Etiqueta: Nuno André

  • Lambadas em inocentes

    Lambadas em inocentes


    Por mais que se discuta sobre a violência doméstica, este tema não permite esgotar-se, infelizmente.

    Doutos conhecedores tecem considerações, apresentam números e duras críticas ao sistema. Brincam com dados, mais ou menos tendenciosos, que continuam a depender de quem encomenda os estudos. Assim, por mais que se discuta na praça pública a questão, continuamos sem encontrar soluções.

    A violência doméstica está presente em diferentes lares, não conhecendo idade, estrato social ou nível de literacia. Pratica-se violência contra mulheres, contra homens, contra crianças, contra idosos… Não devia ser assim. Assusta-me assistir ao esgrimir do tema pelos meios de comunicação. O assunto vende, e por isso lá vão aparecendo exemplos, contados na primeira pessoa, que nos tocam no coração. Lamento que haja um aproveitamento do tema e não uma verdadeira luta para erradicar este mal.

    grayscale photo of human skeleton

    A solução encontra-se enraizada na educação. Na resposta integral para a construção de uma sociedade evoluída moralmente. Falta, por isso, ganhar consciência do sentido da vida. Assim, resolvendo o problema na raiz, não será necessário apontar os erros nas respostas às denúncias ou nos processos judiciais. As utopias ainda fazem sentido. Sabemos para onde queremos caminhar e temos a certeza de onde não queremos permanecer.

    A nossa integração social vive de uma resposta constante à lei do mais apto. Desde cedo apercebemo-nos de que necessitamos de esquemas e artimanhas para alcançar o que pretendemos. Entre choros e gracinhas, os mais pequeninos lá nos levam a ceder às suas vontades. Conforme crescemos simplesmente vamos apurando este nosso lado profundamente humano.

    O despertar para uma moral alicerçada numa consciência ética, está em entender o que é o homem. Não perceber isto é não entender o que é a vida. Podemos discutir política ou até mesmo religião, mas há uma inclinação natural para o bem comum que, mais que discutir devemos viver. Nem todos têm o mesmo grau de desenvolvimento intelectual; nem todos têm a capacidade de discernir profundamente os assuntos e, por isso, compete a quem é capaz de o fazer, ajudar a transformar o mundo em que vivemos num mundo melhor.

    person holding white printer paper

    É nossa obrigação denunciar a violência doméstica do nosso vizinho, mas o mais importante é não sermos violentos no nosso lar. Pensar o mundo só faz sentido se formos capazes de acolher a educação moral. A violência faz parte da natureza humana. Basta atentar na nossa História para percebermos como boa parte dela se desenrolou à lei da pancadaria. Lutar contra esta tendência é inverter a nossa natureza. Qual pedra bruta, devemos deixar que o escultor nos possa talhar. Mas, há sempre uma pergunta que se impõe: que mãos é que nos vão moldar?

    Quando era criança ouvia a música Lambada, um ritmo brasileiro que escutava enquanto sonhava com o dia em que haveria de dançar com uma morena linda e bem agarradinho. Recorda-me a frescura do amor inocente. Na altura, tinha seis anos e não sabia que havia por aí outras “lambadas”…

  • Da inteligência e da honestidade

    Da inteligência e da honestidade


    A propósito de uma notícia curiosa sobre uma estrambólica fraude em Itália, ocorreu-me falar sobre honestidade. Honestidade que é inerente ao carácter e que está implícita na nossa forma de pensar, de agir, de ser.

     Se por um lado a vida parece ensinar-nos que “quanto mais esperto melhor”, o tempo revela que a esperteza – característica dos fracos – nada pode contra a sabedoria. Aliás, a esperteza revela ser a maior fraqueza dos que se julgam fortes.

    person using laptop computers

    Mas se enganar os outros é em si uma tarefa desonesta, enganar-se a si próprio é ainda mais corrosivo, lamentável, deplorável.

