Etiqueta: Nuno André

  • Hoje pode ser que não mates ninguém

    Hoje pode ser que não mates ninguém


    A comunicação é a chave da sobrevivência.

    As células comunicam, os órgãos comunicam, os animais comunicam; aliás, a própria Natureza é um complexo sistema comunicante.

    Num olhar sobre a História da Humanidade, percebemos de que forma a comunicação tem funcionado como catalisador do pensamento racional – particularidade que favoreceu o pensamento crítico, capaz de julgar, relacionar e decidir em consciência e liberdade.

    minimalist photography of three crank phones

    A propósito da Era Global em que vivemos, onde a informação se difunde a alta velocidade ligando todos os pontos do globo em poucos segundos, gostava de vos falar um pouco sobre uma regra pela qual pautamos a nossa comunicação.

    Se, por um lado, podemos afirmar que evoluímos, retirando das novas tecnologias o melhor partido, também é verdade que aos poucos criámos uma dependência, quiçá doentia, em torno desta mesma conexão que, fazendo-nos sentir tão acompanhados, nos deixa tão sós.

    Recordemos: “O homem age e o animal reage”.

    Esta é uma verdade quando nos referimos ao estado normal da consciência humana; porém, quanto mais dependemos das tecnologias mais parecemos não ser capazes de pensar sobre o que nos rodeia, tomando por vezes decisões irracionais até na luta pela sobrevivência, conscientes de que a Humanidade tende a viver em comunidade e, assim, só é capaz de vingar através de sistemas interligados que potenciam todas as ideias e vontades em torno da construção de um mundo melhor, mais justo, pacífico e tolerante.

    Por isso, acreditar nesta ideia é também entender que somos parte activa e responsável na transformação histórica desde que a Internet surgiu para ligar pessoas umas às outras. Internet que é, sem dúvida alguma, a maior reserva de informação que alguma vez existiu e uma via a infinitas possibilidades de conteúdos.

    purple and blue light digital wallpaper

    Por tudo isto, podemos entendê-la como um psicoactivo que gera sensações de novidade, imprevisibilidade e euforia, comunicando e consumindo-se instantaneamente, prestando-se ainda à evasão do quotidiano, das gentes e dos lugares envoltos numa névoa de sentimentos penosos.

    Ainda assim, a Internet parece ser um espaço democrático: todos a ela acedem em condições de igualdade, em certa medida. Neste mundo paralelo, todos temos espaço para dizer algo, mesmo que disfarçados com nomes, perfis ou avatares virtuais, acreditando, contudo, que estamos a influenciar o real – e influenciamos.

    Entretanto, na realidade virtual podemos ter mil caras, mil opiniões, milhões de certezas. Dominemos ou não o conhecimento, opinamos, julgamos, defendemos, manipulamos… É este outro dos grandes riscos: arruinar a capacidade de ser. Somos o que fazemos, o que dizemos, o que pensamos.

    Navegando pela Internet, assumimos responsabilidades profissionais, temos acesso à cultura, ao lazer, ao consumo, a diálogos e a monólogos, encontros e desencontros. A vida virtual também é real e por isso é um espelho daquilo que somos. Usamos, abusamos. Vivemos, vadiamos. Fingimos. Mentimos, desmentimos. Traficamos. Ameaçamos, asfixiamos. Matamos. Ou não.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Cão que morde também ladra

    Cão que morde também ladra


    Um lugar sagrado evoca muito mais do que o respeito pelo religioso; e, por isso, dependendo de cada cultura religiosa, somos levados a viajar pelos símbolos, pelos efeitos, pelas regras da geometria, da acústica, da óptica. O espaço sagrado torna-se, portanto, uma dimensão pela qual o ser humano viaja para se conhecer e se encontrar com o Divino.

    Despertado pelos sentidos, pelas emoções e sensações provocadas por cada símbolo, por cada forma, pelo silêncio, pela luz, pelas sombras, pela presença e pela ausência, a Humanidade sacraliza o que está fora para depois despertar o que se encontra dentro.

    two short-coated brown and black dogs playing

    Num ritmo que nos leva a uma permanente linguagem simbólica pela qual os sinais sensíveis dos mistérios inteligíveis constituem, para a Humanidade, um caminho ousado, misterioso e desafiante, que nos segreda, passo a passo, em cada pista, em cada sentido, em cada forma.

