Etiqueta: Oficina do Livro

  • Saúde: O comando está nas tuas mãos

    Saúde: O comando está nas tuas mãos

    Título

    Eu escolho crescer com saúde!

    Autores

    MANUEL PINTO COELHO

    Editora

    Oficina do Livro (Novembro de 2024)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    Já era fã do Dr. Manuel Pinto Coelho. Mas este livro é daqueles que, além de útil, me falou ao coração porque se dirige aos jovens. Nunca foi tão importante um livro como este, pela sua componente informativa e pedagógica, dirigida a uma faixa da população que, infelizmente, tem sido alvo de campanhas nefastas na área da Saúde.

    Nada é mais preciso do que ensinar os jovens a serem autónomos a ajudá-los a tomar decisões baseadas na evidência e no melhor que a Ciência e o conhecimento acumulado têm para oferecer.

    Escrito numa linguagem acessível e direccionada para os jovens, o livro aborda temas muito diversos, de uma forma simples e acessível. As ilustrações, as caixas de pontos e o grafismo, são muito apelativos (mesmo para adultos). 

    O livro está estruturado em cinco capítulos. O primeiro versa sobre o corpo humano, o sistema imunitário e o ‘rei’ intestino. O segundo, com o título ‘Os quatro elementos’ aborda temas como a importância da vitamina D e da água do mar. O terceiro capítulo anda à volta dos hábitos saudáveis e quarto propõe um ‘Reset’, debruçando-se, por exemplo, sobre o lazer, a amizade, os ecrãs e as doenças mentais. Por fim, o quinto capítulo, são deixadas mais algumas dicas e considerações, incluindo sobre o tema do tabagismo.

    O livro tem ainda o chamariz de ter prefácios da autoria de Cristiano Ronaldo e da ginasta olímpica Filipa Martins.

    Se se preocupa com a saúde dos jovens, se tem jovens na família, este é um livro que deve estar lá em casa. Mas também deve estar em todas as bibliotecas e escolas porque é de leitura obrigatória. Não só pelos conteúdos informativos sobre saúde mas também pela informação relacionada com a protecção ambiental.

    Mas este livro não é só útil para os jovens. Os adultos podem beneficiar muito com a leitura da obra. Até porque é mais divertida de ler do que os livros escritos para os adultos. Como se diz em inglês, é mesmo um caso ‘Win-Win‘.     

  • Relatos do dono do Felício

    Relatos do dono do Felício

    Título

    Aventuras de um alferes em Angola

    Autor

    PEDRO BELTRÃO

    Editora

    Oficina do Livro (Julho de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Os testemunhos sobre guerras configuram um estilo literário singular, situado na confluência entre a História e a literatura, e ainda por vezes o jornalismo. Este género caracteriza-se por apresentar narrativas pessoais, frequentemente na primeira pessoa, que procuram documentar eventos marcantes de conflitos armados, oferecendo perspectivas humanas e íntimas sobre acontecimentos de dimensão colectiva. Estes textos transcendem muitas vezes o mero relato de factos, explorando as emoções, os dilemas éticos e os traumas vividos pelas pessoas comuns, soldados, vítimas civis ou até líderes políticos.

    Historicamente, os testemunhos de guerras têm servido como fontes primárias de valor inestimável para historiadores e leitores interessados nos conflitos que moldaram o mundo. No século XX, por exemplo, obras como o ‘Diário de Anne Frank’, que documenta o terror vivido durante a perseguição aos judeus na Segunda Guerra Mundial, tornaram-se ícones universais deste género. Outro exemplo é ‘Se isto é um homem’, de Primo Levi, que descreve com uma linguagem crua e profundamente reflexiva a sua experiência como prisioneiro em Auschwitz. Estes testemunhos não apenas relatam os factos, mas também humanizam as estatísticas de guerra, trazendo para o primeiro plano as vidas que se perderam ou foram irrevogavelmente alteradas.

    A literatura testemunhal de guerra em Portugal também tem os seus expoentes. Durante a Primeira Guerra Mundial ficou o testemunho de Jaime Cortesão, com o seu ‘Memórias da Grande Guerra’, como médico voluntário do Corpo Expedicionário, ou ainda ‘Nas trincheiras da Flandres’ e ‘Calvários da Flandres’, de Augusto Casimiro. Na Guerra Colonial (1961-1974), o último conflito militar com participação portuguesa, abundam os relatos, mas nem sempre com grande divulgação. Talvez o mais marcante seja ‘D’este viver aqui neste papel descripto’, compilação de cartas que o médico e escritor António Lobo Antunes escreveu à família durante a sua estadia em Angola. Estas cartas oferecem uma visão mais pessoal e directa do impacto emocional da guerra, complementando os seus romances.

    Podendo inserir-se neste género, o livro ‘Aventuras de um alferes em Angola’, que retrata a experiência de Pedro Beltrão, gestor e escritor – autor, por exemplo, dos romances do género histórico ‘Tempo de esperança’ e ‘O mordomo do rei’ -, em Angola entre 1963 e 1967, acaba por ser mesmo mais um livro de ‘aventuras’ do que um livro sobre a guerra, porque, ao longo das suas 190 páginas, há pouco de conflito (uns tiros e umas desmontagens de minas), e quando relatado, se faz sem grande emoção ou detalhe.

