Etiqueta: Mariana Santos Martins

  • Ouvir um som e sentir o gosto das coisas

    Ouvir um som e sentir o gosto das coisas


    Ouve.

    Ser o filho do meio de uma sucessão de guerras culturais tem destas coisas. Um karma, talvez, de saber que o irmão mais velho já cá estava e já outro mundo viu, e de reconhecer que o irmão mais novo precisa das atenções especiais de quem ainda não controla o corpo e a mente (e eu controlo?).

    Do fim do século, que já não voltará, ficou o gosto do metal. Doce, áspero. Como se a cada quilómetro de auto-estrada e cheiro quente do asfalto a pressionar o peito tivéssemos a certeza que íamos lambendo postes de alta tensão na busca de um gelado Perna de Pau em cada estação de serviço. Era o progresso que sabia assim: a veneno que o nosso corpo destilava com a facilidade de quem se julga imortal (e imoral).

    girl in white shirt kissing girl in blue and white stripe shirt

    Estamos todos numa bolha, cada um de nós; uma bolha fechada de paranoias e gosto metálico. (E que medo se rebenta a bolha!)

    Carpetes estendidas a acumular o cheiro da pele morta dos outros, feltro vermelho a fingir-se de luxo aristocrata quando as cabeças já rolaram na guilhotina, saltos altos com espigões agressivos a marcar os passos de ídolos anoréticos (e as drogas a fazerem girar o planeta), carnes obesas a rodopiar e a atrair a si o campo gravitacional da queda de uma civilização. Palhaços que de cara borratada avançam de gatas, loucos, desvairados, os únicos que com lucidez inata ilustram o esboroar das ilusões.

    Comboios que passam rápidos debaixo de varandas onde uma senhora estende roupa abnegadamente num espaço exíguo, vertiginoso (não tenho mais molas), salta! E a espuma de um dia que se empurra devagar enquanto outros correm, correm, correm.

    Crianças nascem como brechas de luz nestas cloacas e velhos definham em silêncio e solidão entre paredes quadradas de alvenaria, tijolo vermelho (carpetes e sangue), ossos que quebram como giz (gesso nas paredes que mancha, ressoa, o bolor a trepar até ao tecto).

    timelapse photo of train

    A geração dos eternos adolescentes, filhos de sacrifícios humanos movidos a anfetaminas (e a guerra senhores!), comem, comem, comem tudo e não deixam nada. Sinalizam virtudes, mão no peito (canta o hino), mão no peito (diz amen), mão no peito (declama ciência), mão no peito (não ao nuclear!), mão no peito (vai de bicicleta), mão no peito (e segura o coração para que não saia a fugir, que o frágil órgão não aguenta mais inflamações de mentes que não se encontram e vermes que entram pelos ouvidos e nos dão dores de dentes).

    Demasiado?

    A cada música ouvimos um apelo e sentimos o gosto do ferro na terra. Viajamos. Construímo-nos em cima do que já está feito. Pré-fabricados e opiniões. Opiniões pré-fabricadas e a luz que tremeluz da televisão, do ecrã, de mais um aparelho, pequenino, médio, grande, enorme, ligado por USB às nossas vias respiratórias (compra, compra, compra).

    Ouve.

    Podemos deixar as coisas abrandarem? Se somos nós que corremos, dizem os entendidos que não se pode assim dizer, do pé para a mão, que o planeta tenha desatado a mexer-se mais depressa.

    black and white USB data cables

    Se somos nós, como quando fechamos os olhos para dormir, que desligamos a existência e flutuamos em planos de sabores mais meigos, podemos deixar as coisas abrandarem.

    Podemos ser o russo. Podemos ser o ucraniano. Podemos ser o inglês e o americano.

    Podemos ser o italiano, o espanhol e o português.

    E nada que as torres de alta tensão metálica e doce, ásperas e pesadas, nada que turbinas velozes a rasgar o vento para baterem com a tua mão no peito, nada do que elas te dizem, para que corras, é verdade.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Insónias de Verão na Primavera

    Insónias de Verão na Primavera


    Dir-me-ás um dia que te lembras das caras em metades, como fases da lua em quarto minguante.

    Não chores. Já são onze horas e já se ouve o ruído do silêncio. Como folhas de papel que roçagam umas nas outras a embalar o teu olhar que se semicerra.

    Não chores. Sabes que naquele livro azul a minha mãe falou-me dos esquimós? Eu arregalava os olhos para ver melhor, na penumbra do quarto, a neve a cair e a luz céu que emanava de dentro do iglu. O ajuntamento de vários esquimós que preparavam a demanda para ir à caça.

    woman sitting on bed

    Dorme. Como eu quando deitava a cabeça na almofada, com força, com o entusiasmo de querer saber como ia correr a caçada. E com a cabeça encostada contra a almofada ouvia,

    feshfeshfesh

    compassado, um ritmo suave sempre

    feshfeshfesh

    e via os esquimós afastarem-se na neve, e eram as suas passadas!

    feshfeshfesh

    a pressão das botas de pele e pêlo contra os cristais de gelo…

    feshfeshfesh

    a afastarem-se na neve até os perder de vista. Até ficarem brancos como tudo era branco, até adormecer.

    red and yellow flower petals

    Afinal era o meu coração a bater. Mas eu acreditava que era o som das passadas de esquimós na neve.

    Nunca ouvi o mar num búzio, mas ainda hoje ouço passos de esquimó na almofada, a aquecer o coração.

    Se te ponho em lume brando tantas vezes é para poderes ouvir o mar ou passos de esquimós na neve.

    De qualquer modo são estas crianças que me tornam os dias maiores. A viver no ritmo delas, o dia estende-se inexplicavelmente.

    Sinto o seu aborrecimento a torná-los líquidos, esparramados no chão, sem força nas pernas para tanta vida de uma só vez. São um copo de leite, o doce velho de uma pêra semi-roída ferida e a morrer na mesa, dormir sestas para que os sonhos invadam os dias também.

    Se te mantenho em lume brando é porque já vejo a miúda a borbulhar, quase a vir por fora, gestos que tínhamos as duas, só nossos, e já não são de ninguém. Agora acho sempre que se lhe estendo a mão me queima. Escaldada continuo, mas dói e estala a pele. À falta de mais pergunto o que comeu. O que comi? Mãe, estás sempre a perguntar-me o que comi! Come fruta… Eu sei, ainda hoje comi uma pêra!

    yellow fruit on white ceramic plate

    Mau!