    Porque os políticos também nos contam “histórias”, há um em particular – Teófilo Braga – de quem me recordo. Presidente da República, num curto período (1915), foi ele também um profícuo ficcionista, ensaísta e etnógrafo, imortalizando diversas pérolas da tradição popular portuguesa, como a do cego e o mealheiro, integrada no segundo volume dos Contos Tradicionais do Povo Português, originalmente publicado em 1883 :

    Era uma vez um cego que tinha ajuntado no peditório uma boa quantia de moedas. Para que ninguém lhas roubasse, tinha-as metido dentro de uma panela, que guardava enterrada no quintal, debaixo de uma figueira. Ele lá sabia o lugar e quando ajuntava outra boa maquia, desenterrava a panela, contava tudo e tornava a esconder o seu tesouro. Um vizinho espreitou-o e, vendo onde é que ele enterrava a panela, foi lá e roubou tudo. Quando o cego deu pela falta do dinheiro ficou calado, mas começou a dar voltas ao miolo para ver se arranjava uma estratégia para reaver o seu dinheiro. Pôs-se a considerar quem seria o ladrão e achou lá para si que era por força o vizinho. Tratou de ir à fala e disse-lhe:

    — Olhe, meu amigo, quero-lhe dizer uma coisa muito em particular, que ninguém nos oiça.

    — Então que é, senhor vizinho?

    brown round coins on brown wooden surface

    — Eu ando doente e isto há viver e morrer. Por isso, quero dar-lhe uma parte de algumas moedas que tenho enterradas no quintal, dentro de uma panela, mesmo debaixo da figueira. Já se sabe, como não tenho parentes, há de ficar tudo para vossemecê, que sempre tem sido um bom vizinho e me tem tratado bem. Ainda tenho aí, num buraco, mais umas moedas de ouro e quero guardar tudo junto, para o que der e vier.

    O vizinho, ao ouvir aquilo, agradeceu-lhe muito a intenção. Naquela noite tratou logo de ir enterrar outra vez a panela de dinheiro onde ela estava, com a intenção de apanhar o resto do tesouro.

    Quando bem o entendeu, o cego foi ao sítio, encontrou a panela e trouxe-a para casa e então é que se pôs a fazer uma grande caramunha ao vizinho, dizendo: — Roubaram-me tudo! Roubaram-me tudo senhor vizinho.

    Daí em diante guardou o seu dinheiro num lugar onde ninguém, por mais pintado que fosse, conseguiria dar com ele.

    Assim, concluímos que enquanto formos espertos, facilmente encontraremos quem o seja mais do que nós. Já falar de sabedoria é outra história.

  • Não por ser mulher, mas por ser boa

    Não por ser mulher, mas por ser boa


    Posso sentir-me tentado a afirmar que as crianças de hoje vivem num mundo mais justo. Um mundo onde as oportunidades tendem a ser igualmente distribuídas e desprovidas de preconceitos. Porém, esta afirmação exige uma leitura atenta, esclarecida, porque tende a ser verdade em poucas partes do planeta. Infelizmente.

    Acredito que a simpatia, e a atenção, que tenho merecido por parte de quem lê, é sem dúvida um reflexo do profundo respeito que tenho por quem me lê – mas também pela Humanidade. Leio os comentários, as opiniões, os contributos… é justo que gaste tempo a fazê-lo. Estou grato.

    woman in black jacket sitting beside woman in white blazer

    Sublinho que não escrevo para ganhar prémios ou para agradar a uma classe, muito menos almejo qualquer retribuição que não seja a edificação de um mundo mais iluminado, mais esclarecido e assim mais tolerante. Por isso, no que toca a direitos e deveres defendo a igualdade.

    Defender a igualdade não significa o esvaziamento ou a redução da pessoa à ideia plástica de que somos todos iguais – até porque a ideia de igualdade não se esgota na tentativa de reduzir os elementos de possível comparação à ausência de diferenças. Igualdade é indiscutivelmente muito mais do que isso.

    Assusta-me que alguns oportunistas sobrevivam ao lado da defesa dos direitos humanos.

    Aterroriza-me que haja quem ouse evocar a questão da igualdade para alcançar aquilo que por mérito não alcançou.

    Chega a ser contraditório. Passo a explicar.

    woman holding white mug while standing

    Recentemente, ouvi uma mulher defender a sua candidatura para um determinado lugar de liderança, justificando-se com o facto de ser mulher: “Chegou a hora de ser uma mulher a tomar a dianteira” – afirmou, impiedosa.

    Não. Não chegou.

    Chegou, sim, o momento de os bons tomarem a dianteira – homens ou mulheres. O desejo mais oportuno é pelo tempo dos bons, dos competentes.

