Etiqueta: Opinião

  • Privacidade

    Privacidade

    Estou a fingir que a imagem não me importa. Como se fosse possível não investir nos meus olhos.

    Havia um encantamento nas passeatas de Nikon em punho. Alerta. Atenta. Amante de uma certa estética — ou de muitas horripilâncias.

    A imagem como um diálogo improvável que se tem com um certo universo. Um não ser preciso contracenar.

    Vieram depois defender mais os direitos das pessoas, proteger-lhes as imagens e as privacidades…

    Concerto dos Coldplay no Gillette Stadium, perto de Boston, nos Estados Unidos, no dia 17 de Julho de 2025. Foi neste concerto que se deu a polémica do casal filmado pela ‘kiss cam‘. / Foto: Coldplay | D.R.

    Não fotografarás!

    Não fotografarei…

    Não filmarás, também?

    Pode uma pessoa pagar um bilhete para se divertir publicamente e, pela captação e divulgação da sua imagem, ver a sua vida arruinada em segundos?

    Pode um jornalista brincar na rádio com o sucedido, dizendo que é pago para falar sobre escândalos, papagueando que nunca se deve fazer xixi fora do penico — porque a mentira tem perna curta?

    Posso eu pagar taxa de audiovisuais para ouvir isto?
    Pode a minha Nikon continuar sossegada num canto, por ser ela a malvada que capta e expõe a vida dos outros?

    Podem as pessoas ficar realmente humilhadas pelos condicionalismos sociais que lhes tiram a coragem de defender a sua liberdade de movimentos?

    Foto de um fã dos Coldplay tirada no agora famoso concerto ‘da kiss cam‘, no dia 17 de Julho. / Foto: Coldplay | D.R.

    E rimo-nos todos disto, moralizando e chacoteando?

    E falamos ainda da crise dos valores, do medo da supremacia das ideias de extrema-direita, sem sequer nos apercebermos de que são as pessoas comuns que dão força àquilo que dizem abominar?

    Que respeito é este pela privacidade, que se passeia em trajes de um carnaval demolidor — e que destrói, moralizando?

  • É o caráter, estúpido

    É o caráter, estúpido


    Em 29 de maio, Gouveia e Melo (GM) anunciou que é candidato a Presidente da República (PR). A apresentação da candidatura teve o modelo de “alocução às tropas em parada”: o tom e o semblante severos, o conteúdo do discurso, a aprovação dos aplausos, a audiência sob a direção do mestre de cerimónias, tudo sustentou a imagem de (mais) um D. Sebastião. E as “tropas”, “em parada” ou através dos media, arrebatadas, aclamaram o “Messias”. No fim, a encenação com jovens não dissipou o tom grisalho, e varonil, da audiência, nem a vanguarda de despeitados dos partidos e perdedores militantes (confirmada no dia seguinte).

    Ninguém se surpreendeu com o anúncio. A ideia foi lançada em 2021 numa TV, e os media, sobretudo o Diário de Notícias e as TVs (com muitas “sondagens”), alimentaram-na, dando-lhe palco mediático semanalmente ou mais. Os media garantiram-lhe a notoriedade nestes 4 anos, sem a qual o seu protagonismo na crise pandémica se teria diluído nas mentes das massas.

    A Procura

    A observação e a análise dos apoiantes de GM, nas redes sociais e por aí, tem valor sociológico e político: diz-me com quem andas e digo-te quem és, diz o povo com razão. Há procura pelo “diferente” (de quê?) e há uma elite de apoiantes, os elogiantes, que a corporiza. GM disse na alocução que foram os apoiantes que o convenceram – então não foi a vitória de Trump? Logo, não é independente deles, é a sua figura de proa, o que merece escrutínio. Disse que não depende de partidos; mas isso só é um trunfo se GM não se endividar face a particulares – quem paga os €2 milhões? As dívidas a partidos são mais transparentes.

    Pouco une os apoiantes de GM, mesmo entre os elogiantes. Há até quem diga votará em Pedro Passos Coelho (PPC), se este for candidato – ninguém explicou o que aproxima GM de PPC, exceto na vaga perceção que os coloca à direita… De resto, pouco mais dizem do que “Força Almirante!” ou “O Almirante vai ganhar!”. Mas destaco 3 pontos observados nos apoiantes:

    • cidadãs menos jovens que dizem que o acham bonito, e que dizem que votam nele;
    • “pôs em ordem” a vacinação contra o SARS-COV-2, logo vai ser um bom PR, porque só ele pode “pôr o país na ordem”, obrigando os partidos a fazer o que ele manda;
    • e, por ser militar, vai ser como Ramalho Eanes, uma referência de sisudez, de integridade e de autoridade, para ser diferente do atual PR.

    Registo, sem mais, a superficialidade da avaliação de algumas cidadãs.

    A ideia de que “pôs em ordem” a vacinação cai ante os factos. Primeiro, foi o próprio GM que, quando tomou posse (2021), afirmou que “Neste momento, em cada mil vacinas que foram administradas, há uma vacina que ainda não foi clarificado como é que decorreu”; isto é, a alegada “rebaldaria” seria inferior a 0,1%; e só terá atrasado por poucos dias o momento da injeção, pois havia doses para todos, e várias vezes (Portugal encomendou mais de 60 milhões de doses). Mas a taxa de desperdício até 2022 foi superior a 11% (Auditoria 13/2023 do Tribunal de Contas). Afinal, o desperdício ocorreu depois de Francisco Ramos deixar o cargo.

    Poucos sabem destes factos, porque a maioria dos editores e dos jornalistas escolheu não os escrutinar e noticiar e, muito menos, “martelar”. E muitos apoiantes de GM nem querem saber.

    Além disso, “fogem como o diabo foge da cruz” a explicar como é que GM, notado por uma função executiva e sem bagagem política, vai ser bom numa função não-executiva e na função mais política do regime. Só emitem juízos conclusivos à volta da “ordem”; e ataques ad hominem ao mensageiro, como se fosse este o candidato. (Devo notar que não sou candidato; não vou ser; e decido em quem votar quando estiver formado o boletim de voto.)

    Poucos elogiantes caem no ridículo de dizer que GM pode ser o “novo” Eanes. Os que imaginam que todos os militares são iguais acham que, por ser militar, GM tem as virtudes e a sisudez de Eanes. Ignoram a diversidade dos militares, que incluem António de Spínola, Vasco Lourenço, Santos Costa, Rosa Coutinho, Américo Tomás, Costa Gomes, Pereira Crespo, Vasco Gonçalves, Alpoim Calvão, Otelo Saraiva de Carvalho, Galvão de Melo, Mário Tomé, Kaúlza de Arriaga, Melo Antunes, e tantos outros.

    A fé em que GM imporá “a ordem” será abordada abaixo; parece ser decisiva para os apoiantes e aponta para o essencial: o caráter de GM.

    Realço a superficialidade – sim, a superficialidade – com que tantos cidadãos parecem escolher os políticos em que votam. E é inquietante: até pessoas diferenciadas, por vezes académicos respeitados, expressam posições superficiais, mesmo que não as publiquem.

    A ordem, o belicismo e o autoritarismo

    A imagem que as pessoas em geral têm de GM é consistente: autoritário. GM e os elogiantes tentam disfarçar, só por propaganda; mas sabem que esse é o maior trunfo para as massas de apoiantes, que têm fé de que GM vai “pôr o país na ordem”. GM alimenta essa imagem, às claras quando é espontâneo, e subtilmente quando está comprometido com o teleponto.

    Mas se GM assumir sem equívocos a narrativa da “ordem”, que os seus apoiantes desejam e na qual apostam, aliena os eleitores moderados do centrão e fica só com alguns “chateados” à direita. Por isso, dizem-lhe para “vestir pele de cordeiro”, e dizer coisas bem-sonantes como “serei um presidente que respeitará os partidos políticos […] assim como a separação de poderes, tendo sempre em mente que o PR não governa.” A sério? Como acreditar nisto?

    Para não alienar a sua base natural, tem de invocar a “ordem”. Este trecho (muito aplaudido) serve esse fim: “um presidente estável, confiável e atento, acima de disputas partidárias, longe das pressões e fiel ao povo que o elegeu”. São de realçar a palavra “acima” e a expressão “o povo que o elegeu”.

    Todos os PR estiveram acima de disputas partidárias; mas as palavras “acima” e, mais adiante, “árbitro” inspiram e animam quem busca a “ordem”. É nesta ideia de “ordem”, de mandar e dar ordens aos demais atores sociais e políticos (sobretudo, aos partidos), que a larga maioria de apoiantes se revê, e que se revela a personalidade autoritária de GM neste domínio.

    Neste contexto, é de destacar a sua afirmação belicista sobre distribuir injeções contra o SARS-COV-2: “Para mim isto é uma guerra.” GM concretizou esta ideia com o uso de uniforme militar camuflado durante aqueles 8 meses de 2021. (Que os órgãos de soberania tivessem aceite essa prática de um funcionário público numa função civil, é uma das bizarrias então vividas.)

    A ideia de “ordem”, tão apreciada pelos seus apoiantes, já tinha sido expressa numa entrevista em 2021, quando afirmou: “Este país eram anos para endireitar”.

    O colapso do processo disciplinar sobre militares do NRP Mondego, por decisão do Supremo Tribunal Administrativo, por violações graves da Constituição e da lei (2025), é mais uma prova de que GM se acha acima, também, das normas do Estado de Direito.

    Acresce a acusação pelo Tribunal de Contas de excesso de ajustes diretos (2024, referida a factos de 2017) a qual prova que se acha, e há muito, acima da lei.

    A sua ideia de o PR ser um árbitro – uma autoridade para mandar em todos os demais – não é compatível com a Constituição, que o PR jura e que está vinculado a cumprir e a defender.