    Insistes com essas coisas e eu bem me lembro do som da tesoura na cozinha, a

    cortar-me os caracóis,

    fesh! fesh! fesh!

    Eu chorava, mãe, não me cortes os caracóis! Eu quero ter caracóis!

    “Vai lá fora ao quintal que tens muitos.”

    Se calhar vivemos todos esses momentos em frigoríficos. Numa paisagem de memórias petrificadas, polidas pelo vento gélido num assobio. E os esquimós a caminharem por entre a embalagem de ovos e o passeio ao jardim zoológico. Em saltos vislumbro o macaco que me agarrou os colarinhos para roubar os amendoins. O meu pai a salvar-me.

    Devagarinho o pânico esgueira-se para dentro de mim. O céu avermelha-se de nuvens nocturnas e reflexos de lâmpadas.

    Aguentar de novo a pesca de moedas nas almofadas do sofá, suster a respiração, vamos lá outra vez. Espiralar sonos em anúncios de concursos da nossa infância, a bota Botilde e um hospital em ruínas, cadáveres a passearem-se em rodapé. Almas penadas que ninguém quer ver, assombrações em que ninguém quer pensar. Está tudo normal, está tudo normal, está tudo normal.

    brown leather boots

    Devagarinho o pânico instala-se dentro de mim. Estende as pernas no sofá da minha sala e come amendoins. Não chores, eu lembro-me de tudo quando olho para ti e continuo. A pele estala e continuo.

    Mãe, que saudades que tenho tuas. Andamos todos mortos a brincar às ausências.

    E que mal que me saio a proteger a inocência deles. Porque não sei se devo fazê-lo.

    Devo? Como fingir que as andorinhas vão continuar a regressar na Primavera, se o céu se avermelha por nos ver a regressar dos mortos?

    Um dia prometo que me rio disto. Não me rio mas sorrio. Pequenino.

    Basta mantermo-nos frios, a caminhar na neve de cabeça baixa sem esquecer que leva tempo chegar ao fim. Sentir o conforto do carapuço. Quentinho.

    Não chores. Sabes que nascem malmequeres nos telhados se lhes deres tempo suficiente?

    white daisy in bloom during daytime

    Transformas-te em mim, longe, mas em mim.

    Até a tua carne estala da mesma maneira e eu aqui, sem sentir o ar à tua volta há demasiado tempo. Já me falham as ironias porque escorrego em saudade. Saudade de coisas que realmente nem chegaram a ocorrer, troco versos em diálogos com a árvore podada. Ninguém a deixa crescer porque ainda deita a casa abaixo, e que deite ou que a levante que eu quero esticar os braços e espreguiçar-me com ela há tanto tempo. Em vez disso mais uma raiz que me puxa e me tolhe. Mas tão límpidos que ainda são os teus olhos mãe, azuis como o livro que lhe dei a provar, fixos, a desconfiar. Remóis, já me tiraram aquilo tudo do sítio. Não tiramos, reformulamos.

    Quem me dera o meu rico filho, mas somos espelhos umas das outras, a cismar baixinho se isto é o melhor que podemos. Se já retribuímos. O coração aperta, porque nunca pára. Se somos “mãe” agora vais ver, vais ser mãe de toda a gente e nunca acaba.

    E continua aquele corpo a encolher-se, ali deitado. A flor murcha continua a ser flor, mas vive uma luta, todos os dias, a manter o cheiro da morte longe daqui.

    woman sleeping holding white rose flower

    Abrir as janelas para deixar a morte sair. Que trabalho ingrato, espantar a noite todos os dias para fora de casa e ninguém vê nada. Oh mas aqueles sorrisos do meu rico menino… E não pára.

    Ontem olhaste para mim enquanto te punha uma colher de sopa na boca. Quase ouvi o teu pensamento. Quem nos dera não estar aqui mas estando. Passamos a vida a fechar a porta a ladrões, burlões, podadores e vendedores porta a porta.

    Agora temos de fechar a porta ao ar também, suster a respiração e chorar a ver as árvores irem abaixo, fruta que já não nos vão dar. Porque é que eles não gostam de árvores? Eram da minha avó, foram mimadas e eram doces como o carinho que ela me dava. Tu a falhares-me e ela a rir, uma gargalhada grande de vez em quando, maior que o mundo. Ou o sorriso pequenino e tu escondida debaixo das cobertas…

    “Eu vou morrer meus filhos!”

    Sim mãe, vamos todos e ainda nem morremos o suficiente. Ainda podemos perder mais uns bocados dentro deste frigorífico. Pode ser que alguém abra a porta e veja esquimós ao longe, por entre o fiambre e aquele cheiro de carne e iogurtes.

    polar bear on snow covered ground during daytime

    Hoje dou-te mais uma colher de sopa, é sempre uma de cada vez todos os dias, manter-te viva tornou-se a minha razão de ser. Não deixo que deitem abaixo esta árvore. Porque é que eles não gostam de árvores? Dizem que tapam as vistas e fazem lixo. Não sei para onde querem olhar. Não há nada para ver ali quando deixa de estar a árvore na frente, mas enquanto ela está eu posso ver as andorinhas a regressar e a gata velha cá em baixo a murmurar. A ralhar baixinho que quer voar.

    Até fica a parecer nova, orelhitas afiladas para os chilreios.

    O teu corpo está tão pesado. Ainda bem, que assim sei que ainda queres estar viva, manténs-te pesada para não flutuares como uma folha para o céu, agarras-te com força ao chão e olhas para nós muito determinada, a desconfiar. Não vais morrer, porque não queres, vais ficar aqui porque te enfurece o anoitecer. Até te vejo de novo a levantares-te e a acender as luzes todas, que lá por seres velha não vais deixar que te pisem, nem que chores enraiveces-te igual e salvas pelo menos uma árvore, gritas por socorro até que alguém te acuda.