    Também por isso, muito antes da maioria de nós saber ler e escrever, as histórias são fixadas pela pintura, pelos vitrais, pelos azulejos, pela arte. Não fosse a fraqueza humana e tudo pareceria perfeito.

    Assentemos agora os pés na terra e recordemos a imagem do cão – símbolo de fidelidade, proteção, vigilância. Representação animal que, do Egipto Antigo à Grécia, atravessando tantas outras culturas e civilizações, se mantém transversal no significado e na proximidade aos humanos.

    Diz o povo que: “Cão que ladra não morde” – um provérbio popular que se refere aos que muito falam, pouco fazem, confundem, perturbam, se intrometem, mas não são consequentes. Ora, durante os últimos seis meses, viu-se isso contra o jornal PÁGINA UM – nenhum ousou e conseguiu morder. Verificou-se o ditado.

    Estratégia diferente adoptou o jornal de onde vos falo: ladrou e tem mordido, nem sempre por esta ordem. Tem deixado marcas. Muitas e diversas.

    Mas, ainda a propósito dos cães e do jornalismo, gostava de recordar as velhas lutas mortíferas – que são, muitas vezes perversamente manipuladas pelos humanos ao cortarem as caudas dos cães para evitar a desistência – já que é metendo a cauda entre as patas que o animal manifesta o medo e a derrota.

    Acto desumano, esse, o de amputar um membro que pode manifestar alegria ou medo. Perdoem-me a correcção – gesto, quiçá, demasiado humano.

    Mas gostava de acrescentar algo mais à crónica de hoje. Durante muito tempo associou-se à língua daquele ser vivo a ideia de cura.

    Julgou-se que as feridas saravam mais facilmente quando eram lambidas por um cão do que sendo simplesmente lavadas com água que tudo lava – benditas as línguas destes pequenotes que, deixando-se comprar por biscoitos e afagos, continuam fiéis companheiros.

    Ora, assim se conclui facilmente que o comportamento canino é um franco resultado de uma relação e de uma tensão entre o estado selvagem e instintivo e a estreita ligação aos humanos. Somos todos muito parecidos, pena que a língua humana não seja tão eficaz a sarar como eficaz é a ferir.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Números que (nos) governam

    Números que (nos) governam


    Habituámo-nos aos números. São símbolos, mas também das principais formas de nos exprimirmos, de comunicar, de entender. Basta ligar o rádio, a televisão ou simplesmente navegar pela internet para perceber como aqueles invadem o nosso pensamento e nos revelam, e nivelam, o interesse pelos acontecimentos.

    Aparentemente, tudo se resume a algarismos, e o domínio destes revela-se um dos primeiros sinais da entrada na vida adulta – quando passamos a saber de cor, por exemplo, o nosso número de contribuinte.

    Alguns adultos são até tão adultos que decoram também o número do cartão de cidadão, o número da segurança social, o número da conta bancária – e tantos outros números que chega a ser possível igualá-los a uma verdadeira máquina registadora.

    person in white shirt and blue denim shorts standing on black and white floor

    Este estado de sedução, a que hoje me refiro; é compreensível; afinal, são os números que respondem às perguntas consideradas fundamentais, que nos apresentam e distinguem: a data de nascimento, o número de irmãos, a média das notas da licenciatura, o tempo de serviço, quanto pesamos, quanto medimos, quanto ganhamos, enfim…

    Porque a mediocridade tomou conta do coração de muitos, perdemos, ainda que aos poucos, o verdadeiro sentido destes aliados simbólicos.

    Pitágoras, um homem sábio, sobre quem pouco se sabe, nada escreveu, e por isso ninguém pode afirmar em absoluto aquilo que por ele terá sido dito. Aliás, aqui está uma curiosa característica comum aos que alcançam o nível mais profundo de conhecimento: nada escrevem (excepção feita para cronistas…).

    Diz a tradição que tanto Pitágoras como os seus alunos mantinham um silêncio pouco habitual. Julga-se saber que este mestre viajou por muitos lugares, não sentindo, ainda assim, a necessidade de registar essas experiências – o que hoje corresponderia à publicação de fotografias e vídeos, numa qualquer rede social. Mesmo assim, o filósofo e matemático concluiu que tudo no universo segue regras e proporções matemáticas.

