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  • A ascensão e queda das revistas científicas e um caminho a seguir

    A ascensão e queda das revistas científicas e um caminho a seguir

    Resumo

    As revistas científicas têm tido um enorme impacto positivo no desenvolvimento da Ciência, mas, de certa forma, estão agora a dificultar, em vez de melhorar, o discurso científico aberto. Depois de analisar a História e os problemas actuais das revistas, propõe-se um novo modelo de publicação académica. Este modelo abraça o acesso livre e a revisão rigorosa pelos pares, recompensa os revisores pelo seu importante trabalho com honorários e reconhecimento público e permite que os cientistas publiquem a sua investigação de forma atempada e eficiente, sem desperdiçar o valioso tempo e recursos dos cientistas.

    O Nascimento das Revistas Científicas

    A imprensa revolucionou a comunicação científica no século XVI. Após alguns anos de reflexão e ponderação, ou talvez uma década ou duas, os cientistas publicaram um livro com os seus novos pensamentos, ideias e descobertas. Assim, surgiram os clássicos que lançaram as bases da Ciência moderna, como De Nova Stella de Tycho Brahe (1573),[1] Astronomia Nova de Johannes Kepler (1609),[2] Discours de la Méthode de René Decartes (1637),[3] Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica de Isaac Newton (1686)[4] e Systema Naturæ de Carl Linnaeus (1735).[5] Para uma comunicação mais rápida, os cientistas recorriam a cartas escritas à mão entre si.

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    Até publicarem um livro, o que exigia um esforço e recursos consideráveis, os cientistas só podiam comunicar com alguns amigos e colegas próximos. Isso não era eficiente. Foi assim que surgiu o jornal científico, uma invenção com profundo impacto no desenvolvimento da Ciência. O primeiro, Journal des Sҫavans (Jornal dos Eruditos), apareceu em França em 1665. Uma década mais tarde, este jornal publicou o cálculo da velocidade da luz efectuado por Ole Rømer.[6] A coisa mais rápida da natureza foi comunicada a uma velocidade anteriormente indisponível para os cientistas.

    Ao longo das centenas de anos seguintes, as revistas científicas tornaram-se cada vez mais importantes, ultrapassando os livros como principal meio de comunicação científica. À medida que os cientistas se especializavam, o mesmo acontecia com as revistas, com periódicos temáticos como Medical Essays and Observations (1733), Chemisches Journal (1778), Annalen der Physik (1799) e Public Health Reports (1878). As revistas impressas eram enviadas para cientistas e bibliotecas universitárias de todo o mundo e foi criada uma verdadeira comunidade científica internacional. Sem as revistas, a Ciência não se teria desenvolvido como se desenvolveu, e os primeiros editores e impressores de revistas são heróis desconhecidos do progresso científico.

    Editoras Comerciais

    Em meados do século XX, a edição académica sofreu uma viragem para pior. Começando com Robert Maxwell e a sua Pergamon Press, os editores comerciais compreenderam que a situação de monopólio na publicação científica podia ser muito lucrativa. Quando um artigo só é publicado numa revista, as grandes bibliotecas universitárias têm de assinar essa revista, por mais cara que seja, para garantir que os seus cientistas possam aceder a toda a literatura científica. Como Stephen Buranyi afirmou eloquentemente, “os bibliotecários estavam presos a uma série de milhares de pequenos monopólios (…) e tinham de os comprar a todos ao preço que os editores quisessem”.[7] Enquanto a maioria das revistas da sociedade tinha preços razoáveis, os editores comerciais tinham uma bonança. Um inquérito de 1992 sobre revistas na área da estatística mostrou que a maioria das revistas da sociedade cobrava às bibliotecas menos de 2 dólares por artigo de investigação científica, enquanto a revista comercial mais cara cobrava 44 dólares por artigo.[8] Na altura, isto era mais do que o preço médio de um livro académico por um único artigo de revista.

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    Desde então, a situação tem-se agravado cada vez mais. Sendo simultaneamente produtoras e consumidoras de artigos científicos, as universidades pagam uma enorme quantia de dinheiro por revistas que contêm artigos escritos e revistos por pares pelos seus próprios cientistas, que fornecem gratuitamente às revistas. Como resultado, as editoras de revistas científicas têm margens de lucro enormes, que chegam a quase 40%.[9] [10] Não é por acaso que George Monbiot chamou às editoras académicas “os capitalistas mais implacáveis do mundo ocidental”, que “fazem o Walmart parecer uma loja de esquina e Rupert Murdoch um socialista”.[11]

    Revistas Online e o Acesso Aberto

    A revolução seguinte na publicação académica começou em 1990, com a publicação da primeira revista exclusivamente online, Postmodern Culture. Com a Internet, deixou de haver necessidade de imprimir e distribuir cópias em papel.