    Estas posições negam a afirmação de GM na sua alocução, “Defendi a liberdade, a Constituição e os interesses de todos os portugueses.” Se defendesse a Constituição, não teria sido anulado aquele processo, justamente por violar a Constituição e a lei; nem acusado pelo Tribunal de Contas, por violar a lei; nem acusado por crime praticado em serviço em 2018 (GM retratou-se para evitar o julgamento, tão convencido estava de ser inocente…).

    Numa cerimónia do Dia de Portugal (2025), GM disse a um cidadão “Cale-se!”. Contra o autor, e para o “calar”, já promoveu três processos judiciais – com a ineficácia que se vê, e que deixa os apoiantes desconsolados. Se foi assim até agora, será mais suave com os poderes de PR?

    A vaidade e o narcisismo

    Curiosamente, nunca vi um/a apoiante de GM negar a sua vaidade e o seu narcisismo. O que é bizarro, já que estes apoiantes apontam esses defeitos a Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), e é um dos motivos que invocam para quererem um PR “diferente”.

    Ainda em 2021, GM disse que “Nós somos silence service, porque gostamos de prestar serviço de forma silenciosa. Não é pôr-mo-nos em bicos de pés que vai ajudar os portugueses”. Depois andou esse ano, e os seguintes, a exibir-se nas TVs, que o esperavam onde ele ia.

    Apostando na fraca memória das massas, GM disse em 2024 sobre a distribuição das injeções que “não era qualquer militar que fazia aquilo”. E em 2025 disse: “coordenei… quando Portugal mais precisava de organização, confiança e liderança”. Em 2021, GM sugeriu humildade; mas a sua vaidade prevaleceu. Objetivamente, é falso que tenha colocado ordem numa “rebaldaria”; pelo menos, o desperdício superou 11% em dois anos.

    Já algo parecido tinha ocorrido com a tragédia de Pedrógão/Castanheira/Figueiró (2017), em que no Relatório da Comissão Técnica Independente se diz sobre GM: “O aparecimento do Comandante Naval na área de operações, por exemplo, pode ter dado algum tipo de dividendos à Marinha Portuguesa do ponto de vista político mas é negativo para as Forças Armadas e para o CEMGFA.” Os elogios que António Costa fez a GM, e os cargos que ele e MRS lhe deram revelam bem quem usufruiu dos tais dividendos.

    A vaidade de GM vence sempre que não há teleponto, como estes dois exemplos confirmam:

    – “Os chefes militares eram mais do tipo Português Suave” (2024): reflete o desprezo que nutre pelo papel e pela discrição dos chefes militares no Estado de Direito Democrático;

    – e, numa clara alusão a MRS na sua alocução, “precisamos de um presidente diferente. Um presidente capaz de unir-nos, de motivar, de dar sentido à esperança, capaz de ser consciência e exemplo […] um presidente estável, confiável e atento,”. A deselegância só surpreende quem ignora como “atropelou” o seu antecessor no comando da Armada. Mas diferente é: nenhum PR chegou ao cargo acusado por vários tribunais.

    Unir os portugueses

    Nada no seu passado, nada mesmo, fundamenta a ideia de que vai unir os portugueses. Até no seu curso de oficiais da Escola Naval, por se meter em questões pessoais a que era alheio, GM criou divisões entre camaradas, com consequências muito nefastas.

    Sem qualquer legitimidade, ou saber para tal, GM demonizou quem levantava dúvidas legítimas durante a crise pandémica, por exemplo, com esta afirmação: “Todos os malucos que acham que o vírus não faz mal” são também “inimigos””. E noutra ocasião afirmou, “Faço o que tiver de fazer e sou impiedoso com os malandros” – e é ele que decide quem são os “malandros”…

    Pior: em 2021, pressionou a imposição da inoculação das crianças contra o SARS-COV-2, sem que tivesse qualquer competência técnica na matéria que o habilitasse a opinar, e menos a pressionar, quando já se sabia que as crianças pouco ou nada eram afetadas pelo vírus.

    A expressão “um presidente […] fiel ao povo que o elegeu” merece ser analisada: nem sequer ambiciona ser o PR de todos os portugueses, mas só de quem votar nele. Quiçá não queriam que tivesse dito isto; mas foi isto que disse.

    Claro que “o povo” tinha de vir na alocução, pois é uma enzima emocional crucial nas narrativas populistas – de quem exige aos partidos que apresentem “propostas, sem demagogias”…

    O caráter de GM

    Um traço de personalidade que muitos apreciamos, pelo valor moral que tem, é a consistência, e mais quando os custos superam os benefícios. Neste âmbito, importa rever algumas posições e declarações de GM ao longo de 3 anos:

    – “Não sinto necessidade de dar [o meu contributo] enquanto político, primeiro porque não estou preparado para isso, acho que daria um péssimo político e também acho que devemos separar o que é militar do que é político, porque são campos de actuação completamente diferentes”;

    – “Os militares devem fazer o que sabem fazer, que é ser militar e os políticos fazem o que sabem fazer, que é ser políticos (…) nós vivemos numa democracia estável, não devemos confundir as coisas”;

    – “Não gosto que me imiscuam na área política. Sou militar e não tenho intenção no futuro de me candidatar a nada. Isto é um não. Quando eu digo não é não“;

    “Se isso acontecer, dêem-me uma corda para me enforcar”;

    “Quando eu digo não é não.”

    Há mais: em 2024, num dia defendeu a conscrição; na semana seguinte, recuou.

    GM também disse na alocução que o PR não governa. Mas há 3 meses indicou um programa de Governo, vago e bem-sonante, do estilo “Miss Universo”; e na alocução repetiu sons no mesmo estilo, embora com as palavras “acima” e “árbitro” pelo meio: “Precisamos de uma economia centrada nas pessoas, mais forte, mais competitiva, mais produtiva”; “Também precisamos de reformar a Administração Pública e a Justiça. […]  De olhar para as ilhas, para o interior e para a diáspora. Importa garantir saúde a todos, em tempo e qualidade”; e “Encontrar soluções para a habitação”. Nunca disse que ia ajudar o Governo a conduzir a política geral do país, nem a concretizar as políticas públicas – mas é isso que cabe nas competências do PR.

    Muito notadas foram ainda as declarações contraditórias, com intervalo de dias:

    – em 12 de Março, uma fonte próxima e não desmentida por GM afirmou que o “almirante Gouveia e Melo apresentará a candidatura logo após as legislativas”, e que “não quer interferir nem perturbar as eleições legislativas”;

    – em 14 de Maio, 4 dias antes das eleições, afirmou que “A minha decisão é avançar”;

    – em 15 de Maio, foi noticiado: “Gouveia e Melo arrependido de anúncio de candidatura”.

    Muitos apoiantes de GM criticam os políticos, por estes dizerem uma coisa e fazerem outra. Por isso, também, querem um PR “diferente”. Todavia, os mesmos toleram, justificam e alguns até aplaudem as contradições de GM. Talvez saibam que para chegar ao poder tem de dizer coisas para agradar ao centrão; já no poder pode fazer outra, como mandar nos partidos e agradar ao “povo que o elegeu”. Vale tudo para alcançar o poder? Em que atos e factos mostrou GM ser diferente dos maus políticos?

    Com estes factos da sua conduta no passado, como saber se GM vai cumprir amanhã o que diz hoje? Como confiar em GM, se ele muda de posição ao sabor do “vento”? Como pode GM unir algum grupo, sem ser pela imposição, senão mesmo pela coação?

    Usualmente, o caráter é um critério de avaliação para qualquer cargo. E é crucial para avaliar um candidato a um órgão unipessoal, político e não-executivo, com uma apreciável margem de apreciação dos factos, a qual depende diretamente do caráter e da experiência de vida.

    Por isso, é preocupante o receio evidente de editores e jornalistas em escrutinarem o passado de GM, e em analisarem a sua conduta e o seu caráter. Só querem saber do que GM diz agora; quiçá para apagar a vaidade e a espontaneidade que prevalecem sem teleponto, e que diferem da versão oficial.

    De facto, a imagem generalizada entre os portugueses, de pessoa autoritária e vaidosa, assenta justamente em avaliações de caráter, baseadas na observação da conduta de GM. Os apoiantes desejam o autoritarismo de GM. Até por isso, o caráter de GM é um elemento nuclear da sua candidatura, e é bizarro que jornalistas e editores, sempre tão ágeis a esmiuçar o passado de tantos outros, fujam a observar e a escrutinar todo o passado e o caráter de GM.

    Jorge Silva Paulo é doutorado em Políticas Públicas


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A vaidade e as dívidas de Gouveia e Melo

    A vaidade e as dívidas de Gouveia e Melo


    Como é evidente para quem o conhece há décadas, e apesar da recomendação de vários dos seus apoiantes, Gouveia e Melo (GM), não consegue manter-se “em silêncio” e fora do palco mediático: “Não me sinto obrigado a ficar calado”. Já previ (por exemplo, aqui e aqui) que a vaidade de GM o leva a buscar promoção mediática. E não faltam comentadores, jornalistas e editores que lha dão, sem escrutínio, e sem ser claro se estão a informar ou a manipular.

    É curioso que muitos dos que dizem apoiar GM, por estarem fartos da vaidade e do excesso de mediatismo de Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), que entendem nefastos num Presidente da República (PR), desconsideram, e chegam a negar, o que está à vista: mediatismo e exposição de vaidade desde 2021 (mas sem afeto), como nunca ocorreram, pelo menos, com um chefe militar, que nem se destacou em feitos militares.