    Já no caso das ‘aventuras’, estas vão-se sucedendo ao longo do livro, ao ponto de o macaquinho Felício, que Pedro Beltrão comprou a um soba e chegou a trazer para Portugal no fim da comissão, se tornar mesmo um quase-protagonista, ou o ponto mais interessante.

    De leitura fácil, e num relato escorreito e bem escrito, o livro de Pedro Beltrão pode também servir como documento sobre um conflito que, pelo menos em Angola, aparenta não ter sido, pelo menos na zona onde Pedro Beltrão esteve, tão traumatizante. Mas, convenhamos, que lhe falta profundidade e substância. Grande história, sim, mesmo se ficcionada, daria a vida do macaquinho Felício que, depois de uma rocambolesca fuga na Estrada da Luz, acabou doado a um sanatório da Parede, onde foi mascote dos doentes durante muito tempo, mas sem que alguém lhe tenha dado testemunho. Essa sim seria uma grande história, a atender à ‘personalidade do bicho’ apenas aflorada por Pedro Beltrão nas suas ‘aventuras’ como alferes. 

  • Afinal, o que nos define?

    Afinal, o que nos define?

    Título

    Bipolar, sim, louca, só quando eu quero

    Autor

    BIA GARBATO

    Editora

    Oficina do Livro (Setembro de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Bia Garbato, escritora e publicitária brasileira, traça neste livro o percurso desde que foi diagnosticada bipolar, contando histórias cheias de intensidade e que tanto geram risos como compaixão e tristeza. E fá-lo com leveza e alegria, armas de combate ao estigma da ‘doença mental’.

    O livro está organizado em 12 capítulos e a dedicatória deixa pistas ao leitor sobre ‘de onde’ a autora partiu e ‘onde’ chegou, na actualidade: “dedico este livro àqueles que sempre acreditaram em mim, mesmo quando eu deixei de acreditar”.

    Na sua versão original, a obra tem um prefácio da romancista e publicitária brasileira Tati Bernardi, que é complementado com outro, da escritora portuguesa Rita Ferro, na edição para Portugal.

    Na parte dedicada ao diagnóstico, Bia Garbato escreveu: “eu sempre soube que tinha uma coisa estranha aqui dentro”. relata que se lembra de pensar: “como será que é ser normal’”. E conta como é viver uma vida de depressão em depressão, a depressão pós-parto e os altos e baixos, os saltos para a euforia. 

    Num dos capítulos, o quarto, sobre ‘Emagrecimento’, a autora conta-nos: “como cheguei aos 100 quilos e voltei para contar”. Em outro, fala sobre os seus sentimentos e noutro ainda sobre os pensamentos, neste caso, os ‘doentes’, catastrofistas e negativos, tóxicos.

    Apesar de um tom que pode ser percepcionado como um tanto ‘lamechas’ em algumas páginas, o facto de o livro estar escrito com humor anula o ligeiro enjoo provocado por algumas frases mais ou menos piegas. 

    Pode acontecer que muitas das experiências narradas na primeira pessoa por Garbato possam parecer familiares ao leitor. Se assim for, não será tarde para procurar um diagnóstico, não apenas para que confirme se padece ou não de bipolaridade, mas para apurar se pode ou não ter uma espécie de ‘super-poder’, daqueles que o ‘desvia’ do padrão dito ‘normal’. Com o bom e o mau que isso traz. Com as coisas fáceis e os desafios. Para Bia Garbato, as coisas difíceis da vida incluem “guardar dinheiro”, “ler Guimarães Rosa”, “trabalhar depois do almoço” e “emagrecer”. A listas das coisas fáceis da autora é bem mais curta que a das coisas difíceis e inclui “engordar”, “gastar dinheiro” e “dormir depois do almoço”. (Diria que só o facto de gostar de fazer listas será um ‘sintoma’ em si…)

  • Um livro que vai irritar libertários e conservadores

    Um livro que vai irritar libertários e conservadores

    Título

    Reflexões sobre a liberdade, identidades e famílias

    Autor

    VÁRIOS

    Editora

    Oficina do Livro (Agosto de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Não foi de propósito. Calhou assim, na mesma edição fazer recensão de um segundo livro que serve como ‘repelente’ de libertários e conservadores. A capa do livro é enganadora. Lendo o título, pensamos estar perante um daqueles livros das associações de famílias numerosas ou cristãs, das que defendem as chamadas famílias tradicionais, que, em Portugal, assumem tantas formas quanto o número de géneros inventados que já existem na comunidade LGBTxpto. Existe a ‘família tradicional’ sem amante, com amante. Com ‘afilhados’ e ‘afilhadas’. Com divorciados recasados. Com uniões de facto. Com casais que já não se amam há demasiado tempo. Etc. Etc. 

    Mas não é um livro desses, em defesa dos ‘valores’ das ‘famílias tradicionais’, dos ‘bons costumes’, nem do respeito pelos ensinamentos bíblicos. Só percebemos isso quando colocamos os óculos e lemos, à cabeça, o nome de Joana Mortágua na lista de coordenadoras da obra. Mais abaixo, saltam nomes como o de Fernanda Câncio, Catarina Furtado, Daniel Oliveira, Maria Leonor Beleza, Pedro Strecht, … É um daqueles livros que transpira a enganadora palavra ‘progressista’ quer queira, quer não. 