    Portanto, se entendermos as relações numéricas e matemáticas conseguimos entender o cosmos. E, por isso, a Matemática tornou-se o modelo básico do pensamento humano, levando-nos, por sua vez, a afirmar que “os números governam as ideias”. Comprova-se na Música, na Geometria, na Arquitectura, na Física, na Química e em tantas outras áreas do saber.

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    A ideia de falar sobre números e sobre Pitágoras surgiu-me a propósito da época de exames nacionais. Havemos de falar de números, de muitos números, sejam sobre a quantidade de alunos, a relação das médias nacionais, as percentagens, o ranking.

    Aliás, ainda a propósito da ideia de se avaliar segundo cálculos matemáticos, a qualidade da aprendizagem reduz-se hoje a partir da posição que ocupa cada estabelecimento de ensino numa lista de médias nacionais.  

    Contudo, há um pormenor a reter: por um algarismo, uma virgula ou um sinal, o cálculo matemático erra um resultado. A Matemática é rigorosa. Talvez seja isso que nela nos assusta; afinal, geralmente não somos bons a Matemática – dizem-nos, ironicamente, as estatísticas. Explica-se assim porque somos maus a pensar e, consequentemente, péssimos com as ideias.

    Porém, nem tudo está perdido – caso saibamos assumir a postura de eternos estudantes, reaprendendo a contar (verdades), a somar (qualidades), a subtrair (defeitos), a multiplicar (amabilidades) e a dividir (com todos).


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  • Gente de avental

    Gente de avental


    É mais do que um objecto; é um símbolo e, por isso, ocorreu-me falar hoje de uma peça que, muitas vezes, passa despercebida aos olhos daqueles que nos conhecem, e que frequentam a nossa casa, a nossa intimidade.

    Uma peça que, não sendo secreta – excepto em alguns contextos que agora não são para aqui chamados –, se torna discreta. Atrás de uma porta, numa gaveta, num armário, ali está: o avental…

    O uso de avental como peça de vestuário remonta a tempos imemoriais. Feito de pele, de tecido vegetal, de plástico ou de outro qualquer material qualquer – desde que seja maleável – é de uso universal por homens, por mulheres, por crianças.

    Serve de proteção, geralmente em trabalho.

    Por isso mesmo, geralmente ao abordarmos alguém vestido com um avental pedimos desculpa, supondo estar a interromper o visado. O avental tornou-se um símbolo de “mãos ocupadas”.

    Envolvidos na ideia do avental, rapidamente recordamos as nossas mães, tias, avós. Recordamos a infância. Recordarmos a avó de avental e relembramo-la das suas ocupações, dos seus afazeres. O mesmo avental que lhe servia para colher uma peça de fruta no regaço e levá-la até à mesa, servia-lhe de pega quando a panela estava quente. Servia-lhe igualmente para secar as mãos antes de nos abraçar e, por incrível que pareça, bastava-lhe tirá-lo, ajeitar o cabelo e estava “arranjada” para sair de casa.

    Era mágico, aquele avental: podia desaparecer num piscar de olhos, sem que déssemos por isso. Também servia para fazer desaparecer alguma lágrima num desgosto inesperado, para fazer sumir o pó, para esconder pequenos objetos, qual manto da invisibilidade. Era útil para afastar moscas e, se não resultasse, para as matar!

    Provavelmente não recordaremos as nódoas desse avental, mesmo se nele se transportava lenha, legumes ou cascas. Servindo para (se) sujar, a verdade é que a avó o mantinha sempre limpo. Imaculado.

    woman in red and black dress walking on sidewalk during daytime

    O avental era uma extensão de si. Era sinal de identidade e, por isso, tinha orgulho nele do mesmo modo que tinham orgulho em tudo aquilo que fazia.

    Refiro os aventais das avós, mas também posso referir os outros aventais! – os manchados, rotos, riscados, rasgados. Com nódoas de sangue, de óleo, de ferrugem. Acontece que certas profissões a isso obrigam; labutar sujo, marcado pela natureza do trabalho. Sobre estes, escreverei um dia.

    Enquanto crianças, talvez nos recordemos de que sempre que tentávamos usar um avental, achávamo-lo cumprido, largo, e, por isso mesmo, fazia-nos sentir adultos, responsáveis.

    Hoje, já crescidos, pouco ligamos aos aventais. Vendem-se por aí alguns exemplares cuja natureza é meramente decorativa, não oferecendo, por exemplo, segurança nem funcionalidade, fruto de uma sociedade plástica, fútil, superficial.