    Depois da “entrada em falso” de dois destacados maçons na campanha de apoio a GM, que este afastou despudoradamente, e da declaração de apoio de Ângelo Correia, revelou-se a elite de apoiantes; e GM vai andando “por aí”, expondo-se aos media sempre à sua espera. Por isso, não admira que seja destacado em sondagens com baixas taxas de resposta

    Enquanto GM falou das matérias em que estava profissionalmente envolvido, ainda que só por vaidade ou até quando exorbitou funções (como na incompetente insistência na vacinação de crianças contra o SARS-COV-2; ou no combate ao tráfico de droga, competência exclusiva da Polícia Judiciária, como tem sido assinalado e explicado), só os especialistas estavam equipados para perceber que GM projetava uma imagem diferente da substância e da realidade. Mas, este ano, GM já se pôs a fazer declarações políticas gerais, e cada vez mais pessoas percebem que “o rei vai nu”. Daí os apoiantes sentirem necessidade de vir aos media ditar as interpretações “autênticas” – para evitarem que fujam as massas do centrão?

    Não pode surpreender que alguém que passou 45 anos na vida militar, mesmo que há dois ou três a intervir na política, diga “generalidades e culatras”, ou tenha um discurso inconsequente com o cargo político que ambiciona – ou que foi convencido a ambicionar?

    É improvável que aprenda num ano o espírito e a letra das normas jurídicas que definem e regulam o regime na Constituição (CRP), com todas as suas subtilezas, e que saiba interpretá-las bem. Mesmo com bons assessores é duvidoso que seja capaz de dialogar com eles sobre os casos que surgirão; por isso, ficará totalmente dependente deles no exercício do cargo.

    Este ponto não é menor: GM recusou várias vezes entrar na vida política; obviamente, mudou. As declarações da elite de apoiantes tornam legítimo acreditar que foram eles a fazê-lo mudar. Esta mudança de posição mostra (a quem não sabe) que as convicções de GM se desfazem ante a bajulação e o “cheiro” a poder. Como tantos fracos políticos…

    É muito difícil aprender as normas jurídicas e a política do cargo de PR em poucos meses. É muito mais fácil aprender, e debitar, chavões bem-sonantes sobre governação; é o que mais importa às massas de eleitores (incluindo muitos diferenciados), situadas ao centro, onde se conquistam as vitórias eleitorais (o centrão).

    E, usando a imagem construída ao longo de 4 anos nos media, em especial em sondagens sem valor político ou sociológico, apostará que as massas não percebem que, afinal, é um político como aqueles que elas menosprezam: quer o poder, pouco sabe, pouco diz de concreto, diz o que mais jeito lhe dá em cada instante, mas entusiasma com banalidades bem-sonantes; e está longe das virtudes atribuídas na propaganda mediática. Isto é, GM nada traz de novo na substância; só pratica a demagogia que diz rejeitar noutros e oferece uma imagem que deixa os mais superficiais impressionados.

    Para ganhar eleições, explicar-lhe-ão, tem de tornar-se um político convencional, tentando não o parecer; e isso é o que, disfarçadamente e com desvios ao “argumento”, GM vem fazendo:

    – assumiu uma conduta belicista quando distribuiu as vacinas, mesmo depois de já estar fora das funções, e explicitamente autoritária no Caso Mondego (contrariando o princípio básico da disciplina militar de elogiar em público e repreender em privado; e repreendendo a guarnição publicamente por inteiro e sem processo prévio); agora, dá-lhe jeito afastar-se do autoritarismo e do radicalismo que foi a sua “imagem de marca” na Armada durante décadas;

    – depois de negar interesse em intervir na vida política, admitiu interesse em cargos políticos (PR e ministro do mar), voltou a negar, e agora diz que “é para servir o país”; com tantas opções para servir o país (voluntariado nos hospitais, recolher lixo no mar, limpar florestas…) tem logo de ser no cargo com mais mediatismo, mais mordomias e mais benesses?

    defendeu a conscrição; depois, como isso lhe prejudicou a popularidade, recuou.

    A condecoração, com muito duvidosa legalidade, de um seu destacado apoiante, ou o uso que fez de recursos do Estado para se autopromover, indiciam o modo como GM encara o Estado e o Direito. Por isso, não me surpreende que GM diga que se deve falar de programas e não de pessoas: soa bem; mas sobretudo visa afastar o escrutínio da sua própria conduta, a qual diz muito sobre o seu caráter, e não auspicia nada de bom se exercer um cargo político, como já defendi. E os media, com raras exceções, evitam fazer esse escrutínio, como é seu dever.

    Embarque no submarino Arpão

    Todavia, o passado é o melhor indicador ao dispor dos eleitores para anteverem como se vai comportar o titular de um órgão unipessoal. É muito elucidativo ver que os seus apoiantes “fogem como o diabo foge da cruz” a falar do passado de GM, exceto quanto à distribuição de vacinas – como se fosse só obra dele, “hipnotizados” pela sua abundante exposição mediática, e os demais intervenientes, sobretudo o Kaizen Institute, são ignorados ou menorizados…

    Merece atenção o aglomerado de pessoas que revelaram o seu apoio a GM: chamo-lhes “os despeitados dos partidos”, sobretudo do PSD, porque parece que apoiam GM não pelo que ele vale (com a sua mundividência, perceberão que vale pouco para PR), mas pelo dano que pensarão causar aos seus partidos por estes não lhes darem o que eles acharão que merecem. Recentes declarações de Ângelo Correia e Isaltino Morais dão razão a quem defende que a recente campanha contra Luís Montenegro surgiu por vários tipos de despeito, e foi agravada pela recusa em apoiar GM para PR – que os “despeitados” do PSD não lhe perdoarão.

    Esta conclusão firmou-se com o elogio da superficialidade, expresso por Alberto João Jardim: disse que numa conversa de menos de duas horas concluiu que “Gouveia e Melo […] é um homem mais capaz, porque ele tem capacidade político-cultural, que eu lhe reconheço, para ser o impulsionador de grandes mudanças em Portugal, no pleno respeito da Constituição da República.” Ele quer mesmo que alguém vivido, ou prudente, acredite nisto? Como pode dizer “no pleno respeito da Constituição” sobre alguém que humilhou a guarnição de um navio da Armada perante os media, chamados para exibir em direto e registar o “raspanete”? E como pode alguém que foi uma das caras da “partidocracia” em Portugal insurgir-se contra ela?

    Impressionou-me também a superficialidade da constitucionalista Teresa Violante, sobretudo nos aspetos que realçou em recente entrevista:

    – Reduziu a revisão constitucional de 1982 às opções sobre o Tribunal Constitucional, e desvalorizou a opção política de fundo, de corte com um passado de quase dois séculos de presença militar na política e na segurança interna, que incluiu a eliminação do conceito de “inimigo interno”. Teresa Violante achará que isso foi só um ataque ao então PR militar, e não um contributo decisivo para valorizar qualquer democracia? Achará GM parecido com Eanes?

    – Não percebo como uma constitucionalista, que nota, e bem, o papel de moderador do PR na CRP e no regime, pode achar que as qualidades de liderança de GM (?) são uma vantagem para PR – liderar o quê? E depois nota que é o Governo que conduz a política do país…

    – Tratou de interpretar afirmações de GM sobre a dissolução do parlamento no sentido dos desejos dela; mas os termos vagos em que GM expressou a sua opinião, no estilo populista de seduzir eleitores descontentes e superficiais, não devia causar a maior preocupação, sobretudo a uma constitucionalista?

    – Como Alberto João Jardim, Teresa Violante acha que uns contactos na “guerra do croquete” lhe permitem valorizar o seu conhecimento pessoal, menosprezando o passado de GM. Pelo menos valida o conhecimento pessoal – e espero que seja consequente e reconheça que quem o conhecer mais saberá melhor do que ela quem é de facto GM.

    – Teresa Violante disse ter simpatia por um PR que não venha dos partidos. Não explicou e não consegui perceber: os partidos, e os cargos no Governo, são a melhor base de formação e de experiência política; e muito raramente alguém ganha sem partidos (MRS, o único candidato a consegui-lo, de facto, tinha uma enorme experiência política e partidária, e “esmagou” o seu principal concorrente notando a sua falta de currículo político). Claro que cada caso é um caso; mas esta rejeição prévia sugere um preconceito – ou um despeito…

    A associação “espontânea” até já ostenta uma fotografia profissional de marketing pessoal de Gouveia e Melo.

    Felizmente, evitou entoar odes às virtudes de GM… Enfim, só mais uma entre os elogiantes de GM, além do próprio GM, que muito falam mas sem explicarem como é que, alguém famoso por ser executivo (um líder, dizem!…) e por não ser político, pode exercer bem o cargo menos executivo e mais político do regime. Manuel Castro Almeida deu voz ao bom-senso: “Quem não quer ser político não deve querer ser Presidente”. Há, pois, fundamento para conjeturar sobre as razões de facto que levam os elogiantes de GM a quererem vê-lo em PR. A “bicada” nos partidos dar-lhes-á muita satisfação; mas é possível que os elogiantes estejam a apostar forte em poder ou sinecuras.

    A independência face a partidos não é boa em si mesmo, nem significa independência de facto (nem existe independência total). Os elogiantes de GM estarão a criar-lhe dívidas pessoais e pouco transparentes, que não acabam com a eleição. Aliás, só podem crescer, porque a fraca preparação política de GM exige mais intenso apoio e assessoria. Posições de assessoria ao PR ajudam a fazer campanha contra os partidos, ajudam a criar um partido contra eles e a torná-lo o partido dominante, quiçá o “partido único” chefiado pelo “grande líder” aspirante a “caudilho”. E nada nas palavras dos elogiantes acalma as preocupações e afasta o risco deste cenário.

    Com a postura messiânica que GM encarna desde 2021 (de cuja sinceridade duvido, pois ele diz que rejeita o sebastianismo, mas não se cansa de se gabar), o ataque que se adivinha que ele e os elogiantes farão ao regime semipresidencial, aos demais partidos, à separação de poderes e aos direitos, liberdades e garantias constitucionais, só pode ser prejudicial para o país e o bem-estar dos cidadãos em Portugal.