    Mexi nas tuas cartas de amor hoje de manhã. Tantas que tens, tantas vidas que viveste em pequenos papéis sujos. Algumas estão escritas a lápis e mesmo assim não esbateram, mais de setenta anos depois. Com que força terão sido escritas para que hoje ainda as consiga ler. Acho que agora merecem resposta, ou pelo menos serem devolvidas. Vou pô-las no correio e ver se chegam a outra pessoa.

    macro shot photography of red and white heart ornament

    Cuidar-te até eu própria desvanecer, escreveria na carta. “Cuido-a para que esta carta se mantenha com a outra margem, para ter onde aportar e não ficar suspensa no vazio, a flutuar na imensidão fria. A cidade vazia e a neve a esgueirar-se por sobre os telhados. Os malmequeres a vergarem e o gelo a escorrer das pedras.”

    Nas cómodas amontam-se os retratos, os teus, os nossos, os desenhados, pintados e retocados para embelezar a memória daquilo que lembramos enquanto existimos. Temos de saber que um dia só sobrará isso e ninguém para legendar aquela vida.

    A nossa cidade está vazia, as sombras das pontes na água já não estremecem mais.

    Até o rio parou e ouve-se apenas o vento a sussurrar tímido. Até a brisa vacila porque se lembra de nós. As gaivotas gritam porque têm saudades nossas.

    Filha.

    Basta um de nós faltar que acredita que o vento o saberá.

    white bird flying over body of water during daytime

    Tenho de começar outro dia enquanto finalmente dormes.

    Levanto-me devagarinho para parecer que o meu calor se mantém contigo e estico as pernas para o gelo do quarto. Saio pelos furos da persiana para que não notes a deslocação de ar.

    Corro em bicos de pés a cozinhar os cheiros da manhã, escancaro janelas em casa para sacudir as mortes lá para fora.

    Metade do que faço é feito em surdina enquanto dormes.

    A outra metade é viver em insónia para te apanhar acordado a sorrir.

    Onde o sol não me chega acendo luzes que se vão fundindo, em corredores frios e embolorados, a água escorre e que vontade me dá de deitar paredes abaixo!

    Ouço rádio na esperança de não saltarem os fantasmas pelos furos das colunas.

    Está tudo normal porque agora é assim mesmo.

    woman in white coat standing on brown grass field during daytime

    Enquanto o café negro gira debaixo do meu queixo a fumegar contemplo vidas passadas.

    O que mais sobra?

    Se tento vaguear por caçadas futuras sinto o pânico a espreguiçar-se em frente a mim e, com medo, só penso em esconder-me debaixo das cobertas.

    Quando era pequenina a minha avó cobria-me com muitas cobertas. Tantas que quase me esmagava debaixo da cama. Sentia-me a ervilha no conto da princesa e pensava que me contavam histórias todas ao contrário. Arreliava-me que só falassem da princesa com ar maniento e a ervilha ali espremida entre colchões a asfixiar.

    Foi só uma sesta assim. Fingi que dormi mas mantive-me acordada para não correr o risco de me expirar. Não me obrigaram mais a dormir de tarde.

    Adoço o café e tinjo-o com leite para que não me queime por dentro.

    Por uma fresta de luz do dia somam-se pára-raios a abanar. Carcaças de um tempo que já não existe. Andamos todos a arrastar esqueletos.

    Chegas também tu.

    white ceramic cup with brown liquid

    Despes-te por completo em frente à porta e embrulhas as roupas numa saca. Entras com um sorriso em bicos de pés, cada dedo uma pancada…

    pum, pum, pum

    Até ao chuveiro a saltitar como se o chão ardesse.

    Amor da minha vida, sabes tudo o que se revolve cá dentro? Todas as saudades, todas as ausências, todos os futuros a gelarem em flocos suspensos no ar.

    Se pesas a caminhar é porque queres estar vivo, ainda bem, teimas em agarrar-te ao chão para que o vento não te leve também.

    Pousam passarinhos nos pára-raios e o metal a dar, a dar.

    Se não fizer barulho a caminhar será que já fui com o vento como uma folha? Se continuar a tactear no escuro para chegar ao teu berço e te ver a esfregar os olhos será que passo a existir quando me vês?

    Sorris e embeveço-me a contemplar-te.

    photo of birds flying up in the skiy

    Escorro-me entre a cortina, abro a persiana, deslizo a janela.

    Sabes que a partir de agora andamos de meia em meia estação, sem saber se temos frio ou calor, como fases da lua em quarto crescente.

    Vamos voltar ao início mas um bocadinho pior.

    Não chores. Já são onze horas e já se ouve muito ruído na rua. Vejo lá fora passos apressados de roda da farmácia, embarram cotovelos e saltitam para trás com medo do ar, hesitam e chegam-se de novo, corpos baralhados com o frio da neve.

    Ao longe avisto os esquimós a regressar.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Dos herdeiros de obituários borratados no jornal

    Dos herdeiros de obituários borratados no jornal


    Sempre vi como um ritual, pois a pessoa chega, senta-se no café do costume, pede a mirita do costume, o carioca do costume, e vira as páginas do jornal do costume, até varrer o obituário, diligentemente, em busca de amigos, conhecidos, relativos de relativos.

    Cara a cara, esbatida a negro com breves palavras de despedida, os que se vão embora recebem talvez a única menção da sua vida num jornal, sendo arquivados minuciosamente por pessoas que varrem o cemitério de papel.

    – Olhe! A minha rua tem sido uma razia! Mais um!

    angel statue

    Sempre se morreu, dizem, sempre se morreu assim, clamam. Estranho pensamento de quem voluntariamente se fechou numa gaiola para que não morresse ninguém.

    – Outra vez? Sempre a mesma conversa, a mesma conversa! Já acabou! Já passou!

    Acabou para eles no obituário é certo. Arrumamos as memórias algures na nossa mente, envoltas em aroma de manteiga quente e camomila que elegantemente se esfuma acima da chávena.

    Não é mórbido, sabem? É ritual de beleza na verdade. Seguimos atrás da morte a ver quem vem de seguida, a ver o nosso lugar na fila e quem na nossa frente se atreve a tocar-lhe nos ombros para que se volte para si, silenciosamente, o manto negro a adormecer os olhos, mas apenas os olhos (se morrer, ainda fico aqui?) rezando para que não toque os nossos e quem deveria estar atrás de nós (os nossos), julgando a justiça e a tristeza de quem se vai (o sol foi embora, mãe?).

