão e Londres são 7.306 quilómetros, entre o Porto e Moscovo é cerca de metade. Por outro lado, a dita expulsão levada a cabo por Cromwell dos parlamentares desafetos, só ocorreu meses depois do sermão de Vieira, pelo que o bom padre nunca o poderia citar. Eis porque acho que, se calhar, estou mesmo a exagerar.

    Mas a minha dúvida persiste.

    Porquê referir tão enfaticamente a Rússia contra jovens que se manifestavam em relação à Palestina? Dizer que a questão da Rússia é uma das mais marcantes questões atuais, não me convence. Há outras questões atuais tão marcantes como essa. Imagine-se como nos soaria deslocado se a Senhora Ursula se virasse para os manifestantes e exclamasse:

    «Se vocês estivessem na Amazónia, estariam a arder em dois minutos»

    Ou:

    «Se vocês estivessem num icebergue do Pólo Norte estariam a derreter em dois minutos»

    Pois, de facto parece-me deslocado. Mas isso sou eu, pronto…

    Talvez haja outras explicações.

    Será que a Senhora Ursula, como muitos dos seus conterrâneos norte-europeus, persiste na ideia de que os povos do sul da Europa (os PIGS, como solidariamente lhes chamam) precisam de pedagogia político-financeira como de pão para a boca? É possível. Afinal, a tradição já vem de longe. Há uns aninhos, o Senhor ministro holandês Dijsselbloem afirmou que os povos do Sul gastam tudo em copos e mulheres. Note-se que não estou a criticar o Senhor ministro Dijsselbloem. Afinal, basta olhar para ele para perceber que aquilo é homem que nunca gastaria um euro numa coisa ou noutra.

    Apenas trago à colação esta frase do Senhor holandês (agora neerlandês) para que se compreenda essa recorrente preocupação norte-europeia em instruir-nos, o que até será louvável. Por isso, aqueles jovens que, no Porto, protestavam contra o que se passa em Gaza, precisavam de ouvir a Senhora Ursula, alemã, a educar-nos com o exemplo da Rússia.

    Se se pensar bem, até que o sermão da Senhora Ursula terá sido bem escolhido. A Rússia é tema presente, omnipresente, aliás, e está mesmo ali à mão de semear. Se a Senhora Ursula fosse buscar outras comparações históricas, talvez os jovens manifestantes não percebessem a alegoria e a atualidade. Imaginem que a germânica Senhora Ursula lhes bramava:

    «Se vocês estivessem no meu país no tempo em que os alemães seguiam cegamente Hitler, estariam num campo de concentração em dois minutos».

    Pois… Talvez os jovens não percebessem. Afinal, os portugueses são incultos, desorganizados, improdutivos e gastam tudo em copos e mulheres. Não somos organizados e poupados como a nação do Senhor Dijsselbloem, que, solidária, foi a nação estrangeira que mais voluntários deu às SS no tempo em que os alemães seguiam cegamente o senhor Hitler.

    Bem, talvez eu esteja a ver mal as coisas. Não seria a primeira vez, não será a última. E talvez esteja a fazer uma comparação tola entre o discurso da Senhora Ursula aos portuenses e o sermão do padre António Vieira aos maranhenses. E daí, talvez não. A presidência da Comissão Europeia tem alguma tradição piscícola. Afinal, o antecessor da Senhora Ursula não era também conhecido pelo cognome de “o cherne”? Mas, lá está, se calhar estou de novo a exagerar…

    Sérgio Luís de Carvalho é escritor e historiador


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  • Da pandemia: ‘Porque não tenho senhores e penso livremente’

    Da pandemia: ‘Porque não tenho senhores e penso livremente’


    Numa homenagem ao Professor Santana Castilho, ontem falecido, o PÁGINA UM publica um texto fundamental de cidadania, da sua autoria, lido num debate em 21 de Janeiro de 2021 sobre os efeitos sociais da pandemia. Foi escrito em pleno período de atropelos constitucionais, de promoção do medo e de perseguição a quem considerava que a gestão de uma crise sanitária não poderia ser feita (muito pelo contrário) com imposição de regras irracionais e mesmo erradas. A leitura deste texto, três anos depois, não é apenas um acto de respeito ao pensamento livre e independente de Santana Castilho, sobretudo na área que amava (a Educação); é algo que deve ser feito como uma reflexão para o presente e o futuro – é isso que nos ajuda a não permitir que se cometam os erros passados.