    Jorge Silva Paulo é doutorado em Políticas Públicas


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Vaticano: o intrigante 13 e as profecias de São Malaquias

    Vaticano: o intrigante 13 e as profecias de São Malaquias


    Foi em Novembro de 2013 que a editora Planeta lançou o meu livro “O Terceiro Bispo”, a primeira obra de ficção, a nível mundial, onde se mencionava a figura do Papa Francisco. Este livro começou a ser planeado em Fevereiro de 2013, quando o Papa Bento XVI anunciou a sua demissão. A eleição do Papa Francisco, a 13 de Março de 2013, com ele a declarar que viera do “fim do mundo”, veio depois confirmar a decisão e a necessidade de levar avante a missão de publicar a obra. Devo a Juan Mera e à Ana Maria Pereirinha a confiança depositada na altura.

    A trama de “O Terceiro Bispo”, em cuja capa temos uma foto escuro do perfil do Papa Francisco, com a imagem de Nossa Senhora de Fátima e a Basília de S. Pedro, é sobre um atentado contra o Papa para “cumprir o Terceiro Segredo de Fátima”. A razão era simples: o Papa João Paulo II não morrera no atentado de 13 de Maio de 1981, pelo que o terceiro segredo, aquele que menciona a morte do Bispo Branco, ainda estava por cumprir.

    person wearing white cap looking down under cloudy sky during daytime

    Muito da obra andava à volta do número 13, data das aparições de Fátima, em 1917, que ocorrerem entre 13 de Maio e 13 de Outubro. Uma das minhas fontes de consulta para aquela obra de ficção fora o livro “A Última Vidente de Fátima”, publicado em 2007 pelo cardeal Tarcisio Bertone, o secretário de Estado do Vaticano e pessoa que, em Abril de 2000, teve um encontro com a Irmã Lúcia para preparar vinda de João Paulo II a Fátima, altura em que foi revelado o Terceiro Segredo de Fátima.

    Bertone registou no seu livro as coincidências à volta do número 13, referindo-se ao facto de que o Papa João Paulo II, aquele que mais vezes visitara Fátima (1982, 1991 e 2000), falecera a 2 de Abril de 2005, uma data cuja soma individual dos seus algarismos, 2+4+2+5, dava um total de 13. Depois, Bertone também fez a mesma associação em relação à vidente de Fátima, a irmã Lúcia, falecida dois meses antes, a 13 de Fevereiro de 2005. E isso também deu o mesmo resultado: 1+3+2+2+5 é igual a 13.

    O livro de Tarcisio Bertone foi publicado quando o Papa era Bento XVI, pelo que, na altura, não se conhecia a data da morte do sucessor de João Paulo II. Sabe-se agora que Bento XVI faleceu a 31 de Dezembro de 2022 e, utilizando o método de contagem do cardeal Bertone, somando 3+1+1+2+2+2+2, temos novamente, como resultado total, o número 13.

    Então, e o Papa Francisco, qual era a sua relação com o número 13? Bem, essa tornara-se bem óbvia no dia sua eleição, pois o 13 de Março de 2013, para além de ter duas vezes o número 13, era também uma data onde a soma dos algarismos 1+3+3+2+1+3 alcançava um total de 13.

    Agora que sabemos a data da morte do Papa Francisco, será que podemos continuar a falar na coincidência do número 13? A soma dos algarismos do dia 21 de Abril de 2025 não nos dá esse valor. O resultado total de 2+1+4+2+2+5 é o número 16. Nem tirando ou acrescentando um algarismo iríamos obter 13.

    Será isso então suficiente para podemos concluir que o Papa Francisco não é um Papa que esteja debaixo da alçada do número 13? Poderíamos facilmente descartar as coincidências anteriores e continuar com a nossa vida sem muitas preocupações com o misticismo “made in Vaticano”. E os espíritos mais lógicos seguiriam mais descansados.

    Só que – e nem se trata de forçar conclusões – podemos usar o método de Tarcisio Bertone para olhar com detalhe os algarismos que surgem relacionados com a data da morte da morte do Papa Francisco. Através do recurso à contagem do tempo, via o site timeanddate.com, chegamos a números que nos podem fazer pensar de forma diferente.

    man statue beside concrete building during daytime

    Assim, se formos ver os anos e dias do Papa Francisco à frente dos destinos do Vaticano, reparamos que, entre 13 de Março de 2013 e 21 de Abril de 2025, decorreram 12 anos, 1 mês e 9 dias. A soma de 1+2+1+9 dá 13. Ao converter esse espaço temporal apenas em dias, isso atinge o número 4.423, sendo que a soma dos algarismos, 4+4+2+3, atinge, novamente, o 13.

    Um outro tema que o livro “O Terceiro Bispo” abordou em 2013 foram as profecias de São Malaquias, alegadamente escritas em 1140 e divulgadas publicamente em 1595. Dizem esses escritos que a destruição da Igreja irá acontecer quando chegar o Papa número 266.

    A eleição de Francisco, a 13 de Março de 2013, representou a eleição do Papa número 266 e, desde esse dia e até à sua morte, apesar de existir uma crise de Fé, o Vaticano não acabou. A Igreja Católica ainda vai mantendo a sua influência no mundo e, em breve, um novo conclave irá eleger o Papa número 267, superando assim os números previstos nas profecias do santo irlandês.

    brown and white ceiling with light fixture

    Só que quando o Papa Francisco foi eleito, o Papa Bento XVI ainda estava vivo. Uma situação pouco comum no Vaticano. Por isso, durante o pontificado do Papa Francisco, poderíamos considerar que este era, na realidade, a continuação do Papa 265, não sendo o 266 em todo a sua plenitude. Era, se quisermos assim ver, o Papa número 265-B.

    E, entre a morte do Papa Bento XVI, a 31 de Dezembro de 2022, e a morte de Francisco, no dia 21 de Abril de 2025, o sucessor de Bento manteve-se à frente do Vaticano durante 27 meses e 22 dias. O que, somados os algarismos 2+7+2+2, permite que se obtenha, de novo, o número 13.

    Podemos assim dizer, de forma inequívoca, que à semelhança de João Paulo II e Bento XVI, também Francisco viveu e morreu debaixo do número 13. E, ao ser o terceiro bispo de Roma a morrer debaixo do signo 13, foi assim a continuação dinástica do Papa 264, João Paulo II, mas ocupando o número 265-B. O Papa Francisco morreu com 88 anos, tendo isso acontecido 20 anos e 20 dias exactos após a morte de João Paulo II, o dito “Papa de Fátima”, que tinha 84 anos, menos 4 que Francisco.

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    O próximo conclave irá agora ter de eleger um novo Papa. Um Papa que poderá não estar ligado ao número 13, mas que seria o 266º. De acordo com a profecias de São Malaquias, existe um nome para o novo Bispo de Roma: Petrus Romanus. Seria o Papa Pedro II, romano de origem. Para que tal aconteça, basta que o próximo chefe da Igreja seja de origem italiana, o que não acontece desde que o polaco João Paulo II foi eleito em 1978, sendo seguido por um alemão e um argentino.

    Na lista de 22 prováveis Papas – os Papabili – constam cinco nomes de candidatos oriundos de Itália. O primeiro, Angelo Bagnasco, de 82 anos de idade, é o Arcebispo Emérito de Génova. Depois, com 79 anos, está Fernando Filoni, Grão-Mestre da Ordem Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém. Segue-se o nome do secretário de Estado do Vaticano, Pietro Parolin, de 70 anos, que sucedeu a Tarcisio Bertone em 2013. O quarto candidato vindo de Itália tem 80 anos e chama-se Mauro Piacenza, sendo o actual Penitenciário-Mor Emérito do Supremo Tribunal da Penitenciária Apostólica. O quinto nome é o do Arcebispo de Bolonha, Matteo Zuppi, que tem 69 anos.

    Na lista não consta como sendo oriundo de Itália o nome de um outro candidato que, por acaso, nasceu em Itália. Trata-se do Patriarca Latino de Jerusalém, Pierbattista Pizzaballa, que nasceu em Cologno al Serio, na zona da Lombardia, e professou os seus votos solenes na Igreja de Santo António, em Bolonha, no ano de 1989. Chegou a Jerusalém a 7 de Outubro de 1990 – sim, a mesma data do ataque de 2023 pelo Hamas. Em 2014, ajudou a organizar o encontro no Vaticano entre o Papa Francisco, o presidente israelita Shimon Peres, o líder palestiniano Mahmoud Abbas e o Patriarca de Constantinopla. Nascido em 1965, cumpriu 60 anos a 21 de Abril, o mesmo dia do falecimento do Papa Francisco.

    Pierbattista Pizzaballa

    Se um destes italianos for eleito Papa e assumir o nome de Pedro II, então podemos começar a falar mais a sério sobre as profecias de São Malaquias. Por outro lado, pode ser que o mundo venha a ser surpreendido com a escolha de um Papa de origem portuguesa, vindo da terra de Fátima. José Tolentino de Mendonça, de 59 anos, é um dos nomes nos Papabili e, aí sim, quem sabe o Vaticano e a Fé Católica não viria a ter um outro destino.

    Fiquemos atentos, portanto, ao resultado do próximo conclave.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Isto anda tudo ligado?

    Isto anda tudo ligado?

    É corrente ver em assuntos diferentes um fio condutor que decorre de determinada atitude meio oculta ou não-confessada. Geralmente, quem se atreve a enunciar esses “desvarios” é imediatamente acusado de estimular a “teoria da grande conspiração” e assim cada um fica no seu canto. Nada se demonstra, nada se nega e as convicções individuais mantêm-se mais ou menos as mesmas. Já todos o vimos muitas vezes!

    Nestes dias, em que nos aproximamos da necessidade de voltar a manifestar em quem confiamos para gerir os vários domínios da administração pública, vale a pena reflectir na experiência acumulada no passado recente.