    E no caminho mais próximo do fim rezamos todos (os nossos).

    three dead roses are placed on a grave

    A perda.

    (As flores estão a fechar, mãe?)

    Quem respira o mundo em golfadas faz por aguentar os embates. Troca duas palavras sobre quem se fina, marca presença no velório de quem quer dever o respeito, comparece ao funeral de quem chorará.

    – Eh pá já não nos víamos há quinze anos!

    Quem respira o mundo devagar, como quem o mastiga pousadamente, corre com um dedo o obituário, arrastando o negro pela página abaixo, guardadores de memórias e de todos os nomes.

    Quem fica, quem vai.

    Os filhos da madrugada e seus herdeiros a pairar em círculos sobre searas esquecidas e albufeiras sujas. Parecem nem querer saber, não contam as caras das lápides, não contam as moedas para o molete.

    Sabem, disse-se por aí, que na verdade temos três saudades.

    human left hand

    Jorge Dias foi o autor que tal me ensinou. Temos a saudade que herdamos dos celtas: lírica, sonhadora, ligada à natureza (Caeiro, estás aí?); temos a saudade do estilo germânico: empreendedora, fáustica, numa ânsia por novos mundos e conquistas; por fim, enfim, a saudade do estilo oriental: um ensimesmar mórbido de glória que já passou.

    É nisto que estamos, não é? A carpir-nos a nós próprios, sem herdeiros para um obituário de vivos.

    Mãe, sabes o que é microquimerismo? Significa que fiquei dentro de ti, mesmo depois de sair. Assim ficamos de onde saímos, e onde saem pessoas que nos deixam cá ficar.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Gente de vidro e gigantes de ferro

    Gente de vidro e gigantes de ferro


    Dei por mim a pensar onde andarão os dias de festejo. Aqueles dias de fim de guerra, em que tudo sai para a rua numa explosão de alívio. Aquela celebração de vitória, porra, finalmente o rio desaguou! Mas, pelos vistos, já não se festeja fim de guerra, já não existe o momento de catarse, se calhar nunca existiu (também era propaganda?)

    E até porque pessoas de vidro quebram com facilidade, basta um ventinho, e caem, uma ventania, e voam desamparadas (e tu que sonhas que voas), um encontrão, e estilhaçam. Se calhar, talvez seja melhor não sacudir muito o mundo com festejos. A ver bem, já aprendemos que não há fim à vista. Essa ingenuidade finou-se com os nossos avós e em silêncio, as guerras estão sempre aqui, ali, em todo o lado.

    white and black spider web on brown soil

    Somos gente de vidro que segue de cabeça baixa, pois quem a levanta arrisca a uma nicada nas esquinas dos cotovelos. Ninguém quer estar a olhar para ver os gigantes de ferro a levantarem-se por toda a parte. Postes, antenas, sistemas reticulados em módulos de treliças cinzentas e ásperas à alma (será o metal macio?), tudo o que é deles levantado de cabeça no ar que nem totens infernais, chifrudos armados em discretas árvores a passar cabos de gigante em gigante numa opressão total, permanente, enorme.

    É a modernidade, não queres ter rede em casa? Não queres acender a luz de noite? Não queres tudo isto que temos para te dar e para andares mais depressa? (Gente de vidro não pode andar depressa, porque parte!)

    Estamos todos traumatizados. Os gigantes de ferro tomaram conta do mundo, e caminham a passos largos pelos nossos quintais. Anunciam e berram zumbidos de alta tensão (não faz mal à saúde, não?), rasgam o vento com turbinas majestosas ou deitam pestanas de painéis solares a decapitarem árvores ainda jovens (tão jovens), a modernidade e tudo o que precisamos para alimentar este vício de estar acordado (é segura e eficaz, não?)

    axe on wooden table

    E há quem tenha medo da inteligência que é artificial. Viram-nos a abrir caixas na rua e a ligar computadores? (É inofensivo, não?) A treparem postes e a mexericarem afincadamente naqueles fios todos (os fios de Ariadne)?

    E têm medo de um robot porque pensam, as pessoas de vidro, que os robots ainda estão longe, no éter. Não estão, já andam e são gigantes. Feitos de ferro agarrados aos nossos ombros de vidro.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O silêncio dos inocentes e a urgência sobre margaridas e carvalhos

    O silêncio dos inocentes e a urgência sobre margaridas e carvalhos


    O carvalho é uma árvore (pode ser uma pessoa se escreveres com maiúscula). Tem um género. E tem uma família.

    Existem muitas espécies de carvalhos. Muitos indivíduos. Géneros estão também definidos, podem ser vários, mas estão definidos. As famílias também.

    (A América do Norte pelos vistos tem muitos carvalhos. É dos locais que mais tem.)

    Eu conheço bem o carvalho, é das árvores que mais me pedem em projectos. Muita gente quer viver com carvalhos ou, por vezes, a simples aparência de um.

    macro photography of brown plank

    É cada vez mais possível imitar a madeira de carvalho (ou outras) em materiais sintéticos. Em teoria, isso protege o ambiente, previne o abate de árvores que demoram muitas décadas a formar corpo e robustez (e altivez).

    Na prática, é uma questão de marketing e ponderação. Ponderamos o uso, o custo, a vida que esperamos do objecto, do móvel, da cozinha, do chão, da parede, do tecto, do telhado, da estrutura. Ponderamos ainda a nossa capacidade para cuidar de um material que está vivo (mesmo estando morto). Que não é inerte, que tem temperatura, temperamento, movimento e reage a nós, ao ar, ao sol, ao tempo (sempre o tempo).

    “Construía casas que duravam séculos. Polia móveis que serviriam para os bisnetos. A casa familiar recebia-o à nascença e transportava-o até à morte, depois, como um bom navio, de uma margem para a outra, fazia passar, por sua vez, o filho. Mas a habitação deixou de existir! Iam-se embora, sem mesmo saberem porquê!” 

    green leaves under blue sky during daytime

    Uma margarida é uma flor (pode ser uma pessoa (até uma criança) se escreveres com letra maiúscula).

    A margarida é uma planta, tem um género, tem uma família (temos todos).