    Esteticamente, considero o livro feio e não me é fácil usar este adjectivo aplicado a um livro. Mas é. Por isso, achei que seria um desses livros ‘sóbrios’ para famílias cristãs, com fundo bege e letras garrafais em grená escuro e a palavra ‘famílias’ ali a rondar. Depois, está escrito com letras cinzentas. Sim, leu bem. Quando abri o livro até pensei estar com os óculos sujos e a ver desfocado, mas não. Era mesmo do livro e nem com anos de ioga ocular conseguiria ler melhor esta obra com letras desta cor. É como tentar compreender algumas etiquetas de roupa desbotadas, sendo que, inevitavelmente, após uns segundos de esforço, se decide colocar tudo junto a lavar na máquina, no programa para ‘algodão’, e rezar. 

    Debruçando-me sobre o conteúdo, os textos parecem mesmo ter sido escritos pelos autores mencionados, admitindo, aqui e ali, alguma ‘ajuda’ de escritores-fantasma ou de um jornalista ‘amigo’, que nem todos nasceram com o dom da prosa e alguns, tendo-a, têm mais o que fazer com o tempo (que é dinheiro). Quanto aos temas que aborda, considero-os pertinentes e relevantes. Vários textos abordam o tema da interrupção voluntária da gravidez, que, sendo-se a favor ou contra, é uma realidade na sociedade, que afecta muitas mulheres. Não falta a questão da inclusão e da comunidade LGBT+nãoseiquê. (O ser humano gosta de complicar o que é, por natureza, simples). 

    Nos dias que correm, a tolerância voltou a ser um tema no mundo ocidental, tal como a inclusão, nomeadamente direccionada para a comunidade transgénero. Mas, de fora, está, por exemplo, a defesa e protecção de meninas, raparigas e mulheres, que perdem privacidade e espaços seguros, perdem lugares em pódios e na meta, em nome de uma ideologia que mete impressão, sobretudo, às amigas lésbicas e amigos gay. Por outro lado, alguns destes nomes que escrevem palavras como ‘inclusão’ e ‘diversidade’, defenderam a segregação insana, anti-científica e criminosa durante a pandemia. Ou seja, defendem que a mulher é dona do seu corpo e cada um escolhe o género que quiser, desde que aceite ser forçado a tomar fármacos e a usar máscara facial, mesmo que a Ciência tenha uma palavra diferente a dizer. O consentimento, afinal, é só para a ‘cama’? Onde estão os direitos humanos quando há coacção e invasão do corpo? Ou quando se invade a privacidade e o ‘mundo interior’ de crianças e jovens com perguntas pornográficas nas escolas, sem conhecimento das famílias?

    Com este aparte, recomendo a leitura deste livro, sobretudo se se discordar do direito à interrupção voluntária da gravidez ou do direito a assumir o género que se quiser. Ouvir versões da realidade diferentes das nossas e outras visões do mundo é uma forma de nos mantermos despertos e atentos, conscientes, e activar o botão do diálogo e a ponte para a empatia. Do mesmo modo, quem se preocupa com questões como inclusão e tolerância, vale a pena ler alguns dos textos que integram esta obra.  As letras do livro até podem ser cinzentas e estar desbotadas, mas o mundo também não é a preto e branco. (Nem feito de unicórnios e arco-íris de manhã à noite).

  • Maniqueísmos, ou o Médio Oriente sob viés

    Maniqueísmos, ou o Médio Oriente sob viés

    Título

    O dia que mudou Israel

    Autora

    HELENA FERRO DE GOUVEIA

    Editora

    Oficina do Livro (Setembro de 2024)

    Cotação

    6/20

    Recensão

    Este livro deve começar a ser lido a partir das duas últimas páginas de texto, excluindo as derradeiras, onde consta uma bibliografia de ‘trazer por casa’, sob a forma de fontes (listagem de órgãos de comunicação social) e de ‘Estudos’, com uma dezena de referências bibliográficas de obras, todas, sem excepção, publicadas entre 2020 e 2023.

    Bom, em abono da verdade, perante essa imagem de pedantismo – elencar fontes que, pela exiguidade, mostram afinal uma parca investigação por parte do(a) autor(a) –, talvez bastassem essas duas páginas de bibliografia para nos decidirmos a ler (ou não) este ‘O dia que mudou Israel’, de Helena Ferro de Gouveia.

    Mas peguemos no texto das tais últimas duas páginas desta obra, que tem a grande vantagem de ser curta. Helena Ferro de Gouveia termina escrevendo: “Israel não é culpado de tentar obstinadamente sobreviver”. E isto depois de, em parágrafos anteriores, já ter manifestado que “a indignidade humana alcançou os israelitas ali, na sua fronteira, sem fuga possível” e que o conflito do Médio Oriente “também é a dor dos palestinianos”, mas para logo a seguir, de uma forma simplista, e ao melhor estilo do ‘Omo lava mais branco’, acrescentar, em português algo macarrónico: “As crianças inocentes de Gaza, também elas vítimas do Hamas.”

    Livros como este, o de Helena Ferro de Gouveia, ‘nascem’ não para informar ou esclarecer, ou ainda para reflectir, mas sim para emocionar, expondo o sofrimento de uma das partes no conflito do Médio Oriente, e assim justificar acções ou reacções. É a tradicional obra de propaganda de um dos lados com uma visão maniqueísta, algo problemático para quem se orgulha dos anos de jornalista e de uma suposta mundividência por já se ter trabalhado “em mais de cinquenta países em quatro continentes”. Esta visão, em que se retrata um lado como vítima absoluta e o outro como opressor incontornável, é pouco compatível com a complexidade histórica e política do conflito israelita-palestiniano, um dos mais longos e intrincados do Mundo contemporâneo, mas sobre o qual a autora passa intencionalmente ao lado.