    Um desenvolvimento muito positivo desta situação é o número crescente de revistas de acesso livre que qualquer pessoa pode ler gratuitamente, incluindo o público que paga a maior parte da investigação médica através dos seus impostos. Através de revistas de acesso livre e de serviços de arquivo académicos, como o arXiv e o medRxiv, e graças ao trabalho árduo de pioneiros do acesso livre como Ajit Varki, Paul Ginsparg, Peter Suber e Michael Eisen, cerca de metade de todos os artigos biomédicos são agora publicados sob alguma forma de modelo de acesso livre.[12] Desde 2008, os Institutos Nacionais de Saúde exigem que toda a investigação que financiam seja de acesso livre no prazo de um ano após a publicação e, em 2024, a diretora dos Institutos Nacionais de Saúde, Monica Bertagnolli, reforçou esta política exigindo que toda a investigação financiada por estes institutos seja de acesso livre imediatamente após a sua publicação.[13]

    Os Periódicos Como Substitutos Da Qualidade Dos Artigos

    O problema da publicação académica não se prende apenas com o custo e o acesso. Durante a maior parte da História, o que interessava era a importância e a qualidade do artigo científico e não a revista em que era publicado. Os cientistas não se preocupavam muito com o prestígio da revista, mas queriam chegar ao maior número possível de colegas cientistas, o que era melhor conseguido através de revistas com muitos subscritores. Este facto criou uma hierarquia entre as revistas. Um grande fluxo de submissões para revistas de grande circulação conduzia a elevadas taxas de rejeição, o que, por sua vez, as tornava mais prestigiadas para publicação.

    Ao contratar e promover cientistas, a leitura e avaliação de todos os documentos de todos os candidatos pode ser entediante e demorada. Para poupar tempo, o prestígio da revista em que os autores publicaram é por vezes utilizado como substituto da qualidade do artigo. Isto pode parecer estranho para quem não é cientista, mas, dependendo da área, todos os jovens cientistas sabem que a aceitação ou rejeição de um artigo de investigação pela Science, The Lancet, Econometrica ou Annals of Mathematics pode fazer ou destruir uma carreira. Isto “incentiva o carreirismo em detrimento da criatividade”.[14]

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    Como expressaram eloquentemente o antigo diretor dos Institutos Nacionais de Saúde, Harold Varmus, e colegas: “O valor inflacionado atribuído à publicação num pequeno número das chamadas revistas de ‘grande impacto’ pressionou os autores a apressarem-se a publicar, a cortar nos pormenores, a exagerar as suas descobertas e a exagerar a importância do seu trabalho. Estas práticas de publicação … estão a mudar a atmosfera em muitos laboratórios de forma perturbadora. Os recentes relatórios preocupantes sobre um número substancial de publicações de investigação cujos resultados não podem ser reproduzidos são provavelmente sintomas do actual ambiente de grande pressão para a investigação. Se, por desleixo, erro ou exagero, a comunidade científica perder a confiança do público na integridade do seu trabalho, não pode esperar manter o apoio do público à Ciência”.[15]

    Estas são palavras fortes mas importantes. Sem a confiança do público, a comunidade científica perderá o generoso apoio que recebe dos contribuintes e, se isso acontecer, a Ciência definhará e esmorecerá.

    O prestígio de uma revista nem sequer é um bom testemunho da qualidade dos artigos. Vejamos, por exemplo, a revista The Lancet. Publicada pela Elsevier, é considerada uma das cinco “revistas médicas de topo”. Sob a direção do seu actual editor, Richard Horton, a revista publicou um estudo que sugere falsamente que a vacina MMR pode causar autismo[16], levando a menos vacinações e a mais sarampo;[17] um artigo de “consenso” sobre a Covid que questiona a imunidade adquirida por infecção,[18] algo que conhecemos desde a Peste Ateniense em 430 AC;[19] e o agora infame artigo que afirma que a hipótese da fuga de informação do laboratório da Covid era uma teoria da conspiração racista.[20]

    Utilizando a terminologia estatística dos modelos de efeitos aleatórios, a variação dentro do jornal na qualidade dos artigos é maior do que a variação entre os jornais, o que torna o prestígio do jornal um mau substituto para a qualidade dos artigos.

    Revisão Pelos Pares e Avaliação Da Ciência

    A revisão por pares tem uma longa e rica história e é uma parte indispensável do discurso científico, como é evidente em muitas controvérsias e discussões científicas. A revisão científica pelos pares assume muitas formas, incluindo comentários publicados, citações positivas ou negativas e discussões em reuniões científicas. No século XX, as revistas iniciaram um sistema de revisão anónima e não publicada por pares. Imprimir e enviar revistas em papel era dispendioso, pelo que nem tudo podia ser publicado, e os editores começaram a utilizar revisores anónimos para ajudar a determinar o que aceitar ou rejeitar. Isto levou à estranha ideia, entre alguns cientistas, de que “investigação revista por pares” se tornou sinónimo de investigação publicada numa revista que utiliza um sistema anónimo de revisão por pares para determinar que Ciência deve ser publicada, ignorando as muitas formas tradicionais de revisão por pares aberta e não anónima.