    O PÁGINA UM agradece à Cidadania XXI, e particularmente a António Jorge Nogueira, organizador das Tertúlias da Junqueira, onde este debate (e muitos outros) se realizou – que contou também com a participação de Raquel Varela e Jorge Torgal – a amabilidade pela cedência do texto integral de Santana Castilho.

    Decidi destacar a negrito as partes fundamentais, de leitura obrigatória, deste texto de Santana Castilho. Pequei por defeito; deveria ter destacado tudo!

    Pedro Almeida Vieira


    Desde que o Governo determinou a situação de alerta, o pânico foi alastrando e contagiando boa parte dos portugueses. Nesta onda de mata e esfola, cresceu o apoio a medidas mais drásticas e já vamos no nono estado de emergência. Porém, à democracia do medo (que tanto nos pode confrontar com o melhor como com o pior dos comportamentos cívicos), incentivada agora por muitos dos que foram imolando o SNS [Serviço Nacional de Saúde] no altar da austeridade, preferia a democracia da serenidade fundamentada e bem comunicada. 

    Cruzam-se decisões pouco fundamentadas com análises em cascata, criteriosas umas, simplesmente especulativas ou descuidadas outras, tudo contribuindo para a banalização do medo e escancarando portas a iniciativas, eventual e desnecessariamente atentatórias de responsabilidades partilhadas e de direitos e liberdades. Para dominar o contágio não chega a higiene sanitária. Precisamos, também, de higiene social, para simplesmente não enclausurarmos toda a vida.

    Com o medo de ficarmos contaminados ou a angústia de vermos adoecer familiares e amigos, esquecemos rápido o vírus da xenofobia desumana que se abateu sobre milhares de refugiados, que continuam a fugir da guerra e da fome, sem pão nem amor, vindos não importa donde. É em momentos como este que a solidariedade incondicional deve ser reiterada.

    Muitas doenças, evitáveis ou pelo menos substancialmente retardáveis por alteração de comportamentos ou estilos de vida, entram naquilo que aceitamos (erradamente) como determinismos do nosso existir. As mortes que provocam (porque dispersas no nosso desconhecimento da sua existência), numericamente bem mais significativas do que as que esta pandemia vai causar, não nos afligem como este confronto inesperado com a nossa fragilidade, para mais sujeito a uma mediatização, que tanto informa validamente, como agita o medo desnecessariamente.

    Na longa vida que já levo, não guardo memória de uma hecatombe assim. Nunca vi uma travagem da Economia tão generalizada e um pânico social tão ampliado. Por isso, aflige-me não sabermos quando acabará a prisão preventiva da sociedade inteira. Embora a atmosfera actual esteja dominada por uma certa ideologia comportamental, seja opressiva e reaja mal a opiniões sem máscara, afirmo que não teria parado a economia deste modo, muito menos teria alimentado o medo desta maneira.

    A opinião pública está hoje fortemente condicionada para aceitar um só ângulo de observação da pandemia. O receio deu lugar ao medo e o medo abriu a porta ao pânico, desproporcionado face a outras patologias e a outros males que assolam o mundo. As bolas de cristal foram substituídas por modelos matemáticos, que protagonizaram cenários em que, a breve trecho, teríamos mais infectados que população existente.

    O dilúvio noticioso sobre a covid-19 superou largamente a alienação de outras ondas mediáticas (futebol, incêndios, calamidades climáticas). Os noticiários são massacrantes e repetem ad nauseam quadros de desgraça. Perplexo, pergunto-me como é possível que equipas de reportagem, atropelando a privacidade e a dignidade mínima dos prostrados nos cuidados intensivos, filmem o que o decoro e a protecção de dados interdita.