    Mostra-se inegável que o ataque do Hamas em 7 de Outubro do ano passado foi de uma brutalidade atroz, e os relatos de Helena Ferro de Gouveia captam essa crueldade através de uma linguagem carregada de adjetivos fortes, descrevendo a dor dos sobreviventes e a desolação dos familiares das vítimas. Esses detalhes crus e directos até poderiam ser relevantes como testemunho, mas não aparenta ser essa a intenção. Helena Ferro de Gouveia usa as páginas do livro para, expondo a dor, justificar uma retaliação insana. O princípio judaico de “olho por olho”, que muitos já consideram desumano, tem estado rapidamente a ser ultrapassado por uma espiral de vingança, onde a resposta israelita se traduziu numa carnificina contínua, atingindo alvos civis, e ampliando ainda mais o ciclo de violência.

    Não se pode ignorar o sofrimento do povo israelita, especialmente daqueles que foram alvo de ataques terroristas, assim como é impossível olhar para a realidade dos palestinianos sem reconhecer as suas décadas de marginalização, perda de território e direitos básicos. Quando se descreve apenas uma parte da equação, seja ela qual for, perde-se a capacidade de promover uma verdadeira reflexão sobre a coabitação desejável entre povos, culturas e religiões em tempos que não se querem obscuros. E é exactamente aqui que o discurso de Helena Ferro de Gouveia se torna limitado. A sua liberdade para expor a dor israelita, com uma clareza indiscutível, mostra-se necessária, mas, sem a contrapartida de uma análise profunda das razões que alimentam o ódio do outro lado, o resultado acaba por ser um texto enviesado.

    No seu prisma sectário, ‘O dia que mudou Israle’ apenas cumpre, lamentavelmente, uma única função: alimenta as narrativas de uma das facções, ‘massajando’ os seus argumentos e fornecendo combustível para se ver como vítima absoluta ou herói inquestionável. E isso nunca foi bom para a paz. Nem este livro é bom sequer para ser lido, excepto para quem apreciar a visão de Helena Ferro de Gouveia. Para esses sim, recomenda-se a leitura, assumindo-se que, para esses, à classificação atribuída nesta recensão até se deverá acrescentar um 1 na posição das dezenas.  

  • O inconformado

    O inconformado

    Título

    Carlos Antunes Memórias de um Revolucionário

    Autor

    ISABEL LINDIM

    Editora

    Oficina do Livro (Abril de 2024)

    Cotação

    13/20

    Recensão

    Um homem pode ser um herói ou um vilão, dependendo de quem relata a sua história. Neste livro de memórias relatadas na primeira pessoa e recolhidas pela sua enteada (Isabel Lindim), Carlos Antunes sai, sobretudo, com a imagem de alguém que nunca se conformou com as coisas.

    Sem dúvida, que Carlos Antunes, que liderou com outra dissidente do PCP, Isabel do Carmo, a criação das Brigadas Revolucionárias (BR), será um vilão para muitos, ou mesmo um terrorista. A organização esteve por detrás de vários atentados e assaltos. Também para a PIDE, a polícia política do Estado Novo, era visto como um delinquente perigoso. 

    Para muitos da extrema-esquerda, Carlos Antunes, será um herói, bem como todos os que participaram nas acções da BR.  As actividades da BR mantiveram-se mesmo após o 25 de Abril e acabaram por ser seguidas e ainda mais radicalizadas pelas FP-25. 

    Carlos Antunes não queria ir para a tropa. A clandestidade salvou-o do serviço militar. O seu caminho ficou traçado. Acreditava ser um pacifista (“e ainda hoje tenho essa mania“, afirmou, citado na obra). 

    Para mim, nascida em Abril de 1974, é surreal (e aterrador) ler os relatos de  quem fez testes a bombas na serra da Arrábida, em preparação para assaltos e atentados. Mas ler este livro é isso: ver, por dentro, como foi que actuaram alguns destes militantes de extrema-esquerda na luta contra a ditadura e mesmo depois da chegada da democracia. O que sentiam, como viviam, com quem falavam e se relacionavam.

    Ler esta obra pode causar indigestão a alguns. Pode deixar outros inspirados. Será útil para investigadores e historiadores. Permite ter um vislumbre, a partir de dentro, de um movimento que se radicalizou na busca de uma sociedade que queria que fosse mais justa e solidária, nomeadamente com os povos das antigas colónias ultramarinas. 

    Numa altura em que políticas e ideologias de raiz totalitária renascem nos governos no poder de países do Ocidente, nomeadamente na Europa, esta pode ser uma obra para se reflectir. Vivemos, actualmente, numa era em que regressam a censura, a eliminação da liberdade de expressão, a perseguição a “dissidentes”. Hoje, os meios de censura e perseguição são as leis e o silenciamento das opiniões no espaço digital. A cultura de cancelamento e ostracização laboral, económica e social. A propaganda nos media está em níveis máximos. Vivemos in loco a obra distópica ‘1984’, de George Orwell. Por isso, o conhecimento da História é cada vez mais relevante. Para que não se caia nos mesmos erros. Nem no lado dos governantes e ditadores, nem do lado de quem combate as ditaduras. Para que o futuro possa ser moldado, não por ditadores nem por extremistas e radicais, mas por inconformados moderados. 