    As universidades e outros institutos de investigação, bem como os financiadores da investigação, têm uma necessidade intrínseca de avaliar a Ciência e os cientistas que empregam e apoiam. Ao confiarem no prestígio das revistas em vez da qualidade dos artigos, subcontrataram partes da sua avaliação a pessoas desconhecidas, sem verem as revisões efectivas. Este sistema é propício a erros e utilizações incorrectas.

    Publicação Lenta e Pouco Eficiente

    O actual sistema de publicação académica é lento e desperdiça tempo valioso dos cientistas, que é mais bem empregue na investigação. A investigação de qualidade deve ser publicada o mais rapidamente possível para fazer avançar a Ciência. Mesmo artigos excelentes e importantes, como o ensaio aleatório DANMASK-19,[21] podem ser rejeitados três vezes enquanto os autores tentam publicá-los numa revista com o maior prestígio possível.[22] Isto não só atrasa a divulgação da Ciência. Além disso, exige o trabalho moroso de muitos cientistas que avaliam e revêem o mesmo artigo para diferentes revistas.

    Em comparação com a boa investigação, os manuscritos questionáveis requerem o esforço e o tempo de mais revisores, uma vez que têm mais probabilidades de serem rejeitados e submetidos de novo. Mesmo os manuscritos com falhas fatais acabam por ser aceites por alguma revista. Isto dá à investigação o selo de aprovação de ser publicada numa “revista com revisão por pares”, mas sem que os leitores tenham acesso a essas revisões críticas anteriores. Teria sido melhor se esses trabalhos de investigação com falhas tivessem sido publicados pela primeira revista juntamente com as revisões críticas, para que os leitores pudessem ter conhecimento dos problemas com os estudos?

    Dynamic illustration of Newton's Cradle showing motion and reflection concepts in physics.

    Embora não possamos impedir a publicação de má Ciência, o que é necessário é um discurso científico aberto, robusto e vivo. Essa é a única forma de procurar a verdade científica.

    Quatro Pilares Para Um Caminho a Seguir

    O que é que se pode fazer em relação a esta situação? A via a seguir pode assentar em quatro pilares:

    1. Acesso livre, para que os artigos científicos possam ser lidos por todos os cientistas e por qualquer pessoa do público.

    2. Revisões abertas pelos pares, que qualquer pessoa possa ler ao mesmo tempo que lê os artigos, assinadas pelo revisor.

    3. Recompensar os revisores com um honorário e reconhecimento público pelo seu trabalho criticamente importante.

    4. Eliminação do controlo dos artigos, permitindo que os cientistas de uma organização publiquem livremente todos os seus resultados de investigação de forma atempada e eficiente.

    Já existe movimento nestas direcções. O acesso livre é muito popular entre os cientistas e apreciado pelo público.

    Algumas revistas, como o British Medical Journal, a PLoS Medicine e a eLife, estão a utilizar a revisão por pares aberta para os artigos aceites, em alguns casos mantendo-a anónima ou tornando-a opcional.[23] [24] [25] Embora pouco utilizada, algumas revistas têm uma longa tradição de acompanhar alguns dos seus artigos de investigação com comentários e uma réplica do autor.

    Tem-se defendido que os revisores deveriam ser pagos,[26] mas esta ideia ainda não vingou.

    Os Procedimentos da Academia Nacional de Ciência(Proceedings of the National Academy of Science) costumavam ter um sistema em que os membros da academia eram incumbidos de publicar a sua investigação sem revisão por pares ou controlo de artigos, mas esse sistema foi abandonado a favor da revisão universal por pares.[27]

    Se as revistas científicas mudassem para um modelo de publicação baseado nos quatro pilares acima referidos, que impacto e vantagens teria isso para os leitores, cientistas que publicam, revisores, universidades e agências de financiamento?

    Vantagens Para os Leitores

    A vantagem do acesso livre para os leitores é óbvia, especialmente para o público, médicos e cientistas que não têm acesso a uma grande biblioteca universitária.  

    Igualmente importante, os leitores beneficiarão muito com a revisão aberta pelos pares, para que possam ler o que outros cientistas pensam sobre a investigação que estão a ler. Na década de 1990, a minha revista preferida era a Statistical Science do Instituto de Estatística Matemática. Juntamente com os artigos de investigação publicados, esta revista publica frequentemente comentários de outros cientistas e uma réplica do autor. Como jovem cientista, isso deu-me uma visão inestimável do processo de pensamento científico de cientistas mais seniores e experientes, incluindo muitos dos melhores estatísticos do mundo. A revisão aberta por pares poderia ter um efeito semelhante num conjunto muito mais vasto de artigos de investigação.