    O governo que agora termina funções foi eleito com maioria muito escassa e instável, e a possibilidade de tudo acabar rapidamente esteve sempre presente. Assim, era imperioso e urgente “mostrar serviço” e atacar com enorme urgência todas as frentes onde a gestão pública mostrava dificuldades. Choveram aumentos (ainda que alguns limitados a meras promessas que o tempo confirmará ou não…) e promessas gongóricas de resolução de problemas continuados.

    Fosse diferente e mais robusta a maioria parlamentar governamental e tudo seria diferente, com outro ritmo, deixando as benesses para mais tarde, em fim de mandato, como é tradicional. Assim, houve que mostrar serviço rapidamente e agradar a todos os grupos profissionais que aguardavam negociações, necessariamente difíceis. Claro que o saldo orçamental positivo facilitou essa distribuição de satisfações.

    Assim, avaliar a eficiência/competência/justeza da acção governativa que durou cerca de um ano, sempre a fazer “equilíbrio no arame” e risco iminente de crise política e eleições, como aconteceu, deve ter em conta essa tentação forte de querer agradar a todos depressa. Nada garante que uma situação mais estável trouxesse igual ímpeto e generosidade. A “conta” dos constrangimentos e legislação impopular seria apresentada antes de poder oferecer mais “bombons”, com a habitual desculpa do governo anterior!

    Na Saúde, tudo foi diferente. Uma equipa ministerial pouco competente, mas com agenda ideológica tentou nomear todos os amigos possíveis em cargos directivos a todos os níveis, frequentemente com fundamentação duvidosa e conflitos de interesse, como o tempo mostrou, ao mesmo tempo que se manietou e “domesticou” a Ordem dos Médicos com várias nomeações de dirigentes para funções no Ministério.

    Ana Paula Martins, ministra da Saúde do governo de Luís Montenegro. / Foto: D.R.

    Fizeram-se promessas sem sinais de as poderem cumprir, com os métodos que usaram. Ordenaram um “plano de emergência” com coisas boas (mas pouco originais) e com coisas originais (pouco boas, como a criação/modificação administrativa de especialidades médicas, indicação de que as urgências de pediatria seriam até aos 12 anos, planos cirúrgicos oncológicos sem ter em atenção que uma enorme parte da oncologia é não cirúrgica, sem aumento da capacidade assistencial em consultas, etc).

    As urgências que “não iriam fechar”, têm evoluído como se viu. Continuaram a despejar dinheiro na contratação avulsa de médicos tarefeiros, mantendo os serviços clínicos razoavelmente despovoados.

    Quando era já certo que o governo iria terminar funções, e na sua última reunião, anunciou-se a decisão magna de evoluir os cuidados do SNS para parcerias público-privadas. Esse é um modo possível de gestão, mas a recente criação de ULS por todo o país, que incluem os cuidados médicos primários e a saúde pública, traz questões novas que o bom senso recomendaria discutir publicamente para se obter um consenso nacional que não leve a reversão, logo que o “barco mudar de direção”.

    Foto: D.R.

    Fica por explicar por que motivo o governo acha que a administração privada é mais ágil e eficiente, mas não toma medidas para conferir essas qualidades à gestão pública. Estava na sua mão fazê-lo, mas evitam esse caminho, sabe-se lá porquê.

    Esta pressa e ligeireza, já sem falar na inclusão de unidades académicas que a ministra achava que deveriam ter regime especial, mostra de forma robusta que afinal tudo parecia obedecer a um plano para mostrar que a gestão pública é desastrosa e a gestão privada “só virtuosa”! Um amigo imaginário dir-me-ia “lá estás tu com a mania da conspiração!” ao que eu responderia, “E tu, se quisesses levar o barco para esse lado, como agirias?”. Resposta imaginária, “sim, dessa maneira…”. Pois!

    Portanto, depois de ver tudo isto, podemos dizer que “o primeiro milho foi dos pardais”, e o que se seguiria teria um paladar e consequências bastante diferentes se pudessem seguir o seu rumo. Haverá oportunidade para todos decidirem que caminho desejam para o SNS. E prepararem-se para assumir as respectivas consequências.

    Jorge Amil Dias é médico pediatra

    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O silêncio de Gouveia e Melo

    O silêncio de Gouveia e Melo


    Depois de presente no palco mediático quase diariamente ao longo de quatro anos, Gouveia e Melo (GM) anda recolhido este ano. GM invocou férias e também falta de liberdade. Mesmo quem não notou que andou no palco mediático desde 2021 acha que ele está em silêncio, só interrompido por um artigo no Expresso e uma fugaz aparição com um banal e inócuo comentário sobre estabilidade política. Este silêncio parece artificial; será uma tática para o protocandidato a Presidente da Republica (PR) evitar ser questionado. Mas pode ser mais do que tática. Dadas as exibidas vaidade e necessidade de vedetismo e aplauso será um silêncio que lhe custará aguentar.

    Poucos dias após deixar o comando da Armada, revelaram-se nos media alguns apoiantes. Primeiro, foram dois destacados maçons, logo desautorizados, sem GM dar a cara, talvez visando mostrar-se independente da maçonaria. Seguiram-se Ângelo Correia e Isaltino Morais, que não foram desautorizados, e que merecem uma observação mais incisiva.

    Esperava o apoio de Isaltino Morais, desde que GM o condecorou com a medalha de “Vasco da Gama” (por despacho, quando o decreto-lei 49052 atribui a competência a ministro e por portaria). O Correio da Manhã destacou o facto, uma e outra vez. Ninguém reagiu a este uso de recursos públicos; só o PÁGINA UM e o jornal que dá mais palco mediático há anos a GM notaram o facto – que interessa a todos os cidadãos, pois contraria a alegada probidade do protocandidato. Está muito bem escrutinar políticos; e não interessa saber como GM gastou recursos públicos, por exemplo, em condecorações? Ou em ajustes diretos?

    Isaltino Morais também ganhará circunstancialmente com este apoio, pois chateará o PS e o PSD, e quiçá sobretudo Luís Marques Mendes. Como o voto é secreto, duvido que se venha a saber se Isaltino Morais concretizou no voto este apoio verbal a GM.

    O apoio de Ângelo Correia pede mais atenção. Também em entrevista televisiva, pareceu ser um mentor mais do que só um apoiante. Parece que gosta de ser mentor; mas não lhe vejo sucesso. Com o estilo habitual que aparenta conhecimento e segurança sobre o que está a dizer, mas basicamente retórico, disse que distribuir vacinas foi um “ato político”, indiciando a origem da frase de GM de que “não era qualquer militar que fazia aquilo”, e parecendo revelar a ideia que sustentará a sua campanha – afinal é político… Disse que o conhece “há muitos anos”: e quer dizer o quê? Disse que a candidatura “não é contra os partidos, é para fortalecer os próprios partidos políticos”, que GM “sabe criar poderes compartilhados”, ou promover consensos: só me faz rir! Será que conhece GM além da “guerra do croquete”?

    Além de revelar a vulgar superficialidade sobre a interpretação de sondagens, destaco uma frase favorita dos populistas: GM “vai apoiar-se no povo, não vai apoiar-se nas elites” – como se GM visasse uma mole de pessoas manipuláveis e sem instrução. Mas escolheu o Expresso para apresentar o seu manifesto político…

    Mas o que é “o povo”? Há quem defenda “GM a presidente e Ventura a primeiro-ministro”; há quem queira votar em José Sócrates; há quem queira “algo diferente”. Todos se queixam dos “maus políticos”. Mas não percebem a superficialidade da sua conduta: é por escolherem com base na imagem e na propaganda – que exaltam a diferença – e não na conduta e na substância do passado dos candidatos, que são eleitos “maus políticos”. A superficialidade confirma-se no facto de os mesmos insistirem em não aprender com as más escolhas.

    Os referidos apoiantes de GM pouco disseram de objetivo nos media, mesmo sobre vacinas. Parece que é assim que acham que chegam ao “povo”. Nenhum referiu, por exemplo, que GM foi acusado por um tribunal superior por crime praticado em serviço, ou que o Tribunal de Contas o acusou de excesso de ajustes diretos. O que nem um apoiante de GM consegue explicar é: como pode alguém com um perfil executivo e sem formação nem experiência política exercer bem o cargo menos executivo e mais político do regime? Instados a explicar, ouvem-se castelos no ar ou um ensurdecedor silêncio – acham que assim convencem mais do que as dezenas de convencidos que alimentam as sondagens? Aliás, que fariam sem estas sondagens?

    No fim, Ângelo Correia falou mais de si próprio do que de GM (alguém se surpreendeu?); mostrou o que ele acha, mas não mostrou que GM é um moderado e menos ainda que é um moderador, conhecedor e cumpridor da Constituição (CRP). Como pode ser um moderador, em especial dos partidos, se busca e tem mais apoios entre quem despreza os partidos, como se vê nas redes sociais? Quiçá “mentor” e protocandidato sonham com o apoio de um ou mais dos grandes partidos. Apesar dos esforços, até para lhe darem um CV académico, Chega e CDS não dão sinal de apoiar GM; talvez percebam que é contranatura.

    Acho que não foi por acaso que surgiu nos media o mito de que nada se conhece sobre o pensamento político de GM. Desde logo, Ângelo Correia contrariou esse mito, com a ideia de que distribuir vacinas foi um ato político… De facto, GM já tomou posições políticas, o que entendo que violou o dever de isenção, que vincula os militares no ativo; é só googlar e lá estão. Mas o esforço do apoiante foi demolido pelo protocandidato no artigo no Expresso, que mostrou com exuberância a falta de preparação política e as ambições despropositadas, pontos evidenciados por reputados especialistas, que o analisaram (por exemplo, António José Seguro, Henrique Monteiro, Vital Moreira, e Teresa de Melo Ribeiro).