    O avental é útil para quem faz, não para quem fala. Fala-se tanto… faz-se tão pouco.

    Neste ponto reside o fundamental que a todos aproxima – a possibilidade de transformar o mundo através das nossas próprias mãos. Não importa que o avental seja usado por um homem ou por uma mulher, importa o resultado: a eficácia.

    Talvez nos falte entender que é na utilidade que reside a perfeição, porquanto algo somente se torna perfeito se cumpre a função da sua concepção.

    Talvez um dia, quando aqueles que nos sucederem, se recordarem dos aventais, relembrem-se de nós com o mesmo amor e ternura com que recuperamos da memória aqueles que, por nos terem sido úteis, foram perfeitos.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os humanos de oito pernas

    Os humanos de oito pernas


    Foi descoberto recentemente o manuscrito primordial de Clavis Prophetarum, ou Chave dos Profetas, umas das obras magnas do Padre António Vieira, que se julgava perdido para sempre. Ainda que possamos pensar na sorte da investigadora, que quase por mero acaso o encontrou na Biblioteca da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, a verdade é que a sorte, se assim lhe quisermos chamar, esteve do lado do manuscrito. Muitos o manusearam, folhearam, leram e por ignorância, por incompetência, ou simplesmente por indiferença, não lhe atribuíram o respectivo valor.

    Manuscrito original de Clovis Prophetarum. Foto: © Arquivo Pontifícia Universidade Gregoriana.

    Porque já quase tudo foi dito sobre a descoberta, considero oportuno partilhar com os leitores uma ou outra ideia sobre aquilo que Vieira nos deixou. E que continua de grande actualidade.

    Recordemos, por exemplo, o Sermão de Santo António aos peixes. Se a memória não me falha, e se a Internet não me engana, diz-nos este jesuíta: “E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa (…) o dito polvo é o maior traidor do mar.” Compara assim o religioso a aparência do polvo com a serenidade e confiança que nos deve fazer passar um monge.

    Padre António Vieira (1608-1697)

    O conhecido olhar de António Vieira sobre da Humanidade acaba por estar permanentemente na ordem do dia, tanto hoje como há mais de 350 anos. Vivendo ele para o absoluto, não viveu para o poder. Deu murros na mesa, defendeu os fracos, os diferentes, foi um verdadeiro advogado da Humanidade.

    Como visionário, esteve à frente do seu tempo, razão pela qual remou sempre, e incansavelmente, contra a maré, enfrentando maiorias. A irreverência isolou-o de tal forma que acabou por parecer, aos olhos dos outros homens, mais homem do que santo. É pena. Foi pena.

    Voltando ao polvo. Também eu tenho razões de queixa deste desgraçado cefalópode. A verdade é que, quando o colocamos na panela, nunca sabemos com o que podemos contar. A maneira como mirra chega a parecer vingança. E pode mesmo ser – pela maldade que lhe fizemos.

    Sabemos que a capacidade do polvo em mudar de cor, ao assumir os tons do ambiente, faz dele um dos mais hábeis predadores e, uma vez mais, em tudo se assemelha à forma de ser e de actuar do ser humano. Não é que tenhamos predadores à nossa volta, que nos queiram comer. Desses, de uma forma geral, já nós nos fomos libertando, mas a constante lei do mais apto torna-nos, muitas vezes, verdadeiros “polvos terrestres”. Aprendemos tais manhas, desde tenra idade, que ficamos perigosos muito célere, e o pior de tudo é que não paramos de adquirir novas capacidades e esquemas até à velhice. Com isto, sobrevivemos. Não vivemos. Essa parece ser, aliás, a questão que nos leva a actuar como predadores.

    Apesar de tudo isto, ou sobretudo por isto, convém relembrar a inteligência dos polvos, que os mergulhadores relatam em momentos de interação. Nessas situações, eles vêem-nos como seres inteligentes, e como tal, assim gostam de brincar com humanos. Eles não nos olham, durante esses contactos, nem como presas nem como predadores. Por isso, um mergulhador que não queira caçar um polvo pode vê-lo, e sentir, que tem ali um bom companheiro para momentos de descontração. E não vê no polvo nem fúria nem medo.

    brown octopus

    Na verdade, esta analogia serve para dizer que não somos maus por uma nossa natureza, tal como mau este molusco não é. Defendemo-nos simplesmente daquilo que nos assusta ou que nos tenta atacar. Quando formos capazes de perder o medo e nos tornarmos mais seguros de nós próprios, talvez esteja dado o passo significativo no que toca aos valores e integridade.

