Etiqueta: Mariana Santos Martins

  • O Pai Tirano, o governo totalitário à Costa e outros mundanos problemas

    O Pai Tirano, o governo totalitário à Costa e outros mundanos problemas


    Pela Tatão!… Nem é uma mulher! É um tambor!… Pelatatão, pelatatão (tão tão)

    Se houve coisa que o Vasquinho e a sua Geração de Ouro nos ensinou foi a evadir a censura com sucesso. Por isso é sempre pertinente manter a memória viva. Até porque, como todos bem sabem, a censura está viva e de boa saúde, só mudou de nome.

    Para mim, ver as películas destas figuras do Portugal de antanho evoca-me o cheiro a bafio e óleo de cedro, com requinte de tabaco lusitano suave a manchar o estanhado da parede. Com carinho o digo, pois estes eram os aromas da minha infância pelas casas dos avós.

    Pai Tirano (1941), realizado por António Lopes Ribeiro.

    Mas funesta coisa esta de uma certa classe de figurões – e não figuras – andar em revivalismos pintados a guache, em remakes, retakes e replays destas operetas fora de suas épocas.

    Só pode querer dizer que tenho que pagar licença de porte de isqueiro em breve e, a julgar pelos últimos dias, meter na cabecinha que, em incerta tarde, um qualquer parque, um qualquer jardim, um qualquer baloiço ou um qualquer escorrega será obviamente vedado para meu bem e para a modéstia do estilo de vida dos meus filhos. Até porque dizem que o Mundo vai acabar e temos de salvar o Planeta, um balancé de cada vez, para não apanhar um escaldão.

    Como diz a má-lingua, a História repete-se, tendemos todos a achar e esperar que um pai tirano surja no nevoeiro venha em formas já conhecidas. Esperamos que venham com as mesmas ideias, no mesmo cavalo, com as mesmas cores ou até do mesmo lado de onde vieram da última vez. Depois, afinal não é. Para alguns pode chegar a merecer até voto na urna.

    round brown wooden table

    Ultimamente, sinto o cheiro a bafio e óleo de cedro no ar, próprio de casas fechadas com gente medrosa lá dentro. Eu sinto cheiro de totalitarismo, à portuguesa, meiguinho. E ainda por cima agora as boas intenções são todas modernaças, usam estrangeirismos e pronomes. Usam máscara, usam patologias e diagnósticos, são especialistas! (E não tractores holandeses, circulem, circulem!)

    Elite que se preze a ascender a seu poleiro costuma notabilizar-se por uma desconexão absurda com a realidade.

    Quem se mantém, por exemplo, no casulo universitário da retórica, pensa que a vida e os seres humanos se resumem a abstração, ou que talvez quem não acompanhe o pensamento de Suas Excelências será certamente inferior, démodé ou alguma espécie de fóbico.

    Então vomitam e regurgitam impropérios e tentam colonizar até a língua de todos, pois se a língua é pensamento e identidade, sim, porque não tentar uma colonização deste género?

    white and black speaker on green wall

    Quem não admita falar esta novilíngua, quem questione o porquê de as instituições estarem a impor este linguajar, é um dissidente que não merece o passaporte sanitário! Nem tão pouco debate, e ai de quem tente falar sem pensar antes, que os esgrimistas do pensamento disso têm muita prática. En garde!

    Esfera privada e esfera pública. Não me parece descabido que a Escola, enquanto arma poderosíssima do Estado para propaganda de dimensão quântica, saiba quando está a ultrapassar os seus limites da esfera privada familiar e do desenvolvimento individual da criança dentro dos seus valores familiares ou da comunidade. E respeitar isso é inclusivo. (Não que inclusividade seja realmente a questão para estes produtos de rankings escolares de marfim, produtores de superioridade moral muito acima dos selvagens que andam cá em baixo a comer animais enquanto eles ficam a debicar brioche ou scones.)