    Então, sendo intrinsecamente boa, que nenhuma mulher seja impedida de ocupar um lugar de liderança. Aqui reside, sem dúvida, o direito à igualdade.

    Na mente daqueles que, em primeiro lugar, desejaram a igualdade, estava implícita a diferença entre os estratos sociais – o título, o apelido, o estatuto social – que marcavam as oportunidades de cada um.

    woman sitting in front of desk with computer monitor and keyboard on top

    Somos todos diferentes, sempre fomos. Uns são melhores do que os outros – e isso é assustador. Ora quando ficamos assustados, jogamos ao ataque, destruímos, assumimos o preconceito e esquecemos o quanto é bom sermos todos diferentes.

    Aliás, talvez seja essa uma das grandes oportunidades de não sermos confundidos, pois quando dizemos que alguém marcou a diferença, fazemo-lo no intuito de distinguir o que é positivo. Por isso, parece oportuno mudar o discurso na forma e no conteúdo para que cada mulher possa, de facto, ser diferente e destacar-se pela diferença.

    Chegará o dia em que a luta será pelo direito à diferença – até lá viva a igualdade. Mesmo sabendo que uns serão sempre mais iguais do que outros.

  • Estranha forma de vida

    Estranha forma de vida


    A exposição frequente a um determinado estímulo gera tal familiaridade que nos vemos conduzidos a uma mudança de atitudes, na forma de preferências e afectos. Esta preferência é acima de tudo emocional e forma-se ao nível do subconsciente, ou seja, antes de se ter consciência dela.   

    Mas, antes de mais, ilustremos esta ideia com uma breve história.  

    six leafy vegetables

    Um homem muito rico desejou ser eremita e, por isso, foi viver para o deserto. Queria libertar-se do trabalho, das pessoas, da loucura social. Isolado e sem ter onde comprar alimentos, decidiu cozinhar um caldo com diversos tipos de ervas que foi encontrando aqui e acolá.

    Depois de muitas horas de colheita, ferveu a água e acrescentou-lhe os poucos ingredientes que colhera. Finalmente, depois de cozinhado o caldo, ao levantar a tampa para cheirar o paupérrimo manjar, um gafanhoto saltou para dentro da panela. Enojado, apagou as brasas, deitou a sopa fora e, nesse dia, fez jejum.

    No dia seguinte, desejava um caldo e, por isso, repetiu o mesmo cerimonial de recolha e confeção. Mas, cada vez que cozinhava, havia um gafanhoto a invadir-lhe a panela. Certa vez, aborrecido e cansado de desperdiçar a sopa, decidiu retirar o insecto com a concha e mesmo assim comê-la. Aquele gesto passou a ser rotina, pois percebeu que se assim não fosse acabaria por morrer de fome. 

    Pergunto-me se não será isto mesmo que acontece connosco quando crescemos e nos familiarizamos com o que está (e o que acontece) à nossa volta, desde a mais tenra idade. Comparemos, neste contexto, a vida a uma representação teatral.

    red theater curtain

    As pessoas, ou melhor, os “actores”, procuram deixar uma impressão favorável de si mesmos mediante a sua personagem, fazendo a distinção entre aquela que é a zona de cena e os bastidores. Naquela existe um público para quem representamos e de quem esperamos aplausos. Nos bastidores, “desmanchamos” a nossa personagem, andamos sem maquilhagem, sem roupas exuberantes e estamos despreocupados. 

    Para quem já esteve em cena, num palco a sério, sabe o quão exigente pode ser aquela circunstância. O desconforto das luzes que batem nos olhos, a permanente colocação da voz, os movimentos repetidos que não podem ser esquecidos, os textos, os imprevistos e acima de tudo, a expectativa acerca da reação do público.  

    Num exercício rápido e atento sobre o que nos rodeia, percebemos que não somos nós a escrever a peça, que em vez de “actores principais”, somos, na maior parte das vezes, “actores secundários” num espectáculo triste e amargurado por falta de público que aplauda. Percebemos que não há quem encontre o guião e que o palco carece de espaço para que todos brilhem em cena, simultaneamente. 