  • Um ‘life hack’ com um filme de terror pelo meio

    Um ‘life hack’ com um filme de terror pelo meio

    Título

    79 vozes pela literatura financeira

    Autor

    AAVV.

    Editora

    Oficina do Livro e ISCTE – Executive Education (Junho de 2024)

    Cotação

    14/20

    Recensão

    Ao pegar neste livro tirei de imediato duas conclusões: há algum tempo que não pegava num livro tão pesado; notei em mim uma enorme desconfiança sobre a autoria de alguns dos textos apresentados como tendo saído da pena de ilustres da política, gestão, economia, academia e dos media.

    O ISCTE, os autores da obra e a editora que tenha paciência comigo.

    Passo a explicar. Ao todo, são 605 páginas (numeradas) de ‘vozes’ ilustres (Mário Centeno, António Nogueira Leite, Maria Luís Albuquerque, Cristina Casalinho, …) em prol de  ‘uma melhor e maior independência ao longo da vida’. Assim que comecei a ler, imaginei alguns dos autores a tentar encontrar espaço na agenda para reflectir, esboçar, desenvolver e escrever um texto ‘por uma melhor e maior independência ao longo da vida’.

    À medida que ia lendo, esforçava-me para não pensar no assessor de comunicação que teria escrito este ou aquele texto. Tentava não imaginar equipas em departamentos a juntar as estatísticas, o background e as referências que seriam usados neste ou naquele texto ‘por uma melhor e maior independência ao longo da vida’.

    Ser jornalista dá nisto. Em vez de estar a ler o livro, a mente foge para as perguntas: foi mesmo esta pessoa a escrever esta frase? E ‘este’ teve mesmo ‘pachorra’ para escrever isto tudo? Terrível. Não estava a funcionar.

    Decidi então partir do princípio de que cada palavra, vírgula e ponto nos ‘ii’ saíram mesmo – mesmo – da pena de cada um dos 79 autores mencionados. Corria tudo bem, quando comecei a pensar na reforma que, segundo um dos autores, provavelmente não irei receber.  Resumindo – que terei esgotado o espaço que me foi atribuído para nesta rubrica –, se o(a) leitor(a) for como eu, vai ter vontade de saltar alguns dos autores e algumas das páginas.

    [Alerta de spoiler: se não aprecia filmes de terror, não espreite a página 422, onde a bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados, Paula Franco, conta como, a partir da iniciativa de literacia financeira ‘Joaninha e os Impostos’, foi criada a versão ‘Joaninha e a covid-19’, uma “história que promove o cumprimento das normas de saúde pública e ensina os jovens a seguir as instruções da Direcção-Geral de Saúde”. De imediato, ocorreu-me como faz falta ‘A Joaninha e a evidência científica’ e ‘A Joaninha e o pensamento crítico’, tal foi o nível de analfabetismo científico detectado na população portuguesa durante a pandemia, observado pelo nível de ‘cumpridores’ de instruções sem qualquer fundamentação na evidência. Por acaso, um amigo, o Luís, irá achar que até faz sentido: impostos e instruções da DGS na covid-19 têm exactamente a mesma fundamentação “científica” e exigem a mesma atitude acrítica, para não dizer acéfala, além de contarem com, pelo menos, algum tipo de analfabetismo cívico.]

    Por outro lado, encontrará autores que vai querer ler duas vezes para reter melhor a informação (ou para compreender melhor o que escreveram). Mas, no fim de contas, provavelmente este será um livro que devia ser “usado por todos”. Uma espécie de “life hack” como escreve Nuno Pereira no seu capítulo, referindo-se à literacia financeira. Com a excepção da parte de ensinar os miúdos a executar instruções só porque sim. É que não há melhor ‘life hack’ do que conseguir pensar por si (a não ser que consiga mover objectos com a mente).

  • Uma cura natural para uma doença fatal

    Uma cura natural para uma doença fatal

    Título

    Como viver sem diabetes

    Autor

    MANUEL PINTO COELHO

    Editora (Edição)

    Oficina do Livro (Outubro de 2023)

    Cotação 

    17/20

    Recensão

    Nas sociedades modernas, a diabetes mellitus (tipo II) é já uma verdadeira epidemia; ‘sintoma’ do nosso estilo de vida moderno, muito assente em hábitos alimentares prejudiciais à saúde e um sedentarismo endémico. Tão prevalente, esta doença é erradamente vista como uma sentença – uma vez diagnosticada, a única via possível, de acordo com a “Medicina Convencional”, parece ser o seu controlo através de medicação e injecções de insulina. Contudo, para Manuel Pinto Coelho, nada poderia estar mais longe da verdade, e explica-nos porquê no seu mais recente livro Como viver sem diabetes, editado pela Oficina do Livro.

    Com mais de 50 anos de prática clínica (como já aqui referimos numa outra recensão do mesmo autor), Manuel Pinto Coelho tem-se notabilizado por apregoar uma mensagem fundamental que de tão simples deveria ser seguida com naturalidade: precisamos de aprender a olhar para as causas das doenças, e a preveni-las através das nossas escolhas diárias, em vez de camuflá-las com medicamentos (a abordagem mais usual e convencional). E se esta visão se aplica à generalidade das possíveis afecções ou doenças, aplica-se também, naturalmente, à diabetes tipo II.