    Na verdade, a flor da margarida é só uma das partes da planta. O capítulo. Numa preciosa composição natural de pétalas, que circunda este capítulo, e que podemos observar, a olho nu, são as marginais. Numa preciosa cristalização, que existe num tempo finito, breve, frágil, inocente.

    A margarida e o carvalho estão conectados. Entre eles a terra, o ar, e até ondas electromagnéticas. criam simbioses. A mão que toca o tronco do carvalho pertence a quem irá cheirar a margarida. E a abelha viaja entre tudo, alimentando o mundo.

    A margarida não pensa que é margarida. Ela simplesmente é.

    (Mestre Caeiro, volta por favor…)

    Tanto quanto o carvalho, que se espreguiça, que se enterra, não pensa no que é. Ele simplesmente é.

    macro photography of white and yellow daisy flowers

    [Interlúdio para uma fábula incompleta]

    O patinho feio que se julgava feio, quando na verdade era cisne, não tinha nascido no corpo errado. Só tinha de esperar e crescer para ver que, afinal, só não se estava a conhecer no início da história, como se conheceu no fim.

    Enquanto o inocente patinho cresceu, sentiu as dores de crescimento. Mas passou. E ninguém se magoou.

    Já o camaleão – infelizmente nascido em cativeiro, o pobre – de olho arregalado (um para cada lado), quando se afastou do ovo de onde saiu correu. E, acometido por confusão e vendo estrelinhas ao bater de cabeça contra o vidro do aquário onde nasceu, julgou de repente, na verdade, ser gatinho.

    Até porque, do lado de lá da sua vitrine, através do corredor da loja de animais, uma inocente e fofa ninhada miava enquanto procuravam a mama da mãe. E tanto, tanto o camaleão os invejou, que na sua solidão pensou…

    “se eu partir este vidro, poderei ir ter com os gatinhos, e até talvez mamar na mãe deles, que vai ser minha também!”

    Estar acordada de noite é viver num mundo às escuras (viva o mundo às escuras!).

    Aqui, um carvalho é um carvalho. Uma margarida é uma margarida. Eu sou eu. Tu és tu. Temos géneros, temos famílias, temos lugares no mundo, encaixemos facilmente ou não (quem encaixa facilmente? Caixa, caixa, caixa), com pétalas em falta ou ramos quebrados, somos o que somos.

    No mundo às escuras do mundo iluminado acontecem coisas que se vêem tarde, só quando o sol nasce (e quando nasce).

    white lighted sconce

    E para o leitor valente que se manteve comigo até agora, coloco aqui aquilo que deve procurar ler sobre margaridas e carvalhos. Sobre o que está ou não conectado. Sobre o patinho feio, que desabrocha em cisne num lago, ou sobre o camaleão de aquário, que quer ser adoptado por uma gata:

    Projeto de Lei nº 72/XV/1ª (BE) – APROVADO 

    Projeto de Lei nº 359/XV/1ª (BE) – APROVADO

    Projeto de Lei nº 21/XV/1ª (PAN) – APROVADO

    Projeto de Lei nº 209/XV/1ª (L) – APROVADO

    Projeto de Lei nº 332/XV/1ª (PS) – APROVADO 

    Projeto de Lei nº 699/XV/ª (PAN) – APROVADO

    (O direito à separação por sexos em casas de banho foi uma conquista de direitos de trabalhadoras da indústria, o proletariado. Foi uma conquista feminista para mostrar que somos, sim, diferentes desde o berço e acentuando com o crescimento e maturidade, todas as necessidades diferentes. E nenhum grupo deve calcar outro para conseguir os seus direitos. Foi assim em todas as lutas das mulheres. Dos espaços seguros, à autonomia, liberdade e sufrágio, ao desporto, ao combate à exploração do corpo da mulher sob todas a formas. Suposta “esquerda” que abandonou os trabalhadores para serem pasto de vermes nascidos em ovos da páscoa pintados com várias cores. Falhaste-nos. Não te perdoaremos.)

    four children standing on dirt during daytime

    Margaridas e carvalhos e o silêncio dos inocentes (lembram-se do vilão? O que estava junto ao poço?)

    Agora não se constrói para durar uma vida. Nada. Pois isso não traz lucro ao reino dos psicopatas. Eles decidem, eles organizam, eles fazem tudo por ti. Por uma utopia, filho!

    São pelos vistos agora precisos falsos carvalhos, plantados em canteiros de margaridas.

    Saiam do nosso canteiro. Não toquem nas nossas margaridas.

    “Mas, quando se trata de falar do Homem, a linguagem torna-se incómoda. O Homem distingue-se dos homens. Nada de essencial se diz da catedral se apenas se falar das pedras. Nada de essencial se diz acerca do Homem se o procurarmos definir pelas qualidades de homem. O Humanismo orientou-se, portanto, numa direcção antecipadamente obstruída.”

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Eles sabem (balada romântica para robôs)

    Eles sabem (balada romântica para robôs)


    Se um pardal enervadamente esvoaça na rua, pousando entretanto para debicar uma beata de cigarro junto ao passeio, sentimos nos ossos o asco que ficou intrínseco a considerar que sim, estamos num mundo à parte do mundo natural.

    Nós, e todas as nossas coisas, somos entidades sujas a poluir o mundo, desligados e impositivos. Tudo o que fabricamos e construímos desintegra-se em três vezes mais partículas de lixo que entope pulmões, quem o vê, envergonha-se.

    (Vamos pedir desculpa aos pardais.)

    brown and white bird on brown rock in water

    Eles sabem que as investigações são gritos ecoados no vento.

    Eles sabem que as manifestações são pulgas sacudidas em cão sarnento.

    Eles sabem que braços e pernas se cansam e que a máquina continua, avassaladora, devoradora.

    Até os foguetes e luzes de reacções e revoluções mais não são que bailado de pernas esticadas e movimentos coreografados.

    E assim, ainda antes dos carros voarem, o fantasma da inteligência artificial finalmente adquire contornos e aterroriza muitos. Outros há que relativizam, é uma ferramenta, é só mais um martelo, é o curso natural do nosso curso artificial e desconectado (pede desculpa ao pardal).