    Nos bastidores, encontramos gente cabisbaixa, deprimida, frustrada, drogada.  

    gold and black dragon figurine

    Aparentemente, ninguém nos explicou, desde cedo, que não se trata de representação teatral alguma, mas sim de viver uma vida livre e completa. Ninguém nos ensinou o quão bom é sentir cada beijo, cada respiração, cada abraço de forma plena e espontânea.  

    As religiões e a moral são acusadas de serem castradoras da felicidade. Porém, aqueles que nos rodeiam não param de nos gritar que subamos ao palco, que repitamos cenas, uma e outra vez. E de tanto repetir, passamos a acreditar que, de facto, há um público à nossa espera, à espera de que sejamos alguém que ninguém sabe quem é… 

    Voltando à história do eremita: conta-se que este, a partir de certa altura, passou a procurar gafanhotos para com eles fazer sopa, até ao final da sua vida.  

  • Prostituída e violada, mas generosa

    Prostituída e violada, mas generosa


    O nosso planeta – a Terra Mãe – atingiu um estado irreversível.

    Falhámos como sociedade e, como se não bastasse, permitimos a mentira, aceitamos que nos escondam verdades e envolvemo-nos conscientemente em orquestrações prejudiciais, das quais nos tornamos cúmplices.

    Possuir parece ser razão de prazer que justifica a luta de uma vida inteira – possuir terra, casas, carros, árvores, empresas, dinheiro, roupa, pessoas.

    outer space photography of earth

    Ao deter o olhar no passado, facilmente percebemos que não fomos capazes de viver ao sabor do natural, perfeitamente integrados na Natureza, razão pela qual acabámos por moldar tudo o que nos rodeia à nossa medida. Em nome da prosperidade, do progresso, da evolução, das ideias e ideais que prometiam a edificação de um mundo melhor, destruímos e transformámos a Terra num lugar pior.

    Fomos e somos descarados.

    Pode ser que se viva, hoje, melhor do que noutros tempos: habitam-se casas mais confortáveis, vive-se em espaços mais limpos, tem-se mais medicamentos disponíveis, tem-se cada vez mais tempo. Mas, estas evidências nunca estiveram ao alcance de todos.

    large tree in middle of forest during daytime

    Hoje, nesta Era Global, tudo tem impacto à escala mundial e, por essa razão, lutamos por direitos universais, viajamos e conhecemos todos os cantos da Terra, chegamos a todo o lado, estamos em toda a parte. Sentimo-nos omnipresentes, omniscientes e omnipotentes. Todavia, estamos conscientes de que trouxemos o nosso planeta a um estado de exaustão inqualificável.

    A nossa Mãe Natureza, que tudo nos deu – até a inteligência –, esperava certamente mais de nós, muito mais. Mais amor, mais respeito, mais dedicação.

    Estamos a prostituí-la, estamos a violá-la até às entranhas. As inundações a que assistimos são fruto das suas lágrimas de dor. As tempestades e os terramotos são gritos e espasmos amargurados de tanto sofrimento. As altas temperaturas e os incêndios nada mais são do que a cólera de um corpo quente, suado, saturado e doente, inflamado, vilipendiado…

    blue and gray rolling chair

    Chegámos ao fim de um mundo. Estamos prestes a acabar. Por tua culpa. Por minha culpa. Por nossa culpa. Chegámos ao aparente fracasso das religiões, das filosofias, da política, da educação. Este podia ser o momento de ressurgir, mas não queremos.

    Peço, por isso, desculpa aos meus filhos e a todas as crianças que jamais conhecerão aquilo que um dia eu conheci. Se o ser humano é capaz do melhor e do pior, resta-nos acreditar nas crianças, acreditar que sejam capazes de fazer bem melhor do que nós.

    No entanto, para a nova geração, deixou de existir o direito à liberdade de cuidar ou não do nosso planeta. Ficou o dever, por isso temo que tão cedo ninguém volte a ser livre.

  • Meretrizes da solidariedade

    Meretrizes da solidariedade


    Contemplar uma mãe que amamenta é repousar o olhar num acto de beleza incomparável. A naturalidade com que uma mulher o faz, não sugere qualquer tom sexual. Trata-se, aliás, de uma imagem bastamente romanceada que inspirou artistas de todo o Mundo e faz parte do leque de sonhos que muitas jovens desejam concretizar.