    A detailed close-up of various transparent laboratory glassware used in scientific experiments.

    A eliminação do “controlo de acesso” aos artigos pode também beneficiar os leitores, especialmente os não cientistas. Agora lêem um artigo revisto por pares sem saberem que foi rejeitado várias vezes por outras revistas e sem poderem ler as revisões que causaram a rejeição do artigo. Para os leitores, teria sido melhor se a primeira revista tivesse publicado o artigo com as críticas negativas originais. Ou seja, embora pareça contra-intuitivo, a eliminação do “gatekeeping” de artigos é especialmente importante para investigação fraca ou questionável, desde que seja acompanhada de uma revisão aberta por pares.

    O actual processo de revisão moroso é, obviamente, também prejudicial para os leitores. Isto é especialmente verdade numa área como a saúde pública, onde os surtos de doenças e outros problemas de saúde agudos necessitam de uma rápida compreensão e acção.

     Vantagens Para os Cientistas Que Publicam

    A publicação é muitas vezes um processo moroso e complicado para os cientistas, que gastam um tempo valioso que poderia ser utilizado para a investigação propriamente dita. Quando um manuscrito é rejeitado, tem de ser adaptado, formatado e enviado para a revista seguinte. Quando é aceite, podem ser necessárias várias revisões.

    Embora muitos comentários dos revisores conduzam a versões revistas melhoradas dos manuscritos, outros comentários são melhor e mais eficientemente tratados através de uma troca aberta de ideias com o revisor, utilizando a revisão por pares aberta. Além disso, quando há desacordos, os cientistas devem ter liberdade académica para expor os seus próprios pontos de vista sobre a sua investigação, enquanto os revisores devem ter liberdade académica para publicar a sua perspetiva divergente.

    Infelizmente, as revisões de alta qualidade não são universais e todos os cientistas já sentiram alguma frustração ao lidar com revisões. Com as revisões por pares assinadas e publicadas, são encorajadas as revisões ponderadas, honestas e de elevada qualidade, enquanto as revisões irreflectidas, apressadas, concisas e indelicadas são desencorajadas.

    Vantagens Para os Revisores

    Os discretos heróis da Ciência são os muitos cientistas anónimos que escrevem diligentemente revisões cuidadosas e perspicazes para um vasto número de artigos e revistas. Isto é feito por um sentido de dever e pelo seu amor à Ciência. Por este facto, os revisores merecem ser recompensados e reconhecidos. Embora possa não os compensar totalmente pelo tempo que levam a escrever uma excelente revisão por pares, os revisores de revistas merecem pelo menos um honorário nominal pelo seu importante trabalho, tal como os revisores de bolsas. Mais importante ainda, devem receber reconhecimento público pelas valiosas ideias e comentários que fornecem, através de revisões por pares abertas e assinadas que qualquer cientista pode ler e que podem acrescentar ao seu curriculum vitae.

    Vantagens Para as Universidades e Institutos de Investigação

    Com excelentes cientistas, a Academia de Saúde Pública quer que todos os seus membros publiquem toda a investigação que produzem. O mesmo deve acontecer com as universidades, os institutos de investigação e as agências governamentais de investigação. Caso contrário, não os deveriam ter contratado. Do ponto de vista do trabalhador, qual é então o objectivo do “gatekeeping” de artigos, quando este apenas atrasa o momento em que a investigação é divulgada?

    O único objectivo concebível é se o nome da revista for utilizado como um substituto para a qualidade do artigo. No entanto, deixar que a revista, ou o seu factor de impacto, determine a qualidade de um artigo de investigação individual não é muito científico. Para os empregadores, é mais sensato que os seus comités de promoção e contratação de professores determinem a qualidade através da avaliação de artigos de investigação reais. É claro que isto é feito frequentemente, utilizando alguma forma de revisão interna, mas poderia ser melhorado através de uma revisão externa aberta por pares. A prazo, as universidades poderão mesmo exigir que os seus docentes publiquem não só em revistas com revisão por pares, mas também em revistas abertas com revisão por pares.

    As bibliotecas universitárias gastam uma quantia excessiva em assinaturas de revistas científicas. Para além disso, pagam generosamente taxas de publicação a revistas de acesso livre para garantir que a investigação produzida possa ser lida por qualquer pessoa.  Uma utilização mais sensata destes fundos seria pagar revisões externas de alta qualidade da investigação que a universidade produz, e uma forma de o fazer é através de revistas de revisão por pares abertas.