    Afinal, não é o polvo que se apresenta como monge, nós é que nos apresentamos, muitas vezes, como polvos.


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  • Pedras para que vos quero

    Pedras para que vos quero


    Viajei, por razões profissionais e académicas, até Roma – a Cidade Eterna; e a propósito de uma conversa casual, dei por mim a pensar na conservação das antigas estradas do Império Romano. Os milhares de quilómetros de construção, que se estenderam da capital ao “resto do mundo”, são de uma qualidade excecional. Tanto assim que a robustez dos materiais e a técnica dos mestres garantiu que essas infraestruturas chegassem muitas vezes quase intactas aos nossos dias.

    O tempo e o dinheiro investidos na construção destas vias ofereceram uma importante vantagem à circulação de pessoas e de bens. Infelizmente, com o passar do tempo, esquecemo-nos do significado das ideias de qualidade, de robustez, de mestres. Por isso, já não construímos como antigamente.

    É ainda curioso saber que nem todas as pedras destas estradas se mantiveram no lugar. Na verdade, algumas acabaram por ser arrancadas do solo para depois servir na edificação de castelos durante o período medieval. Imagine-se estes pedaços de rocha com características humanas, e facilmente conseguimos vislumbrar o orgulho que poderiam sentir ao deixar de viver no chão – a servir de sustento a pés, patas e rodas – para passar a viver ao alto, integrando muros imponentes.

    Quem visita Roma, encontra vestígios de construções milenares espalhadas por toda a cidade. Ano após ano, construção em cima de construção, a cidade evoluiu, mas, ainda assim, as colunas, os capitéis, as paredes ou as abóbodas permaneceram nos mesmos lugares – e resistiram ao tempo, aos terramotos, às guerras, ao vandalismo.

    Ainda que a cristianização do Império tenha levado a uma transfiguração da obra imperial – por exemplo, a conversão dos antigos templos em igrejas –, a ideia romana manteve-se na expressão do eterno, do grandioso, do imponente. Cristianizou-se os romanos e romanizou-se os cristãos…

    Enquanto pensava em ideias para escrever esta crónica, tive o privilégio de ser embalado pelo som das águas refrescantes das fontes, dos chafarizes, do rio e, se não fosse o descuido na limpeza urbana, tinha-me sentido num pequeno paraíso. Em cada esquina, um monumento, uma relíquia – cada uma mais antiga e mais bonita do que a anterior. Nas ruas ouvimos o tom alto e exagerado com que se fala localmente. Gesticulam muito. Buzinam por tudo e por nada. A condução é caótica. Talvez, por isso, seja difícil imaginar esta cidade fechada ao turismo durante o recolher obrigatório.

    Nesta cidade ainda se sente o medo e a exigência trazidos pela pandemia. Ainda se pede certificados e para se andar mascarados…

    Na rua, a arte urbana ganhou um novo tema. Numa velha parede de esquina, alguém desenhou um quadro perfeitamente integrado. Nele a alusão à “Vacina Santa”, mesmo ao lado do Vaticano: são os sinais dos tempos.

    Mas, voltemos às pedras. Não há dúvida de que o ser humano é capaz de criar obras geniais com elas. Não me refiro exclusivamente às basílicas ou aos edifícios em geral.  Refiro-me também à criação de pequenos pormenores artísticos que eternizam ideias e ideais – a vida, a morte, a eternidade, a esperança, a justiça, a fé, a caridade.

    Dentro das igrejas existem túmulos lindíssimos, que tentam perpetuar na morte aquilo que não foi alcançado na vida. Parece-me oportuno, hoje, mais do que nunca, entender uma simples ideia: não passamos de pequenas pedras brutas a precisar de um bom desbaste…

    Dos castelos medievais, hoje, o que nos mostram são apenas réplicas – Guimarães, São Jorge, Almourol… –, ao contrário das estradas, dos aquedutos, das pontes romanas.

    O declínio do Império Romano coincidiu com o desinvestimento na circulação de bens e de pessoas. A estagnação matou. Não aprendemos.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.