    Como se salienta neste livro, à escala global 537 milhões de pessoas padecem desta condição; um número que se prevê duplicar até 2050. Em Portugal, “a doença mata quase uma dúzia de pessoas por dia” (pág. 29). Apesar destas assombrosas estatísticas, a boa notícia que nos traz Manuel Pinto Coelho é que através de uma alimentação adequada, exercício físico regular, um sono reparador e algumas ferramentas adicionais – como suplementos alimentares adequados e jejum intermitente – é possível evitar, ou até mesmo curar, a diabetes. 

    Isto porque, como o médico sublinha, a diabetes é sobretudo uma doença “nutricional”, uma “filha indesejada do ‘desenvolvimento’” (pág. 35), que se instala quando o corpo se torna resistente à insulina – uma hormona segregada pelo pâncreas para “controlar o armazenamento de glicose dentro das células adiposas” (pág. 46).

    Manuel Pinto Coelho explica também em detalhe a “cura” por si sugerida: quais os alimentos a privilegiar, como fazer o jejum, e indica-nos um conjunto de suplementos nutricionais com “provas dadas” que poderão ser benéficos para quem se defronta com a doença, ou àqueles que se encontram em risco. Entre os suplementos naturais que mostraram resultados promissores em estudos científicos no controlo da glicemia, destaca-se a berberina, extraída através de uma planta (pág. 100).

    Além disto, embora por si só não seja suficiente, o médico sublinha a importância de controlar a qualidade e a quantidade dos hidratos de carbono ingeridos, nomeadamente o açúcar. Nesse sentido, fala-nos de 147 potenciais malefícios do açúcar; uma lista que assusta de tão comprida.

    Sobre este aspecto, devemos ter presente que o açúcar se “esconde”, com frequência, por trás de um sem-número de designações. Por isso, nas idas ao supermercado, recomenda-se atenção aos rótulos de modo a identificar estas outras formas que o açúcar pode tomar; e nas quais se contam, entre outras, a glucose, a frutose, a lactose, a dextrose e a maltodextrina. 

    Ainda assim, o melhor é que não seja necessário olhar a rótulos, privilegiando-se uma dieta à base de alimentos integrais, que não veem em embalagens. Até porque, infelizmente, nem os adoçantes comuns como o Aspartame e o Acessulfame K, são uma alternativa aconselhável ao açúcar: não são úteis no controlo do peso, e ainda “agravam o risco de cancro” (pág. 161).

    Manuel Pinto Coelho enfatiza a obesidade como o maior factor de risco para a diabetes mellitus, e mostra como esta doença, por sua vez, pode depois desencadear uma série de outras maleitas. Como estratégia de prevenção, explica também ao leitor como pode, através de análises ao sangue, perceber se está a desenvolver um quadro inflamatório ou de resistência à insulina, antes de chegar ao ponto de adoecer.

    Quanto à “cura” que a Medicina Tradicional tem para oferecer aos diabéticos, o médico mostra-se crítico: a insulina não resolve a questão, podendo até ser mais uma fonte de problemas. No seu entender, não são os doentes quem beneficia com esta abordagem, mas quem dela retira dividendos financeiros. E sustenta a tese com alguns dados, adiantando que “o mercado mundial da insulina humana deverá atingir os 29,9 mil milhões de dólares norte-americanos até 2025” (pág. 131).

    Escrito com base em evidências científicas, Como viver sem diabetes apresenta-se como um guia de leitura aprazível mas sobretudo de uma extrema utilidade para quem sofre desta doença ou para quem está em risco de a desenvolver ou para quem a quer evitar. Ou seja, potencialmente para todos. Afinal, quem pode recusar a possibilidade de uma cura natural, barata, e livre de efeitos adversos para um flagelo que assola tantas pessoas em todo o Mundo?

  • Guerreiras em corpo de panfleto

    Guerreiras em corpo de panfleto

    Título

    Mulheres na guerra

    Autora

    HELENA FERRO DE GOUVEIA

    Editora (Edição)

    Oficina do Livro (Maio de 2023)

    Cotação

    20/04

    Recensão

    No início deste ano, a Casa das Letras – uma das chancelas da Leya – publicou uma obra colossal, de grande profundidade investigativa, da inglesa Judith Mackrell que, fugindo da sua zona de conforto – é especialista em dança –, produziu uma obra de fôlego sobre “seis mulheres [jornalistas] extraordinárias na linha da frente da II Guerra Mundial”. Espero, na PÁGINA UM, ter ainda oportunidade de escrever sobre esse livro de extensas mas preciosas 526 páginas.

    Presumo que, apesar da excelência desta obra, as vendas não o tornem em sucesso comercial; e no mundo editorial sabe-se bem que há livros que só se publicam por outros havendo, mais comerciais, que os suportam. Um desses livros comerciais, de sucesso garantido, e de uma outra chancela da Leya – a Oficina do Livro –, será o de Helena Ferro de Gouveia, Mulheres na guerra .

    Antiga jornalista e actual administradora da Global Media e da Lusa, Helena Ferro de Gouveia é também comentadora da CNN Portugal, onde não se furta em defender intransigentemente as mulheres, enquanto debita sobre os mais variados assuntos, por vezes com as mais desvairadas teses. 