    Vantagens Para as Agências de Financiamento

    As agências de financiamento devem querer que toda a investigação que financiam seja publicada, incluindo os chamados estudos negativos. Não importa qual das suas investigações financiadas é publicada em que revistas. O que importa é que seja publicada atempadamente, sem atrasos desnecessários, para que outros cientistas possam continuar a basear-se nela. Nesta perspectiva, é uma perda de tempo quando os manuscritos são rejeitados pelas chamadas revistas de topo antes de serem publicados.

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    A maioria das agências de financiamento permite que os cientistas utilizem o dinheiro das subvenções para pagar as taxas de publicação às revistas. Em comparação com os serviços de pré-impressão, como o medRxiv, o único valor acrescentado que estas revistas oferecem é a revisão por pares. Mas as agências de financiamento não podem ver as revisões pelas quais pagaram. A investigação foi um sucesso ou um fracasso? O que é que poderia ter sido feito melhor? Deverão os cientistas financiados receber mais dinheiro para fazer mais investigação? Devem continuar a financiar este tipo de trabalho ou concentrar-se noutras áreas de investigação? Com a revisão aberta por pares, as agências de financiamento terão uma avaliação externa da investigação que financiam.

    Prova de Conceito: Jornal da Academia de Saúde Pública

    Juntamente com um conselho editorial de renome de todo o mundo, a RealClear Foundation, uma organização sem fins lucrativos, está a liderar o desenvolvimento deste novo modelo de publicação. Está agora a lançar o Journal of the Academy of Public Health, de acesso livre e revisão aberta feita por pares, em que os revisores são pagos e reconhecidos pelo seu importante trabalho, e em que qualquer membro da Academia pode publicar rapidamente qualquer investigação na área da saúde pública sem controlo de artigos.

    Uma revista é apenas uma gota no oceano da publicação científica e não pode servir todos os cientistas de todas as áreas académicas. A esperança é que esta nova revista inspire o aparecimento de outras revistas semelhantes em toda a Ciência. As sociedades científicas, as universidades, os institutos de investigação e as agências de financiamento podem lançar novas revistas ou reestruturar as existentes para os seus membros, professores ou bolseiros. A esperança final é que todos os cientistas tenham pelo menos uma revista deste género à qual submeter os seus manuscritos, quer seja publicada pela sua universidade, instituto de investigação, agência de financiamento ou sociedade científica.

    Se está intrigado com esta exploração da publicação científica, por favor examine-a, reveja-a, replique-a, personalize-a e talvez até a desenvolva mais.

    Referências

    1. Brahe T, De nova et nullius aevi memoria prius visa stella, Hafniae Impressit Laurentius Benedicti, 1573.
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    3. Decartes R, Discours de la Méthode pour bien conduire sa raison, et chercher la vérité dans les sciences, L’imprimerie de Ian Maire, Leiden, 1637.
    4. Newton I, Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica, Imprimatur S. Pepys, Londres, 1687.
    5. Linnæi C, Systema naturæ, sive regna tria naturæ systematice proposita per classes, ordines, genera & species, Apud Theodorum Haak, Leiden, 1735.
    6. Rømer O, Démonstration tuchant le mouvement de la lumière trouvé. Journal des Sçavans, 233-236, 1676.
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    8. Kulldorff M, A Survey of Statistical Journals, Bulletin of the Institute of Mathematical Statistics, 21:399-407, 1992.
    9. Hagve M, The money behind academic publishing. Tidsskrifet, 17 de Agosto, 2020.
    10. Nicholson C, Elsevier parent reports 10% hike in profits for 2023. Research Professional News, 15 de Fevereiro de 2024.
    11.  Manbiot G, Academic publishers make Murdoch look like a socialist, The Guardian, 29 de Agosto de 2011.
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    13. Betagnolli M. NIH issues new policy to speed access to agency-funded research results, National Institutes of Health, 17 de Dezembro, 2024.
    14. Heckman JJ, Moktan S. Publishing and promotion in economics: The tyranny of the top five. Journal of Economic Literature, 58:419-70, 2020.
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    16.  Wakefield AJ, Murch SH, Anthony A, Linnell J, Casson DM, Malik M, Berelowitz M, Dhillon AP, Thomson MA, Harvey P, Valentine A. Ileal-lymphoid-nodular hyperplasia, non-specific colitis, and pervasive developmental disorder in children. The Lancet, 351:637-41, 1998. (retirado pela revista, 17 de Fevereiro de 2010)
    17. Gøtzsche P. Vaccines: Truth, Lies and Controversy. Skyhorse Publishing, 2021.
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    4. Bundgaard H, Bundgaard JS, Raaschou-Pedersen DET, von Buchwald C, Todsen T, Norsk JB, Pries-Heje MM, Vissing CR, Nielsen PB, Winsløw UC, Fogh K, Hasselbalch R, Kristensen JH, Ringgaard A, Porsborg Andersen M, Goecke NB, Trebbien R, Skovgaard K, Benfield T, Ullum H, Torp-Pedersen C, Iversen K. Eficácia da inclusão de uma recomendação de uso de máscara a outras medidas de saúde pública para prevenir a infecção por SARS-CoV-2 em utilizadores de máscaras dinamarqueses: um ensaio aleatório controlado. Anais de Medicina Interna, 174:335-343, 2021.
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    25. eLife, Publishing and peer review at eLife, https://elifesciences.org/about/peer-review, 2 de Fevereiro de 2025.
    26. Cheah PY, Piasecki J. Should peer reviewers be paid to review academic papers? The Lancet, 399:1601, 2022.
    27. Andersen JP, Horbach SP, Ross-Hellauer T. Through the secret gate: a study of member-contributed submissions in PNAS. Scientometrics, 129:5673-5687, 2024.