    Este mito parece ter sido plantado nos media pela agência de comunicação, informal ou formal, que guia GM, pois desvia a atenção da conduta e do passado ao longo de décadas – que revela a pessoa, que é o que importa num órgão político e unipessoal – para um cenário futuro que se pode construir, através da propaganda e da imagem. Se não houver agendas ocultas e a superficialidade mediática não prevalecer (concretizada em meia-dúzia de buscas no Google e de declarações de amigos), haverá jornalistas a escrutinar o passado de GM, com rigor e objetividade, e eleitores interessados em se informarem.

    Sem querer ser exaustivo, nem ir muito atrás, é de recordar que GM recusou expressamente entrar na política, dizendo até “Se isso acontecer, deem-me uma corda para me enforcar”; e confirmou a posição um ano depois e dois anos depois. Em janeiro, recusou um jantar numa tertúlia em Alcochete, sendo citado sem desmentido com a declaração de “O meu nome não é para andar a vender bilhetes”. Porém, está marcado para março no Hotel Sheraton, um almoço do ICPT, cuja inscrição custa €52, contra os €30 da tertúlia. Então GM vai-se apoiar no povo e não nas elites… Mais graves são as suas contradições sobre a conscrição até pelo alarme social que causaram. Estão à vista a integridade e a preparação política de GM…

    GM disse que era “impiedoso com os malandros”, revelando-se polícia, acusador e juiz num só. Creio que custará a Ângelo Correia ensinar a GM o que é “autoridade democrática”; que um democrata é tolerante à crítica; ou que usar os tribunais para perseguir quem diverge dele torna improvável que GM cumpra a CRP e o juramento presidencial. Aliás, a atitude autoritária, que evidenciou ao longo de 45 anos de vida militar, de não tolerar quem dele discorda aumenta o medo que Ângelo Correia diz hoje existir na sociedade portuguesa, medo que mata a democracia. E apoia quem alimenta tal medo, que mata a democracia…

    E estará aqui a explicação do silêncio de GM: um mentor e um especialista de imagem têm de ensinar GM a “mudar de farda”; isto é, têm de ensinar-lhe muitas frases bem-sonantes, e técnicas de propaganda para afastar aquilo que eram “medalhas” do passado e que agora lhe dará jeito esquecer, para agarrar “o povo”. Pelo manifesto no Expresso, tem muito para aprender… Há quem diga que se ensina a CRP numa semana… já para debater com António Vitorino, nem Ângelo Correia mostrou estar convencido de poder correr bem a GM…

    Uma das lições aprendidas com o mandato do atual PR, e que alguém ensinará a GM, é que o modelo de inconstitucionalidade de normas, estabelecido na nossa Constituição, confere ao PR um amplo espaço de atuação, no qual ele até pode violar o espírito, senão até em alguns casos a letra, da CRP, com impunidade. Penso que isso vai GM aprender depressa.

    Como previ, GM é só a carranca da barca. Já se sabe quem lhe “leciona” a “Introdução à Política”. Falta saber quem o está a ensinar propaganda política e a fazer podcasts. E falta saber o que vão inventar para persuadir a maioria dos eleitores de que GM é moderado e vai ser o moderador a que a Constituição, e bem, vincula o Presidente da República.

    Jorge Silva Paulo é doutorado em Políticas Públicas


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Pagar as vacas ao dono

    Pagar as vacas ao dono


    Há situações com desfechos perfeitamente previsíveis e atempadamente previstos, e é bizarro que ainda assim causem espanto, e a ninguém mais do que às misteriosas cabeças falantes televisivas, a quem a arte de somar 2+2 e o bruxedo inspiram igual pânico. Vejamos alguns casos, começando pela economia.

    Após a entrada da Digi no mercado nacional, as operadoras de telecomunicações tradicionais, aquelas que sempre padeciam de conjunturas desafiantes, resolveram presentear-nos com pequenas atenções, um tráfegozinho extra aqui ou ali, sem que tivéssemos de mexer uma palha. Visto assim, à vista desarmada, até parece que isto da ordem ser rica e os frades serem poucos, vulgo oligopólio, não é regime que favoreça os consumidores. Quem diria tal coisa, à excepção de toda a teoria económica?

    green and white electric device

    Em sentido inverso está a Cegid, que entrou com estrondo em Portugal há poucos anos, comprando os principais softwares de facturação nacionais, e que já fez saber aos seus parceiros que os produtos vão aumentar entre 5% e 20%. Não que isso tenha alguma coisa que ver com a redução de concorrência, muito pelo contrário, ou poderia dizer-se o mesmo dos bancos, que de ano para ano são cada vez menos e maiores. É que na banca, por respeito aos reguladores principescamente bem pagos, não se diz “redução da concorrência”, mas sim “consolidação bancária”. É verdade que têm perdido balcões, empregos, e concedido menos crédito comercial, mas felizmente têm crescido nos lucros e nas comissões. Estamos cá é para ajudar.

    Saltando para a indústria, os saudosistas do Contra Informação ainda se devem lembrar do Cassete Carvalhas e da cassete do PCP, uma paródia ao discurso repetitivo desse partido recitada a cada aparição das “cassetes”. A parte da “aposta no aparelho produtivo nacional” ficava de fora da lenga-lenga televisiva, mas não caiu em saco roto. Muito mais tarde, já no auge da crise financeira internacional, Manuela Ferreira Leite alertava para a importância dos “bens transaccionáveis”, enquanto Sócrates e Coelho insistiam nas exportações para equilibrar a balança comercial, e agora até a Comissão Europeia nos vem dizer que é preciso reindustrializar não só Portugal, mas toda a Europa.

    Tudo cassetes com muito mais finésse do que a do PCP, mas tantos anos depois que até CD já passou de moda, e enquanto nos encantávamos com os refrões as nossas indústrias estrebuchavam, do têxtil à construção naval, e perdiam-se milhares de empregos, desorganizaram-se milhares de vidas subitamente. Descobrimos que são tantos os refrões como as ruas sem saída.

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    Alheias aos dramas populares, que são sempre mais bem vividos na surdina, as cabeças falantes faziam-nos saber que a modernização da economia não é indolor, que a globalização não se faz sem vítimas, e que os sacrifícios são indispensáveis para chegarmos à terra do leite e do mel, que está ali já ao virar da esquina, sempre ao virar da esquina. E de facto houve muitas empresas que prosperaram, sobretudo aquelas que se relocalizaram para pastagens mais verdes sem abdicar do acesso privilegiado ao mercado europeu, montando tenda em países ricos em mão-de-obra pobre e muito mais desenvoltos do que desenvolvidos. Os consumidores também beneficiaram, pelo menos os que mantiveram o emprego, ganhando poder de compra com a chegada de produtos baratos fabricados por trabalhadores mais pobres.

    Trinta anos depois, a Europa impõe tarifas de 45,3% aos veículos eléctricos chineses, mandando a Globalização e o Livre Comércio às urtigas, como se fossem amores de ontem, ressentida com o descaramento da China, que não se contentou em produzir para os outros, e tratou de construir infra-estruturas, educar aquela enorme população jovem, e de deitar mão a conhecimento e competências, isso enquanto operava o inédito milagre de tirar 500 milhões da pobreza.

    Enquanto a China se empenhava na tecnologia dos veículos eléctricos, a indústria automóvel europeia, em vez de inovar e evoluir, entretinha-se com fusões e aquisições, até que subitamente se descobriu incapaz de competir nesse segmento, não no mercado europeu, onde os veículos eléctricos chineses ainda não chegaram em força, mas no próprio mercado chinês, onde a maior popularidade desse tipo de veículo ajuda a que os construtores locais fazem barba e cabelo à concorrência. Felizmente, a vantagem das mega-empresas está menos nas economias de escala do que está na capacidade de inibir a concorrência, e isso talvez clarifique a jogada das autoridades europeias, feita a pretexto da China subsidiar a produção desses veículos, o que vindo de quem distribui PAC, QREN, 2020, 2030, PRR, etc, deixa à mostra um belo de um topete. É pena porque carros eléctricos a 10.000€ ajudariam a atenuar a catástrofe ambiental, mas é para pagar também essa factura que cá estamos.

    architectural photograph of lighted city sky

    O entusiasmo com a globalização, ainda que à custa da indústria tradicional, esgotou-se rapidamente, e agora volta-se ao fechamento do mercado e à protecção da indústria, disfarçando-se a inversão de marcha com os habituais “interesses europeus”, “conjunturas desafiantes”, “potências revisionistas”, e outras metafísicas a que deveríamos renunciar em favor do óbvio: quando as vítimas são os trabalhadores, é o progresso; quando toca aos capitalistas, é batota.

    Agora, as boas notícias: a indústria do armamento tem valorizado imenso em bolsa, feliz resultado da proliferação de guerras. O anterior secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN/NATO), Jens Stoltenberg, não esqueceu os investidores ao peitar a Rússia sem esquecer a China, ainda que esse país não partilhe um centímetro de fronteira com a aliança militar. Mark Rutte, o actual secretário-geral, contribuiu também para o outlook positivo ao descobrir que basta uma fracção do que se desperdiça em saúde e pensões para que «o orçamento de defesa atinja um nível que sustente os nossos retornos a longo prazo». Entretanto, a União Europeia está a tentar classificar a indústria do armamento como “indústria sustentável”, o que significa que finalmente vamos poder investir em bombas verdes.

    É certo que tudo mudou desde o tempo em que a Rússia admitia aderir à NATO, mas nem por isso a teoria de que a Europa está em perigo quadra bem com a matemática: seriam 150 milhões de russos contra 500 milhões de europeus mais ricos, mais organizados, mais sofisticados económica e tecnologicamente, e a jogar em casa, mas nunca se sabe o que esperar de um tirano como Putin. Daí que não foi grande génio quem teve a ideia de fazer exercícios militares NATO-Ucrânia oito meses antes da invasão russa, ou, de anos antes, criar bases da CIA na fronteira dos dois países.