    Enfim, a discutida nunca mal fez ao mundo – bem pelo contrário. Tempere-se com o posfácio de Ana Gomes. Isto, em Literatura faz vender. Mas aquilo que deve ser o foco de uma recensão é o livro, em si mesmo, a sua qualidade intrínseca. E este de Helena Ferro de Gouveia, sejamos completamente francos e justos, é um perfeito díspar, se o propósito tiver sido mesmo (e desconfia-se que não foi) o de revelar e destacar “mulheres na guerra” ao longo da História – séculos ou milénios, portanto –, “catalogando-as” em combatentes, em comandantes (rainhas), em jornalistas e em espias.

    Livros deste género – com uma selecção de perfis ou de histórias ou eventos reais – não são novidade; são até banais na Literatura – e, de forma despretensiosa e não necessariamente depreciativa, servem a propósito muito limitados: divulgação histórica e/ ou de leitura prazenteira para aumentar um pouco a cultura geral. 

    Podemos, em Portugal, destacar a Coleção 10, escrita nos anos 40 e 50 do século passado pelo jornalista Américo Faria (hoje esquecido), composta por cinco dezenas de títulos com os mais variados temas, cinco dos quais exclusivamente dedicados às mulheres: Dez beldades perigosas  (nº 16), Dez amorosas românticas (nº 22), Dez rainhas que reinaram (nº 31), Dez mulheres no crime (nº 41) e Dez favoritas reais (nº 47). E que, aliás, merecia maior atenção das editoras para uma eventual republicação [a editora Parsifal reeditou três destes títulos em 2013 e 2014). 

    Neste género de obras, onde mais rapidamente se falha é logo na selecção, mesmo antes de se começar a escrever – e, nesse aspecto, diga-se, Helena Ferro de Gouveia escreve bem e em forma enxuta, pese embora os capítulos sofram, entre eles, de alguma desarmonia narrativa, permanecendo ausente um estilo uniforme, variando aqueles entre a reportagem e a compilação wikipediana . Sobre dedilhar texto não poderia deixar de se esperar outra coisa numa antiga jornalista que até se arvora de ter trabalhado “em mais de cinquenta países em quatro continentes”.

    E é, de facto, na selecção das suas heroínas que a autora cometa um erro de palmatória: mostrou que a sua intenção não foi divulgar mulheres automáticas, mas sim compor uma obra panfletária, tão panfletária que a torna ridícula. A si e à obra.

    Com efeito, a tarefa de escolher um leque de mulheres que, efetivamente, “merecem” ser destacadas num livro deste gênero nunca seria fácil. E quanto mais se reduz o lote, para duas dezenas (na verdade, em Mulheres na guerra são 19), mais exige ser os critérios para a inclusão das eleitas numa lista final, na lista definitiva, apresentada aos leitores.

    E foi aqui – nas suas escolhas – que Helena Ferro de Gouveia se estatelou ao comprido, deu tiros nos pés, mostrando que este livro lhe serviu somente para “piscar o olho” – como faz a militar que empunha a arma na capa do livro – aos leitores, colando-o à Guerra da Ucrânia.

    Quem ouve Helena Ferro de Gouveia na CNN Portugal compreende que, aos seus olhos, a invasão da Rússia de Putin (um ditador que, convenhamos, não “nasceu” em Fevereiro de 2022) é a primeira e única barbárie cometida ao cimo da Terra desde que Deus criou Adão e depois Eva.

    Mas daí até seleccionar, num livro que destaca apenas 19 mulheres na História da Humanidade – sendo que a primeira é Fu Hao, uma das esposas do imperador Wu Ding, da dinastia Shang, que viveu no século XIII antes de Cristo –, duas jovens mulheres ucranianas (com um papel pouco mais que simbólico) é estar a gozar com a História. E com os leitores.

    Não tenhamos dúvidas que são enternecedoras as recentíssimas histórias de coragem de Kateryna Polishchuk – que ficou conhecida por Birdie, durante o cerco de Azovstal – e de Olesia Vorotnyk, a bailarina da Ópera Nacional da Ucrânia que pegou em armas pelo seu país. Provavelmente, darão bons enredos hollywoodescos. Mas, caramba!, há que ter noção: quando se oferece ao prelo um livro sobre “mulheres na guerra”, pegando em toda a História, como se pode colocar estas duas ucranianas, nossas contemporâneas, ao mesmo nível das restantes 17?

    Não confundamos, num contexto histórico, a beira da estrada com a Estrada da Beira.

    Como podem, na História, estas duas ucranianas “destronar” (porque Helena Ferro de Gouveia as omitiu) mulheres como a rainha celta Boadiceia, Joana d’Arc, Isabel I de Inglaterra, a Rainha Ginga, Anita Garibaldi, Catarina a Grande, Harriet Tubman, Maria Quitéria ou até Dilma Rousseff, se se quiser chegar à contemporaneidade? E isto, hélas, sem aqui incluir a famigerada Brites de Almeida, a portuguesíssima Padeira de Aljubarrota. Ou a injustiçada na História de Portugal, Teresa de Leão, condessa de Portucale e mãe de D. Afonso Henriques.

    Na ânsia de promover duas simples ucranianas – sem desprimor da coragem – ao pináculo das heroínas ímpares da secular História da Humanidade no feminino, Helena Ferro de Gouveia aparenta nem sequer se ter aconselhado previamente com o prefaciador da sua obra, Duarte da Costa, porquanto este até elenca muitas figuras femininas de grande proeminência que deveriam, obviamente, por tão evidente, estar incluídas nos seus capítulos.