    Na constante tensão entre o que consideramos ser bom, porque nos dá prazer, e o que tem de ser feito, porque é nosso dever, está o eixo em torno do qual se desenvolve o nosso carácter.

    Se o egoísmo produz um efeito deletério sobre o desenvolvimento da sociedade, o altruísmo evoca o que de melhor existe no ser humano para viver em comunidade.

    Atente-se na imagem da mãe que amamenta. Para lá da ideia redutora da amamentação como um acto romântico, pode estar um cenário de dor, repulsa e ansiedade.

    Esta experiência de sacrifício dá lugar à comunhão entre dois seres. Esta conversão de dor em alimento é regeneradora e estabelece laços. Porque a Humanidade é uma família, é dever de cada um preocupar-se com o bem-comum e com a felicidade coletiva.

    Compete-nos, por isso, libertar a nossa sociedade materialista da idealização romântica da vida, revendo comportamentos e critérios a fim de se saber julgar o que é o bem, o bom e o dever.

    O gesto filantrópico arrasta consigo um mundo de beleza, que é vivido individualmente, e que se distingue de pessoa para pessoa. Importa, porém, recordar que uma coisa é viver para solidariedade e outra é viver à custa da solidariedade. Aquela manifesta-se uma extensão do bem, enquanto esta – perversa – se revela de natureza suspeita.

    O que não falta são associações de cariz solidário. As motivações distinguem-se particularmente não pelos seus estatutos, que se regem por uma lei geral e comum, mas pela forma como os sócios e respectivos órgãos sociais fazem a justa gestão dos bens que lhes são confiados.

    Se alguns o fazem para merecer o céu, outros há que enchem o seu coração por ver a felicidade de quem se alegra com tão pouco. Uns matam a solidão pelo envolvimento social, e outros ainda esperam o reconhecimento do alheio. Tudo isto faz parte desta missão que tanto tem de belo como pode ter de perverso.

    girl holding umbrella on grass field

    Numa interpretação diferente da que se popularizou, Rómulo e Remo, fundadores de Roma, teriam sido alimentados por uma prostituta, e não por uma loba, já que “lupa” tem duplo significado. Quem sabe se o leite desta mulher pertencia ou não a algum filho que nunca tenha chegado a ver a luz do dia. Deu-lhes tudo quanto tinha, confortou-os com o alimento do corpo e da alma. Contudo, talvez por ser mais poética, a imagem de uma loba veio a vingar.

    Hoje, tal como passado, continuam a surgir as meretrizes da caridade alheia. Apenas, em vez de alimentarem os que têm fome, estas enfartam-se até lamberem os próprios dedos, julgando assim esconder os vestígios da sua imundície.

  • Sombras da noite cintilando nas universidades

    Sombras da noite cintilando nas universidades


    Quem já navegou durante a noite entende perfeitamente a importância das estrelas e dos faróis. Se aquelas em nada dependem da mão humana para cintilar, estes são um exemplo extraordinário do engenho e da técnica da Humanidade. Apesar de tudo, por mais belos que sejam, nem as estrelas nem os faróis são um destino em si mesmo, revelando-se úteis ao ajudar o navegador a tomar consciência da sua localização e ao sinalizar perigos.

    Quando atingimos a frescura da adolescência, aventuramo-nos sem medo por águas desconhecidas e, num golpe de inconsciência, os jovens facilmente acreditam nos sonhos e na aventura, entregando-se a causas, às quais aderem de corpo e alma.

    Fazem-no pela adrenalina, pela novidade, pela provocação, mas acima de tudo, a sua atitude revela uma forte intenção de encontrar o seu lugar no Mundo. Mas há quem disso se aproveite e se alimente dessa energia juvenil.

    Em oposição à imagem dos abutres – que preferem carne em avançado estado de putrefação – é o comportamento dos vampiros que mais se aproxima daqueles que, sedentos de sangue novo, capturam os mais desprevenidos.

    Não é em vão que as juventudes partidárias circundam as universidades. É lá que vão pescar os potenciais camaradas, propondo-lhes um lugar de intervenção na primeira fila para mudar o Mundo.  Assim, infelizmente, o que podia ser uma escola de vida torna-se, em demasiados casos, numa escola mafiosa de atropelos e interesses, acabando por formar verdadeiros parasitas da sociedade.