    Até o senhor do espaço, do carro eléctrico mais bem publicitado da indústria e do pardal azul (também conhecido como Twitter) continua o seu caminho para entrar dentro de cérebros. E até ele se levanta, em mais um esvoaçar coreografado, e diz ao Robot que fique em coma uns seis meses, que vá dormir, que pare de crescer e aprender.

    Que estranho tal pedido.

    Como pedirmos aos nossos filhos que se congelem no tempo (mas o tempo continua, sempre o tempo).

    Claro que o pedido ser feito por gigantes, que competem em roubar o fogo aos deuses, é só uma coincidência (será?), e que os receios de estarmos a tactear uma caixa de Pandora são legítimos (ou infundados?).

    Há pelo menos um século que desenhamos e contamos histórias de antecipação a este momento.

    Quase todas ilustradas de forma assustadora.

    Quase todas inevitáveis, um caminho inexorável onde a Humanidade se encarrilou há muito tempo.

    E, mesmo assim, estamos espantados. Como se não fosse suposto termos chegado aqui.

    photo of girl laying left hand on white digital robot

    Eles sabem, mas nós não sabemos. Nós continuamos o nosso dia, a fazer tanta coisa, a processar informação a alta velocidade. A tentar determinar o que é importante, o que é essencial, o que é mesquinho e o que é transcendente e incontornável. O que é melhor e o que é pior. Qual o caminho enquanto navegamos sem ter mapa.

    Parece que o medo é que a criação reflicta o seu criador.

    Parece que o medo é que o filho mate o pai, assim que foque o olhar e conclua que o pardal vale mais que nós.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Não nos tirarão as palavras

    Não nos tirarão as palavras


    Por todo o lado a cidade ergue-se em cima dela própria, as pedras cansadas a vergar corroídas pelo cheiro de urina que vagueia por entre recantos, creolina e cara lavada em pontos de inflexão, graffiti bonito e colorido em caixas de electricidade feias, como maquilhagem e transformismo urbano.

    Tudo pronto para a fotografia. Tudo mentira. (E o que é a verdade senão a nossa mentira? Onde estás, Voltaire?)

    green sprout between concrete bricks


    De buraco em buraco saltamos, desviamos caminho para não tropeçar, cabeça baixa para não parar. (E a fome a rastejar ao nosso lado.)

    – Isto chega a uma certa idade é o que mais é, é cair a toda a hora!

    – Pois olhe ela caiu, partiu duas costelas e agora lá está, deitada.

    Que nos fizeram estes anos? Que nos fazem ainda? Aprisionaram-nos em casa, exigiram-nos guia de saída, injectaram a salvação no nosso braço (o que é a lei?), taparam-nos a cara (o que é o direito?), enervaram-nos a pele e sujaram-nos o pensamento. A cidade em cima dela própria, tudo é novo, tudo é velho (e o cheiro, a pestilência).

    person hand reaching for the sky

    Foi só isso e já passou? Esqueceram 2008? 2010? 1995? Tantas datas e as cidades em cima delas próprias e em cima de nós, soterrados em fedor de urina e creolina a desinfectar a superfície. Que visão, a ascenção e queda de uma civilização. Que circo de figurinos e o Parvo no molhe, a apontar-lhes as chagas.

    – Eu descontei 47 anos, olhe este joelho, ando aqui que não me posso apoiar nele.

    – E a sua quintinha?

    – Eu tenho-a toda bonita, não se vê uma erva, assim é que eu gosto, de a ver de lá de cima, é um mimo.

    A Bíblia do Diabo é tão pesada como uma pessoa, de tão grande que é. Chama-se Codex Gigas e em princípio foi diligentemente escrita no século XIII por monges beneditinos na República Checa.

    No meio das guerras que marcam as pedras das cidades europeias, no meio das falências que permitiram que os Cistercienses comprassem esta obra de conhecimento do mundo não perecível, e no meio de empréstimos que se prolongam no tempo, este Codex viajou para um castelo que sofreu um incêndio.

    Poderia ter-se perdido no tempo para nós mas, reza a lenda, alguém o salvou em corpo do meio do inferno e o lançou de uma janela, tendo vindo a cair em cima de um espectador que até se magoou, por ter levado com aquela entidade feita de peles de burro em cima das costas.

    O Diabo ocupa figura de destaque numa sua representação desenhada em corpo inteiro, com ar travesso e olhos esbugalhados. O céu, também representado noutra página, não tem lá ninguém. Está vazio. (Curioso, com tanta gente a bater com a mão no peito.)

    Haverá sempre quem carregue em corpo as palavras, nem que as tenha de lançar de uma janela, arriscando a esmagar alguém que se limita a assistir.

    man standing in front of the window

    Nada é planeado agora para o futuro distante. A velocidade tornou-se um vício e só trotinetas e eventos vazios é que existem.

    Na verdade, ninguém quer um uso responsável das urnas. E por isso mesmo se sucedem os mesmos ou então surgem as vozinhas de pregão no balcão do café. Pessoas tacanhas que fazem exercício de encontrar culpados para as agruras mais partilhadas pelos demais, trepando assim ao poleiro, caturras coloridas e barulhentas.

    Na verdade, Portugal não tem quem movimente corações (alguma vez teve?). Depois de sangue azul de privilégio e ocasionais megalomaníacos, depois de se importar a república, de baterem portas no vaivém de entrada e saída, de um chapéu tacanho e censor pôr ordem na casa para gáudio dos órfãos. Depois de jovens nos libertarem e se libertarem a si do diabo gigante do poder, os chacais têm estado a roer os ossos que sobram de uma nação que tinha tudo para o ser por vocação.

    Sempre tivemos o corpo, corpo velho de cidades construídas em cima de cidades. Temos até a alma. Mas, na verdade, falta-nos a mente.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Afinal as torres são de porcelana

    Afinal as torres são de porcelana


    No cimo da torre caminham monstros entre dois mundos. Monstros que se diriam marinhos, viscosos e pesados, que estremecem os pisos inferiores em cada salto aéreo, planando sem dificuldade pela construção de mitos cá em baixo, enquanto tocam flauta.

    Mitos cá em baixo e coletes fluorescentes que rasgam o asfalto e respiram escapes a caminho de si próprios (precisamos de caminhar para algum lado).