    Por fim, além de tudo isto, se o seu objetivo era escrever sobre mulheres guerreiras ao longo da História, sempre deveria Helena Ferro de Gouveia ousar-se mais nas pesquisas: em vez de usar somente nove obras como referências – as que cita na bibliografia , sendo que a mais antiga é muito recente, de 2003 –, talvez não tivesse sido má ideia procurar no Google. No Google Scholar – entenda-se –, porque aí encontraria infindáveis conceituados estudos sobre o papel das mulheres, e de muitas mulheres em concreto, entre dois períodos de paz.

    Talvez até, por essas pesquisas, pudesse então sim, com propósito, incluir uma heroína da Ucrânia no seu livro, assumindo a sua existência: a lendária Marusia Bohuslavka, que consta ter libertado, sozinha, 700 cossacos detidos pelos turcos num episódio mítico em volta do século XVII.

  • Criatividade em estado líquido e muito “terroir”

    Criatividade em estado líquido e muito “terroir”

    Título

    As castas do vinho

    Autor

    JOÃO AFONSO

    Editora (Edição)

    Oficina do Livro (Março de 2023)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Nos dias que correm, a questão das castas costuma ser um elemento diferenciador para a tomada de decisão sobre a compra deste ou daquele vinho. Pensamos que essa coisa das castas é matéria antiga, que nos acompanha deste os tempos de Noé.

    Nada poderia andar mais longe da verdade. A moda das castas, da sua referência nos rótulos ou das estratégias de promoção a determinados vinhos, é um fenómeno recente, surgido em meados do século passado, nos Estados Unidos da América, “através da influência de Frank Schoonmaker, um dos primeiros ‘wine writers’ dos tempos modernos.”

    Das milhares de castas existentes no planeta, “mais de 80% da produção mundial de vinho usa menos de 1% da diversidade de uvas disponível.” E, de todas essas, “apenas 12 variedades constituem a maior parte do vinho produzido em todo o mundo (Cabernet Sauvignon, Chardonnay, Merlot, Pinot Noir, Syrah, Sauvignon Blanc, Riesling, Moscatel de Alexandria, Gewurztraminer, Viognier, Pinot Blanc e Pinot Gris)”.

    De acordo com a Portaria 380/2012 de 22 de Novembro, em Portugal existem 342 castas registadas para a produção de vinho: “267 castas de nascimento português (ou ibérico) que, somadas às 75 castas alóctones autorizadas, perfazem o bonito número de 342 castas de Vitis vinifera para fazer vinho em Portugal.” Destas, as castas mais utilizadas são: Aragonez T (11%), Touriga Franca T (8%), Touriga Nacional T (7%), Fernão Pires B (6%) e Castelão T (5%). A área total existente em território continental e ilhas dedicada à vinha é de 192 029 hectares, sendo que 16 castas tintas ocupam 60% da área total e 17 castas brancas ocupam 30% dessa mesma área.

    Na sua maioria, as castas usadas para a produção de vinho são obra do engenho humano, da relação que o Homem estabeleceu ao longo de séculos com a Vitis vinifera e soube, com arte e paciência, ir desbravando novas variedades, moldando as vinhas e as castas, inovando e explorando novos sabores e aromas. Se a produção de vinho não é uma expressão da criatividade humana, não sei o que será a criatividade.

    O que João Afonso (n. 1957) nos oferece nesta monumental obra (664 páginas), As Castas do Vinho – Misturadas com histórias, é um retrato exaustivo e minucioso de todo esse universo das castas existentes em Portugal, seja de origem nacional, ibérica ou estrangeira, das suas idiossincrasias técnicas, dinâmicas vitícolas e enológicas, origens, ao que cheiram e ao que sabem, num manancial riquíssimo de histórias e curiosidades sumarentas. Para o autor, as castas representam “um certo lado mágico do vinho, a surpresa por detrás de um nome, quase sempre sem significado concreto. Um pequeno mistério.”

    Há mais de quatro décadas que João Afonso acompanha a “evolução do vinho português e das castas usadas para moldar o nosso imaginário enófilo”, enriquecendo por isso “este livro com outras prosas, de escrita e leitura mais fluída, fácil e porventura mais agradável” e, mesmo quando escreve sobre castas, tenta “sempre fazê-lo de uma forma mais romanceada que técnica”.

    Além de um livro acerca das castas é também um livro sobre pessoas, sobre o encontro de João Afonso com as pessoas que criaram castas e que deram origem a vinhos que ainda hoje nos encantam o palato. Histórias de maravilhamento, afectivas e sensoriais, plenas de respeito e gratas memórias por todas essas pessoas que o autor foi encontrando ao longo da vida no seu périplo de descoberta e achamento do vinho português.

    Este livro é, em si mesmo, um mapa do tesouro vitivinícola nacional, descrevendo as pepitas e as preciosas gemas que se escondem nos imensos terroirs que compõem o território de Portugal e as Ilhas. Toda a leitura deste livro é uma espécie de amuse-bouche, constantemente a apelar aos nossos sentidos para que partamos à descoberta destas maravilhas naturais que o homem tão sabiamente soube criar. Não o fazer é desperdiçar esta alegria de estar vivo e brindar a isso mesmo com os nossos amigos e familiares.