    Dito isso, e longe de mim menosprezar a rentabilidade da guerra, mas tentar fazer da NATO uma entidade benévola é levar a ficção demasiado longe. Já em 2008, Mário Soares, homem que sabia somar 2+2, escreveu o seguinte acerca da expansão da NATO:

    E a NATO, cercando a Rússia e instalando na Polónia e na República Checa bases de mísseis, começa a ser uma ameaça para a Rússia, que a pode tornar agressiva. Um perigo!

    Trata-se da liga de falcoeiros que bombardeou a Sérvia com bombas de fragmentação por causa do genocídio no Kosovo, mas que colabora militarmente com o invasor genocida israelita no matadouro de Gaza. Tudo isto na santa cumplicidade do espaço Eurovisão.

    Putin, o tirano, era recebido na Europa com tapete vermelho não pelo espírito de democrata que nunca teve mas sim pelo gás barato que vendia. Mas no salão do Poder é normal usar as pequenas hipocrisias para abrir caminho às grandes jogadas. É certo que por vezes descambam, mas para isso é que estamos cá nós, porque outra coisa em que os pobres são muito bons é a encher de carne a trincheira.

    Filipe Martins é informático

    Nota: Ilustrações produzidas com recurso a inteligência artificial


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Robert F. Kennedy Jr. e a cura para a hesitação vacinal

    Robert F. Kennedy Jr. e a cura para a hesitação vacinal


    A única maneira de restaurar a confiança do público na vacinação – que sofreu um grande abalo por causa das mentiras associadas ao lançamento da vacina contra a covid-19 – é colocar um conhecido céptico no comando da agenda de pesquisa de vacinas. A figura ideal para liderar esse processo é Robert F. Kennedy Jr. (RFK), que foi indicado para dirigir o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos.

    Ao mesmo tempo, temos de encarregar cientistas rigorosos, com um historial comprovado em Medicina Baseada na Evidência, de determinar o tipo de modelos de estudo a adoptar. Dois cientistas ideais para isso são o Dr. Jay Bhattacharya e o Dr. Marty Makary, que foram nomeados para liderar o NIH [National Institutes of Health] e a FDA [Food and Drug Administration], respectivamente.

    white and green ballpoint pen on brown wooden round table

    As vacinas são – juntamente com antibióticos, anestesia e saneamento – uma das invenções médicas mais relevantes da História. Concebida pela primeira vez em 1774 por Benjamin Jesty, um agricultor em Dorsetshire, Inglaterra, só a vacina contra a varíola salvou milhões de vidas. A Operação Warp Speed, que rapidamente desenvolveu as vacinas contra a covid-19, salvou muitos americanos mais velhos. Apesar disso, assistimos a um aumento marcante da hesitação vacinal. Cientistas de vacinas e autoridades de saúde pública que não conduziram testes devidamente randomizados fizeram alegações falsas sobre a eficácia e segurança da vacina e estabeleceram mandados para pessoas que não precisavam das vacinas, semeando suspeitas e prejudicando a confiança do público na vacinação.

    O que correu mal? O objectivo das vacinas contra a covid-19 era reduzir a mortalidade e hospitalização, mas os ensaios  randomizados foram projectados apenas para demonstrar a redução a curto prazo nos sintomas de covid-19, o que não é de grande importância para a Saúde Pública. Uma vez que os grupos placebo foram prontamente vacinados após a aprovação de emergência, eles também não forneceram informações confiáveis sobre reacções adversas. Apesar dessas falhas, foi falsamente alegado que a imunidade conferida pela vacina é superior à imunidade natural adquirida pela infecção e que as vacinas evitariam a infecção e a transmissão.

    Governos e universidades então obrigariam a vacinação de indivíduos já imunizados naturalmente [por terem tido a doença], que era superior [à da vacina], e para jovens com risco de mortalidade muito baixo. Esses mandados não eram apenas anticientíficos; com um fornecimento limitado de vacinas, era anti-ético vacinar pessoas de baixo risco de mortalidade quando as vacinas eram necessárias para pessoas mais velhas de alto risco em todo o Mundo.

    Como os Governos e as empresas farmacêuticas mentiram sobre a vacina contra a covid-19, também estão a mentir sobre outras vacinas? O cepticismo agora espalhou-se para vacinas testadas e verdadeiras, que comprovadamente funcionam.

    E há questões genuínas ainda não respondidas sobre a segurança das vacinas em geral. Um estudo pioneiro realizado na Dinamarca mostrou que as vacinas podem ter efeitos inespecíficos positivos e negativos  em doenças não-alvo, e isso é algo que deve ser explorado com maior profundidade. Os cientistas do Vaccine Safety Datalink (VSD) que estudam vacinas contra asma e alumínio  concluíram que, embora as suas “descobertas não constituam fortes evidências para questionar a segurança do alumínio em vacinas (…) um exame adicional desta hipótese parece justificado.”

    Enquanto o VSD e outros cientistas devem continuar a fazer estudos observacionais, também devemos conduzir ensaios randomizados de vacinas controlados por placebo, como RFK tem defendido. Uma vez que temos imunidade de grupo para muitas doenças, como o sarampo, os ensaios podem ser conduzidos eticamente aleatorizando a idade de vacinação para, por exemplo, um ano versus três anos de idade, enquanto distribuímos o ensaio por uma grande área geográfica para que os não-vacinados não vivam todos perto uns dos outros.

    Estou confiante de que a maioria das vacinas continuará a ser considerada segura e eficaz. Embora alguns problemas possam ser encontrados, é mais provável que isso aumente em vez de diminuir a confiança na vacina. Por exemplo, verificou-se que a vacina contra o sarampo-papeira-rubéola-varicela [N.D. denominada MMRV ou tetraviral, sendo que em Portugal geralmente se exclui a varicela] causa convulsões febris em excesso em crianças dos 12 aos 23 meses de idade. A MMRV agora é administrada apenas como uma segunda dose para crianças mais velhas, enquanto as crianças mais novas recebem vacinas separadas contra a tríplice viral e varicela, resultando em menos convulsões induzidas pela vacina que assustavam os pais. Embora os estudos de segurança tenham sido inconclusivos, também foi sensato remover o mercúrio das vacinas. Mesmo que acabemos com menos vacinas no esquema vacinal recomendado, isso não é necessariamente uma coisa terrível. A Escandinâvia [N.D. Kulldorf é sueco] tem uma população muito saudável, com menos vacinas nos seus programas de vacinação.

    a couple of people wearing gloves and masks and gloves

    Não vamos restaurar a confiança na vacina pregando ao coro. Após o desastre da covid-19, o objectivo declarado de Kennedy é retornar à Medicina Baseada na Evidências livre de conflitos de interesse. Deixá-lo fazer isso é a única maneira de os cépticos voltarem a confiar nas vacinas, e aqueles que confiam nas vacinas não têm motivos para ter medo disso.

    As tentativas das instituições de saúde pública e farmacêuticas de inviabilizar as nomeações de RFK, Bhattacharya e Makary são a maneira mais segura de agravar ainda mais a hesitação vacinal nos Estados Unidos. A escolha é gritante. Não podemos deixar que os “cientistas pró-vacinas” desequilibrados, que apertam as mãos sobre as orelhas nas perguntas mais brandas, causem mais danos à confiança nas vacinas. Como cientista pró-vacina e, na verdade, a única pessoa a ser demitida pelo CDC por ser muito pró-vacina, a escolha é clara. Para restaurar a confiança nas vacinas para os níveis anteriores [à pandemia da covid-19], devemos apoiar as nomeações de Kennedy, Bhattacharya e Makary.

    Martin Kulldorff é membro fundador da Academia para a Ciência e a Liberdade. Foi professor na Harvard Medical School até ser demitido por não tomar a vacina contra a covid-19, apesar de ter imunidade natural superior. Ele estuda vacinas há mais de duas décadas, ajudando a desenvolver partes dos sistemas de vigilância de segurança de vacinas do CDC e da FDA. Tem um h-index de 67 no Scopus, um valor bem acima dos requisitos de investigadores seniores.

    Este texto foi originalmente publicado no site RealClear Politics sob o título The Cure for Vaccine Skepticism. O PÁGINA UM agradece a Martin Kulldorff a permissão para a sua tradução e publicação em português.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • PÁGINA UM: em 2025, queremos crescer com os leitores, para não estagnar

    PÁGINA UM: em 2025, queremos crescer com os leitores, para não estagnar


    Terminado o ano de 2024 – e com números impressionantes, pois ultrapassámos um milhão de visitas nos últimos dois meses –, é também tempo de reflectir sobre o caminho percorrido e olhar para o horizonte que se desenha em 2025. O PÁGINA UM, criado há três anos, não apenas sobreviveu num ambiente de crescente crise financeira e de valores que assola a imprensa nacional, como se consolidou, num contexto hostil, como um bastião de jornalismo rigoroso, independente e incómodo para os poderes instituídos. Foi mais um ano de desafios, mas também de conquistas que nos enchem de orgulho e nos motivam a continuar. 

    Desde o início, escolhemos um caminho difícil, mas íntegro: o acesso totalmente livre aos nossos conteúdos, recusando qualquer tipo de publicidade ou parceria comercial. Vivemos apenas da generosidade dos nossos leitores, cuja confiança tem sustentado este projeto único. Graças a este modelo, conseguimos atingir um terceiro ano sem prejuízos, mas as limitações económicas começam a pressionar a ambição que nos move. As receitas mantiveram-se estáveis em relação aos anos anteriores, mas as despesas fixas aumentaram significativamente, forçando-nos a uma gestão ainda mais meticulosa, que inevitavelmente limita a nossa acção. Terminamos, contudo, o ano com um passivo virtualmente nulo, mas com um ‘custo’: continuamos aquém daquilo que desejaríamos. Não podemos estar satisfeitos; algo que não é necessarianente mau, mas não é bom.