    Já António Vieira, conhecido padre jesuíta, no famoso Sermão de Santo António aos Peixes, se tinha lembrado de nos alertar para os interesses dos parasitas e oportunistas dos pegadores, da vaidade dos peixes voadores, da soberba e arrogância dos roncadores e da traição do polvo.

    woman holding book on bookshelves

    O lugar dos jovens é no mundo! No mundo real do trabalho, dos projetos sociais e humanos que não servem propagandas, do amor que não escolhe apelidos… Tudo isto enquanto ganham uma autêntica experiência de vida.

    Estou certo de que todos gostaríamos de ver, no poder político, gente completa e dedicada, verdadeiramente vocacionada para servir a construção de uma sociedade organizada e justa em nome de ideais e valores. Começa a ser insuportável e insustentável viver neste clima de conformismo no qual mergulhámos e do qual dificilmente conseguimos emergir.

    Todos, sem exceção, devemos ser uma espécie de faróis uns dos outros. Referências e sinais de apoio para que cada um se encontre e, consequentemente, saiba o rumo que quer tomar.

    Este exercício contém em si responsabilidade colectiva e pessoal. Trata-se de deixar irradiar uma luz que não nos pertence e que, por isso, deverá ser sentida como dádiva. Desse modo quem seguir a nossa luz não nos segue a nós, mas a nossa mensagem.

  • Crónicas de uma cidade que se passeia

    Crónicas de uma cidade que se passeia

    Título

    Lisboa: indo e vindo

    Autora

    FILOMENA MARONA BEJA

    Editora (Edição)

    Parsifal (Abril de 2022)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Não tendo a pretensão de se tornar um guia e muito menos um livro técnico, Lisboa: indo e vindo consegue levar-nos a passear pela cidade e a ensina-nos Arquitectura, História e Arte sem que, para isso, sejam necessários conhecimentos prévios. Podia até ser mais uma no meio de tantas outras obras sobre a capital portuguesa, mas o ritmo, o tom e o estilo convidam a experimentar uma outra forma de conhecer a cidade dos alfacinhas.

    A escritora Filomena Marona Beja, num roteiro bem organizado e num estilo peculiar, junta memórias da capital portuguesa à História. No conjunto, revelam-se verdadeiros tesouros de curiosidades. Quem conhece a cidade, facilmente se recordará dos espaços descritos neste livro, e quem ainda não a conhece virá certamente a querer visitá-la.

    Como acontece em qualquer lugar habitado pelo Homem, também as cidades sofrem mudanças diárias. Os ritmos de vida, a evolução e o crescimento obrigam à construção de novos prédios, à inauguração de novas ruas e à demolição de edifícios. Por isso, não é tarefa fácil conhecer a génese dos espaços e das gentes, assim como não é fácil acertar no essencial da vida da comunidade, na vida quotidiana.

    Para o conseguir isso é preciso viver, gastar tempo, passar pela experiência da cidade. Filomena Beja faz tudo isto com competência e simplicidade. Contrariando outras obras menos credíveis, quiçá mais mercantilistas, desperta os sentidos do leitor e descreve cada lugar de forma expressiva, cristalina. Conta histórias, revela particularidades honestamente sustentadas.

    Neste conjunto de escritos a autora foge ao seu estilo habitual. Dedica-se a falar do Poço do Bispo, do Tejo, do Hospital de São José, do Jardim Zoológico, dos cafés lisboetas… Mas, porque estamos a falar de uma cidade tão vasta e tão rica, podemos perguntar: onde estão os outros lugares icónicos como o Campo Pequeno, o Jardim da Estrela, a Feira Popular ou tantos outros espaços que compõem e harmonizam o ritmo da cidade? Sabemos a resposta. Não estão. Não podiam estar. Não tinham que estar. Ainda que tenham feito parte dos 78 anos de vida da autora – e fizeram certamente – contribuir com demasiada informação seria correr o risco de transformar a obra num livro pesado, maçador.

    Livros como este são úteis. Neles se guardam memórias pessoais e coletivas. Fixam-se histórias. 

    Por isso, a crónica, estilo que Filomena Beja adoptou, foi uma excelente opção para deixar saudade a uns, matar a curiosidade de outros e despertar a vontade de passear pela cidade aos demais. São cento e quarenta páginas de equilíbrio e sobriedade. De Lisboa.