    Postes de alta tensão e antenas multiplicam-se e atravessam as rotas (fecha os olhos, não olhes para cima e não as vês, baixa a cabeça e olha para o ecrã).

    black metal frame with glass roof

    Enquanto isso os deuses incumbem sacerdotes de rasgar os peitos de discípulos e oferecer corações em sacrifício, ainda a pulsar (somos muitos, somos demais, salvem os gatinhos, esterilizem-nos e não os deixem ir para a varanda).

    Se os pensamentos já são fugidios e ainda, para além de os tentarmos apanhar, temos que os ordenar para encontrar sentido nesta história, a quem é que afinal sobra tempo para transmutar a torre dos monstros em castelo de porcelana (rachou, ali já rachou).

    Vejam bem o que sobra dos esqueletos de edifícios feitos por estes monstros. Nem ruir sabem com dignidade (a quem sobra tempo?)

    Mas o tempo acelerou tanto que só nos sobra caminhar por entre os escapes rumo a uma promessa.

    time lapse photography of tunnel

    E que dor que é. Porque o facto é que somos bichos e precisamos de tempo e as nossas mentes precisam de o ver (o tempo) para o transmutar em porcelana.

    Não, não pode ser só nascer, entrar na fotocopiadora e sair a preto e branco algures na vertigem da maturidade, produzir mais dejectos e entretanto morrer algures no limiar da nossa inutilidade produtiva. Do nosso abrandar inexorável.

    Há mais em nós. Há mais em ti.

    Por isso se marcava o tempo, a cada ano, a cada degrau da torre. Para chegarmos lá acima e limparmos o caminho de monstros marinhos e viscosos que se atreveram a voar e ensombrar os nossos dias.

    A fartura nunca educou ninguém, mas começaram a imprimir e a copiar folhas vazias de alma, as fichinhas, para supostamente ensinar os miúdos mais depressa, como quem carregava no botão da impressora e lá saía mais um garoto pronto a consumir (pronto a produzir).

    girl using VR goggles

    Deixamos de criar guerreiros e guerreiras, passamos a engordar a tribo e a cortar o cabelo de formigas submissas às ordens de tiranos que nunca tiraram uma vida (e como poderiam?) e que não sabem o valor de uma vida (de uma morte) e que não têm assombrações (e assombros) que os guiem enquanto guiam homens, de cabelo já cortado, rapado pela raiz, sem mais ritual de transição do que o da humilhação e subjugação.

    Houve outrora pavões orgulhosos que encheram o peito para conquistar um lugar, agora todos depenados em aviários, confinados a caixas todas iguais com vernizes de cores diferentes, a pintarem as unhas para pôr ovos que vão ser chacinados, devorados, desperdiçados.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Lama (ou o que é um spin doctor)

    Lama (ou o que é um spin doctor)


    Todos temos um ângulo morto. E todos sabemos os riscos desse ângulo morto caso a viagem prossiga em velocidade acelerada e não tenhamos tempo de virar a cabeça para confirmar a nossa própria segurança.

    Este nosso império onde arrastamos os pés na lama apostou há séculos num enorme amor por tudo o que esteja fora das fronteiras conhecidas. É a nossa grande força, mas pode ser uma enorme fraqueza.

    a wooden surface with a curved surface

    O descontentamento de um curioso, ávido de novos pastores, depois de séculos de abusos de poder e quebras de confiança com os guias espirituais de Roma, depois do deboche tão bem denunciado por Sade, depois de atropelos sucessivos de vozes de denúncia a instalar a dúvida na mente de todos sobre cada padre, cada representante do divino na Terra, fez muitos beberem o que não compreendiam porque não lhes estava na pele e na alma colectiva que carregavam.

    Eis que, em flagrante delito, vemos o que é um homem que ocupou o nosso imaginário (com a sua vida de sandálias) a passar de Estado em Estado, apelando a ajuda militar, clamando por apoio contra a anexação do lobo que lhe irrompeu pela porta (se vestisse caqui e fosse um actor eleito poderíamos até achar que vinha de outros lados), na sua baixeza vil.

    Na sua tão natural violação de algo que, na nossa sociedade, (ainda) é sagrada conquista: protecção da inocência da criança e pudor. Respeito pelo corpo e a natureza íntima da partilha do mesmo. Respeito pela absoluta necessidade de consentimento adulto para essa partilha.

    Lama.

    people riding of ferris wheel during daytime

    Raramente a vemos até enfiarmos os pés naquilo que julgávamos sólido, e ficarmos sujos até aos tornozelos, lamentando a velocidade com que corremos a erguer uma bandeira.

    Porque neste nosso império se abriram caixas de ressonância enormes, a reverberar ecos de opiniões e reacções, como em nenhuma outra parte do mundo, antes mesmo dos mecanismos de censura aparecerem e deitarem as unhas de fora, a raspar-nos as opiniões permitidas e não permitidas das costas, surgiram os spin doctors.

    Não são profissão nova, nem tão pouco advento sem embasamento em mecanismos de propaganda tão antigos quanto as nossas estruturas de poder. São, regra geral, invisíveis, inteligentes e rápidos.

    As redes sociais são pasto para estes doutores. São os especialistas de discurso. Os produtores de conteúdo. Os feiticeiros escondidos atrás da cortina que preparam pseudonotícias, análises, opiniões. Pequenos menus de degustação de fast food pronta a consumir, completos com imagens ilustrativas e impactantes.

    a close up of a tire track in the dirt

    Vem o Brexit e correm todos os visores de telemóvel com iscos sobre ameaças turcas ao povo britânico. Vem a “pandemia” e pululam os textos cheios de números, factóides, pedrinhas lamacentas no charco sobre como vamos todos morrer (e algo de novo, há?)

    O malvado urso de leste põe uma pata em território alheio, e estrategicamente seus laboratórios (mas é uma coincidência), e logo correm resenhas enciclopédicas sobre uma nação mágica de searas douradas e céus azuis, pura, sagrada, inocente (e pode sempre ser isto e o resto também).

    Os ângulos mortos instalam-se e abafam em gritos as outras faces de cada moeda. A quebra da cooperação europeia pela interferência americana no Reino Unido. Os custos altíssimos que nos forçaram a pagar por confinamentos, máscaras e inoculações experimentais. As ingerências externas em mais um país que serve de palco a uma guerra que não é sua, enquanto no leme seguem conduzindo nacionalistas de cepa alta, agressiva, feroz.