    Sempre esperei que o ensino fosse laico. Fosse qual fosse o culto. Porque direito ao culto tem o indivíduo, pelo que, até sua maturidade cognitiva e emancipação, tem direito de influência a sua progenitura. São regras normalmente acordadas, que preservam as culturas de cada um numa sociedade e que, normalmente, pais tiranos querem revogar à força.

    woman standing writing on black chalkboard

    Mas desengane-se quem pense que o mundo do dinheiro e do poder está alegremente a pavimentar concordância para uma sociedade mais igualitária, para todes e todas e todos e quantas mais vogais, consoantes e símbolos haja.

    O mundo do dinheiro e do poder, meus caros, está alegremente a fabricar guerras culturais para vos manter distraídos, para que não vejais o bolor nascer no amarelo do português suave a entranhar-se no estanho da parede. Enquanto vocês berram a quem pertence o arco-íris, eles contam notas na religião deles: o lucro.

    No fim? No fim, vão todos presos.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Requiem das flores transmontanas, da russofobia ou do país a arder

    Requiem das flores transmontanas, da russofobia ou do país a arder


    Disse Dumas, no Conde de Monte Cristo: “A partir de agora, não viveremos mais, viveremos apenas mais depressa.”

    E cá estamos, depressa. Começamos a pensar sobre uma coisa, e logo vem outra. E outra. E mais outra.

    Não chega a dar para pensar, simplesmente não há tempo.

    green grass field and trees under blue sky during daytime

    Melhor que nos digam exactamente o que pensar, e que seja de fácil digestão, porque entretanto está um calor dos diabos (dizem que é o El Niño, ou isso era nos anos 90; agora chama-se alterações climáticas, porque o Al Gore no seu jacto privado disse num documentário que estávamos à beira do fim do Mundo), ainda tenho de ir comprar pão (e o pão está tão caro!), às tantas ainda me esqueço de pôr a máscara (mais vale nem tirar!), e a culpa não é minha, que faço o melhor que posso e creio que tenho bons valores e sentimentos (e a culpa é do Putin, que é um louco e veio arruinar a nossa paz!)…

    Jorge Dias foi um antropólogo português com um trabalho extraordinário. Nascido e criado no Porto, cedo contactou com o interior de Portugal e nos seus estudos, na Alemanha, familiarizou-se com a etnologia regional (volkskunde), pensamento essencial ao longo do seu trabalho e vida.

    Como quase todos os da sua geração, por serem poucos e notáveis, o Estado Novo foi quem mais lhe encomendou diversos estudos que procuravam informar a propaganda do regime. (Ou por outras palavras, estudos que validassem ideias e ideais pré-concebidos, um exercício intelectual interessante, mas pobre, muito em voga nos dias de hoje e apelidado de “especialista”, contrário a uma honesta busca de conhecimento.)

    As vantagens destes patrocínios é que, com o jogo de cintura correcto, conseguia-se aproveitar a oportunidade para levantamentos de dados essenciais à compreensão dos diferentes temas, e ainda era possível defraudar o intento propagandista do regime, posto que às mentes “poucochinhas” dos nossos líderes não sobrava densidade suficiente para entenderem entrelinhas.

    Com a sua obra “Estudos do Carácter Nacional Português” – tal como Fernando Távora com o Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa –, Jorge Dias conseguiu levantar extensivamente uma monografia sobre a cultura portuguesa – que o Estado pretendia que atestasse a “raça” e a “nação” –, ao mesmo tempo que apresentavam a conclusão final de que somos todos diferentes, com múltiplas facetas, modos de viver, de construir, enfim, de ser.

    Dizia Dias que, embora pesasse que a “Nação” também nascesse em virtude da vontade política de um príncipe – com certa dose de megalomania –, o facto é que Portugal só se mantinha coeso graças ao Atlântico.

    Esta atracção enorme pelo mar amontoava no litoral as populações, abandonando o interior, mas também evitando a absorção do pequeno rectângulo por Castela.