    Dia após dia, os mais populares pivots das nossas televisões descodificam gráficos mágicos, com as antevisões dos penúltimos dias da humanidade. No fim dos noticiários asfixiantes, paramentam-se de sacerdotes da esperança e catequizam-nos com uma longa e poética homilia de boas condutas.

    Aos velhos foram aplicadas duas penas: aos que vivem em lares, a crueldade da solidão imposta; aos que lá não estão, a discriminação, como cidadãos de segunda. Não é aceitável que o Estado, que legalizou a eutanásia, decida retirar aos velhos o direito de continuarem a ver os filhos e os netos, se entenderem correr o risco.

    Considero isto uma infantilização dos velhos, uma interrupção da democracia, um paternalismo que dispenso, um desrespeito pelo direito ao “convívio familiar” e à “autonomia pessoal”, que a Constituição expressamente consigna (Artº 72º).

    Perante os números que documentam esta pandemia, o Mundo parece ter esquecido que morrem por ano 10 milhões com cancro. Que em 2018 morreram 200 mil crianças com tuberculose e 300 mil com malária.

    Vejo com enorme preocupação que se comece a falar em certificados de vacinação, escabrosa ideia que nos ofereceria mais uma repugnante divisão social: cidadãos puros, devidamente munidos de passaporte de sanidade, e párias impuros, sem direito ao novo papel selado. O que é que isto nos recorda?

    Santana Castilho lendo o seu texto na Tertúlia da Junqueira em 21 de Janeiro de 2021

    Em tempo de restrições como nunca tivemos depois de Abril, a liberdade é o valor maior que me apetece invocar, num país sob uma autofágica polarização: os que querem permanecer fechados, encurralados pelo pânico, e os que, embora reconhecendo a gravidade da situação, sacodem cabrestos e discriminações que julgavam afastadas.

    São livres os portugueses presos em lares miseráveis, que não percebem porque lhes desapareceram filhos e netos? Não é um défice de liberdade a falta de conhecimento para interpretar com serenidade o fenómeno que nos atormenta? São hoje livres os milhares de portugueses que ficaram ontem sem emprego? Os que já viviam na fronteira da sobrevivência e hoje desesperam, esses, são livres?

    Porque não tenho senhores e penso livremente, ouso perguntar ainda: será que um estado de emergência nove vezes repetido, com tão pequeno questionamento e tão generalizada aceitação, pode ser socialmente havido como um resquício da ditadura de que Abril nos livrou? Como aceitar, sem enorme perplexidade, os delatores que a covid-19 destapou? Antes, a PIDE zelava pela ordem que o Estado Novo determinava e a censura amordaçava-nos. Hoje há quem defenda certificados de imunidade e a georreferenciação das pessoas, enquanto, sofredores, resignados, confinados, de máscara posta, adoecemos mentalmente.

    Vão-me dizendo que as decisões políticas são tomadas depois de ouvir os especialistas. Mas há especialistas que não são ouvidos. Não são ouvidos os virologistas e os epidemiologistas que pensam a contrario sensu dos que são seguidos por Marcelo e Costa, muito menos são ouvidos outros especialistas, de outras áreas (psicólogos sociais e psiquiatras, por exemplo), que poderiam complementar o saber médico e epidemiológico e explicar as consequências do autêntico assédio moral que tem sido exercido sobre os mais velhos, ou a influência depressiva do massacre noticioso dos telejornais, sobre toda a população.

    Uma grande parte dos portugueses, resignada, deprimida pela campanha da promoção do medo a que foi submetida, parece querer aceitar em silêncio a limitação dos seus direitos. Vive-se, assim, numa cidadania apenas simbólica, tutelada pela polícia e pela Direcção-Geral da Saúde, que têm agora o monopólio do espaço público. Sente-se, assim, a opressão de uma espécie de religião do confinamento, que nos empurra, em rebanho, para a neurose colectiva.

    À salvação pelo grande confinamento e pela ditadura sanitária, opõe-se uma racionalidade ponderada para combater o vírus. Trata-se da dicotomia entre um risco de infecção e uma morte lenta, mas certa, por catástrofe económica, psíquica e social, sem precedentes.