    Lama.

    Uma pessoa criada já neste mundo sem adultos, sujo de ideais contraditórios, barulhento por uma caixa de Pandora aberta com grande estrondo, entra num hospital em Faro e horroriza-se com o mundo real (será real?)

    people's hand on gray mud

    Com o nojo, o asco, a língua de fora. A sobranceria, o autoritarismo, a negligência.

    O crime. Lama.

    Claro que existe presunção de inocência (é bom que se lembre quem se apressou a condenar padres católicos). Claro que existe devido processo (é bom que se lembre quem vai para a lama gritar denúncias, mas e não tentou?) Claro que existe choque cultural (é bom que se veja o que é um texto cheio de imagens catitas do senhor doutor “spin”, a branquear o pecado ou a capitalizar o mesmo).

    Claro que existe a lama, principalmente se a chuva de Abril chega e cobre a terra. Cuidado com o ângulo morto.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Barcos feitos de mar

    Barcos feitos de mar


    Uma menina em cadeira de madeira em escola bafienta, desconfortável, pernas a baloiçar, pergunta-se sobre que mapa é aquele ao fundo, na parede ao lado do quadro, se aquilo é a vista dos fantasmas de quem morreu. O atlas. Nós ao centro, os mares que se unem mas têm nomes diferentes, a cauda da Ásia que por alguma razão inexplicável tem direito a ser outro continente (perguntou, não disseram porquê), a enorme África calcada aos pés de tão ridículo e pequeno continente de pequenos retalhos e a sombra inclinada da ameaçadora América do norte, com garras apontadas em tenaz.

    Pobre Antártida ignorada, e como diferente seria o mapa se tivessem decidido pô-la ao centro (perguntou, não disseram porquê). Devia ser por medo do frio.

    blue and yellow abstract painting

    A menina nota que há uma decoração obrigatória naquela sala, parecida com as outras salas do resto da escola. O mapa, um ábaco, um crucifixo, a lousa com a data e o nome da escola impecavelmente caligrafados a branco, o apagador sempre sujo ou a tela com todas as notas e moedas de escudo. Tudo é imensamente velho. Nomes cravados diligentemente nos tampos de madeira, os sulcos mais parecem uma nova rugosa casca de árvore e não pode escrever numa folha sem ter o livro debaixo. Outras pessoas foram meninos e meninas ali e hoje só existem aqueles nomes. Que raiva a mesa destruída mas, ao mesmo tempo, pobres meninos de quem só sobram aquelas rugas, melhor assim, deixa estar. (E já agora, vou preencher a caneta, vou ressuscitá-los.)

    Quando as pernas já chegam ao chão o mapa ganha tamanho, a corrida acelera e corta o fôlego.

    Como assim eles venceram a guerra e libertaram-nos? E não quiseram nada em troca? (Perguntou, não disseram porquê.)

    A bomba cai, depois cai outra (e de Dresden não falamos). A bomba. É vê-los ainda a tiritar de medo.

    child looking at map

    Para a menina não dá medo, a bomba não existe e histórias em papéis e mapas há muitas e ela lê todos os dias debaixo do cobertor durante a noite com uma lanterna de bolso, como assim não quiseram nada em troca? Simplesmente foram embora pelos nossos lindos olhos e disseram “estais salvos europeus, sejam felizes e continuem a tocar piano e a erigir catedrais, nós vimos cá nas férias, gabar-vos a sopa”.

    Curiosos os povos ocupados que não sabem que o são. (Tenham medo do novo bigode, seja ele do tamanho do dedo do anjo ou farfalhudo, o perigo está no bigode, homem que é de confiança apresenta a cara lavada!)

    Santa América, nosso reich salvador, nossa mestra. Falaremos tua língua, consumiremos avidamente tua cultura, tua subcultura, tua usura. Estamos habituados a mapas cor de rosa, diz-nos o que fazer, nós fazemos, vocês decidem. (A bomba.)

    Que sente o pai a quem a filha pergunta se matou pessoas quando esteve em África?

    – Mataste pessoas na guerra, pai?

    closeup photography of bong mask

    A guerra não existe. A guerra não existiu. Nós fomos mandados para lá, nós não queríamos ir e tiritavamos de medo. O mapa ganhou tamanho (e a corrida acelera e corta o fôlego) e nós queremos é sobreviver e uns correm prá frente, outros correm pra trás, e isto é assim e no fim se tivermos sorte vimos embora e talvez não nos falte nenhum bocado (do corpo) enquanto apanhamos bocados (da alma) e engavetamos memórias algures, uns mais à frente, outros mais atrás, que isto dos móveis onde guardamos as coisas é tudo uma questão de decidir se usamos portas de vitrine (e estarão os vidros limpos?) ou madeira velha com nomes marcados em sulcos rugosos e ainda a menina se lembra de ir preencher a caneta, a ver se ressuscita crianças que por ali passaram.

    Que sentiria um pai se tivesse vencido a guerra e a filha lhe perguntasse se matou pessoas na guerra?

    E o que é vencer a guerra, rapariga? Quem tem de ir são os homens, vocês ficam aqui a tomar conta.

    Tomar conta do quê? Aqui onde? E se a guerra chega cá?

    E os homens a tiritar de medo mas as histórias são de papel e o mapa ficou decidido ao centro, a Europa, essa velha senhora, tão pura, tão odiosa.

    brown wooden piano

    Os mundos vão e vêm e as guerras aparecem e desaparecem sem que nada disto esteja afinal nas nossas mãos. Se é um eixo, se é um muro, se são aliados que desatam a morder as gabardines uns dos outros assim que saem de Ialta. Enquanto as pernas balouçando na cadeira e a azáfama de folhas de livros a tentarem enfiar-se na nossa cabeça (e na nossa alma), que desconfiança dos livros que se querem enfiar no meu corpo (e na minha alma), se me mandares ler eu já nem vou querer pegar nele.

    E os meninos a tiritar de medo (e vão ser homens) mas as histórias mudam de papel e quando voltam da guerra para navegar o mapa descobrem que os barcos são feitos de mar.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.