    Este artigo foi publicado originalmente, em inglês, no Journal of the Academy of Public Health, no dia 30 de Janeiro de 2025.

  • Os benefícios dos programas de vacinação contra a COVID-19 em crianças podem não superar os riscos

    Os benefícios dos programas de vacinação contra a COVID-19 em crianças podem não superar os riscos

    Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Acta Pædiatrica: nurturing the child, uma revista científica mensal com peer-review (revisão pelos pares), editada pela Wiley Online Library, sob o título The benefits of COVID-19 vaccination programmes for children may not outweigh the risks. O PÁGINA UM obteve autorização expressa do autor e da revista para a sua publicação integral. A tradução foi realizada por Pedro Almeida Vieira com revisão do autor.


    As vacinas salvaram milhões de vidas, e entre estas incluem-se as vacinas contra o coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2), que foram desenvolvidas em tempo recorde. Em Maio de 2021, a Food and Drug Administration [a entidade reguladora norte-americana dos medicamentos] e a Agência Europeia dos Medicamentos (EMA) autorizou o uso da vacina Comirnaty (Pfizer-BioNTech) para crianças entre os 12 e os 15 anos. Em 25 de Novembro de 2021, a EMA estendeu essa autorização para as crianças com idades entre os 5 e os 11 anos.

    A decisão de vacinar as crianças coloca muitos desafios, uma vez que a COVID-19 é uma doença muito mais ligeira nessa faixa etária, tornando o rácio de risco-benefício menos evidente.

    Primeira página do artigo original de Francisco Abecasis na revista científica Acta Pædiatrica: nurturing the child

    Relatos de eventos adversos graves logo após a introdução da vacina em larga escala foram documentados. A suspeita de que as vacinas de ácido ribonucleico mensageiro (RNA mensageiro) podem provocar miocardite e pericardite, especialmente em adolescentes e adultos jovens, foi logo confirmada por estudos clínicos correctamente desenhados.1,2

    quatro pontos-chave que necessitam de uma abordagem sobre a vacinação de crianças.

    O primeiro são os benefícios potenciais para as crianças. As vacinas foram desenvolvidas para prevenir a infecção por SARS-CoV-2, a COVID-19 grave e a mortalidade. Devemos avaliar a gravidade da doença em crianças para compreender os reais benefícios da vacinação. O risco de ser hospitalizado devido a COVID-19 grave é extremamente baixo em crianças. Um estudo inglês de âmbito nacional, que incluiu todas as crianças hospitalizadas com COVID-19 durante o primeiro ano da pandemia, mostrou que 229/251 (91%) dos internados em unidades de cuidados intensivos pediátricos (UCIPs) tinham condições subjacentes ou comorbilidades.3

    Esta situação ocorreu antes da disponibilidade de vacinas e quando a variante Alfa era dominante. Houve também 312 internamentos em UCIPs devidos a síndrome inflamatória multissistémica em crianças (MIS-C). Globalmente, hospitalizações em UCIPs relacionadas com COVID-19 ou MIS-C abrangeram 0,005% da população com idade pediátrica na Inglaterra, constituída por 12,02 milhões de pessoas.3

    Desde o início da pandemia, até Março de 2022, as crianças e adolescentes com menos de 20 anos que testaram positivo para SARS-CoV-2 representaram 0,1% do total de mortes relacionadas com a pandemia em países de rendimento elevado.

    Segundo a UNICEF, cerca de 75% das mortes de crianças e adolescentes até aos 19 anos ocorreu naqueles que tinham comorbilidades. O risco de miocardite, desenvolvida entre 1 e 28 dias após a infecção pelo SARS-CoV-2, foi avaliado por um estudo envolvendo mais de 3 milhões de participantes com idade mínima de 16 anos, tendo-se apurado um risco de 10 casos por milhão (com intervalo de confiança de 95% de 7-11) na população exposta abaixo dos 40 anos de idade.2

    Do nosso conhecimento, não existem dados que comprovem que as actuais vacinas previnem a miocardite associada à infecção por SARS-CoV-2. Os únicos dois casos de miocardite associados ao SARS-CoV-2 que observámos foram em adolescentes totalmente vacinados.