    É por isso facto que eu, nascida e criada no Porto, me espantei ao chegar a Trás-os-Montes e ver tanta gente proclamar, com veemência, que mais valia serem espanhóis!

    Facto é que ainda não tinha visto a outra interpretação do que Dias tinha dito. Não conseguia ver, porque ainda tinha uma lente de nacionalismo ou patriotismo que me impedia de ver dessa forma. (Nós podemos ver de tantas maneiras).

    Achava eu que era real essa coisa da “Nação” ou da “Pátria”, enquanto o senhor transmontano, defronte de mim, apenas sabia o que tinha vivido.

    people sun bathing on beach

    Entre o ter ido a salto para a França, por viver na miséria cá, entre o ter de ir a Espanha, para poder pagar o gasóleo ou fazer compras (pois, na altura, nem tão pouco havia autoestrada que o trouxesse ao Porto ou até Vila Real em tempo útil), entre ver o amendoal ser deitado abaixo por conta de contas comunitárias, entre ter de rapar os fundos da reforma que França lhe pagava para poder pagar a um médico privado em Portugal (caso contrário bem ficaria sem a consulta); entre tudo isto, o que era isso de “Portugal”?

    Ensinou-me muito, este senhor transmontano. Por isso lhe agradeço.

    Agradeço porque partilhou comigo a vida dele, e as experiências dele, e me ensinou, como o Lennon nunca realmente conseguiu, a perguntar o que era isso das fronteiras, e o que era isso dos países. O que era isso da “comunidade”…

    Sensatez desta não brota do chão e não se compra; é fruto da vida sem pressa e do pensamento com calma. Por isso Pessoa nos dizia que o seu mestre era na verdade o guardador de rebanhos, Caeiro.

    Então digam-me o que é isso da fronteira na Rússia e na Ucrânia? E o invasor e o invadido? Vamos continuar a fingir que não se esteve a debater diferentes lentes de propaganda nacionalista e que havia alguma espécie de envolvimento legítimo emocional ou moral da parte dos nossos líderes? Havia algo que não os famigerados interesses?

    Havia algo que não uma inicial aparente incompetência dos líderes europeus, e agora uma clara maldade em não defender os direitos e bem-estar dos seus constituintes?

    A France24 mostrou, há cerca de uma semana, imagens de ucranianos em Lysychansk a receberem as tropas russas com acenos de alívio e alegria.

    Será que quem defende a russofobia em Portugal é o mesmo tipo de pessoas que viram costas aos transmontanos portugueses? Até porque o futuro está no mar (e segundo Dias, o passado também), e serão mais velhos, flores secas, florestas abandonadas e pouco importa.

    Mas não se espantem que, caso perguntem, “como é que era, se Espanha invadisse?”, recebam a resposta “eles que venham: oxalá!”

    Enquanto isso, os nossos velhos morrem. Morrem sozinhos. Morrem ao abandono, esquecidos, com sede.

    Enquanto isso, o nosso país arde, famílias perdem tudo, o ar perde-se em colunas de fumo.

    E o que dizem os nossos líderes? Não é culpa deles. É das alterações climáticas. É do vírus, este, aquele, qualquer um deles. É da Rússia e do louco do Putin. E dos comunistas. E das taxas de juro. E dos socialistas. E da oposição. E do Chega. E dos fumadores. E dos negacionistas. E minha. E tua!

    E deles? Ai, isso é que não é!

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As gotas e o oceano, a vida e a morte, Davos e o que devemos a Assange

    As gotas e o oceano, a vida e a morte, Davos e o que devemos a Assange


    Tempo quente faz pensar em tempo – tempo de assimilação, de cura ou de memória. E no tempo de cura, como no de assimilação, nada tem real significado se for rápido, enquanto o tempo da memória pode ser um acaso fugaz, um aroma, um pestanejar. Ou toda uma História.