    No que toca à escola, custa-me ver que se aceite tão facilmente trocar relações pessoais por relações digitais, admitindo que a profissionalidade docente possa prescindir do contacto social e da empatia humana. Como se um colectivo de pessoas pudesse ser substituído por um colectivo de computadores, sem perda de humanidade. Tecnólogos e tecnocratas não entendem que a interacção pedagógica exige presença. Professores e alunos sabem e sentem isso. Agora, mais que nunca, interiorizaram, certamente, que uma aula tem múltiplos papéis sociais, que nenhuma máquina substitui.

    O medo encerrou os parques infantis ao ar livre, castrando imbecilmente as crianças do direito de brincarem. As múltiplas proibições e obrigações, redefinidas hora-a-hora por catadupas de informações inúteis, incoerentes e contraditórias, são impostas pelas novas brigadas dos costumes sanitários, que despejam álcool-gel na inteligência dos cidadãos, enquanto o vírus comtempla o esplendor da desumanização que os humanos criaram.

    A continuarmos assim, não me surpreenderá que eu ainda viva para lutar contra vacinações obrigatórias, impostas a sociedades sem vontade própria e alimentadas por sistemas de ensino meramente utilitários.

    Vivemos numa sociedade desorientada entre a histeria e o desleixo, perdida no meio de um amontoado de pequenas razões incoerentes, governada por gente que pouco se importa com os danos que o medo impõe. A epifania da liberdade de Abril vai-se diluindo no seio de uma sociedade autoritária, onde, graças ao medo, os cidadãos trocam liberdade por segurança aparente e aceitam que se combata o vírus de pau na mão.

    As regras opressoras, o controlo dos direitos individuais, a vigilância intrusiva e os abusos do Estado, consentidos por uma cidadania enfraquecida, vão-nos aproximando de novos autoritarismos, com aparência de democracia. Basta que atentemos em acontecimentos recentes:

    – A PSP, diligente a responder à denúncia de um bufo anónimo, entrou na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, interrompeu uma aula e, à porta da sala escancarada para ventilação, multou um professor por, durante uma palestra de quatro horas e meia, ter retirado, por momentos, a máscara que usava.

    – A distopia Orwelliana do 1984 aportou à Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa em 2020, ano da graça do SARS-CoV-2, sob forma de vigilância omnipresente: coleiras identificadoras em todos os circulantes e seguranças a controlar e delatar quem infrinja as normas sanitárias. Um sistema por pontos sociais, à chinesa, pode levar os prevaricadores à presença do Grande Irmão, desde que não usem uma máscara limpa e seca no campus universitário.

    – Numa escola de Rio de Mouro, em Sintra, um aluno foi suspenso das aulas por ter partilhado o lanche com um colega que “tinha fome e não comia nada desde a manhã“.

    Vejo demasiadas escolas mais preocupadas com máscaras, medidas sanitárias e regras, que com aqueles que as têm de cumprir e fazer cumprir. Com as suas perdas emocionais. Com as suas ansiedades. Com o esmagamento dos padrões de vida democrática. Com o mal-estar colectivo. Afinal, com aquilo que uma escola deve ser e ensinar, particularmente num momento de retorno de múltiplos impulsos autoritários que, a propósito da “guerra” ao vírus, abrem caminho para o êxito de agendas indesejáveis. Gradualmente, o absurdo e a anormalidade vão sendo adoptados como o “novo normal”, por uma sociedade domesticada pelo medo e pela perda do senso comum.

    A hipocrisia abunda e enoja: festas com dezenas de jovens são apontadas como focos de contágio, enquanto de milhares de passageiros amontoados às horas de ponta nos meios de transporte se diz não haver indício de surtos; pune-se uma criança que partilha um sumo com colegas, mas celebra-se a singeleza do presidente da República, que divide com outra uma bola de Berlim; proíbem-se uns, inconstitucionalmente, de visitarem os seus mortos, quando outros, aos milhares e sem respeito pelas regras vigentes, se amontoaram em Portimão para ver a Fórmula 1 e foram abençoados pela engraçada Dra. Graça.

    Santana Castilho (2021)


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