    Até agora, os dados sugerem que o principal risco associado à infecção por SARS-CoV-2 em crianças saudáveis ​​é a MIS-C. As vacinas podem evitar esta complicação?

    Francisco Abecasis, pediatra do Hospital de Santa Maria (Lisboa) e professor auxiliar convidado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

    Dois estudos demonstraram que a incidência de MIS-C foi cerca de 90% menor em crianças vacinadas do que em não-vacinadas.4,5 No entanto, é importante considerar o momento e o desenho dos estudos. Como esses estudos foram realizados imediatamente após a vacinação, esperava-se que o número de infecções por SARS-CoV-2 fosse muito menor no grupo vacinado.

    Embora esses resultados sejam promissores, a suposição de que a vacina previne a MIS-C deve ser avaliada comparando as taxas de MIS-C em crianças vacinadas e não-vacinadas que foram infectadas com SARS-CoV-2. Esses estudos também revelaram que sete crianças totalmente vacinadas desenvolveram MIS-C. 4,5 Estudos anteriores já tinham apontado que a MIS-C pode desenvolver-se em crianças vacinadas.

    Outro argumento potencial para vacinar crianças é a melhoria no impacte social e psicológico da pandemia. Como médicos, devemos lembrar que uma vacina é uma intervenção médica para prevenir uma doença e nunca deve ser usada para evitar restrições impostas pelas autoridades de saúde ou governamentais.

    O segundo ponto são os benefícios potenciais para terceiros. As vacinas têm sido usadas ​​para erradicar doenças através da imunidade de grupo e também foram usadas ​​para proteger membros da família ou indivíduos vulneráveis ​numa determinada comunidade.

    A imunidade de grupo ocorre quando uma grande parte da população desenvolve imunidade a uma doença, tornando improvável a sua disseminação de pessoa para pessoa, protegendo-se assim toda a comunidade, e não apenas os vacinados. A imunidade de grupo varia de doença para doença, dependendo do nível de infecciosidade. Deve-se salientar que a imunidade de grupo só é possível se os indivíduos imunes não forem infectados ou não transmitirem a doença.

    Sabemos agora que este não é o caso do SARS-CoV-2, e que tanto os indivíduos anteriormente infectados como os vacinados podem infectar-se e transmitir a doença, impossibilitando assim a imunidade de grupo. Apesar disso, o risco de infecção é menor após a vacinação, e a vacinação de uma criança pode ser justificada em casos específicos se, por exemplo, um membro da sua família tiver uma condição clínica que impeça a sua vacinação.

    Por outro lado, se todos os membros adultos de uma família estiverem totalmente vacinados, então há menos lógica em vacinar crianças para proteger os adultos vacinados.

    girl getting vaccine

    O terceiro ponto são os riscos potenciais associados às vacinas de mRNA. A principal preocupação de segurança com vacinas de mRNA é o risco de miocardite, que foi bem estabelecido em adolescentes que receberam a vacina SARS-CoV-2. 1,6

    Um estudo mostrou que este risco foi maior após a segunda dose, afectando 390 adolescentes do sexo masculino e 49 adolescentes do sexo feminino por milhão de segundas doses administradas.7

    A incidência reportada de miocardite foi menor em crianças com idade entre os 5 e os 11 anos, afetando 4,3 rapazes e 2,0 raparigas por milhão de doses administradas. Isto era ainda significativamente superior ao risco background de miocardite naquela faixa etária [risco de base ou incidência não-devida à exposição].

    Embora a maioria dos casos de miocardite pós-vacinal tenha sido leve, e os pacientes recuperaram, houve casos graves de choque cardiogénico e, pelo menos, cinco mortes relatadas, incluindo dois adolescentes e um jovem adulto de 22 anos.6,8 As complicações a médio e longo prazos da vacina permanecem desconhecidas, e pacientes com miocardite podem desenvolver cardiomiopatia dilatada, possivelmente anos mais tarde.

    Esses dados indicam que os riscos não são os mesmos para todas as crianças, e o risco da vacina pode superar os benefícios, especialmente para um adolescente saudável do sexo masculino.

    man in blue crew neck shirt wearing white face mask

    O quarto ponto diz respeito à variante Ómicron. Os estudos citados neste trabalho foram realizados antes do surgimento da variante Ómicron, que parece ter um curso de doença mais leve do que as anteriores variantes de preocupação.