  • Afinal não ficou tudo bem

    Afinal não ficou tudo bem


    Não está tudo bem. Não ficará tudo bem.

    Creio que uma das principais diferenças entre o passado e o presente é o facto de estarmos a viver na Idade Global – e não na Antiguidade, nem na Idade Média, nem na Idade Moderna, nem na Idade Contemporânea.

    Uma Idade Global em que quase tudo se espalha pelo planeta num espaço de 24 horas – e em que a comunicação real demora menos de um minuto para dar a volta ao globo terreste. Aliás, somente na velocidade do conhecimento e da transmissão, a pandemia foi (ou está a ser) diferente de qualquer uma das anteriores. E hoje, tal como foi ontem, temos economias destruídas e perturbações no quotidiano. Mas, ainda assim, a todas as pandemias os seres humanos sobreviveram e, de quase todas, se vão esquecendo.

    red and black car in tilt shift lens

    Pode parecer irónico falar de esquecimento quando estamos a viver na primeira pessoa, conscientes de que, possivelmente, ainda não passou a pior parte. Agora, depois do medo a que fomos sujeitos, o pior está para vir – principalmente quando soubermos a verdade, quando tivermos acesso a outros ângulos de uma mesma verdade, quando estivermos informados.

    Mas, sem querer dispersar, recordo que logo que surgiram arco-íris às janelas escrevi uma crónica no Jornal i que intitulei “Não vai ficar tudo bem” – e não ficou.

    Continuo a acreditar que a pandemia, sendo uma porta para a mudança, não é por si um ponto de viragem radical. Exemplo disso foi o infeliz aumento de casos de violência.

    Nos lares, onde deveria imperar o amor, houve espaço para a contradição. Contradição que se estende de casa em casa, de rua em rua, de cidade em cidade. A humanidade pode estar à beira da extinção, mas parece que ninguém deu por isso.

    A preocupação é, e sempre foi, com a economia, com o dinheiro, com o poder, com a supremacia. A ordem continua a ser: consumir! O sonho continua a ser pautado pela ideia de prosperidade. A receita é simples: acreditar no que nos dizem e seguir em frente. Ordeiros. Sem fazer perguntas. Condicionados.

    Mesmo assim, em relação ao passado, temos mais liberdade, melhores condições de vida, mais oportunidades a todos os níveis.

    man sleeping on bench in the middle of the street

    Mas, em troca, tornámo-nos escravos do dinheiro, obcecados, doentes, desequilibrados. Sim, estamos doentes e ainda por cima, além de não reconhecermos isso, não aceitamos o remédio. É como se soubéssemos onde residem as células malignas que nos matam e não estivéssemos dispostos a sofrer para as arrancar.

    Pelo contrário, deixamo-nos levar pelo sofrimento não dando espaço ao amor. E sim, é de amor que devemos falar. Amor que tudo suporta e que tudo supera. Amor que, segundo a nossa natureza animal não nos conduz a uma vida isolada e fechada sobre si, mas antes a uma experiência de comunidade. Neste ponto o amor estende-se ao próximo na forma de caridade, solidariedade ou em última análise de fraternidade.

    Refiro-me ao amor que, por ser amor não é egoísta, nem mentiroso, nem manipulador. Um amor que não nos prende ou engana como os espelhos ainda que ao ver o nosso próprio reflexo num objeto seja fascinante. Este gesto habitual pode trazer consigo uma inquietação em torno da pergunta filosófica: “quem sou?”. Por princípio, podemos afirmar que o espelho não mente, já que nos revela a verdade que se apresenta diante de si.

    Em tom de conclusão, relembremos a história da Branca de Neve. Nela, a bruxa pergunta ao espelho: “espelho meu espelho meu, há alguém mais bela do que eu?” Sim – respondeu-lhe o espelho deixando-a devastada. É aterrador quando nos dão a resposta errada. Errada, na medida em que não era aquela que desejávamos ouvir.

    person holding clear glass ball

    Já alguma vez vos aconteceu chegar a casa, olharem-se ao espelho e perceber que afinal uma certa peça de roupa não fica assim tão bem? É justamente aqui que reside o ponto. Há espelhos que nos mentem. As lojas de roupa ou os ginásios que o digam, são autênticas máquinas de distorção da realidade.