    Na memória do mundo, com mais ou menos floreados e contos com pontos, está inscrita uma história partilhada por todos que informa (e em forma) o presente e o pensamento. E eis uma:

    No mar Egeu, embrulhado no Mediterrâneo, pequenina partícula do arquipélago grego das Cíclades, a ilha de Delos surge árida e divina.

    aerial photography of body of water

    Inundada pelo sol desde o amanhecer ao anoitecer, Delos, na mitologia grega, julga-se ter sido dada a Leto para que esta tivesse onde dar à luz os gémeos Apolo e Artemísia, perseguida pelo desdém de Hera – mulher de Zeus – que, ao vê-la engravidar de Dionísio, quis garantir que Gaia não a deixaria parir em lugar algum na terra. Poseidon apiedou-se de Leto e fez emergir Delos do mar.

    Parece talvez confuso? Tantos nomes, parentescos, intrigas e tragédias, que sempre me causaram aflição por não abarcar tudo o que se passava atrás da cortina. Segredo dos deuses e nós, meros mortais, espectadores na melhor das hipóteses.

    Delos foi talvez o primeiro local a receber purificação, pelo menos no nosso berço civilizacional, onde se declarou ser proibido morrer (e nascer também). Atenas declarou a exumação de todos os cadáveres na ilha, movendo-os para uma ilha vizinha, para garantir a limpeza do local para culto divino do casal de deuses.

    Claro que nascer ou morrer são os pontos mais importantes e sagrados de uma vida, por isso a nossa perplexidade se vemos os dois tocarem-se. Atenas podia declarar que a razão era religiosa, mas, acima de tudo, a preocupação era se poderia haver clamores de direitos de propriedade e herança sobre o local, se estes pontos tão essenciais da vida e da morte se inscrevessem naquela morada. Havia que manter o local neutro comercialmente.

    (Ai, a moeda!)

    Portugal sabe uma coisa ou duas sobre proibição de morrer (e nascer também). Ou talvez seja a língua portuguesa.

    No Brasil também tentaram passar esta lei em 2005 (vêem como isto não é só antigo), porque, alegadamente (devido crédito ao titular recente da expressão nesta casa), a população cuidava muito mal da sua saúde e não haveria mais espaço para sepultar os falecidos, por razões ambientais.

    Por cá vemos os mortos serem usados como arma de arremesso há mais de dois anos e, agora, que tantos partem, já ninguém faz boletim diário, já ninguém apresenta gráficos.

    (Excepção feita aqui, nesta morada.)

    Talvez haja proibição de morrer em Portugal (e de nascer também).

    Outra história:

    Davos é uma comuna suíça junto aos Alpes onde, tanto quanto sei, é possível morrer, nascer e reunir globalistas muito pertinentes ao destino de cada um de nós.

    Local anfitrião do World Economic Forum – esta pequena estância de boa saúde alpina e ar puro acolhe todos os anos gente que é gente no mundo. (Não nós, meros mortais, na melhor das hipóteses espectadores.) São já cerca de 50 anos de reuniões auspiciosas.

    Nestas reuniões já passaram toda uma série de líderes internacionais essenciais à cena mundial que sempre assistimos. Guerras são traçadas ou evitadas, os tempos de régua e esquadro sobre o atlas vão-se mantendo. Nos últimos anos, principalmente, tem havido muito interesse em conversarem por lá em transhumanismo, emergência climática e, claro, pandemia.

    Claro também é que este ano a Rússia faltou, pela primeira vez desde 1991. Um pequeno sinal de transformação de desígnios.

    person standing on cliff during golden hour

    Quem fala desta reunião, ou concílio, pode também falar da reunião do G7, dos BRICS, do FMI, ou da OMS. Muitas salas extravagantemente decoradas, bem servidas de excesso (de comes e bebes, cereais, talvez até de bacalhau à Brás).