    O rácio risco-benefício para a variante Ómicron parece apoiar a suspensão da vacinação em crianças, tendo em conta a possibilidade de evasão vacinal demonstrada por múltiplos estudos de neutralização de anticorpos.9

    Um artigo de Fevereiro de 2022 do Departamento de Saúde do Estado de Nova Iorque estudou a eficácia da vacina entre crianças antes e após o surgimento da Ómicron, tendo sido mostrada uma redução acentuada na eficácia da vacina contra essa nova variante de 66% para 51% nas crianças dos 12 aos 17 anos, e de 68% para 12% nas crianças dos 5 aos 11 anos. A eficácia da vacina contra a hospitalização também caiu de 85% para 73% e de 100% para 48% respectivamente.10

    Portugal tem a quarta maior taxa de vacinação do Mundo, com mais de 90% da sua população totalmente vacinada. Apesar disso, registou 1,25 milhões de novas infecções por SARS-CoV-2 em Janeiro de 2022, sendo os indivíduos vacinados a maioria desses casos.

    Estes quatro pontos-chave demonstram que a decisão de fornecer vacinação universal para evitar que crianças saudáveis ​​sejam infectadas com SARS-CoV-2 não é simples.

    four children standing on dirt during daytime

    A actual dominância mundial da variante Ómicron sugere que os benefícios podem não superar os riscos associados às vacinas de mRNA.

    Seria mais sensato recomendar que apenas crianças específicas sejam vacinadas, incluindo crianças com factores de risco que as tornam mais susceptíveis à COVID-19 grave e aquelas que estão em contacto próximo com familiares vulneráveis ​​que não podem ser vacinados.

    Quando tomamos decisões sobre vacinas durante a pandemia em curso, devemos lembrar que as crianças não são adultos pequenos e que temos a obrigação de primeiro não causar danos.

    Francisco Abecasis é pediatra na Unidade de Cuidados Intensivos no Hospital de Santa Maria (Lisboa) e professor auxiliar convidado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa


    Bibliografia

    1. Oster ME, Shay DK, Su JR, et al. Myocarditis cases reported after mRNA-based COVID-19 vaccination in the US From December 2020 to August 2021. JAMA. 2022;327(4):331-340. doi:10.1001/jama.2021.24110

    2. Patone M, Mei XW, Handunnetthi L, et al. Risks of myocarditis, pericarditis, and cardiac arrhythmias associated with COVID-19 vaccination or SARS-CoV-2 infection. Nat Med. 2021;28:410-422. doi:10.1038/s41591-021-01630-0

    3. Ward JL, Harwood R, Smith C, et al. Risk factors for PICU admission and death among children and young people hospitalized with COVID-19 and PIMS-TS in England during the first pandemic year. Nat Med. 2022;28(1):193-200. doi:10.1038/s41591-021-01627-9

    4. Zambrano LD, Newhams MM, Olson SM, et al. Effectiveness of BNT162b2 (Pfizer-BioNTech) mRNA vaccination against multisystem inflammatory syndrome in children among persons aged 12–18 Years — United States, July–December 2021. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2022;71(2):52-58. doi:10.15585/mmwr.mm7102e1

    5. Levy M, Recher M, Hubert H, et al. Multisystem inflammatory syndrome in children by COVID-19 vaccination status of adolescents in France. JAMA. 2022;327(3):281-282. doi:10.1136/bmj.n1087

    6. Mevorach D, Anis E, Cedar N, et al. Myocarditis after BNT162b2 mRNA vaccine against COVID-19 in Israel. N Engl J Med. 2021;385(23):2140-2149. doi:10.1056/NEJMoa2109730

    7. Li X, Lai FTT, Chua GT, et al. Myocarditis following COVID-19 BNT162b2 vaccination among adolescents in Hong Kong. JAMA Pediatr. Published online February 25, 2022. doi:10.1001/jamapediatrics.2022.0101. Online ahead of print.

    8. Gill JR, Tashjian R, Duncanson E. Autopsy histopathologic cardiac findings in two adolescents following the second COVID-19 vaccine dose. Arch Pathol Lab Med. Published online February 14, 2022. doi:10.5858/arpa.2021-0435-SA. Online ahead of print.

    9. Wolter N, Jassat W, Walaza S, et al. Early assessment of the clinical severity of the SARS-CoV-2 omicron variant in South Africa: a data linkage study. Lancet. 2022;399(10323):437-446. doi:10.1016/S0140-6736(22)00017-4

    10. Dorabawila V, Hoefer D, Bauer UE, Bassett MT, Lutterloh E, Rosenberg ES. Effectiveness of the BNT162b2 vaccine among children 5–11 and 12–17 years in New York after the emergence of the omicron variant. medRxiv. Published online February 28, 2022. doi:10.1101/2022.02.25.22271454. Online ahead of print.


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