    Ainda sou do tempo da diversão da casa dos espelhos na Feira Popular. Lá, todos os espelhos eram assumidamente mentirosos e apesar de tudo, divertíamo-nos muito com isso. Talvez pelo descaramento da mentira. A quem não se recorda ou nunca conheceu este divertimento, explique-se que era um circuito labiríntico de pequenas salas de espelhos que brincavam com as nossas formas, faziam-nos gordos, magros, cabeçudos, anões ou gigantes… Riamo-nos das mentiras que nos contavam. Sabíamos que lá no fundo tudo aquilo era ilusão.

    O problema surge quando olhamos para os espelhos mentirosos e acreditamos que aquilo que estamos a ver é verdade. Em última análise, não é o espelho que nos julga, mas a nossa consciência. A mesma consciência que nos acompanha e pressiona a cada decisão. A mesma consciência que nos obriga a seguir os padrões de beleza e de verdade que alguns cretinos tiveram a liberdade de definir.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Terra do Sol Nascente

    Terra do Sol Nascente


    Desde os primórdios da Humanidade, as diferentes civilizações têm olhado o sol tecendo considerações religiosas, filosóficas e científicas. Se é graças à sua luz e calor que há vida na Terra, é também por sua causa que a vida um dia se extinguirá.

    Este astro começa por ser uma bola de hidrogénio, que se vai apertando e aquecendo até atingir cerca de dez milhões de graus centígrados. Depois, entra numa reação com a fusão do hidrogénio e vive cerca de vinte milhões de anos neste estado. Até ao presente, estima-se que tenha atingido aproximadamente metade da sua vida e, por isso, terá em média mais dez milhões de anos pela frente até que se consumam os elementos químicos que o compõem.

    Mais tarde vai dilatar-se, depois de ter arrefecido e contraído, fase essa em que se transformará num gigante vermelho. É algures neste o momento que se espera o fim da Terra.

    calm body of water during sunset

    Não deixa de ser curioso que os textos sagrados do Antigo Testamento tenham escolhido a luz como primeiro acto da criação e expressão da vontade de ordenar o Mundo. Este princípio criador, que vai do caos à ordem, arrola a necessidade de conferir lógica à Vida – aliás, ideia presente noutros textos, noutras religiões, noutras tradições filosóficas que se reflectem em símbolos e sinais.

    Num mundo perturbado, a palavra ordem pode assustar. Associa-se frequentemente a palavra ordem a ditaduras e a tiranos, mas a ordem é muito mais. Por ordem entenda-se dispor as “coisas” no seu devido lugar. Não simplesmente porque uma vontade isolada o queira, mas porque a natureza e a vida se encarregam de dar um lugar para todo o existencial.

    Graças à ordem, o que se encontra em potência pode tornar-se Acto. Imagine-se uma árvore que se encontra em potência numa semente. Dir-se-á que está em potência porque ainda não é uma árvore. Mas, se a semente for deitada à terra no tempo próprio, se for regada e se não for destruída, poderá chegar ao acto – ser uma árvore.

    Parece-me oportuno relembrar que toda a criação guarda, além de um ritmo próprio, segredos de funcionamento que nos compete descodificar e descobrir.

    Podemos chamar Conhecimento – que é e deve ser libertador, pois só o ignorante conserva tantos medos e preconceitos; somente aquele que ainda não recebeu a luz continua a viver às escuras.

    Por tudo isto, educar pode significar, precisamente, transmitir conhecimento às gerações futuras, de tal forma que estas possam, depois de o enriquecer, dar continuidade à sua transmissão.

    A História isto nos ensina – não há sociedades perfeitas, ninguém guarda o saber absoluto, ninguém se reduz ao exemplo. Para sermos “hoje melhores do que ontem e amanhã melhores do que hoje”, precisamos mudar, crescer, aprender, pensar.

    E, porque somos dotados de inteligência, é sempre oportuno recordar que assim como sol, todos temos o nosso tempo de vida e por isso, dado que tudo tem uma Ordem, nenhum ser humano tem o direito de tirar a vida a outro ser humano, uma vez que a vida não é uma luz que se pode apagar por vontade de alguém – é um Acto pleno em torno do qual todos giramos.


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