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    Contamos actualmente com um conjunto notável de colaboradores que têm enriquecido o PÁGINA UM com uma diversificação temática notável, especialmente nas áreas de Opinião e da Cultura. Gostava de deter mais tempo e disponibilidade para agradecer devidamente o apreço e a honra por os ter aqui, ao nosso lado, dando tanta qualidade a este projecto.

    No entanto, o coração do jornalismo de investigação do PÁGINA UM – aquele que incomoda e desmascara – mantém-se dependente de apenas dois jornalistas a tempo inteiro, por questões orçamentais, tendo em conta a premissa de não apresentarmos prejuízos nem encetarmos uma estratégia de endividamento, que nos condicionaria. Esta realidade impõe-se e condiciona-nos perante os desafios crescentes: solicitações que aumentam exponencialmente, obstáculos legais e administrativos (como processos judiciais que se arrastam em tribunais sem decisão durante anos ou sem as entidades públicas quererem cumprir sentenças e acórdãos) e uma avalanche de denúncias que nos chegam mas, mesmo promissoras, não conseguimos investigar por falta de recursos. 

    Ainda assim, o PÁGINA UM está longe de querer desistir. Pelo contrário, 2025 será um ano decisivo. Estamos a trabalhar na remodelação do nosso site para torná-lo mais atractivo e funcional, reorganizando as notícias e as secções para melhor servir os nossos leitores. Porém, se as circunstâncias económicas não mudarem, seremos forçados a considerar alternativas que nunca desejámos: a introdução de publicidade ou, em último caso, de subscrições. Estas opções, que não me agradam, serão apenas introduzidas se forem o derradeiro recurso para elevar o impacto do nosso jornalismo e responder à nossa crescente responsabilidade perante a sociedade, mas sem hipotecar o rigor e a independência. 

    Em todo o caso, uma certa frustração que sentimos por não podermos fazer mais – e há muitos assuntos que não podemos ‘pegar’ por incapacidade humana – é acompanhada de uma determinação inabalável. Não aceitamos que o jornalismo se limite a fazer cócegas ao poder. Queremos ser incisivos, aprofundar mais temas, investigar sem limites e garantir que determinados assuntos não caiam no esquecimento. Acreditamos ser isso que os nossos leitores esperam do jornalismo do PÁGINA UM. 

    typewriter, vintage, remington

    Por isso, este editorial não deve ser lido, incluindo pelos nossos ‘detractores’, como um sinal de desânimo, mas sim de compromisso renovado perante os nossos leitores e os nossos apoiantes. O PÁGINA UM tem sido a prova viva de que é possível resgatar o espírito do verdadeiro jornalismo, sem concessões e sem amarras. Se conseguimos chegar até aqui, foi graças aos nossos leitores. Juntos, temos demonstrado que o jornalismo livre, independente e rigoroso não é uma utopia, mas sim uma necessidade imperativa para a democracia e a cidadania. 

    Para 2025, renovamos assim o nosso compromisso de ir mais longe, com a mesma determinação que trazíamos no final de 2021, quando nascemos. Com a vossa confiança e apoio, estamos prontos para enfrentar os desafios e abraçar as oportunidades que o futuro nos reserva. 

    Desejamos a todos um Bom Ano Novo, com a promessa de que continuaremos a lutar pelo jornalismo que faz a diferença! 


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  • PÁGINA UM: Três anos juntos a caminhar por um jornalismo independente

    PÁGINA UM: Três anos juntos a caminhar por um jornalismo independente


    Três anos passaram desde o nascimento do PÁGINA UM, um projecto editorial que ousa ser diferente em Portugal. Três anos de desafios constantes, de estimulações intelectuais permanentes, mas também de desgastes profundos. Afinal, não é fácil nadar contra a corrente, remar num oceano mediático onde o comodismo, a dependência económica e o alinhamento ideológico tantas vezes sufocam aquilo que o jornalismo deveria ser: independente. Sim, independente é uma palavra que usamos sem qualquer ligeireza. No PÁGINA UM, a independência é a matriz que define cada linha que publicamos, cada tema que investigamos e cada poder que incomodamos.

    Este é um projecto único em Portugal. Um jornalismo verdadeiramente independente que não aceita parcerias comerciais, que não se verga perante os ditames do capital ou os caprichos do Estado. Vivemos apenas dos apoios dos nossos leitores, aqueles que compreendem e valorizam a necessidade de uma imprensa livre e sem amarras. E que desafios temos enfrentado! Desde processos judiciais que nos tentam silenciar, até pressões subtis – e outras nem tanto – que chegam de várias esferas dos poderes. Enfrentamos tudo isso de cabeça erguida, movidos pela certeza de que aquilo que fazemos é necessário.

    Ao longo destes três anos, o PÁGINA UM tem desbravado caminhos que muitos evitam. Investigámos e publicámos sobre temas que outros preferem ignorar. Desde a pandemia da covid-19 e a forma como os números foram manipulados e usados como instrumentos de controlo, até à falta de transparência nas contas das instituições públicas e privadas. Denunciámos práticas corporativistas e nepotismos que atravessam várias áreas da sociedade portuguesa. Recusámos ceder aos “temas tabu” que dominam boa parte da imprensa tradicional.

    Este é um jornal que não teme incomodar. E, por isso, temos sido alvo de processos movidos por aqueles que se sentem expostos ou ameaçados pelas verdades que trazemos a público. Esta semana, por exemplo, recebi um prazo curto para contestar duas acções judiciais: uma interposta pela Ordem dos Médicos e os médicos Miguel Guimarães, Filipe Froes e Luís Varandas; a outra interposta pelo Almirante Gouveia e Melo. Existem, pelo menos, mais dois. E são incontáveis já as queixas junto da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), que move sempre processos, contribuindo, em vez de travar, para a estratégia conhecida por SLAPP (Strategic Lawsuits Against Public Participation), que têm como principal objectivo impedir, restringir ou penalizar a participação pública e a liberdade de imprensa.

    Mas também movemos os meios para lutar em prol do acesso à informação, cada vez mais agrilhoada. Nos últimos três anos interpusemos mais de duas dezenas de intimações nos tribunais administrativos, porque os princípios de transparência e responsabilidade devem ser defendidos. Nos próximos dias falaremos, aliás, de um desses casos que teve um desfecho ao fim de 29 meses, porque não desistimos jamais. E ainda esta semana apresentámos mais uma intimação, além de estarem a decorrer pedidos de parecer à Comissão do Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) em outros dos casos de obstaculização. As dificuldades são, contudo, imensas, mesmo quando os tribunais nos concedem razão. Por exemplo, uma petição do PÁGINA UM para acesso a um relatório de inspecção do Conselho Superior da Magistratura continua sem ser cumprido, mesmo depois de um acórdão do Tribunal Administrativo Central do Sul. Os mecanismos para obrigar as entidades a cumprir sentenças e acórdãos estão minados à partida, transformando-se em processos verdadeiramente kafkianos. Mas, apesar disso, a nossa missão mantém-se firme e clara, neste aspecto: trazer luz onde há sombra, mesmo quando isso significa desagradar aos mais poderosos.

    Mas estamos cientes dos custos, das críticas explícitas ou veladas ou mesmo dos boicotes. Curiosamente, os maiores sinais de desconforto têm vindo de onde eu, em particular, menos esperaria. Por mais que alguns queiram posicionar o PÁGINA UM num determinado espectro ideológico – e, absurdamente, há quem force meter-nos nos antípodas daquele que é, há décadas, o meu pensamento e postura –, a verdade é que somos vistos com desconfiança e desprezo, quando fazemos determinadas abordagens que desagradam, ou como instrumentos de esperança, por outros, quando as notícias ou artigos lhes parecem ‘simpáticos’. Talvez porque há agora uma crença enraizada de que o jornalismo deva ser uma extensão de uma agenda ideológica, o que jamais será o caso do PÁGINA UM.

    No eixo do poder, a reacção não é diferente: nem dirigentes nem candidatos do PSD ou do PS aceitaram, até agora, conceder-nos quaisquer entrevistas, mesmo tendo sido o único órgão de comunicação social a realizar, este ano, em duas circunstâncias, entrevistas aos candidatos às eleições legislativas e para o Parlamento Europeu. Esta ausência, contudo, não é um problema; será, a manter-se, uma flor na nossa lapela. Mais preocupado ficaria se houvesse escritores que se recusassem a sentar comigo na nossa Biblioteca do PÁGINA UM para falar de livros, de criação, de vida. Esses, sim, são os diálogos que marcam a História de um povo.

    No entanto, mais do que tudo, é importante destacar que este caminho de três anos jamais seria possível sem aqueles que nos leem e apoiam. Um profundo agradecimento a todos os nossos leitores, especialmente aos que acreditaram no PÁGINA UM desde o primeiro dia, e nos apoiam financeiramente de uma forma voluntária e de uma generosidade que nos afaga e estimula a continuar. São os leitores a apoiantes, nos momentos de maior pressão e de menor ânimo, a razão pela qual continuamos, e o vosso apoio é fundamental para a nossa existência. A vós, que não apenas desejam a continuidade deste projecto, mas também o seu fortalecimento, deixo o meu mais sincero agradecimento.

    Entramos no quarto ano com o mesmo entusiasmo que nos guiou desde o início, mas também com os pés assentes na terra. Sabemos que só poderemos fortalecer este projecto editorial com mais recursos. Para isso, precisamos de continuar a crescer, a conquistar mais leitores que vejam no PÁGINA UM não apenas um jornal, mas um baluarte do jornalismo independente em Portugal. Porque sem jornalismo livre, não há democracia verdadeira. E sem democracia verdadeira, não há futuro para uma sociedade que se queira justa e informada.


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