    E porquê falar de Davos? Porque ao contrário de Delos e o seu controlo sobre nascer e morrer, em Davos podemos considerar que é operado um controlo muito eficaz sobre viver. (“… Entre uma e outra todos os dias são meus…”, serão?)

    Mas são nossos os dias se são passados em domínios filtrados e curados pelos senhores, ou seus algoritmos, destas reuniões? São nossos os dias e os pensamentos se nos são alimentados por outras pessoas ou ecrãs?

    O meio sempre manipulou a mensagem, percebeu-se isso rápido, daí que a invenção da Imprensa seja o acontecimento mais importante do nosso passado colectivo. O acesso generalizado à informação permite às gotas no oceano saberem que cor tem o céu.

    Em princípio quase todos nós podemos ir confirmar uma informação, mas nem sempre podemos ter a certeza da sua veracidade, fora o próprio viés da leitura. Mais grave ainda é ver como a informação nos é oferecida sem procura, sugestões (inofensivas), prioridade em resultados de buscas, conteúdo misteriosamente desaparecido.

    E isto é verdade desde as sugestões Google, às sugestões Facebook, às sugestões Netflix. Mesmo para quem se tenta ausentar dos meios de comunicação tradicionais, tudo está embrenhado numa enorme teia que nos conhece intimamente, projecta e prevê o nosso futuro e extrapola o nosso passado como uma espécie de engenharia invertida.

    Sabemos se, por entre sugestões e previsões, não estamos subtilmente a ser empurrados?

    Ora, a acção da Wikileaks, conduzida por Julian Assange, registou um dos maiores impactos que o jornalismo de investigação alguma vez teve.

    Em 2019, ano de grandes viragens, Assange perdeu o direito de asilo político na Embaixada do Equador em Londres, onde se refugiava há muitos anos, e foi preso, estando na iminência de extradição para os Estados Unidos e de ser julgado por conspiração. Já foi privado da sua liberdade anos a fio; agora arrisca a pena de morte.

    A Wikileaks empurrou o público a ver a verdade, com provas, sobre, por exemplo, aquilo que os Estados Unidos fizeram no Iraque. Assange foi o outro lado da balança para encontrarmos equilíbrio entre o que o poder nos alimenta, as nossas crenças e a realidade. As gotas e o oceano.

    Mas Julian Assange está agora sozinho no mundo, onde a Imprensa alterna entre definhar e borbulhar.

    O que poderíamos saber desde 2019 se ele não tivesse sido preso?

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Saber quantas Agudas existem em Portugal ou o aborto nos Estados Unidos

    Saber quantas Agudas existem em Portugal ou o aborto nos Estados Unidos


    São, pelo menos, três: a praia da Aguda, em Arcozelo, no concelho de Gaia, onde descobri o cheiro a maresia na infância; a praia da Aguda, em Sintra, de onde um amigo me mandou a cor das ondas; e a freguesia da Aguda, em Figueiró dos Vinhos, que descobri porque perguntei ao maravilhoso mundo da Internet.

    Sempre me fascinou encontrar os meus sítios noutros sítios. Entender o porquê de se multiplicarem por este jardim Atlântico, se foi falta de imaginação ou se existe uma razão (geográfica, que seja) para tantas Canelas em Portugal (acho que são bem mais do que três Agudas, e fazem-me sempre pensar em pontapés). Talvez seja reflexo de colonizações, invasões ou contágio.

    É desta maneira que sempre julgo ter a prova cabal que tudo aquilo que alguém pensa hoje, neste preciso momento, algures numa Aguda, alguém certamente já terá pensado antes, ou até no mesmo momento; talvez num espanto cósmico de interferência mística! Ou então, podemos convir que nada disto é novo, que há dilemas eternos, barreiras evolutivas do pensamento, eventualmente cristalizadas no seu entorno, e que sempre, sempre, passam por uma ascensão civilizacional e culminam com a sua queda.

    Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

    O dilema eterno do valor da vida humana, quando começa, quando termina, quem pode dispor dela, continua a inflamar as gentes deste mundo. Seria até de esperar que numa década tão furiosamente dominada por Cientismo, e em sociedades que clamaram por mandatos sanitários sem pruridos éticos, não houvesse agora uma bandeira de alarme hasteada em continente americano.

    O direito de acesso ao aborto nos Estados Unidos ficou consagrado há umas boas décadas, mas manco: usava do princípio da constitucionalidade – não descrita na Constituição – da privacidade.

    Agora, está aparentemente perdido e, para alguns, é motivo de gáudio; para outros é motivo para pensar que, se existir uma Aguda repetida, porventura alguém pensará igual.

    anti pregnancy pills and condoms

    Pesa ainda todo um novelo de moralidade e instituições religiosas – conhecidos baluartes de emancipação feminina (consultar no dicionário: sarcasmo) – a alardearem furiosamente a propaganda da sua mensagem.

    A verdade simples é que talvez o direito nunca tenha existido, não pelas razões que pelo menos muitas pessoas defenderiam. Talvez esse direito só tenha sido garantido enquanto o mercado – esse outro baluarte – queria acomodar as mulheres. Agora, com o monstro da recessão a bater à porta as sociedades, apressam-se em sacar os grilhões. Profilaxia.

    A verdade simples é que a preocupação do planeamento familiar cai sempre nos ombros da mulher: as consequências de ter ou não ter uma gravidez, um parto e um pós-parto; as consequências de uma pílula; as consequências de um DIU; os riscos de outros métodos mais naturais. Somos a baliza e temos de arranjar guarda-redes.

    A verdade aguda é que assim que se começou a desenvolver uma pílula masculina os primeiros estudos foram rapidamente interrompidos porque os participantes se queixaram de efeitos adversos. Alguns eram acne, diminuição da libido e variações de humor. Foi considerado que estes incómodos não compensavam em comparação com o estudo da eficácia desta pílula.

    man kissing woman's forehead white holding ultrasound photo

    Quem é mulher lê isto e não deixa de pensar, seja lá qual for a sua posição sobre o resto – e lembrando que quase todas nós sabemos que a posição é muito perigosa de ser escrita em pedra, que, pois claro, a mulher resolve. A pílula feminina “só” tem efeitos adversos como: ansiedade, depressão, flutuação de peso, cefaleia, náusea, redução da libido e até coágulos sanguíneos, entre outros.

    A verdade triste é que, neste momento, em alguns estados americanos, até as apps de monitorização de ciclos menstruais podem ser intimadas por um tribunal para fornecer dados privados sobre os ciclos das utilizadoras, para verificar se poderá ter ocorrido um aborto clandestino ou não, em caso de denúncia. Assim, à semelhança do gado.

    Importante é que se salve aquela gestação, mesmo que seja para viver na miséria, mesmo que seja fruto de violação, mesmo que a mãe seja uma criança de 11 anos – como ocorreu também agora no Brasil, e empataram a decisão até a gravidez ter sete meses. Seria, por certo, outra Aguda mais a sul.

    man in blue scrub suit holding white hose

    A verdade muito aguda é que isto afecta e destrói sempre as vidas mais pobres, mais desprotegidas, mais infelizes. E não falo dos bebés. Falo das mães.

    A verdade obtusa é que andam a debater crenças morais quando a ética deveria falar mais alto, e lembrar que o direito à autodeterminação sobre o próprio corpo e actos médicos realizados é absoluto.

    Resta saber quantas Agudas existem no Mundo, e se estamos mesmo a ver a perda de direitos de controlo reprodutivo, em nome de fervores morais e agendas políticas que atribuem poderes de uma sociedade ditar o que podemos individualmente fazer com o nosso corpo. Nada que não esteja a ser ensaiado e aplaudido há algum tempo.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.